Baixe o player Flash para assistir esse vídeo.
Paulo Markun: Boa noite. Ele disse o que Brasil só teve projetos desenvolvimentistas nos tempos de Getúlio [Getúlio Vargas] e Juscelino [Juscelino Kubitschek]. De lá para cá, o país ficou a maior parte do tempo entregue ao modelo neoliberal imposto de fora para dentro. Aos setenta anos de idade, mais de cinqüenta na vida pública e acadêmica, ele continua trabalhando onde sempre atuou, no ponto entre a economia e teoria social. O Roda Viva entrevista esta noite o economista, professor e ex-ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, persistente defensor do desenvolvimentismo.
[Vídeo]: Bresser Pereira é referência nacional quando o assunto é política econômica não subordinada ao sistema financeiro. Representante de um ativo grupo de economistas ligados à Fundação Getúlio Vargas, de São Paulo, marcou sua vida intelectual e política com a defesa e busca de um projeto desenvolvimentista para o Brasil. Paulistano, cursou a Faculdade de Direito, da Universidade de São Paulo, onde também se tornou doutor em economia, além de mestre em administração pela Universidade de Michigan, nos Estados Unidos. Sempre trabalhando como professor universitário, ele foi executivo do grupo Pão de Açúcar durante vinte anos. Em 1983, começou a vida pública como presidente do Banespa, o Banco do Estado de São Paulo. Em 1987, foi ministro da Fazenda do governo Sarney (1985-1989), retornou a Brasília, em 1995, como ministro da Administração de Fernando Henrique Cardoso, para reformar e reorganizar a administração pública. Em 1999, no segundo mandato de Fernando Henrique, Bresser Pereira ocupou por seis meses o Ministério da Ciência e Tecnologia. Depois, retornou à vida privada em São Paulo para se dedicar às atividades acadêmicas. O site pessoal na internet www.bresserpereira.org.br dá acesso a informações e documentos e a maior parte dos trabalhos que ele publicou – trabalhos acadêmicos, artigos, e entrevistas em jornais organizados por temas. Todos os livros estão listados. São 38 registros e muitos permitem impressão de textos. A última publicação não é dele, mas é uma homenagem a ele – Em busca do novo, o Brasil e o desenvolvimento na obra de Bresser Pereira foi lançado pela Editora da Fundação Getúlio Vargas. O livro, organizado por Yoshiaki Nakano, José Márcio Rego e Lilian Furquim, comemora os setenta anos de Bresser Pereira reunindo idéias do economista sobre o Brasil e desenvolvimento.
Paulo Markun: Para entrevistar o economista Luiz Carlos Bresser Pereira, nós convidamos Leda Paulani, professora de economia da Faculdade de Economia e Administração da USP e presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política. Reinaldo Azevedo, diretor de redação do site e da revista Primeira Leitura. Gildo Marçal Brandão, professor de ciência política da Universidade de São Paulo e secretário adjunto da Associação Nacional de Pós-graduação em Pesquisa e Ciências Sociais, Anpocs. Otto Filgueiras, repórter especial do jornal Gazeta Mercantil. Caio Túlio Costa, presidente do Instituto DNA Brasil e da Fundação Semco; e José Márcio Rego, economista, professor da Fundação Getúlio Vargas e da PUC de São Paulo. Ele é também um dos organizadores do livro Em busca do novo, o Brasil e o desenvolvimento na obra de Bresser Pereira. [...] O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e para Brasília, também pela Rede Pública de Televisão. Como o programa está sendo gravado, não permite a participação dos telespectadores. Boa noite, professor.
Luiz Carlos Bresser Pereira: Boa noite.
Paulo Markun: O senhor menciona a condição brasileira como sendo a de um desenvolvimento nacional dependente [teoria da dependência], dois opostos aparentemente inconciliáveis. Eu pergunto se o senhor considera que o atual governo do PT [Partido dos Trabalhadores] tem a cara desse nacional “dependentismo”, se é que se pode dizer isso.
Luiz Carlos Bresser Pereira: É, tem, quer dizer, todo o Brasil tem essa cara, não é só o governo do Lula. São todos governos brasileiros. De modo geral, é o próprio Brasil. Porque é a idéia de que nós, ao mesmo tempo, somos uma nação e somos dependentes. Então, nós, ao mesmo tempo, temos empresários nacionais e temos empresários que pensam de forma dependente. Temos jornalistas, intelectuais, técnicos do governo nacionais e dependentes. Quer dizer, uns que são capazes de pensar o Brasil com autonomia e outros, ou em outros momentos, são incapazes de fazer isso, e começam a pensar com a cabeça alheia.
Paulo Markun: Então o senhor não acredita que é, vamos dizer assim, a face de uma moeda que tem gente que é nacionalista e tem gente que é dependentista?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Não, não é só uma divisão, porque nós somos ambíguos. Quer dizer, isso é uma condição de uma sociedade semi-desenvolvida ou de desenvolvimento intermediário como é o Brasil, que já fez um grande avanço na direção da sua revolução capitalista, mas deixou incompleta a sua revolução nacional. E, portanto, não tem muito claro para si próprio que o papel do seu governo é o de defender o trabalho, o capital, e o conhecimento nacional. Isso os franceses, os ingleses, os americanos têm claro isso para eles, ninguém tem dúvida.
Paulo Markun: Aqui a gente fica meio envergonhado?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Ficamos envergonhados, atrapalhados e sofrendo uma pressão muito violenta que vem lá de fora e diz que “isso está superado. Vivemos no mundo, agora, da globalização e no mundo da globalização as nações, os Estados nacionais perderam a importância e o nacionalismo é coisa de limpeza étnica e outras violências desse tipo”. Na verdade, eu me lembro sempre de um dia que eu estava num jantar, na casa de um grande amigo e, de repente, eu falei assim: “Bom, você sabe que os franceses não são nacionalistas, os ingleses não são nacionalistas, os japoneses não são nacionalistas, os americanos não são nacionalistas”. E as pessoas começaram a olhar para mim com olho arregalado porque evidentemente que são, pois percebem que seus governos devem defender seus interesses. Porque o sistema global em que nós vivemos, essa globalização em que nós vivemos é o sistema organizado de acordo, ainda, com Estados e nações. E, fundamentalmente, se você quiser uma definição de globalização, eu tenho duas para o plano econômico, que você pode escolher ou a mais forte ou a mais fraca. A mais forte diz o seguinte: “globalização é competição generalizada dos Estados nacionais através das suas empresas a nível mundial”. E a mais fraca é: “A globalização é a competição generalizada das empresas a nível internacional, apoiadas pelos seus respectivos Estados nacionais”. As duas, você vê claramente que os Estados nacionais continuam absolutamente estratégicos, que os Estados nacionais podem cooperar entre si – e cooperam – mas eles competem também. Infelizmente, eles não fazem mais, os grandes Estados, não se gastam com guerras como se fazia antes da globalização, no período de equilíbrio de poderes.
Caio Túlio Costa: Professor, pegando um exemplo agora, que estávamos falando antes de começar o programa, o senhor define isso muito bem quando faz aquela diferença entre identidade cultural e identidade nacional.
Luiz Carlos Bresser Pereira: Isso.
Caio Túlio Costa: O senhor não queria repetir isso para gente, porque eu acho que isso dá uma idéia mais aprofundada sobre esse assunto.
Luiz Carlos Bresser Pereira: Então, eu tenho visto muitas pessoas, amigos meus inclusive, já fui convidado para fazer palestras sobre a identidade cultural do Brasil e a identidade nacional do Brasil. E eu cheguei, inclusive, a perpetrar duas palestras nesse sentido há algum tempo, mas a coisa não estava bem arrumada, não estava fechada. E há algum tempo atrás... Eu tenho um grande amigo canadense e é um grande amigo do Brasil também, tem até um filho brasileiro. E o [...], então, veio ao Brasil e, num certo momento, estávamos conversando e alguém – na mesa tinha outras pessoas – e alguém disse: “Não, porque a identidade cultural do Canadá é maior que a do Brasil”. E aí o Phillipe disse: “Não, de jeito nenhum, vocês têm uma identidade cultural muito maior que a dos canadenses. Vocês têm uma música, vocês têm o carnaval, vocês têm o futebol, vocês têm comida, vocês têm uma mistura de raças, e nós não temos nada disso”. Quer dizer, acontece que nós tínhamos discutido o tempo todo antes como o Canadá era, do ponto de vista nacional, capaz de defender seus interesses muito melhor que o Brasil, muito mais nacionalista que o Brasil, se você quiser. E aí, então, ficou claro que uma coisa é identidade nacional, que é política, e que somos fracos, somos muito fracos, já fomos melhores no passado; e outra coisa é identidade cultural que somos bons e fortes. Nós precisamos juntar essas duas coisas.
Caio Túlio Costa: Quando fomos fortes?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Fomos fortes, fundamentalmente, entre 1930-1960 e também no período militar. Ainda que o regime fosse autoritário e tenha afastado trabalhadores do processo, se conservou [uma identidade nacional], mas a partir dos anos 1980 começamos a viver em uma grande crise, que se transformou, nos anos 1990. Aí sim fomos dominados pela ideologia não só neoliberal mas que eu chamo de globalista, aí, então, o país perdeu o rumo. E o fato é que está estagnado há 25 anos.
Reinaldo Azevedo: Eu queria entrar um pouco na questão política, apimentar um pouco a nossa conversa. No dia 29 do mês passado, de novembro, o presidente Fernando Henrique num seminário do Instituto Sérgio Motta, respondendo a uma suposição feita de que o primeiro mandato do presidente Lula - se é que é o primeiro – pode ser considerado o terceiro dele, Fernando Henrique. E ele respondeu: “Bom, se for o terceiro que seja, então, o último”. E depois, classificou o governo de incompetente, disse que era preciso dizer que rei estava nu etc... No dia seguinte, saiu a divulgação do PIB [Produto Interno Bruto] do terceiro trimestre de 2004 com crescimento de 6,3% projetando um crescimento possível no ano de 5%, cinco e alguma coisa. E aí, então, veio a reação petista: “Não, incompetente nada, tanto é que o crescimento está aí”. Lembro ainda que, a despeito da Carta ao Povo Brasileiro [documento assinado em junho de 2002, pelo então candidato à presidência da República, Lula e o Partido dos Trabalhadores, atestando que respeitariam os contratos nacionais e internacionais, caso vencessem as eleições], do PT [Partido dos Trabalhadores] na campanha eleitoral, ainda assim a especulação se encarregou de tornar a situação bastante difícil na reta final de 2002 e nos primeiros meses de 2003. Isso, diante de uma suposição que muitos negavam, o próprio Fernando Henrique, então, negava de o que PT pudesse romper com os mercados e que ele [PT] negava [o possível rompimento] na própria Carta ao Povo Brasileiro. Quando Fernando Henrique disse que é o terceiro mandato e diz também “que seja o último”, parece que ele próprio reconhece, embora reconheça agora, que o seu modelo está vencido. Por outro lado, toda a especulação de 2002 e início de 2003, que deixou o Brasil numa situação muito difícil, demonstram que, de fato, é muito difícil a relação do Brasil com os mercados, com o mundo globalizado. Eu não quero exatamente, eu não quero que o senhor dê aqui a saída, mas como se começa articular uma resposta que não seja esta que temos, que é rigorosamente “sim, mais do mesmo”, não houve mudanças na macroeconomia, ela continua igual e a situação econômica nacional melhorou, portanto, a gente navega nessa melhoria.
Luiz Carlos Bresser Pereira: Acho que a mudança se faz através do debate nacional, e se faz também através de um acordo nacional. Quer dizer, não se trata de fazer um pacto político escrito, nada disso, mas eu estou profundamente convencido de que o desenvolvimento econômico é alguma coisa que só é alcançável quando há uma estratégia nacional por trás dela. Quer dizer, essa estratégia nacional pode variar muito. Nós tivemos uma estratégia nacional no tempo de Juscelino, no tempo de Getúlio. Eu, por exemplo, dei um curso agora de desenvolvimento econômico, [cuja] idéia central era essa, e eu pedi aos alunos que fizessem trabalhos para responder à seguinte pergunta: “Examine um país e verifique se há estratégia nacional ou não num período de desenvolvimento importante que ele tenha tido”. Uma das alunas apresentou um trabalho sobre a Irlanda recente. Evidentemente que houve ali um enorme desenvolvimento, por quê? Porque houve uma estratégia nacional, houve um acordo. Quer dizer, as classes – os trabalhadores, os técnicos do governo e os empresários – se uniram, apesar das suas divergências, e escolheram algumas prioridades, reduziram, diminuíram a carga tributária, resolveram fazer uma política industrial muito definida etc.. Quer dizer, baixaram, puseram a taxa de câmbio num nível correto. Houve vários acordos, isso permitiu o desenvolvimento. E eu, um dia desses, vi um caso da Nokia Finlândia [Refere-se à Nokia Corporation, empresa finlandesa de telecomunicações que se tornou líder na fabricação de aparelhos para comunicações móveis], a mesma coisa. E isso a história mostra com clareza... Quer dizer, o Japão se desenvolveu, todos os países que se desenvolveram... A Inglaterra é uma coisa curiosíssima. Sempre dizem que a Inglaterra foi o único país onde não houve uma estratégia nacional. Pois bem, eu li recentemente um trabalho que mostra como os grandes reis da Inglaterra, a partir de Eduardo VII [refere-se ao rei Henrique VII (1457 - 1509), rei de Inglaterra pela dinastia Tudor. Responsável pelo fim da Guerra das Rosas, consolidando o Estado] não o oitavo [Henrique VIII, filho de Henrique VII], o sétimo, depois Elizabeth I [(1533-1603), foi Rainha da Inglaterra de 1558 até a sua morte] e outros reis que não me lembro o nome agora, no tempo mercantilista, tiveram um papel decisivo na formação do grande Estado nacional, que seria a Inglaterra depois da Revolução Industrial. Então, é isso que temos que fazer! Temos que ter um projeto, não é projeto nacional, nós temos que ter um acordo nacional para podermos ter uma estratégia, porque projeto nacional é uma coisa que parece muito plana, estratégia é uma coisa mais aberta, mais de acordo com o mundo global em que nós vivemos e que você responde também, você faz um plano, mas você está sempre respondendo às oportunidades que você enfrenta...
Leda Paulani: [interrompendo] Eu escrevi, recentemente, um artigo em que disse que o governo do PT [Partido dos Trabalhadores], o governo de Lula, demonstrava ter trocado um projeto de nação por um projeto de poder, pura e simplesmente. E essa era a razão principal pela qual nós estávamos assistindo o que estamos assistindo. E queria perguntar se você concorda com isso, de um lado, e se sim, qual é o papel desses constrangimentos que o Reinaldo [Azevedo] acabou de colocar? Quer dizer, até que ponto esse era o único caminho ou até que ponto foi uma escolha de fato. Quer dizer, havia ou não havia uma margem de manobra para sinalizar no sentido de uma mudança que você entende como desenvolvimento e que me parece... Hoje, escrevendo, inclusive, um artigo sobre o Celso Furtado [(1920-2004) um dos principais teóricos brasileiros da economia e membro da Academia Brasileira de Letras, eleito em 1997], me parece que há alguns pontos congruentes com o que o próprio Celso Furtado imaginava para desenvolvimento e a relação disso com o projeto nacional.
Luiz Carlos Bresser Pereira: Sem dúvida. Veja, eu estou convencido de que, realmente, houve uma traição aí. Em primeiro lugar, quando o governo começou, lá por volta de abril – não, antes disso, março – eu escrevi um artigo, na Folha, dizendo que estava começando a haver críticas muito violentas ao Lula e ao seu governo porque ele não estava fazendo uma mudança na política econômica. E eu disse: “o Lula não está traindo ninguém”. Porque, naquele momento, ele tinha que fazer a política que estava fazendo porque era preciso recuperar a confiança dos mercados internacionais de que ele não ia quebrar contratos, de que ele não ia fazer revolução e que não ia fazer populismo barato. Aliás, eu esperava que ele não fizesse. Mas, passado alguns meses, voltou a confiança no país e ele não mudou nada, ele continuou na mesma política. Quer dizer...
Leda Paulani: [Interrompendo] Você acha possível sair desse modelo, depois de ter entrado de cabeça?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Se ele vai sair ou não é outra coisa, mas ainda falando...
Leda Paulani: [Interrompendo] Mas seria possível sair?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Sem dúvida, ainda é possível, porque eu disse, no artigo que está publicado na Folha, que há muitas ameaças [sendo feitas]: “Vai voltar a inflação, o país vai quebrar”, essas coisas são fantasmas, mas os interessados na manutenção dessa política, que é política antinacional – e têm muitos interessados – fazem todo o tipo de ameaças. Agora, eu acho que é importante assistir este filme Entre atos que está passando, é um filme impressionante...
Gildo Marçal Brandão: [Interrompendo] Do João Moreira Salles?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Porque apresenta o Lula nos bastidores da sua campanha, é um homem que está, claramente, em busca do poder e que tem poucas ilusões a respeito disso, ele está ali pelo poder. Quer dizer, você não vê, em nenhum momento, declarações sobre a injustiça, sobre a mudança que ele vai fazer. Ele apenas diz num certo momento, por exemplo, muito realisticamente que ele “não ia poder fazer tudo o que ele prometeu”. Isso é normal, ninguém pode fazer tudo. A política é, fundamentalmente, uma arte do compromisso, é uma arte do compromisso, é uma carta de argumentação e de acordo, é fundamental que se faça isso. Agora... Quer dizer, no caso dele, a ruptura em relação àquilo que ele havia sido sugerido... Toda a campanha foi feita em cima de uma enorme crítica ao governo Fernando Henrique, de coisas, aliás, que eu concordava, e que agora o presidente Fernando Henrique começa a rever, porque já percebeu que passou o tempo e que está na hora de rever.
[...]: Bresser...
Luiz Carlos Bresser Pereira: Espaço continua havendo, mas eu não creio que ele vai mudar, eu não creio.
Gildo Marçal Brandão: Escuta, você acredita mesmo... Essa alternativa que você está desenhando, quais são os atores sociais e políticos que poderiam sustentar isso que você está chamando de uma estratégia nacional? Porque só dois dados aí me levam a um certo ceticismo. Primeiro, existiram os desenvolvimentistas tanto no governo Lula quanto no governo Fernando Henrique Cardoso, eles não conversam entre si e foram ambos derrotados ou estão sendo derrotados. Segundo, o PSDB, hoje, critica o governo Lula em grande parte concordando com a política econômica. Quer dizer, essa fala do presidente Fernando Henrique é uma concessão...
Luiz Carlos Bresser Pereira: Isso.
Gildo Marçal Brandão: ...num longo histórico em que ele defende essa política. Então, existem atores sociais e políticos que possam assumir um projeto capaz de formar uma nova aliança entre empresariado, burocracia de Estado e operariado?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Então, eu estou convencido que sim. Como você é cientista político, eu vou fazer... Quer dizer, eu estou convencido que os empresários industriais, os empresários produtivos brasileiros podem se associar aos técnicos do governo e aos trabalhadores e aos intelectuais para fazer uma nação...
Gildo Marçal Brandão [Interrompendo]: E os banqueiros também?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Quer dizer, os banqueiros vão ser mais difíceis [risos] porque os banqueiros... Porque há um problema... Quer dizer, há uma divisão no Brasil... O problema fundamental que está dividindo o Brasil hoje é taxa de juros. Quer dizer, a taxa de juros Selic [taxa Selic] não é a taxa de juros definida no mercado em Nova Iorque não, é a taxa do mercado e acabou-se. Mas taxa Selic, que é definida pelo governo, tem um nível astronômico, não fica abaixo de 9% de jeito nenhum em termos reais. E isso interessa muito aos rentistas, aqueles que vivem de renda no Brasil. E o sistema financeiro não só ele próprio é rentista, mas recebe comissões no seu trabalho dos rentistas, de forma que para eles é difícil entrar nessa... Embora também haja banqueiros que estão indignados com o que está acontecendo, e eu conheço vários. Então, a coisa não é assim. Agora, é possível isso? Veja, eu acho que um grande problema do Brasil, um problema histórico, é um problema que surge após 1964, porque em 1964... Não, antes de 1964 havia uma idéia de que havia uma burguesia nacional, havia empresários nacionais que podiam se associar aos técnicos do governo e aos trabalhadores para fazer um grande projeto de nação que nós estávamos fazendo. Aí, com Revolução de Cuba e outras coisas, a burguesia se apavorou e se aliou aos militares e aos americanos e você tem o golpe de 1964. E aí a esquerda cometeu um monumental erro, um erro que vai demorar muitos anos... O erro de dizer: “É impossível haver uma burguesia nacional, é impossível haver um empresariado nacional, nosso empresariado é dependente” – o que [Paulo] Markun perguntou inicialmente – “por natureza e definição e sempre o será”. Quando você faz uma afirmação dessas, você “joga o bebê com a água do banho”. O bebê é uma nação, porque só existe uma nação quando existe um acordo básico entre empresários nacionais, trabalhadores nacionais e técnicos do governo, intelectuais nacionais, sem isso não há nação. Quer dizer, eles podem brigar entre si, lutam, mas têm que ter uma identidade mínima de saber que têm interesses comuns dentro de uma sociedade. Ora, estou convencido que esse trauma custou-nos caro. Depois teve... Mas depois, houve uma união – não sei se vocês se lembram – uma reunião com todas as classes que começou em 1977 com o pacto, com o Pacote de Abril. E aí o grande movimento para a democracia. Esse movimento vai até 1986. No final de 1986 o Plano Cruzado arrebenta e [com ele] arrebenta também esse pacto porque era liderado... naquele momento, o representante dele era o Dílson Funaro, empresário nacional etc e foi aquele fracasso [(1933 —1989) ministro da Fazenda entre 1985 e 1987. Foi um dos responsáveis pelo Plano Cruzado]. Resultado: nós ficamos abertos à entrada violenta do que eu chamo da ideologia globalista. Depois eu posso explicar o que é. Mas eu acho que isso já passou, eu vejo, por exemplo, os empresários na Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo], eu vejo os empresários no [..], eu vejo empresários na Confederação Nacional da Indústria [CNI] com posições muito boas. Quer dizer, eu vejo muitos técnicos do governo que já, também, [estão] recuperando a sua visão de Brasil. Quer dizer, eu vejo líderes sindicais fazendo uma coisa... Então, eu acho que é possível...
Paulo Markun: O que falta, se tem tudo isso?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Veja, é difícil... [risos] Essa resposta não vale, Markun, porque é muito difícil responder o que falta. [Risos] Falta mais debate... Mas falta também uma liderança, porque é fundamental, neste momento, uma liderança. Quer dizer, houve um momento que se pensou que o Lula poderia ser esta liderança, ele não... Eu, por exemplo, votei no José Serra porque eu achava que ele poderia ser essa liderança, tenho clareza para mim disso.
Gildo Marçal Brandão: Bresser, o velho […] dizia que sem ideologia do desenvolvimento não há desenvolvimento. E você está repetindo isso com a seguinte idéia: o mal... um dos males, pelo menos, foi que a esquerda, após 1964, desacreditou na sua trajetória histórica e abandonou essa teoria e essa política. Agora, hoje, a esquerda também continua desacreditando nisso. Outros que você está falando, empresários, líderes sindicais, mas o que eu interpreto – não sei se interpreto corretamente o que você está dizendo – mas só dará para ter um movimento que aglutine uma liderança, se você tiver trabalho intelectual, ideológico e que aglutine...
Luiz Carlos Bresser Pereira: Exatamente.
Gildo Marçal Brandão: Mas esses atores que você colocou...
Luiz Carlos Bresser Pereira: Continuam divididos, certo.
Gildo Marçal Brandão: Não só continuam divididos como eu não vejo o link deles, a ligação deles com o mundo acadêmico ou com o mundo intelectual, que é, aparentemente, o da esquerda intelectual. Quer dizer, aparentemente, essas idéias que você está colocando estão... São vistas, pela maioria, como uma coisa superada, neste momento, por causa do globalismo etc e etc...
Luiz Carlos Bresser Pereira: Mas, então, refletindo isso, você está simplesmente mostrando como a sociedade brasileira está confusa e dividida. Eu estou de acordo que ela está confusa e dividida mas, ao mesmo tempo, eu percebo que o Brasil é uma realidade nacional muito concreta, não apenas porque tem uma identidade cultural forte mas porque tem uma população, um território, uma produção, fábricas, máquinas, pessoas... São 170, quase 180 milhões de pessoas. Então, isso não é brinquedo. Nós estamos diante... E uma coisa: diga-se, agora, a favor do PT: existem esforços pela recuperação dessa idéia de nação no governo do PT, mas não está claro, porque o PT também sofreu a influência quando surgiu, lá em 1981, dessa esquerda que negava a possibilidade de uma burguesia nacional. Então, acho que existem vários pontos da sociedade brasileira... E os intelectuais vão ter que descobrir porque estão... Quer dizer, os intelectuais que cansaram de dizer que os empresários eram alienados, eles próprios é que estão muito alienados, mas essa alienação pode ser superada se perceberem que, sem uma estratégia nacional, o Brasil não sai desse marasmo em que está.
Paulo Markun: Professor, neste livro Em busca do novo, que é uma viagem pela sua obra, seu pensamento, o senhor tem um artigo, no final, em que você se define como economista ou sociólogo do desenvolvimento, afirmando que: “... O fim dos Estados nacionais, a crescente relevância dos Estados-nação, alegremente celebrada pela direita e lamentada pela esquerda” teria sido resultado da globalização. Mas o senhor disse que não é isso, e o que aconteceu, na verdade, diz o artigo: “A globalização tornou os Estados nacionais mais estratégicos e portanto mais relevantes”. Aonde? Aonde os Estados têm papel estratégico e relevantes hoje em dia?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Primeiro, eu vou responder o que é essa tese de que os Estados nacionais não têm importância. Isso, para mim, chama-se globalismo, é uma versão do neoliberalismo mais específica. E surge, fundamentalmente, junto com o neoliberalismo nos anos 1970. Porque, se você pensar bem, os Estados Unidos, no pós-guerra, [eram] um país relativamente generoso, eles tinham sido tão bem-sucedidos economicamente e continuavam tão bem-sucedidos, tão poderosos e exemplo para todo mundo de democracia e disso e daquilo, que eles [ajudaram] a Europa, [ajudaram] o Japão, Taiwan, até o Brasil eles já...
Paulo Markun: Aliança para o Progresso.
Luiz Carlos Bresser Pereira: Aliança para o Progresso. Até [para] o Brasil mandam técnicos, em 1951, para fazer a Comissão Mista Brasil/Estados Unidos que vai ser a base de todos os planos de desenvolvimento do Brasil, plano de metas, Paeg [Plano de Ação Econômica do Governo, implantado durante o governo Castelo Branco (1964-1967)] etc... Plano Trienal, do Celso Furtado [Então ministro do Planejamento de João Goulart, Furtado, frente a uma aceleração da inflação, implantou política de substituição das importações]. Ora, nos anos 1970, tudo isso muda. Muda por quê? Muda porque o desenvolvimento deles pára, a taxa de crescimento, a taxa cai, reduz pela metade. E porque surgem o que, então, se chamava os NICs – isso ninguém analisa – os os New Industrialized Countries. Eram Brasil, México, Coréia, Taiwan, Cingapura, eram países subdesenvolvidos com mão-de-obra barata que produziam produtos industriais competitivos. Isso era uma ameaça. Isso era uma ameaça ao Primeiro Mundo rico, aos Estados Unidos e à Europa também. E, a partir daí, que começa, seja pelo neoliberalismo... Começa a ideologia do globalismo que vai dizer o seguinte: “Olha, vivemos no mundo global e no mundo global as nações não têm mais importância nenhuma, não são mais estratégicas. Agora o que vale é a grande comunidade dos homens de negócio, das empresas nacionais e outras coisas”. E ainda mais recentemente inventaram também as ONGs multinacionais, que são ótimas, como também são ótimas as multinacionais. Mas o fato concreto, dadas as duas definições que eu lhe dei do que é globalização, é que os estados nacionais continuam competindo terrivelmente, é só ver o que acontece na Organização Mundial do Comércio. Como eles defendem as suas empresas violentamente. Faça uma pesquisa, vá à Câmara de Comércio Americana, aqui em São Paulo, à Câmara de Comércio Japonesa, Italiana, Alemã, Francesa, e pergunte qual foi o último embaixador que esteve lá. São sempre os respectivos. E eles estão lá o tempo todo, não é só de vez em quando, porque eles estão empenhados na defesa das suas empresas aqui no Brasil. O que é correto. Não tenho nada contra isso. Eu lembro bem de ter perguntado ao embaixador [...], que foi um grande embaixador americano, era grande porque era competente e era grande porque era grande mesmo! Eu perguntei um dia para ele, há uns seis ou sete anos, quando estava aqui: “O que você faz aqui no Brasil?” Ele respondeu: “Eu represento os interesses dos Estados Unidos no Brasil”. “Mas o que significa isso?” “Isso significa defender os interesses comerciais dos Estados Unidos no Brasil, exportações de cacau, e significa defender os interesses das empresas americanas aqui”. Então, ele não defendia a Saint-Gobain [empresa francesa] ou a Toyota [empresa estadunidense], só as empresas americanas. Quer dizer, o Estado nacional é extremamente estratégico para isso. Estado nacional é estratégico para promover uma política econômica adequada, para ter estabilidade macroeconômica, para ter uma taxa de juros baixa, para ter uma taxa de câmbio equilibrada, para ter uma política industrial seletiva para alguns setores que são fundamentais e que você tem condições de ser competitivo internacionalmente. E como o mundo global é este mundo de competição comercial, econômica, então, quem organiza a ação coletiva? Quem organiza é o Estado. Quer dizer, nós temos o nosso Estado para organizar a nossa ação coletiva. Os americanos têm o deles, os franceses têm o deles. Quer dizer, tratemos de organizar bem a nossa.
Reinaldo Azevedo: Agora, professor, então há uma incompetência nossa...
Paulo Markun: Deixa o José Márcio...
José Márcio Rego: Bresser, você esteve envolvido nas duas das principais teorias desenvolvidas pelos economistas e cientistas sociais, a teoria da inflação comercial. Mas uma coisa que está resgatada neste livro em sua homenagem é que você teve uma participação importante também na teoria da dependência. E a tua abordagem, na teoria da dependência, ela diferencia-se da do Fernando Henrique Cardoso no famoso livro Dependência e desenvolvimento na América Latina [escrito juntamente com Enzo Faletto e publicado pela primeira vez em 1970], e também ela se diferencia da abordagem do Ruy Mauro Marini [(1932 - 1997) cientista social] e do Teotônio dos Santos. Você, no primeiro bloco, em resposta à intervenção Markun, fez alusão a isso, mas talvez fosse interessante para o telespectador que você colocasse essa diferenciação, até pela abordagem colocada lá atrás...
Luiz Carlos Bresser Pereira: Há muita confusão a respeito disso. Mas a teoria da dependência é uma teoria que surge nos final dos anos 1970 e reflete muito o ressentimento das esquerdas brasileiras em relação a 1964, no caso do Brasil, mas também a 1967, 1968 na Argentina, no Uruguai, onde também tinha havido golpes de Estado militares. E reflete também uma crítica ao Celso Furtado. Porque o Celso Furtado, diante desses golpes e também da crise econômica que América Latina passava durante os anos 1960, ele escreve um livro chamado Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina em que prevê a estagnação. E aí nós começamos a perceber que isso não era verdade, que o Brasil e os demais países estavam retomando o seu desenvolvimento. Quer dizer, a análise que havia antes, da Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe criada em 1948 pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas com o objetivo de incentivar a cooperação econômica entre os seus membros] e Iseb [Instituto Superior de Estudos Brasileiros. Centro de estudos criado em 1955, pelo então presidente Café Filho. De cunho desenvolvimentista, foi extinto pelo regime militar em 1964], e que iluminaram o pensamento de Getúlio Vargas, por exemplo, no caso do Brasil, era do imperialismo. Havia um imperialismo que nos explorava e nós tínhamos que reagir contra esse imperialismo. E aí veio a teoria da dependência que dizia assim: “Não é apenas que há um imperialismo lá fora, tem aqui dentro de nós também” Quer dizer, nossa burguesia é dependente, nossos intelectuais são dependentes. E isso era correto, evidente que a coisa não estava lá fora, estava fundamentalmente dentro. Mas, até aí, a posição do Teotônio e do Ruy Mauro Marini era uma posição radical: dado isso era necessário fazer a revolução socialista; e a coisa não pegou. A posição do Fernando Henrique Cardoso vai ser a do capitalismo associado. Então, a solução é nos associarmos com capitalismo internacional, porque... Já a minha posição, como a do Celso Furtado, a do Hélio [Hélio Jaguaribe] – meu outro mestre além do Celso – é a de que nós somos dependentes e nacionais ao mesmo tempo. Quer dizer, em alguns momentos, nós vivemos uma contradição interna que é própria da natureza humana e da sociedade em que vivemos que afirma que o poder externo dos Estados Unidos, da Europa é muito forte, não é um poder apenas econômico, é um poder especialmente intelectual. Você vai... Nos meus cursos, por exemplo, você vai ver, como você sabe, mais literatura estrangeira do que nacional. E não para discutir Brasil. Para discutir Brasil a gente usa o Brasil, mas para discutir problemas teóricos etc.. Quer dizer, então, nós vivemos essa ambigüidade. Mas eu acho, como eu disse, que isso é superável, nunca plenamente, mas é superável na medida do possível, do razoável, e que permita o nosso desenvolvimento
Otto Filgueiras: Professor Bresser, o senhor elenca como período que teve uma certa associação entre empresários, trabalhadores e técnicos do governo o período do Getúlio Vargas, do Juscelino Kubitscheck e, em partes, no regime militar...
Luiz Carlos Bresser Pereira: Isso.
Otto Filgueiras: No caso do regime militar, sem a participação dos trabalhadores por causa do perfil autoritário do regime.
Luiz Carlos Bresser Pereira: Isso.
Otto Filgueiras: No entanto, vemos que, em nenhum regime a forma está dissociada do conteúdo. Então, gostaria de saber até que ponto, além do preconceito comunista, o golpe militar de 1964, seu projeto econômico e político, não tinha uma necessidade da acumulação capitalista naquele momento no país. E se é possível hoje, como defende o ex-ministro Delfim Netto [Foi ministro da Fazenda durante o regime militar, entre 1967 e 1974, nos governos Costa e Silva e Médici, período em ocorreu o chamado "milagre econômico brasileiro"], ter o modelo de desenvolvimento da época da ditadura militar sem ela, já que as duas coisas não estão umbilicalmente relacionadas.
Luiz Carlos Bresser Pereira: Primeiro lugar, essa idéia de que o golpe militar de 1964 foi necessário para viabilizar a acumulação capitalista no Brasil foi uma teoria bastante utilizada por várias pessoas. Eu acho que quem desenvolveu isso mais competentemente foi o Guilherme O’ Donnel, o grande cientista político argentino que viveu nos Estados Unidos. Eu nunca concordei com isso. Eu tenho um livro sobre esse período, Estado e subdesenvolvimento industrializado, em que faço uma análise muito diferente dessa. De forma que, na verdade, o golpe militar respondeu ao problema de Cuba e à ameaça que havia nisso e a uma crise provocada pelo excesso de gastos de Brasília no final do governo de Juscelino. Então, seja uma crise específica dessa, seja um problema que foi a crise econômica que desorganizou bastante a economia brasileira, seja o problema de 1959, que a revolução de Cuba aconteceu em 1959, a partir dali houve uma radicalização política em toda a América Latina para esquerda e para a direita muito forte. Aquilo foi um desastre para todos nós, aquilo dividiu-nos e foi muito ruim. Então, eu não vejo nenhuma necessidade... Agora, a segunda pergunta é se “nós vamos repetir o modelo militar?” Nunca. O Brasil está no século XXI, temos outros projetos, outros problemas. Quer dizer, mal ou bem... Se você for assistir outro filme que, junto com o filme Entre atos, é também sobre o Lula, mas esse filme do Eduardo Coutinho, Peões, é um filme fascinante que mostra trabalhadores que participaram dos movimentos sindicais junto com Lula em 1979 e 1980, e que agora estão quase todos aposentados. E eles falam sobre aquela época e hoje. E você vê como o Brasil mudou extraordinariamente sob todos os aspectos, quer dizer, ainda que semi-estagnados, nós... Quer dizer, houve... O Brasil, hoje, é muito maior, tem toda uma tecnologia e nós temos outros desafios. Quer dizer, esse desafio continua a ser nacional, mas não vai reproduzir modelos antigos, não. É tocar para frente.
Otto Filgueiras: Na época do regime militar o senhor teve um inquérito policial militar por conta do seu livro Desenvolvimento e crise no Brasil: 1930-1967.
Luiz Carlos Bresser Pereira: É verdade.
Otto Filgueiras: De 1968. O que os militares viram de tão subversivo no seu livro a ponto de abrir um inquérito policial militar e do ministro Roberto Campos querer demiti-lo da Fundação Getúlio Vargas?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Olha, eu acho que era só o fato de que eu era, realmente, muito crítico do regime militar. Quer dizer, o livro foi publicado em agosto de 1968 e fazia uma análise muito dura da política econômica e do regime, do autoritarismo que estava ali já implantado etc..
Reinaldo Azevedo: Professor, a economia brasileira vai ter um crescimento aí de coisa de 5% neste ano e eu queria recuperar um pouquinho a questão da participação dos empresários num projeto nacional. Há uma disjuntiva freqüente no debate que é a seguinte: o problema do Brasil não é macroeconômico, é microeconômico. De sorte que, parece que só desenvolvimentistas... Em certos círculos se diz quase que como um xingamento “Lá vai um desenvolvimentista”...
Luiz Carlos Bresser Pereira: Sou um novo desenvolvimentista!
Reinaldo Azevedo: Só os desenvolvimentistas acreditam que possa haver um problema de equação macroeconômica. O governo Lula, tudo indica, a segunda metade do mandato vem mais do mesmo da primeira metade. Até porque se considera que foi virtuosa essa primeira metade com esse crescimento de 5%. Então, a minha pergunta é: considerando que vem mais do mesmo descarta-se que exista um problema macroeconômico. E, portanto, resolve-se o problema da microeconomia. O que infelizmente, creio eu, para o seu próprio raciocínio, boa parte do empresariado embarca nessa também. Quando a gente pega os textos, os papers, eles estão falando da questão da Lei de Falências, e de não sei o quê, etc; e corrigidas essas coisas teremos aí pela frente um mar de rosas. Então, engatam-se as perguntas, agora de maneira objetiva, primeira: o crescimento se sustenta, na sua avaliação? E existe um problema macroeconômico, no Brasil, para ser resolvido?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Então, em primeiro lugar, é muito importante entender porque houve esse desenvolvimento este ano, os 5% que devemos ter. Quer dizer, é uma reação cíclica. Nós estivemos, no ano passado, em uma crise grave que decorreu da crise já de 2002, que era uma crise de confiança. Uma crise de confiança no governo Lula que estava para ser eleito e depois, logo em seguida, é eleito, e uma crise de confiança porque os nossos graus de endividamentos externos eram altíssimos. Porque a desvalorização, a depreciação do câmbio que houve em 1999, janeiro de 1999, que foi uma maravilha, não tinha sido o suficiente, porque se manteve uma taxa de juros muito alta. E, mantendo uma taxa de juros muito alta, o câmbio não foi para um nível adequado. De forma que, com a segunda crise, a crise de 2002, o que acontece? O câmbio realmente se desaprecia e vai chegar até quatro [um dólar sendo vendido a quatro reais], que é aí exagero, eu preferia que ficasse entre 3,2. E quando começou a baixar, graças ao câmbio muito bom e também uma situação internacional muito boa, as exportações brasileiras explodiram e o Brasil, então, graças às exportações, ficou com uma situação muito melhor, apesar da taxa de juros se manter altíssima. Isso, mais o ciclo de recuperação, permitiram o crescimento que nós temos aí.
Reinaldo Azevedo: Crescer com poupança externa?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Mas nós crescemos com a despoupança externa, não com poupança externa, porque todo grande erro que houve no governo Fernando Henrique foi que nós íamos crescer com poupança externa, porque o Brasil não tinha poupança. Com isso, então, é entrar capital, entrar capital, entrou um monte de capital, o câmbio valorizou de forma que os investimentos proporcionaram o aumento dos salários, o consumo aumentou, a poupança doméstica diminui de forma que o investimento não aumentou em nada. O país continua estagnado, só que enfrentando duas crises, porque você estava se endividando cada vez mais. Agora não, este ano nós estamos crescendo com despoupança externa, isto é, temos um superávit em conta-corrente – porque poupança externa é déficit de conta-corrente, despoupança externa é superávit em conta-corrente. Como os países asiáticos crescem extraordinariamente, eles crescem como? Com despoupança externa, porque eles têm superávit em conta-corrente e financiam os Estados Unidos e com isso mantém a sua taxa de câmbio desvalorizada, depreciada, o que é estratégia fundamental para o desenvolvimento econômico. Quer dizer, essa estratégia nós não fizemos. Esta estratégia aconteceu de graça para nós, graças às duas crises. E agora, o que nós estamos vendo é o governo Lula permitir, é o Ministério da Fazenda e o Banco Central permitindo essa criminosa - a meu ver é criminosa - apreciação que está acontecendo no real. Eles dizem que apreciação não é tão violenta porque o dólar se depreciou em relação ao euro, é verdade. Mas, assim mesmo, é uma desapreciação que está deixando os exportadores extremamente inseguros e para o nosso desenvolvimento é fundamental termos superávit em conta-corrente grande, que permita ao país, inclusive, diminuir sua dívida externa. Porque toda a dependência tem uma base real. A base real da nossa dependência é um excessivo endividamento externo. Um país que quer se desenvolver não pode ter uma dívida externa maior que uma vez as importações. Nós tínhamos três, quase quatro vezes maiores. Agora, graças ao aumento de exportação, estamos com duas vezes. Então, há muita coisa para fazer nesse processo. Eu acho que o desenvolvimento que nós temos aí, ele, ano que vem, não vai ser a mesma coisa. E se o câmbio continuar desse jeito, além do impedimento enorme que representa a taxa de juros... Nós estamos gastando quase 10% do PIB no pagamento, entre juros e subsídios, para compensar os investimentos. Uma loucura completa. [Isso] ao invés de fazer investimentos públicos, que eram fundamentais para infra-estrutura e que eram fundamentais para o desenvolvimento brasileiro. Então, não há sustentabilidade para isso.
José Marcio Rego: Com relação ao Banco Central você fez alusões, em artigos passados, à administração patética e quase toda a imprensa que se referiu à gestão de Carlos Lessa no BNDES [Foi presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social entre 2003 e 2004. Acredita-se que foi demitido do cargo por entrar em conflito com o ministro da Fazenda e do Desenvolvimento à época, Antonio Palocci e Luiz Fernando Furlan] usa esse termo também. E você, no artigo de ontem, fez faz uma análise bastante realista, não digo generosa, mas mais elucidativa do que foi a gestão do Lessa. Se você pudesse recuperar isso para os telespectadores.
Luiz Carlos Bresser Pereira: Não entrei em detalhes sobre a gestão... Inclusive, são dois parágrafos que eu escrevi sobre ele nesse artigo. Mas o que eu digo é o seguinte: o Lessa representava, no governo, uma alternativa ao modelo monetarista e antinacional que nós estamos vivendo. E ele, o Lessa, por outro lado, é uma pessoa que se deixou perder por excessos verbais e outras coisas. Mas o fato é que quando ele chegou ao poder, chegou ao governo, começou um discurso que eu vi, não só em toda a imprensa, mas também entre os meus amigos etc, de que o Lessa era um desastre, que o Lessa estava destruindo o BNDES, que era isso, aquilo e aquilo outro... Um negócio, assim, muito indignado. E eu fiquei preocupado. Conheço o Lessa há muitos anos. Não é o meu economista preferido, mas é um homem que eu respeito. Bom, afinal, por excessos verbais ou sei lá o que, ele foi demitido. Mas também porque havia essa pressão. Aí eu vou ler editoriais dos jornais comemorando a demissão. Onde está a destruição do BNDES? Não houve nenhuma destruição do BNDES. Qual é o fato objetivo contra ele? Nada. Qual foi o empréstimo lesivo ao país que ele fez? Nada. Quer dizer, era só ideologia. Então, essa ideologia é muito violenta. E se nós não nos reorganizamos contra ela... Agora, claro que eu prefiro não ter que defender o Lessa, porque o Lessa não é... Há outros economistas no Brasil que têm mais capacidade de cuidar da macroeconomia, aquilo lá não era a especialidade dele.
José Marcio Rego: Você tem uma boa perspectiva com o Guido Mantega [Foi presidente do BNDES entre 2004 e 2006, quando assumiu o Ministério da Fazenda], agora?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Não, Guido Mantega é outra coisa, não é esse o problema. Acho que Guido Mantega vai fazer grande trabalho também, está indo para lá o Antônio Barros de Castro que é um excelente economista. Agora, a queda do Lessa é simbólica porque mostra que este governo não consegue fortalecer alternativas. Há uma escolha por um esquema de captura do Banco Central no sistema financeiro...
Leda Paulani: [Interrompendo]: Bresser, posso fazer um gancho só nessa sua dubiedade do governo Lula? Eu me lembro uma vez que nós conversávamos sobre os conceitos de esquerda e direita – não lembro em que ocasião – mas que as transformações do mundo capitalista provocaram nesses conceitos. E você me disse: “Não, eu acho que o que distingue a direita e a esquerda é que as pessoas de esquerda ainda têm a capacidade de se indignar com a injustiça, com a miséria humana etc”. Primeiro, queria te perguntar, você mantém essa definição? Eu acho uma definição interessante, mas um pouco larga demais, porque se você for ao Congresso Nacional hoje e fizer essa pergunta todo mundo vai dizer: “Não, estou muito indignado etc”, todos serão de esquerda. Aliás, é difícil encontrar alguma pessoa que diga explicitamente ser de direita no Brasil. Então, enfim, parece que não serve muito. Em todo caso, queria te perguntar: você mantém essa definição? Se não for essa, qual seria? E, de acordo com essa definição, como você classifica o governo de Lula, que tem este lado, digamos, absolutamente ortodoxo, neoliberal, do ponto de vista de política macroeconômica, mas, ao mesmo tempo, abriga, nos seus quadros técnicos, alguns intelectuais que lutaram a vida toda contra esse tipo de postura antinacional, vamos dizer assim; aliás, muitos dos quais vêm saindo do governo, de modo que ele está pendendo mais para o dependente do que para o nacional. Mas o governo Lula é de esquerda ou é de direita? E o governo Fernando Henrique?
[Risos]
Luiz Carlos Bresser Pereira: Veja, a minha definição de esquerda e direita não é exatamente esta.
Leda Paulani: Você que falou para mim.
Luiz Carlos Bresser Pereira: Essa é a mais genericamente, mas eu tenho uma definição bem específica que há anos eu repito em vários trabalhos meus. Eu digo que é de esquerda quem está disposto a arriscar a ordem em nome da justiça. E é de direita quem prioriza a ordem sempre em relação à justiça social. Porque eu digo que são quatro os grandes objetivos políticos que as sociedade modernas industriais têm. A ordem, que todas sempre tiveram, todas as sociedades, a liberdade, o bem-estar ou desenvolvimento e justiça social, os quatro objetivos finais. Agora, eu não acho que esquerda e direita se distinguem por alcançar desenvolvimento nem por alcançar liberdade. Tem tanto gente de esquerda quanto de direita que defendeu a liberdade de desenvolvimento e outros tantos que atacaram violentamente tanto a liberdade quanto o desenvolvimento. Agora, em termos de ordem e justiça, não há dúvidas. A direita sempre prioriza a ordem em qualquer circunstância, e eles querem sempre que toda lei seja cumprida e lei é a lei que defende establishment, os ricos. E a esquerda arrisca a ordem em nome da justiça. Quer dizer, eu senti isso muito bem quando eu era secretário do governo Franco Montoro [(1916-1999) senador e governador do estado de São Paulo (1983-1987). Destacou-se na luta pela redemocratização do Brasil pós-ditadura militar, atuando fortemente na campanha pelas eleições diretas para a Presidência] e havia as greves. E eu sabia que a greve é um direito dos trabalhadores e é fundamental para que haja justiça. Por outro lado, eu sabia que não poderia ter desordem; então, como equilibrava as duas coisas era um negócio complicado, mas eu tentava fazer o melhor que eu podia nessas duas coisas. Quando você vê, hoje, por exemplo, tem o movimento do sem-terra. Quer dizer, esse movimento dos sem-terra desafia a ordem, mas é uma coisa fundamental para justiça no Brasil. “Ah, mas eles fazem abusos!” Fazem abusos, alguns têm que ser punidos, isso e aquilo, tudo num processo, mas sem... Agora, se eu reprimir de alto a baixo os movimentos dos sem-terra será um desastre para o Brasil e para a justiça no Brasil. Celso Furtado, inclusive, uma das únicas coisas que ele me disse foi isso. Então, você me pergunta: o que é o governo Lula? O que foi o governo Fernando Henrique Cardoso? É muito difícil responder essas coisas. De qualquer forma, a gente esperava, sem dúvida, que o governo Lula fosse mais de esquerda do que está sendo, mas há setores ainda dentro do governo Lula que são de esquerda e estão dispostos a arriscar um pouco a ordem em relação à justiça. Por isso o ministro da Reforma Agrária [Ministério do Desenvolvimento Agrário] vive sendo atacado violentamente aí pela ordem.
Paulo Markun: Ministro, o senhor teve um início de carreira, entre outras coisas, como crítico de cinema no jornal O tempo, é isso?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Isso.
Paulo Markun: E fez curso de cinema e até hoje acompanha a questão. Como o senhor é um interessado em políticas públicas e vem martelando nessa idéia do desenvolvimento nacional dependente, eu queria que o senhor desse a sua opinião sobre um projeto do governo Lula que não é o tema central desse debate, mas, na minha avaliação, é um projeto extremamente importante que vem sendo massacrado pela mídia como uma tentativa de dominação e controle do mais importante veículo de expressão de idéias, que é o campo audiovisual. Eu falo da Ancinav, Agência Nacional do Cinema e Audiovisual, representado pelo Ministério da Cultura, e que vem sendo apresentado pela mídia, de modo geral, como um grande complô para controlar a opinião pública e a produção de conhecimento e de informação nesse campo. O que o senhor pensa desse projeto?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Eu entendo que é um bom projeto, e disse isso, inclusive, em uma carta que eu mandei à Folha. Discuti isso com meus amigos na área de cinema. Claro que é um projeto que pode ser melhorado e está sendo melhorado. Quer dizer, já houve... Porque quando o executivo apresenta um projeto, ele faz a coisa sempre um pouco burocrática demais. E o projeto da Ancinav tem alguns elementos burocráticos, mas a idéia fundamental do projeto é defender a cultura nacional. Quer dizer, é defender não só o cinema, mas a produção para a televisão nacional, e isso é muito importante. E é uma coisa que não é artificial. Hoje, por exemplo, eu participei de uma reunião do Conselho da Fundação Padre Anchieta, da TV Cultura, em que o presidente Marcos Mendonça dizia o seguinte: “70% da produção de filmes que passam na televisão já brasileira, os filmes e desenhos animados, já são nacionais”. Eu fiquei surpreso até com isso. Mas, evidentemente, nós temos que defender a nossa produção nacional em todas as áreas. Eu vejo a quantidade de [filmes] estrangeiros que estão nas nossas televisões, é um absurdo. Menos a Globo, a Globo e a TV Cultura não fazem isso, mas aí vem a briga com a Globo. [Ela] quer fazer tudo sozinha, não quer subcontratar nada, podia subcontratar uma parte, você não vai ameaçar a Globo, pois eu acho que também é um patrimônio do país. Então, acho que essa lei está caminhando na direção...
Paulo Markun: O senhor acha que existe força política para realizá-la e concretizá-la?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Eu acho que sim, essa lei teve uma falta de sorte que entrou junto com outra lei, que é Lei de Imprensa, e aquela Lei de Imprensa era mal pensada...
Leda Paulani: ...do Conselho Federal [de Jornalismo]...
Luiz Carlos Bresser Pereira: Mas a Lei da Ancinav tem todas as condições para caminhar, nós já temos a Ancine, quer dizer, houve reações que foram, a meu ver, emocionais e, em parte, mal pensadas. Mas eu acho que uma boa discussão, a nível nacional, vai ajudar que essa lei, afinal, passe.
Reinaldo Azevedo: O senhor é um homem muito generoso e acho que o senhor é uma das primeiras pessoas nesse lugar que comete uma injustiça a favor...
Luiz Carlos Bresser Pereira: Opa!
Reinaldo Azevedo: A favor do ministro [Miguel] Rossetto da reforma agrária. [Risos] Que é injustiça a favor... que é o seguinte, quando o senhor falou da questão de esquerda, direita, acho que em termos gerais eu concordo com sua definição. Agora, no caso da reforma agrária, do Ministério das Cidades, Meio Ambiente, do Ministério do Desenvolvimento Social, os ministérios da área social do governo Lula, eles têm uma incompetência que independe da equação macroeconômica. Por mais que a gente faça um superávit e não consiga nem pagar os juros e sobre menos dinheiro para área social, para a administração não sei o quê... O pouco que eles têm, eles gastam mal, não é? O caso do Ministério Desenvolvimento Social está evidente, a incompetência é claríssima, inquestionável. No caso da reforma agrária, o senhor Miguel Rossetto assenta muito menos gente do que o governo Fernando Henrique. E tem menos dinheiro para isso também. Mas ele nem gasta tudo aquilo que ele tem, está certo? Ele tem um presidente do Incra, o senhor Rolf [Hackbart] que, diante do assassinato do sem-terra, acusou o agronegócio e ele não só acusou como reiterou a acusação [Refere-se à chacina ocorrida de cinco trabalhadores rurais sem-terra por um bando de 15 homens encapuzados, no dia 20 de novembro de 2004. As mortes ocorreram no acampamento do MST, localizado na propriedade de Adriano Chafik Luedy, suspeito de ter ordenado o crime]. Sendo que agronegócio está na base do que há de virtuoso ou de boa parte do que há de virtuoso na economia brasileira. Então, quem persegue o senhor Rossetto é a incompetência e falta de clareza, não são os conservadores, não é ninguém... Acho que a sua generosidade permite que o senhor faça a avaliação, mas me parece que ele é perseguido por si mesmo pela falta de clareza e é perseguido pela falta de reconhecimento. O Lula e o PT jamais reconheceram que o Fernando Henrique Cardoso fez a maior reforma agrária fora de um período revolucionário na história do mundo, a verdade é essa...
Luiz Carlos Bresser Pereira: Veja, estou inteiramente de acordo com a você quanto à incompetência do governo Lula na área social. Quando, alguns meses atrás, o PSDB – eu sou do PSDB – começou fazer uma crítica muito violenta ao governo Lula, porque o governo Lula não seria democrático e uma das leis que demonstraria isso seria a Ancinav... uma bobagem! E eu aí disse para vários dos principais líderes do PSDB - eu não tenho tido uma atividade, assim, partidária muito direta, mas eu encontro [com os líderes], eles são meus amigos. E disse: “isso é um equívoco”, porque criticar o governo Lula e o PT de antidemocrático não vai pegar. Talvez sejamos um pouco mais democráticos que eles, mas o fato é que todos eles e nós participamos de uma luta contra a ditadura e a democracia não está ameaçado no Brasil, o fato é esse. Agora, o que está havendo é incompetência não só na área econômica, que eu tenho criticado, mas uma incompetência na área social, dramática. Quer dizer, não só na área de reforma agrária, na área da educação, na área da saúde, na área da assistência social. Houve uma baixa no nível de qualidade dos trabalhos que estavam sendo feitos no governo Fernando Henrique Cardoso impressionantes. No governo Fernando Henrique Cardoso nós tivemos a Ruth Cardoso, o José Serra, Vilmar Farias [(1943-2001) assessor especial do presidente Fernando Henrique Cardoso para a área social], que era uma maravilha, o Paulo Renato... Equipes extraordinariamente competentes que respeitaram, inclusive, as burocracias existentes; e, agora, isso baixou muito de nível. Por isso que eu recebi com alegria as críticas que fez o Fernando Henrique agora, recentemente, porque ele trouxe para a pauta política o problema da competência. E é um problema fundamental, que é o problema da reforma administrativa, [porque] hoje você precisa que o Estado seja moderno, seja capaz. Nós precisamos dramaticamente reduzir a nossa carga tributária, a nossa carga tributária está muito alta, mas não podemos reduzir os serviços sociais. Pelo contrário, precisamos aumentá-lo e melhorá-lo. Como é possível fazer isso? Só com competência administrativa...
Gildo Marçal Brandão: Professor...
Leda Paulani: Competência é neutra, Bresser?
Gildo Marçal Brandão: Mas a política assistencialista do governo poderia ser melhor se houvesse competência?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Sem dúvida.
Gildo Marçal Brandão: Mas o senhor está de acordo com essa competência.
Luiz Carlos Bresser Pereira: Veja...
[...]: É um problema de competência ou um problema de visão?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Veja, a política assistencialista, isso é uma coisa mais geral, isso não é política assistencialista do governo Lula, isso é uma política assistencialista que se monta, no Brasil, a partir da democracia. Eu, recentemente, fiz um estudo sobre o gasto social no Brasil, e se nós examinarmos o que aconteceu no Brasil nos últimos 25 anos – eu sempre pego 25 anos, porque a partir de 1980 começou a crise - nós vemos que, em termos de renda per capita, cresceu pouquíssimo, cresceu 8% a renda per capita. Nos anos 1970 crescia 8% em dois, máximo três anos. Agora, vinte anos entre 1980 e 2000, 8%. Aí, eu me perguntei: mas, ao mesmo tempo, acontece que os índices sociais no Brasil melhoraram muito. O analfabetismo caiu de 31% para 15% da população. A mortalidade infantil caiu de trinta por mil, para 16 por mil. E a esperança de vida aumentou oito anos. Tudo nesses vinte anos! Então, uma maravilha, por quê? Aí eu fui me perguntar quanto foi o aumento do gasto social, porque eu estou convencido que foi a política social, em parte assistencialista, em parte universalista, que produziu esse resultado depois da democracia. Bom, eu descobri que o gasto per capita nesse período aumentou 43%. O gasto social per capita. Ou seja, o Estado brasileiro arrecadou mais e gastou mais no social. E, nesse social, existe educação, saúde...
Leda Paulani: Previdência?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Não.
Leda Paulani: Previdência rural, não?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Não, mas toda a parte assistencial está aí também. Então, aí começa a discussão que eu acho que é a sua pergunta específica, que é a seguinte: até que ponto... E evidente que nós formamos duas estratégias, uma de melhorar a educação e a saúde, que não é assistencialismo; e a outra que foi fazer bolsa, bolsa saúde, bolsa família, bolsa-escola. [Organizar] rendas mínimas mais variadas que o belo senador Eduardo Suplicy tem sido o grande defensor. Eu acho que isso foi necessário, mas acho que isso se esgotou. Quer dizer, nós não podemos continuar com essa política. Nós temos que... para melhorarmos o nível da população brasileira, ou nós retomamos o desenvolvimento, e para retomarmos o desenvolvimento temos que ter poupança pública, temos que usar recursos que estão sendo aplicados em juros de forma abusiva para realizar investimentos e promover o desenvolvimento do país. E os salários crescerem por causa disso e o serviço social do Estado melhorar com a competência da boa administração pública, da nova gestão pública, que está sendo implantada aos poucos no Brasil. Coisas, por exemplo, como as organizações sociais do estado de São Paulo na área de saúde, que são extraordinariamente competentes e bem-sucedidas. Agora, o José Serra disse que vai fazer...Tudo o que ele fizer na área social será feito na base de organização social, ou seja, o Estado não faz diretamente. A própria Marta Suplicy [psicóloga e política ligada ao PT. Foi deputada federal de 1995 a 1998 e prefeita da cidade de São Paulo de 2000 a 2004] já na campanha, quando ela prometeu fazer o CEU [Centros de Educação Unificados. Um dos principais projetos do governo de Marta Suplicy, que começou a implantar essas escolas de grande porte, em comunidades carentes, para funcionarem, além de escolas, como centros integrados para promoção de cultura e lazer] Saúde, declarou que ia fazer como organização social... E o PT está lá gritando a nível federal que não faz nenhuma reorganização social nenhum, quando essa é a tendência. Organizações sociais são entidades sem fins lucrativos que executam atividades sociais financiadas pelo Estado, 100% ou 80%, 90% pelo Estado.
Gildo Marçal Brandão: Na política internacional, há incompetência ou competência do governo, você estende isso à política externa, à ação da política externa do governo Lula?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Não, não. Eu acho que política externa que o governo está fazendo, a política externa que o ministro Celso Amorim está fazendo é muito boa. Acho que é uma política corajosa e de defesa do interesse nacional. Acho que o que eles fizeram em relação à Organização Mundial de Comércio, a Rodada de Doha foi muito bem feito, conseguiu unir os interesses dos países do Terceiro Mundo, a China, a Índia etc, isso é muito importante. A política que está sendo realizada em relação à Alca [Área de Livre Comércio dos Américas]... Eu sempre fui a favor que se negociasse a Alca, mas quando se começou negociar a Alca, o que se observou? Que os americanos não estão negociando Alca comércio, estão negociando... Querem nos dar algumas concessões e, em troca, querem que nós deixemos de fazer política interna em relação aos investimentos, compras governamentais e propriedade intelectual, coisa que é nossa, não é? E o Itamaraty está trabalhando muito bem nessa área. Aliás, Itamaraty tem uma tradição grande no Brasil. A grande burocracia brasileira ainda é o Itamaraty, embora estejam surgindo outras como Ministério Público, a Polícia Federal, que esta se revelando.
Gildo Marçal Brandão: Positiva!
Luiz Carlos Bresser Pereira: Positiva, sem dúvida.
Leda Paulani: Bresser, como você define desenvolvimento hoje? Estou te perguntando pelo seguinte, há um filósofo francês o Gérard Lebrun [(1930 — 1999) foi professor da Universidade de São Paulo (USP) nos anos 1960. Autor de várias obras consideradas referência na academia entre elas, O que é poder, O avesso da dialética: Hegel à luz de Nietzsche, entre outras] que diz o seguinte: “A dialética” - para falar de metodologia que ambos gostamos - “é uma máquina de mover significações até que confessem que não são nada”, não é? [Risos] E eu então, estava relendo justamente o Celso Furtado. E ele, indiretamente, está dizendo o seguinte: “O desenvolvimento pode ser subdesenvolvimento”. Então, se a gente olhar o Brasil... Você mesmo, quando diz nós tivemos um projeto nacional na era Juscelino/Getúlio, mas de lá para cá estamos, enfim, vítimas da ideologia globalista ou neoliberal, como você quiser chamar, estamos vendo que o Brasil se moderniza, ele cresce – menos do que poderia crescer – mas, ao mesmo tempo, ele se barbariza também, não é? Então, você tem um desenvolvimento que é subdesenvolvimento. Por isso o Chico de Oliveira deu ao Brasil de hoje o nome de ornitorrinco [Refere-se à obra de Francisco Oliveira A economia brasileira: crítica à razão dualista, publicada em 1973. Foi reeditada trinta anos depois com o nome Crítica à razão dualista, acrescida de dois ensaios; "O ornitorrinco", também de Francisco de Oliveira, e o "Prefácio com perguntas", de Roberto Schwarz]. Então, eu te pergunto: você concorda com isso ou não? Porque você acabou de dizer: “Olha, nós só vamos superar esses problemas se nós retomarmos o desenvolvimento”. Mas o que é desenvolvimento? Esse desenvolvimento, por exemplo, eu chamo de subdesenvolvimento. Essa barbárie urbana que a gente vê, por exemplo, e rural, também é subdesenvolvimento, é um desenvolvimento que é subdesenvolvimento, por isso a dialética que mói as significações. Então, eu estou te perguntando o que é desenvolvimento para você hoje.
Luiz Carlos Bresser Pereira: Eu vou dar uma resposta que talvez os telespectadores...
Gildo Marçal Brandão: ...no bojo de desenvolvimentismo
Luiz Carlos Bresser Pereira: É importante ficar claro isso. Eu entendo o desenvolvimento como processo de aumento da renda per capita envolvendo transformações estruturais na economia, mas não defino o desenvolvimento como um processo de melhor distribuição da renda, ainda que eu a queira. Porque eu assisto momentos... Então, é imaginar que, na China, por exemplo, que cresceu a taxas de 10%, 11% ao ano, 10% em média, nos últimos 25 anos, mas teve uma concentração de renda muito grande naquele país, não houve desenvolvimento. E desenvolvimento implica sempre também mudanças estruturais com melhorias nas condições de vida da população, na média. Quer dizer, na China, por exemplo, apesar de enorme concentração de renda que houve, mais de trezentos milhões de pessoas saíram da linha de pobreza. Então, melhorou muito, apesar de continuar muita injustiça lá. Então, eu não tenho uma visão, assim, puramente moral do desenvolvimento, que é muito comum por aí, o desenvolvimento precisa ser tudo, é tudo! Não é apenas crescimento econômico e mudança estrutural. [Mas] eu tenho uma visão mais... Veja, quando nós estávamos... E também essa discussão é muito importante em cada momento. No caso do Brasil, nos anos 1970, nós tínhamos que fazer uma crítica muito violenta ao desenvolvimento que estava acontecendo naquela época, porque era um desenvolvimento concentrador de renda, desigual dentro de um regime autoritário. Então, estávamos brigando, e estava boa a briga. Agora, não... Agora, tem toda uma esquerda, no Brasil, que não percebeu que depois de 1980, [o país] não teve mais desenvolvimento, praticamente nenhum, crescia 1%, menos de 1%, 0,8% mais ou menos per capita ao ano, em 25 anos, é um escândalo. Quer dizer, crescer 8% em vinte anos é uma coisa ridícula! Então, aí nós temos que lutar para que volte o desenvolvimento com justiça também. Mas se nós quisermos distribuir, se quisermos fazer assistencialismo, se quisermos distribuir a renda que nós não produzimos, estamos mal arrumados, né! Por isso eu digo que esse grande acordo nacional é uma estratégia para o desenvolvimento, um desenvolvimento que... Aí vai ter um pouco de briga, uns querem com mais justiça, outros com menos justiça. Mas vamos ter que encontrar um vetor...
Leda Paulani: [interrompendo] Patamar tecnológico de hoje permite que a gente tenha esse desenvolvimento, ainda que seja nessa concepção menos pretensiosa que você está colocando?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Veja, o que aconteceu no mundo todo, e também no capitalismo nos últimos 25 anos, foi que houve uma concentração de renda grande. Quer dizer, ao contrário do que acontecia no período dourado pós-Segunda Guerra Mundial, que houve desconcentração de renda nos Estados Unidos, Europa. A partir de meados dos anos 1970 começa uma concentração de renda, por quê? Aí tem várias teorias explicando. O motivo que eu acho principal foi a revolução da informática, que fez com que a demanda por trabalho qualificado aumentasse muito e a demanda por trabalho não qualificado diminuísse muito violentamente. E isso fez, então, que os salários qualificados aumentassem muito em relação aos outros, isso deu concentração de renda. Não foi aumento entre lucros e salários, foi entre... Mas isso muda. E isso depende fundamentalmente da educação. Se você, com educação, aumentar a oferta de mão-de-obra qualificada, os salários começam a se equilibrar outra vez. Mas, depende do desenvolvimento isso.
Paulo Markun: Em 2002, o senhor publicou junto com o professor [Yoshiaki] Nakano um texto chamado Estratégia de desenvolvimento com estabilidade.
Luiz Carlos Bresser Pereira: Isso.
Paulo Markun: Um texto que preconizava a idéia de que era necessário mexer nessa política macroeconômica. Este texto não deu Ibope nem dentro do PSDB, por quê?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Ah não, esse...
Paulo Markun: Deu muito apoio fora do PSDB!
Luiz Carlos Bresser Pereira: Esse texto deu enorme Ibope.
Paulo Markun: Mas não dentro do partido que o senhor participa.
Luiz Carlos Bresser Pereira: Deu uma imensa repercussão. Isso mesmo, esse texto foi encomendado pelo José Aníbal, na época presidente do PSDB, e nós fizemos. E no texto fazíamos uma crítica muito forte à política de juros altos, que era uma crítica política que estava sendo seguida já no final do governo Fernando Henrique. Então, provavelmente, por causa disso não deu muito Ibope dentro do PSDB...
Paulo Markun: Eu queria entender o porquê.
Luiz Carlos Bresser Pereira: Acho que por isso, entrava em contradição política com a situação daquele momento.
Paulo Markun: Reinaldo Azevedo adorou!
Reinaldo Azevedo: Eu gostei.
Luiz Carlos Bresser Pereira: Agora, o que eu acho mais importante ali é o que estávamos dizendo: olha, primeiro, somos fortemente a favor do ajuste fiscal. Segundo: o crescimento só pode ser alcançado com estabilidade macroeconômica. E, terceiro: as políticas que estão sendo recomendadas pelo Fundo Monetário Internacional e adotadas pelo governo brasileiro, agora continuam sendo as mesmas, são políticas que não produzem a estabilidade macroeconômica e mantém o país absolutamente estável porque promovem taxas de juros muito altas e taxas de câmbio muito baixas. Aí o Reinaldo fez uma pergunta dois blocos atrás que eu não respondi uma parte, escapou, que era: se o problema do Brasil é macroeconômico ou microeconômico? Claro que é macroeconômico fundamentalmente, por que é macroeconômico? Eu vou usar a lei americana e o Banco Central Americano, o FED. Na sua lei, os objetivos do FED são: pleno emprego, taxa de juros moderada e inflação baixa, são as três coisas. Ora, podemos chamar a nossa taxa de juros Selic de moderada? Escandalosamente alta. Podemos falar em pleno emprego no Brasil? Absurdo. Melhorou um pouquinho, agora, mas estamos com taxas de desempregos recordes...
Reinaldo Azevedo: Se me permite um parêntese, o Meirelles [Henrique Meirelles, então presidente do Banco Central] disse que o Banco Central só tem uma função, que era controlar a inflação e acabou.
Luiz Carlos Bresser Pereira: Isso é um escândalo. Mas em termos de modelo, quando você tem apenas um instrumento, a taxa de juros, você só pode ter um objetivo. Mas isso é uma bobagem, desde quando o Banco Central tem que seguir modelo? O Banco Central tem que promover os objetivos nacionais, é isso que ele tem que fazer. Agora, isso significa que o Brasil não tenha problemas microeconômicos? Claro que tem. Então, eu sou a favor em mudança da Lei de Falências [oficialmente designada como Lei de Recuperação de Empresas e Falências, tem como objetivo mudar as normas para a falência e para a reorganização das empresas com problemas financeiros. Depois de 11 anos aguardando aprovação, a lei foi aprovada em junho de 2005] que está caminhando. O nosso Congresso tem trabalhado muito, nem sempre com êxito, mas tem trabalhado muito bem a meu ver, muito melhor do que diz a imprensa, fazendo reformas no Brasil. E muitas reformas já foram feitas. E vão continuar sendo feitas. Mas reformas institucionais não se fazem de um dia para outro. Aí vem a história recente de que taxa de juros no Brasil é alta porque falta segurança jurisdicional ou porque faltam reformas que garantam isso. Ora, não faz sentido uma coisa dessas. Então, o Brasil, durante anos e anos e anos, teve taxa de juros baixa e grande desenvolvimento com instituições muito piores, mas agora precisa mudar as instituições para baixar taxa de juros? Não faz sentido. Ou, então, países com pior ou igual classificação de risco que o Brasil, que possuem taxas de risco muito menores que as nossas e são países muito menos desenvolvidos, como Paraguai, Bolívia, Equador, Peru. E, no entanto...
Reinaldo Azevedo: Professor, como muda isso em face de uma realidade, de um crescimento... Eu pergunto do ponto de vista do ambiente que se cria: economia crescendo 5% com a taxa de juros onde está, com tendência ainda a subir até começo de 2005, como se convence a equipe econômica, como se convence alguns atores da base econômica que essa taxa de juros é muito alta? Porque passam a atribuir essa estabilidade à alta taxa de juros. Mas eu me lembro do Gustavo Franco [Presidente do Banco Central de agosto de 1997 a março de 1999], à época do câmbio, que dizia: “Câmbio não tem nada a ver, porque é como banana: se tem muita banana, tem um preço, se tem pouca tem outro". E agora a questão é a taxa de juros. De sorte, está se dizendo: “Não, essa taxa de juros não tem nada a ver com a equação econômica do Brasil, crescemos com a taxa de juros onde está”.
Luiz Carlos Bresser Pereira: Veja, nós nunca vamos convencer essa equipe econômica, porque [ela] está aí para realizar esta política.
Reinaldo Azevedo: Mas nem o presidente da República!
Luiz Carlos Bresser Pereira: Se eu estivesse no lugar dessa equipe econômica e com a cabeça deles também e dissesse para mim mesmo, como você acabou de dizer, que meu único objetivo é combater a inflação... Ora, quanto mais taxas de juros menor a inflação, mas isso no curto prazo. Houve um pequeno crescimento da demanda no final do ano, então, eles pensam “Vamos elevar a taxa de juros”, como elevaram. Eles só não percebem é que estamos numa armadilha. Eu, por exemplo, toda vez que se reúne o Copom, os jornalistas me perguntam: “O que achou?” Não respondo a isso, porque não me interessa isso. O que eu quero? Que o presidente Lula, não o Meirelles, mas que o Lula que eu elegi – não votei nele, mas nós, brasileiros, o elegemos – eu quero que o presidente Lula reúna seus ministros da área econômica, reúna seu presidente do Banco Central e diga: “Senhores, temos um grave problema no Brasil. A nossa taxa de juros impede o desenvolvimento, impede a retomada do desenvolvimento sustentável, impede uma poupança pública decente. Quero uma estratégia para reduzir. Temos uma armadilha, então, temos que ter uma estratégia para isso, quanto tempo vocês precisam para reduzir essa taxa para níveis decentes?” É isso que eu quero ver. Mas não tem nada disso no governo. Isso não está passando pela cabeça de ninguém. Esse governo não vai mudar porque, como você disse, teve um crescimento razoável este ano, no ano que vem, quem sabe, pode até dar [um maior crescimento]. E o risco que nós sofremos, na verdade, é outro, é o risco do populismo cambial. É repetição do passado. O que aconteceu? Começa baixar taxa de câmbio... Agora, ela já começou a baixar, deixa continuar baixando. O que vai acontecer com isso? Inflação vai caindo, câmbio baixo, inflação também cai. Maravilha! Salários começam a aumentar, em termos não nominais, mas reais, os produtos importados... Tudo o que é mercado abaixa de preço. Felicidade geral! E se conseguir levar isso até meados de 2006, reeleição na certa. Isso é o populismo cambial, que é a coisa mais desastrosa que pode haver para um país. Esse é o nosso risco!
José Márcio Rego: Você adquiriu, em função do seu árduo trabalho intelectual, a função de intérprete do Brasil. Tirando a sua interpretação, quais as grandes interpretações do Brasil que te interessam e que ainda são de interesse de revistar?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Ah, mas nós damos um curso de interpretação do Brasil, na FGV, há vários anos, e lá nós discutimos Celso Furtado, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Raymundo Faoro, Fernando Henrique Cardoso. Quer dizer, nós discutimos grandes personalidades que pensaram o Brasil, Florestan Fernandes...
José Márcio Rego: O que tua interpretação traz de novo a essas grandes interpretações? Reformulando, então.
Luiz Carlos Bresser Pereira: Ah, não sei. Isso cabe a vocês discutir.
Caio Túlio Costa: Bresser, para ficar na seara dos intelectuais, tem um depoimento do Abílio Diniz, nesse seu livro...
Luiz Carlos Bresser Pereira: Grande amigo meu.
Caio Túlio Costa: Pois é, você trabalhou muito tempo no Pão de Açúcar, você é um intelectual que esteve na iniciativa privada, esteve no governo, foi ministro, secretário... Crítico de cinema!
Luiz Carlos Bresser Pereira: Isso!
[Risos]
Caio Túlio Costa: Quer dizer, é uma grande cabeça! E aí o Abílio diz, aqui: “O Luís Carlos é um intelectual, mas o Luís Carlos era muito inteligente”.
[Risos]
Caio Túlio Costa: E com base nisso eu te pergunto: o que falta para nossos intelectuais?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Ah, isso é difícil, porque eu acho que uma coisa fundamental é que os intelectuais, que são os cientistas sociais ou jornalistas, enfim, eles precisam de objetivos também. Porque é impossível imaginar que ciência social se possa fazer sem valores. E eu entendo que os objetivos têm que ser objetivos universais de paz, solidariedade entre as nações e tal, mas, ao mesmo tempo, precisam ser objetivos patrióticos. Porque nós estamos no Brasil, nós não estamos na França, nem nos Estados Unidos, nem no Japão, estamos aqui. Então, temos que ter essa visão. E isso está muito confuso no Brasil, desde os anos 1960. Eu acho que está faltando para nós, intelectuais, assim como está faltando para os empresários também e está faltando, a meu ver em menor grau, mas também está faltando para técnicos do governo uma visão do Brasil. Quer dizer, qual é visão de objetivos e valores que nós queremos? O que é desenvolvimento, o que é justiça? Como se busca o desenvolvimento equilibrado para o Brasil? Acho que isso está nos faltando.
Gildo Marçal Brandão: Então, o senhor está sugerindo que o cosmopolitismo está grassando nos intelectuais e isso está matando a função deles, é isso?
Luiz Carlos Bresser Pereira: Ah, sem dúvida. O cosmopolitismo ou a dependência que atinge os empresários, que atinge as classes médias burocráticas privadas, atinge também os intelectuais. Você pegue, por exemplo, entre os intelectuais, nós temos a valorização das revistas para efeito de pontos nos programas de pós-graduação. Revistas estrangeiras recebem o dobro dos pontos do que as revistas nacionais.
Leda Paulani: Exatamente.
Luiz Carlos Bresser Pereira: Dizem eles que é porque mais difícil publicar lá fora, de fato é mais difícil publicar lá fora, mas não é esse o problema. Se nós temos que fazer papers e trabalhos que foram aprovados pela revistas americanas, inglesas e francesas, isso significa que passamos a estabelecer como padrões para nossa produção intelectual aquilo que eles acham certo. Estamos perdidos! Onde está a nação aí? Foi embora a nação junto com o cientificismo de segunda classe.
Paulo Markun: Professor Bresser, eu tenho certeza que enquanto o senhor estiver aí martelando essas idéias e teses, nós não correremos riscos! Eu queria agradecer muito a sua entrevista, aos nossos entrevistadores. E você, que está em casa, gostaria de convidá-los para estar aqui mais uma segunda-feira mais uma vez no Roda Viva. Uma ótima semana e até lá.