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Memória Roda Viva

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Luiz Inácio Lula da Silva

1/10/1999

Lula critica o governo de Fernando Henrique Cardoso, diz não saber se seria candidato à presidência mais uma vez e discute o acordo do Brasil com o FMI

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Heródoto Barbeiro: Boa noite. Ele já esteve no centro do Roda Viva como candidato à presidência da República em 1989, 1994 e 1998. Na primeira vez, chegou ao segundo turno. Nas outras duas eleições, mesmo sem ameaçar o vencedor, se manteve como segundo colocado. Hoje, volta ao programa em meio a um dilema: disputar ou não a sucessão presidencial pela quarta vez. Ele é Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente de honra do PT [Partido dos Trabalhadores].

[Comentarista]: Nascido em Garanhuns, Pernambuco, mas criado em São Paulo, Lula, de 54 anos, é casado e tem cinco filhos. Tem apenas o primário completo e o curso de torneiro mecânico no Senai [Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial], que equivale ao segundo grau profissionalizante. Em 1975, foi eleito presidente do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Três anos depois, comandou, na região do ABC paulista, as primeiras greves que desafiaram o regime militar. Foi preso e respondeu a processo aberto com base na Lei de Segurança Nacional. Em 1980, ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores e se tornou o primeiro presidente do PT. Em 1982, disputou o governo de São Paulo e ficou em quarto lugar. Em 1986, se candidatou a deputado federal e se elegeu com a maior votação do país, 650 mil votos. Três anos depois, disputou a presidência da República e foi o segundo mais votado, com pouco mais de 17% dos votos válidos. No segundo turno, perdeu, por pequena margem, para Fernando Collor de Mello. Em 1994, apesar de derrotado por Fernando Henrique Cardoso, no primeiro turno, Lula melhorou seu desempenho eleitoral, obteve 27% dos votos válidos. Na última eleição presidencial, em 1998, tendo Leonel Brizola [1922-2004 ex-governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro. Um dos líderes da resistência ao golpe militar. Por duas vezes foi candidato à presidência da República], do PDT [Partido Democrático Trabalhista], como candidato a vice, Lula recebeu 35 milhões e 936 mil votos e aumentou, novamente, sua participação, com 31,7% dos votos válidos.

Heródoto Barbeiro: E para entrevistar o presidente de honra do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, nós convidamos o jornalista Ricardo Noblat, que é diretor de redação do Correio Brasiliense; a diretora da sucursal de Brasília da Folha de S. Paulo, Eliane Catanhêde; Luis Felipe D'Ávila diretor e colunista político das revistas Bravo e República; o diretor de redação da Gazeta do Espírito Santo, Roberto Müller; o jornalista José Paulo Cubifer, jornalista da TV Bandeirantes e colunista de economia do Diário Popular e outros 30 jornais; o jornalista Carlos Alberto Sardenberg, comentarista de economia da TV Cultura e da CBN. Nós gostaríamos também de registrar que o jornalista Luiz Maklouf Carvalho foi convidado pela produção do Roda Viva para participar da bancada de entrevistadores. A assessoria de Lula vetou a participação de Maklouf em nosso programa. Boa noite, Lula.

Lula: Boa noite, Heródoto!

Heródoto Barbeiro:  Lula, o governo esteve reunido, esta noite, já, tentando, de certa forma, se recuperar daquilo que foi uma derrota no governo diante da decisão do Supremo Tribunal Federal. Eu tenho uma declaração, Lula, dada agora  há pouco pelo ministro da Fazenda, Pedro Malan [ministro da Fazenda durante os dois mandatos de Fernando Henrique. Foi o negociador responsável pela reestruturação da dívida externa do Brasil], esclarecendo que o governo vai adotar medidas de cortes de gastos e aumento de receita para compensar a perda de 2 bilhões e 300 milhões ocorrida em função da decisão do Supremo Tribunal Federal em relação ao não-pagamento das aposentadorias pelos servidores inativos da União. Lula, que outra saída o governo teria, se não esta, comentada aqui pelo ministro Pedro Malan, ou seja, de tentar, de um lado, cortar despesa e, do outro lado, aumentar a receita do próprio governo?

Lula: O ministro Malan tem sido vítima de frases infelizes. Ainda na semana passada, quando o FMI [Fundo Monetário Internacional], pela primeira vez na sua história, avoca para si a idéia de que é preciso cuidar dos pobres, o Malan sai com uma [frase] genial, dizendo que é ingerência do FMI na política interna do Brasil. Olha, o Malan sabe, o presidente Fernando Henrique Cardoso sabe que eles estão discutindo de forma equivocada o problema da Previdência Social no Brasil. Há muito tempo, inclusive, numa conversa que eu tive com o Fernando Henrique Cardoso no dia 6 de dezembro do ano passado [1998], eu disse ao Fernando Henrique Cardoso que o problema da receita federal não é de despesa, mas sim de receita. E, para resolver esse problema, nós temos que atacar efetivamente os graves problemas da Previdência Social... que tem como primeiro ponto a sonegação [pontua com os dedos], ou seja, você tem praticamente 30% do empresariado brasileiro que ou não pagam ou cometem crime de apropriação indébita, e o governo precisava cobrar dessa gente. Você tem uma mão de obra qualificada, registrada em carteira profissional, diminuindo a cada dia que passa. Hoje, nós temos no Brasil praticamente 3 milhões de brasileiros que têm carteira profissional assinada, portanto contribuindo com a previdência, num país de 160 milhões de habitantes com 70 milhões que fazem parte economicamente ativa. Só para você ter uma idéia, Heródoto, nós hoje estamos arrecadando, com o número de contribuintes, praticamente o mesmo que nós tínhamos em 1986, há 13 anos atrás. Então, o que nós precisamos cuidar é de cobrar aquilo que é devido da previdência, primeiro cobrar os sonegadores [pontuando com os dedos]; segundo, gerar empregos para ter mais contribuintes e resolver o problema da precarização das condições de trabalho; terceiro, nós temos que regulamentar a economia informal para que eles possam contribuir com a Previdência Social. Porque todos no Brasil precisam estar subordinados ao regime de seguridade social. Se nós fizéssemos isso numa discussão com a sociedade, com o movimento sindical, possivelmente nós acertássemos mais, do que tentar consertar a Previdência Social via medida provisória, que é o que o governo está tentando fazer. Ingenuidade e má vontade com o debate político. Se o governo tivesse vontade política, possivelmente ele já teria resolvido o problema da Previdência Social. Desde aquela famosa reunião feita com as centrais sindicais que, depois, deu um bode muito grande e que não andou. O governo Fernando Henrique Cardoso precisa conversar com quem de direito [necessita e está envolvido na situação], para a gente resolver o problema da Previdência Social. O Congresso Nacional, o movimento sindical, os aposentados e a sociedade brasileira.

Ricardo Noblat: Esse tema que você está tocando, Lula, eu acho que a gente vai ter muito desdobramento e muitas perguntas a fazer, mas eu queria fazer uma pergunta inicial e desculpe se eu não prestei atenção direito. Você [dirigindo-se a Heródoto Barbeiro] anunciou que um jornalista tinha sido convidado e tinha sido vetado pela a assessoria do Lula. Como eu nunca vi isso no Roda Viva, pelo menos publicamente, eu gostaria de entender por que houve um convite a um jornalista e o nome do jornalista foi vetado?

Lula: Olha, eu estava em Paris, voltei no sábado à noite. E, no domingo de manhã, fiquei sabendo do veto. E eu concordo com o veto, porque o problema meu com o Maklouf foi um problema pessoal e não é um problema político e eu acho que a minha assessoria agiu corretamente.

Ricardo Noblat: Eu não vou entrar da discussão do pessoal, mas eu não sabia que essa prática existia no Roda Viva. Eu pelo menos participo aqui há muito tempo e nunca tinha tomado conhecimento de uma situação dessas.

Lula: Sempre tem a primeira vez. 

Ricardo Noblat: É verdade.

Lula: Sempre tem.

Luis Felipe D'Ávila: Você acabou de fazer uma verdadeira defesa de duas reformas importantes da legislação trabalhista e da legislação tributária, ou seja, para tentar sustentar esse modelo previdenciário, que você disse que precisa aumentar o lado da receita, certamente nós precisaremos fazer essa duas reformas: da legislação trabalhista e da legislação tributária, exatamente para evitar a sonegação que você mesmo levantou. Como é que o PT vê essas duas reformas, que já estão sendo discutidas há mais de oito anos no Congresso Nacional e até agora continuam emperradas nas condições e não são votadas duas reformas essenciais não só para equilibrar a Previdência Social, como você bem disse, como também para tirar esse trabalhador da economia informal e trazê-lo para a economia formal se tornar um contribuinte?

Lula: Olha, possivelmente os trabalhadores da economia informal nem todos queiram vir para a economia formal, porque muitas vezes, fazendo um bico, ele pode estar ganhando mais do que se estivesse registrado ganhando 136 reais. O dado concreto e objetivo é que, no mundo inteiro, toda e qualquer experiência de reforma na Previdência Social, ela se deu um longo debate com a sociedade, envolvendo os trabalhadores da ativa, envolvendo os trabalhadores inativos. No Brasil, o governo tem medo de discutir com a sociedade, fica com uma base de sustentação que não lhe sustenta coisíssima nenhuma e que possivelmente não queiram sequer a reforma da Previdência Social. O que o governo não pode é ficar tentando jogar em cima dos aposentados a responsabilidade pela falência da Previdência Social, porque a grande maioria dos aposentados ganha, no máximo, um salário mínimo. Então, o governo precisa pensar em abrir uma discussão com a sociedade. Eu tenho certeza que o movimento sindical estaria disposto a discutir, eu tenho certeza que as entidades representativas dos aposentados e pensionistas estariam com disposição de discutir. E essas entidades é que poderiam aumentar o próprio debate dentro do Congresso Nacional. Só para você ter idéia, o PT apresentou uma proposta há mais de 8 anos sobre a reforma da Previdência Social. Agora, para apresentar uma proposta no Congresso Nacional, você tem que ter maioria para poder votar. A segunda coisa é com política tributária. Veja, há 4 anos atrás, quando o atual Prefeito de Santo André era deputado federal do PT, nós fizemos no Instituto da Cidadania um debate sobre a reforma tributária que durou seis meses, mais um debate feito na bancada e nós apresentamos uma proposta de política tributária no Congresso Nacional que também não é discutida. E por que não é discutida? É porque a base de sustentação no governo no Congresso Nacional possivelmente tenha na sua maioria os coronéis sonegadores desse país, aqueles que não pagam imposto, aqueles que não fazem nada quando dizem que banqueiro não paga imposto. Eu acho que o Brasil... veja, o Brasil precisava menos de uma reforma constitucional, sabe, para a questão da política tributária. Quando o Everaldo Maciel [secretário da Receita Federal na época] vai na CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] dos bancos e reconhece que banqueiro não paga imposto [ri] e reconhece que 65% dos grandes empresários também não pagam, é apenas cobrar, quando eles reconhecem que a cada real arrecadado há um real sonegado, significa que nós precisamos ter mais fiscalização, acabar com a impunidade e colocar um ou dois sonegadores na cadeia, que aí nós começamos a resolver o problema da política tributária do Brasil.

José Paulo Kupfer: Acho que você tem toda a razão com essa parte do que é pouco arrecadado, muita sonegação, mas o PT tem feito coisas esquisitas além desse veto ao jornalista, mesmo que você tenha um caso pessoal, problema pessoal.

Lula: Caso nenhum [risos].

José Paulo Kupfer: Um problema pessoal com ele. Isso é muito esquisito e é muito esquisito também, talvez você pudesse me dar uma boa explicação agora, a aliança com a bancada ruralista por exemplo. Você está falando de coronel, sonegadores, caloteiros... para reduzir a dívida que eles tinham há anos, 20 anos, enfim é uma dívida eterna que a área agrícola, especialmente os tubarões da área agrícola têm com o Banco do Brasil basicamente. E o PT, pelo que se leu, aliou-se aos que defendiam o perdão de parte... 40% dessa dívida e outras coisas. Será que só foi para criar problemas para o governo, para tentar impor uma derrota pontual?

Lula: Você sabe o que eu acho delicado para o Brasil? Toda vez que um jornalista bem informado como você lê uma informação e muitas vezes passa ela para frente, porque quem sabe até não teve outra. A verdade é que o PT votou junto com a bancada ruralista por causa da questão da urgência urgentíssima de votar a discussão da dívida dos ruralistas. O PT tinha uma proposta clara, nós iríamos discutir a renegociação de quem devia até 200 mil reais, dos pequenos e médios proprietários rurais. Eu até tive oportunidade de participar de uma reunião da bancada e dizer que a bancada do PT deveria exigir que o governo federal publicasse o nome dos grandes fazendeiros, das grandes empresas que deviam e que o governo deveria dar um passo a mais, deveria desapropriar essa terra por conta da dívida e fazer reforma agrária nela. O que o PT fez foi fazer com que o projeto viesse para ser discutido. E, se você percebeu, na votação, o PT votou exatamente as suas propostas, que tinham sido apresentada na comissão que trata da questão da agricultura na câmara. Vender a idéia que o PT tinha se juntado à bancada ruralista como já venderam outras idéias sobre o Partido dos Trabalhadores! Se há uma coisa que nós temos naquela bancada, primeiro, é um grupo de deputados da mais extraordinária competência, segundo, da mais extraordinária coerência. O partido está convencido que é preciso renegociar a dívida dos pequenos produtores, até porque parte dela é culpa do próprio governo com a sua política de juros absurda jogada em cima dos produtores brasileiros.

Carlos Alberto Sardenberg: Lula, falando um pouquinho sobre a questão da receita, a tese freqüente do PT que o problema, não só o problema da Previdência mas também o problema do governo, é um problema de receita e não despesa, ou seja, falta receita e essa receita poderia ser obtida. Agora  o fato de ver as coisas por outro lado o fato é que se paga muito imposto no Brasil. Hoje se calcula que a chamada carga tributária deve estar em torno de 32%, quer dizer o seguinte: de cada 100 reais produzidos na economia, 32 vão para o governo. É muito. É mais que os argentinos pagam, é mais que os mexicanos pagam, é mais que os coreanos pagam, para citar apenas países semelhantes. Então, portanto, a carga tributária no Brasil é muito elevada e há uma carga muito grande sobre as empresas: Cofins [Contribuição para o Financiamento da Seguridade Nacional], PIS [Programa de Integração Social], Pasep [Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público], enfim uma série de impostos em cascatas etc e tal [risos]. Em resumo, pelo menos uma parte da economia brasileira paga imposto.

Lula: Para quem paga no Brasil, realmente ela é alta.

Carlos Alberto Sardenberg: Então, quando você fala em aumentar a arrecadação... Agora, é o seguinte, você não está pensando em aumentar ainda mais  a carga tributária?

Lula: Não, quem aumenta é o governo. O PT se deu ao luxo de votar contra a CPMF [Contribuição Provisóra sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira], o PT se deu ao luxo de votar contra porque nós entendíamos que não era preciso criar um novo imposto nesse país. Era apenas cobrar aqueles impostos já existentes.

Carlos Alberto Sardenberg: Você pensa... A proposta... para ela não aumentar a carga tributária, ela tem que ser: "Olha, nós vamos cobrar ela aqui e nós vamos tirar outros impostos".

Lula: Você pode diminuir os impostos por setores produtivos, você pode aumentar os impostos por ganho de capital para especulação, você pode diminuir imposto de renda para os trabalhadores brasileiros. Porque, lamentavelmente, no país, quem paga imposto hoje são trabalhadores e parte da classe média, que recebe contra-cheque descontado na fonte, paga 27,5%, que na minha opinião é um roubo, enquanto banqueiro que ganha R$1 bilhão e 90 milhões em seis meses não paga. Então, eu acho que é preciso a gente, efetivamente desobstruir... desonerar aqueles que efetivamente produzem e geram empregos nesse país. Poderíamos diminuir a carga tributária e na proposta do PT no Congresso Nacional, a gente propõe isso e, ao mesmo tempo, você cobrar de todo e qualquer cidadão nesse país. Não deixar ninguém sem pagar aquilo que é devido porque, daí, nós vamos ter os recursos necessários para ver os investimentos que o Estado precisa fazer [abre os braços].

Carlos Alberto Sardenberg: Só para concluir: há uma discussão social importante no Congresso sobre a reforma tributária. Você poderia adiantar mais um pouco, por exemplo, com quais impostos você fica e quais impostos você...

Lula: Olha, veja bem, primeiro eu não sei se a gente pode colocar o Cofins como uma coisa maléfica como vendem, porque, na verdade, o Cofins sustenta o FAT [Fundo de Amparo ao Trabalhador] que, se fosse bem aplicado o dinheiro, poderia até alavancar o crescimento da economia brasileira [sendo interrompido]. O grande problema é o seguinte: nós precisamos... Por exemplo, você precisa diminuir os impostos, você pode reduzir para 3 ou 4 impostos, você pode fazer com que as pessoas possam pagar um pouco mais no consumo, mas você precisa efetivamente desobstruir as pessoas que geram empregos nesse país e que produzem no campo. E aí você mantém, efetivamente, uma Receita Federal primeiro, moderna, você precisa contratar mais fiscais, você precisa modernizar a máquina arrecadadora para você fazer com que o Estado brasileiro receba aquilo que lhe é devido. Porque o que é grave no Brasil é que todo mês, todo ano que entra um ministro, ele anuncia que vai denunciar os caloteiros e não anuncia. De vez em quando aparece uma lista nos jornais que desaparece no dia seguinte. E o povo, efetivamente, é quem paga isso.

Roberto Müller: Eu queria introduzir uma questão que tem a ver com as críticas que você tem feito à política econômica do atual governo, mas tem a ver também com política stricto sensu. [É] Muito difícil no seu discurso, discurso dos integrantes do Partido dos Trabalhadores, surgir algum elogio... nem eu estou propondo isso, mas eu quero lembrar que no dia 29 de janeiro de 1995, numa entrevista ao jornalista Élio Gaspari, publicada no jornal O Globo, você referindo-se... três meses depois do pleito, referindo-se ao presidente, então recém-eleito, disse o seguinte: "Ele é melhor  que os teus antecessores. Melhor que Sarney, Collor e Itamar [ex-presidentes da República]". Eu quero saber se essa é ainda a sua opinião. Fernando Henrique é ainda melhor na sua opinião do que Sarney, Collor e Itamar inclusive?

Lula: Olha, veja, você citou bem. Em 1995, qualquer analista político, e eu, embora não seja nem um cientista político formado na universidade, eu me considero um cientista político nesse país, haveria de admitir, pela história de Fernando Henrique Cardoso, que ele tinha muito de diferente com vários dos seus antecessores, seja do ponto de vista intelectual, seja do ponto de vista de sua história política. Então, não fui eu que errei a minha análise, Fernando Henrique Cardoso foi que mudou, efetivamente, para pior. Ele é que virou um conservador, sabe, de marca [sendo interrompido], diria pior.

Roberto Müller:  Ele ficou pior que algum desses três?

Lula: Veja, ele efetivamente vai passar para a história como o pior presidente dentro da história desse país. Ele conseguiu construir um passivo de quase 500 bilhões de reais sem construir nenhum ativo. Se você pegar a história do Brasil, você vai perceber que Getúlio Vargas endividou o Brasil e construiu um pólo de desenvolvimento industrial. Você vai perceber que Juscelino [pontuando com os dedos] fez um plano de metas e construiu Brasília. Você vai perceber que, mesmo os militares, que possivelmente todos nós aqui lutamos contra eles, construíram um pólo de desenvolvimento na área energética, na área petroquímica, na área de comunicações, tá? E deixaram uma dívida incomensurável, que até hoje estamos pagando ela. O Fernando Henrique Cardoso aumenta essa dívida e não coloca nada, ou seja... porque ele se subordinou a uma orientação perversa do Fundo Monetário Internacional. É de subordinar a estabilidade da economia a uma recessão profunda, à destruição do patrimônio público brasileiro, à destruição da pequena e média empresa brasileira... E hoje já começam a aparecer muitos daqueles que eram defensores do Fernando Henrique Cardoso... a mostrar o malefício que ele está sendo para o Brasil.

Eliane Cantanhêde: Lula, você, lá pelas tantas, disse que a oposição faz oposição e disse que a oposição não tem que fazer proposta. Aquilo saiu da sua cabeça de repente, aquilo foi uma frase que vocês discutiram estrategicamente dentro do PT? O que você quis dizer com isso?

Lula: Veja, uma coisa simples: o Brasil é um país sui generis, o Brasil é o único país do mundo, Eliane, é o único país do mundo em que muitas vezes o jornalista cobra da oposição a proposta política que deveria cobrar do governo. Ou seja, o governo acaba de ganhar as eleições e ele tem que executar. E as pessoas costumam cobrar da oposição. A oposição apresenta para a sociedade, apresenta no Congresso Nacional, mas quem tem que governar é o governo. Eu disse. Ou seja, a oposição... Eu apresentei proposta durante a campanha eleitoral. Nós temos propostas apresentadas pelos deputados. Agora, que ninguém venha cobrar do PT alternativa, porque não é o PT que pode executá-las.

Eliane Cantanhêde: Sim, mas a gente pode cobrar o seguinte: hoje, o Lula poderia ser o presidente da República, tá certo? E, nessa hipótese, como é que  o Lula, por exemplo, ia dizer não ao FMI? Vem a crise da Ásia, vem a crise da Rússia e essas crises todas e aí... Você faria o contrário do que fez Portugal, do que fizeram todos os países, inclusive nossos vizinhos aqui, que foram recorrer à grana do FMI para tentar botar as coisas em ordem? O que você faria, diria não ao FMI?

Lula: Eu vou lhe contar uma história. No dia 6 de dezembro, quando eu estive com o Fernando Henrique Cardoso, ele falou assim para mim: "Lula, nós não vamos precisar desse dinheiro, isso é apenas para tranqüilizar o mercado. Nós não vamos precisar desse dinheiro". E você está lembrada que, em agosto de 1998, o PT teve a coragem de ir para a televisão? Eu fiz um pronunciamento de 6 minutos na televisão mostrando que ia acontecer a crise e que a forma que o governo tinha para evitar aquela crise era fazer uma espécie de controle cambial. Disseram que nós éramos uns loucos. E hoje, falar em controle cambial virou uma palavra da moda, virou modernidade, quando poderia ter feito antes de permitir a fuga de 40 bilhões de dólares. Veja, eu acho que o governo brasileiro, possivelmente, naquele momento, não tivesse como conversar com o FMI.

Eliane Cantanhede:  Você conversaria com o FMI?

Lula: Uma coisa, veja... É difícil dizer porque, se eu estivesse lá, teria que tomar uma decisão em função de uma realidade muito [sendo interrompido]... Veja, você poderia conversar com o FMI sem aceitar o acordo impositivo do FMI. Você pode conversar e dizer: "A situação do Brasil é essa, não dá para subordinar o Brasil a essa política que vocês querem porque vai ser recessiva e vai quebrar esse país". E não faria esse acordo.

Eliane Cantanhede: E aí ele diria: "Ah, sim, eu sou bonzinho, eu topo". Tem que combinar com o adversário, né?

Lula: Aliás, não é assim. Veja, não é assim. Vamos parar de vender terror nesse negócio dizer que o FMI  vai impor. Veja, o governo brasileiro seria muito mais sábio se, ao invés de  mandar um tecnocrata, que não tem nenhum sentimento desse país, que não sabe o que é fome ou desemprego, que não sabe o que é pessoas dormirem em baixo de ponte, [para] negociar... O governo poderia fazer um debate, a nível nacional, para ver qual é o tratamento que vai dar a nossa dívida externa. O governo poderia ir negociar um respaldo da sociedade brasileira, mas [sendo interrompido]... Agora, se o governo não tem coragem é um problema do governo, que diz que o FMI está preocupado com os problemas sociais do Brasil. É um problema dele [governo], eu não acredito. O FMI não existe para salvar o país, ele existe para salvar os credores dos países devedores.

Eliane Cantanhede:  Mas, só para ficar claro, você admitiu que conversaria com o FMI desde que  as condições de retorno fossem diferente, mas admitiu que conversaria?

Lula: [interrompendo] Obviamente, você pode conversar impondo condições.

Luis Felipe D'Ávila: [interrompendo] Lula... não recorrer ao FMI, Lula, implica uma moratória. Foi o que aconteceu com o Brasil e o Brasil, até hoje, paga muito caro por causa da moratória do governo Sarney.  Até hoje pagamos muito caro. E, olha, o Equador acabou de declarar moratória na reunião do FMI e já causou um grande problema externo para o Brasil, inclusive de credibilidade, ou seja, cada vez que  se declara uma moratória, o crédito brasileiro no mercado externo vai...

Lula: [interrompendo] Mas quem é que te disse [gesticulando]? Que certeza absoluta! Quem foi que disse que não conversar com o FMI é declarar moratória?  E comparar o Brasil com o Equador? Meu querido, o Equador não declarou. O Equador, na verdade, deveria ter declarado concordata, porque o país está falido exatamente porque, há muito tempo, vem cumprindo as orientações do FMI [sendo interrompido]. O Brasil... o governante brasileiro tem que ter, sobretudo, auto-estima. Esse país é a oitava economia mundial, é um país com uma profunda vocação industrial, tem uma extraordinária base intelectual. Esse país não pode ser tratado como a "República das Bananas", não. Este país tem que ter coragem de dizer para o FMI que nós queremos participar da lógica da modernização de economia, mas [apontando para si] nós queremos respeito aos nossos valores. Que brincadeira é essa de mandar um burocrata brasileiro ir de joelhos conversar com o FMI?

Luis Felipe D'Ávila:  Só quero te dizer uma coisa, que pra não ser tratado... para mim, não tratar o país como a "República das Bananas" significa, acima de tudo, honrar compromissos nacionais e internacionais. Qualquer quebra de acordo nacional e internacional, aí sim, o país se comporta como "República das Bananas".

Lula:  Veja, eu acho que o Brasil tem uma coisa mais séria para fazer, possivelmente.

Luis Felipe D'Ávila: [interrompendo] Mais séria que cumprir acordos?

Lula: Veja [exalta-se e muda o tom de voz], esse país tem uma dívida mais importante do que a dívida externa, mais importante que a dívida interna. É uma dívida social. É uma dívida com metade da população brasileira, 50 milhões que ganham menos que 50 dólares por mês. Esse país, segundo dados da Sociedade Solidária da mulher do presidente da República [Ruth Cardoso, doutora em antropologia, dirigia a Sociedade Solidária, organização responsável por programas sociais e de voluntariado], tem 35 milhões de pessoas vivendo em condições de indigência. Em algum momento vai ter um governo que vai ter que ter coragem, e espero que seja do PT, em dizer para o FMI: "Olha, nós reconhecemos a dívida, até porque  metade dela é do setor privado. Agora, espera aí: vocês podem reinvestir parte desses juros em setor produtivo no Brasil". E nós temos que criar um clima mundial. Você tem que pegar os países devedores e começar a abrir uma discussão. Não é possível que desçam três burocratas do FMI, no aeroporto de Brasília, para dizer  o que nós temos que fazer com a economia! Cadê a nossa soberania, a nossa dignidade, a nossa honradez?

Heródoto Barbeiro:  Vamos fazer um intervalo e a gente volta daqui um pouquinho com o nosso convidado hoje que é o Luis Inácio Lula da Silva, o, presidente de honra do PT. Voltamos daqui a pouco.

[intervalo]

Heródoto Barbeiro:  Nós voltamos com nosso convidado de hoje, que é o presidente de honra do PT, Luiz Inácio Lula da Silva. Lula, tem aqui a participação de nossos telespectadores, uma carrada aqui de telefonemas e também de faxes enviados aqui para o Roda Viva. Todos eles se referem ao candidato do PPS  [Partido Popular Socialista] à presidência da República, o  pré-candidato Ciro Gomes [ex-deputado estadual, ex-prefeito de Fortaleza e ex-governador do Ceará]. Quero ouvir um comentário de você a respeito da última pesquisa, que daria uma participação maior do Ciro Gomes na opinião pública e uma recepção melhor por parte da opinião pública brasileira. Então, nós queremos saber se você está acompanhando isso?

Lula: Eu estou rindo, sabe por que, Heródoto? [Lula ri] Porque nós estamos a praticamente a três anos e dois meses de uma possível eleição e já se começa a manipular pesquisa. Veja, a pesquisa que eu tenho... informações publicadas, divulgadas pelo Ibope [instituto de pesquisa de opinião pública], ela não pergunta em quem a pessoa vai votar. Ela pergunta, simplesmente, quem é que tem a melhor proposta para o Brasil. E, aí, o Ciro Gomes aparece com 40 %. Daí, eu não sei quem, porque eu não estava aqui, mas alguns jornais fizeram ilação dizendo que... "Olha, o Ciro está com 40% e o Lula está com 30%" [sendo interrompido]

Eliane Cantanhêde: [interrompendo] Mas, de qualquer jeito, Lula... Espera aí... mas 40 % de quem tem a melhor proposta, isso já não é absolutamente significativo?

Lula:  Pelo amor de Deus, você que é uma das mais bem informadas jornalistas, que trabalha num grande jornal de São Paulo! Durante toda a campanha de 1989, o Covas [Mário Covas (1930 - 2001), político do PSDB, foi governador de São Paulo] tinha a melhor proposta e ficou em quarto lugar. Em 1989, também, o Roberto Freire [presidente do PPS em 2007], aparecia como o mais preparado dos candidatos e só teve 2 % dos votos. Sabe o que acontece? Nós temos que baixar a bola e jogar o seguinte jogo agora: primeiro, eu acho que o Ciro Gomes está no papel dele, de tentar fazer o PPS crescer. Eu só não sei se está crescendo. Pode estar inchando, porque a gente só vai ver se cresceu mesmo é com as eleições do ano 2000. Aí, vamos ver quantos votos vai ter a nível nacional. Por enquanto, sabe, são coletas de frutos nem sempre bons, mas faz parte do jogo político. Agora vamos ver na eleição se o PPS vai crescer. Segundo, se crescer, é bom para o Brasil porque é mais um partido que começa a se fortalecer na história nacional.

Carlos Alberto Sardenberg: Um partido de esquerda?

Lula: Não, eles fazem questão de dizer que são de esquerda. Eles fazem questão de dizer...

Carlos Alberto Sardenberg:  Você acha então que não é de esquerda?

Lula:  Olha, veja, eu não vou julgar o perfil ideológico do PPS. O que eu acho importante é que eles cresçam [abre os braços], faz bem para a democracia brasileira. O que eu posso é antecipar uma discussão eleitoral, três anos.

Eliane Cantanhêde: Agora, a gente sempre acha que a pesquisa é um indicador inclusive para reflexão interna dos próprios partidos. O que você acha melhor para o PT? Achar que: "Não. Isso tudo é uma besteira, uma manipulação de pesquisa" ou: "Vamos pensar seriamente o que está acontecendo com a gente e ai dar os 40%, lá das propostas do Ciro"?

Lula: É uma coisa muito simples, minha querida, o que está acontecendo é muito simples. Primeiro, é só o Ciro Gomes candidato a presidente até agora. E acho ótimo fazer aquilo tudo, fazer isso.

Carlos Alberto Sardenbeg:  [interrompendo] Você não é, Lula?

Lula:  Não, eu não sou, por enquanto eu não sou [abre os braços]. Posso até ser, se em 2001, no final em 2002, se o partido chegar à conclusão que eu deva ser, mas eu acho muita responsabilidade ser candidato agora. Eu acho que o povo brasileiro está preocupado, nesse momento agora... com o feijão do que com eleição. Nós vamos ter ainda eleição para prefeito, que vai ser a base fundamental para a eleição de 2002. Nós vamos ver quem é que vai eleger quem, para saber como é que vão se dar as eleições de 2002. Então, eu acho que é o seguinte, olha, se você imaginar o tipo de voto que o Ciro está pegando, que aparece na pesquisa da Folha [referindo-se ao jornal Folha de S. Paulo] em que ele aparece com 19% e eu apareço com 30%, se você pegar os votos dele dão, efetivamente, os votos dos que vêm do lado descontente do lado do Fernando Henrique Cardoso. Na medida em que vai caindo o Fernando Henrique Cardoso, vai aumentando o Ciro. Só que você tem que imaginar que, nessa banda do Ciro, tem muito mais candidatos. Nessa banda do Ciro, pode aparecer um candidato do PMDB [Partido do Movimento Democrático Brasileiro], pode aparecer um candidato do PFL [Partido da Frente Liberal, tornou-se Democratas em 2007], pode aparecer um candidato do PSDB [Partido da Social Democracia Brasileira], que nós não sabemos ainda se é o Mário Covas, se é o Tasso [Tasso Jereissati, ex-governador do estado de Ceará e senador da República]. Quem é? Então, você percebe que a guerra vai ser muito grande. Eu poderia estar tranqüilo aqui porque [sorri], vira e mexe, bordoadas em cima do PT, bordoadas em cima do Lula. E você percebe que nós continuamos com 32 % dos votos, ou seja, é o voto ideológico muito definido. O que eu dizia em 1998, Sardenbeg? O que eu dizia? Que o Lula não precisava ser candidato para provar que representa 30% dos votos, de que nós precisamos fazer articulações políticas para chegarmos aos 50. E qual é a articulação política? Você pode fazer articulação política com partido político [pontuando com os dedos e girando a cadeira] ou você pode fazer uma inflexão num partido. Ao invés de ficar tentando ganhar classe média, nós temos que fazer um trabalho muito grande junto aos setores excluídos da sociedade, sabe, que só é procurado em época de eleição. Então, como o PT tem congresso agora, nós vamos descobrir isso com muita tranqüilidade, vamos preparar as eleições de 2000, porque nós vamos ganhar no mínimo umas dez capitais desse país. Escuta, pelo menos umas dez capitais [sendo interrompido]. A partir daí é que nós vamos discutir as eleições de 2002.

Carlos Alberto Sardenbeg: É o seguinte... Esse mesmo ponto que você levantou, é exatamente onde eu queria de colocar a questão que é o seguinte: quando você falou: "o PT tem 30% dos votos, não precisa provar". Quer dizer, tem várias eleições e as pesquisas sempre mostram ou o PT ou você pessoalmente com... ali, 30, 32%, às vezes até 35%. Agora, não lhe ocorre que o problema seja esse? Porque, veja, no pior momento do Fernando Henrique, quer dizer, ele nunca teve resultados tão desastrosos como esse que ele está tendo agora. Quer dizer, no pior momento do Fernando Henrique, quando seria natural supor que o eleitorado, descontente com o presidente, sentiu-se traído pelo governo. Não seria natural pensar que o eleitorado iria se virar? E para quem? Para a pessoa que foi a alternativa que tem sido apresentada nos últimos anos [referindo-se a Lula]. Quer dizer, em outras palavras, a questão que a Eliane coloca, imagino que seja essa, quer dizer... Não preocupa o PT o fato de, no pior momento do Fernando Henrique, em vez de crescer a alternativa PT, crescer a alternativa Ciro Gomes?

Lula: Meu querido, deixa eu te dizer uma coisa: Em março deste ano, numa reunião do diretório do PT, eu chamava a atenção do meu partido para o seguinte: "Olha, não basta o Fernando Henrique Cardoso estar ruim para a gente imaginar que o eleitorado dele venha para o nosso lado, é preciso que a gente conquiste esse eleitorado". E nós vamos trabalhar para conquistar. Estou dizendo: é uma loucura ficar imaginando as eleições de 2002 agora. Pelo menos na minha cabeça não cabe.

Carlos Alberto Sardenbeg: Você acha que o Ciro está no seu campo político?

Lula: Não. Nós temos algumas divergências com o Ciro Gomes, ele sabe dessas divergências. Eu vou dar dois exemplos aqui. Em janeiro, a imprensa publicou quando eu disse o seguinte: "Olha, nós, agora, ao invés de ficarmos pensando em eleição, nós temos que construir um movimento suprapartidário que envolva, além dos partidos políticos, envolva empresários, intelectuais, artistas e que envolva a sociedade que não participa do processo político em torno de um programa mínimo." Não é um programa do PT, é um programa mais geral. E, a partir daí, a gente começa a viajar o Brasil, fazer debates. E depois, então, a gente poderia, no final de 2001, escolher o candidato a presidente. Essa era uma hipótese, essa era uma hipótese. Essa hipótese está sendo discutida na frente, na medida que nós queremos construir a frente. Ela está sendo discutida. É sempre muito mais complicado do que fazer política sozinho [mexendo as duas mãos de um lado para o outro]. Então, essa é uma divergência. A segunda divergência que nós temos com o Ciro Gomes é o seguinte: o Ciro Gomes esteve aqui no Roda Viva e o Ciro Gomes, em nenhum momento, falou em reforma agrária. O programa inteiro. Parece que vai se resolver a miséria desse país em levar sem levar conta a reforma agrária. Depois, tem uma coisa que eu acho grave e também era divergência minha, mais histórica, com o Ciro, ou seja, ele achava, como o Fernando Henrique Cardoso, que era preciso privatizar o sistema Telebrás para abater o déficit público, e nós nunca concordamos com isso [sendo interrompido]. Você pergunta para mim: "Vocês vão ou não vão conversar com o Ciro Gomes"? Eu vou dizer para você: "Em política, você dizer que não vai conversar com alguém com tanta antecedência é, no mínimo, irresponsabilidade". Nós temos um trabalho a fazer, o Ciro está fazendo o trabalho dele, o presidente está fazendo o seu. Possivelmente, em algum momento, haja a possibilidade de uma confluência de conversação entre os dois partidos e, quem sabe, você possa discutir candidatura 2002. Eu não descarto essa possibilidade.

Roberto Müller: [todos falam ao mesmo tempo] Você mencionou a privatização, as privatizações, em tom de crítica. Eu pergunto: Lula presidente da República o que faria? Anularia as privatizações?

Lula: Primeiro, eu não teria privatizado. Segundo, eu vou repetir o que eu dizia em 1998. Nós, em algumas, vamos fazer uma auditoria. O sistema Telebrás vai passar por uma auditoria. É importante todo mundo saber disso, e se forem comprovadas as falcatruas que nós entendemos que tem, não tenha dúvida que nós vamos fazer uma discussão muito grande, a nível nacional, para desfazer essa privatização. Não tenha dúvida, não sei se [devemos] estatizar, não sei se criamos uma empresa pública. Até porque, para nós, era muito melhor que essas empresas, ao invés de serem privatizadas... que as suas ações fossem pulverizadas diante da sociedade. Só para você ter idéia, o governo brasileiro devia em 1998, 13 bilhões de reais em Fundo de Garantia por Tempo de Serviço [FGTS]. Então, esse dinheiro deveria ter sido usado em ações da Companhia do Vale do Rio Doce, em ações do sistema Telebrás, para que a sociedade brasileira fosse sócia dessas empresas, e não entregar a testa-de-ferro de empresa multinacional como fizeram.

José Paulo Kupfer: [todos falam ao mesmo tempo] Está difícil. Eu, que sou briguento, estou apanhando aqui hoje [risos]. Lula, tem quem diga, tem quem escreva, tem quem ache que o Ciro Gomes é o Collor com o sinal trocado. Você concorda com isso?

Lula: Olha, eu não faço juízos de valor de pessoas assim. Eu acho que o Ciro Gomes acredita em algumas coisas, ele faz questão de divulgar essas coisas nas quais eles acreditam. Ele não concorda com tudo o que eu concordo [apontando para si], eu não concordo com tudo o que ele concorda. Portanto, vai precisar de muito debate para que a gente possa perceber se há ou não possibilidade de se afinar. Não cabe a mim julgar o Ciro Gomes. Ciro Gomes, efetivamente, o povo brasileiro sabe o momento adequado...

Ricardo Noblat: Lula, se me permite... Há, pelos menos, duas eleições que eu ouço você dizer que "não quero ser candidato, não vou ser candidato" e acaba sendo candidato... Ou docemente constrangido ou perversamente constrangido, não sei, mas acaba sendo candidato. Pelo menos foi assim na última [eleição]. Um pouco na anterior, mas especificamente na última. Na última, aparentemente, você relutou muito, de fato relutou muito e você dizia: "Não quero ser. E eu acho que o PT tem outros nomes, tem outras possibilidades". Claro que a gente está com um tempo muito longo, como você mesmo colocou, até lá [as eleições]. Mas é uma questão de foro íntimo: você está disposto a... se o partido lhe pressionar novamente e apertar novamente, constrangido, você se candidata?

Lula: Noblat, olha, deixa eu falar uma coisa para você. Olha, eu acho que não se trata do partido constranger ou não. Veja, em 1998, eu dei uma contribuição maléfica para o debate, porque eu mesmo coloquei o meu nome em depreciação, eu mesmo coloquei o meu nome. Quinhentas conversas com o Brizola, com Arraes [Miguel Arraes (1916 - 2005), ex-prefeito, ex-deputado estadual, ex-deputado federal e ex-governador de Pernambuco], com o meu presidente José Dirceu, com João Amazonas [(1912 - 2002), ex-líder do Partido Comunista do Brasil], ou seja, eu tinha consciência que eles não tinham outro porque não tinham preparado um outro [candidato]. E, na medida que eu fiquei quatro meses dizendo que eu não queria ser, para eles indicarem outro, eu fui permitindo que passassem para a sociedade a idéia de que existia alguém na esquerda melhor do que eu, quando na verdade não existia naquele momento. O que eu estou querendo dizer agora é que, com muita antecedência, nós precisamos abrir esse debate interno. Fazer avaliações internas para ver quem é que tem possibilidade, até porque nós temos hoje vários governadores na oposição. Nós temos Garotinho [Antony Garotinho, ex-governador do Rio de Janeiro] no Rio, temos Olívio Dutra [político do PT, ex-prefeito de Porto Alegre, foi ministro das Cidades do futuro governo Lula], no Rio Grande do Sul. Nós temos  o Zeca ["Zeca do PT"] no Mato Grosso do Sul, nós temos o Lessa, nós temos Jorge Vianna [ex-governador do Acre, também do PT], nós temos o Capiberibe [João Capiberibe, ex-senador da República], nós temos sete senadores. E ainda tem o Itamar [Franco] em Minas Gerais. Então, o que eu acho é que nós precisamos começar a fazer uma discussão para estabelecer critérios para escolher. O que eu tenho dito ao meu presidente, José Dirceu? Eu não quero ser candidato natural, não é possível. Esse partido já tem 20 anos, tem gente extraordinária. Nós precisávamos, então, colocar essas pessoas para viajar o Brasil, para fazerem debates, saírem do seus estados, saírem das coisas pequenas e fazerem uma coisa maior. Sabe, só no PT nós temos José Dirceu, Tarso Genro [ex-prefeito de Porto Alegre, ministro da Educação e de Comércio Exterior do governo Lula em 2007] Genuíno [José Genuíno, ex-deputado federal], Cristóvão Buarque, Aloízio Mercadante [deputado federal em 2007], Suplicy [Eduardo Suplicy, várias vezes senador pelo PT paulista], sabe, então nós temos gente extraordinária. Marta [Marta Suplicy, ex-prefeita de São Paulo] foi eleita como prefeita, é uma candidata em potencial. O Garotinho é um candidato em potencial, Olívio Dutra... Então, o que eu quero é que não fique nesse negócio: "Não, Lula tem 30%, olha, ele já começa com trinta. Vamos ficar no banho-maria, vai ser ele mesmo". Eu não quero mais isso, eu não quero mais isso. Eu quero abrir um debate porque, se eu tiver que ser candidato, eu quero ser candidato num outro critério. Tentar fazer uma prévia nacional em que todos aqueles que queiram ser candidato, para que a gente não saia dessa política pequena de meu partido.

Ricardo Noblat: Nessa prévia nacional você se lançaria? Porque é inevitável que... dentro do PT, claro que você é a maior liderança dentro do PT e dentro desse campo de oposição. Eu li aqui, em um desses papéis que nos deram, um pouco para alimentar essa discussão com você... É uma socióloga, agora que eu não lembro o nome, mas é uma socióloga conhecida, onde ela dizia: "A oposição não pode ficar refém de um líder só". Não que essa seja ou não a sua intenção. De uma certa maneira a oposição está ao longo de 12 anos refém de um nome.

Lula: Noblat, não depende de mim. Veja, quando eu fui eleito presidente do sindicato dos metalúrgicos, no dia 24 de abril de 1975, eu convoquei uma assembléia, convoquei uma assembléia e deliberamos o seguinte: "Ninguém pode ser presidente por mais de dois mandatos". Eu poderia ser presidente do PT até hoje. Eu poderia ser o Ulysses Guimarães do PT. Eu saí da presidência porque eu achava que era preciso criar outros nomes. E o José Dirceu se saiu extraordinariamente bem e, se ele sair, vai entrar outro melhor. Então, eu quero fazer o mesmo com a candidatura de presidente, meu caro. Eu acho que eu posso contribuir com o PT não sendo candidato, eu posso viajar o Brasil à vontade, eu posso dizer coisas que como candidato eu não posso dizer. Então, isso não é problema para mim. Agora, veja, eu também não posso dizer não sou candidato, porque, para alguém que tem 30% dos votos, é difícil dizer isso. Agora, se for necessário ser candidato, eu quero que essa candidatura saia de um processo de discussão envolvendo a frente, envolvendo o PT, inclusive com outros nomes, fazendo a coisa mais democrática.

Heródoto Barbeiro: Lula você citou en passant... e aqui tem várias perguntas dos telespectadores. Você citou o caso da deputada Marta Suplicy, candidata ao governo de São Paulo. Vários telespectadores gostariam de ouvir um comentário seu da disposição, também, do ex-presidente Fernando Collor de Melo em ser candidato a prefeito da cidade de São Paulo.

Lula: Sabe que eu acho o Collor um corajoso, viu? Porque o Collor deveria estar sendo candidato ao Carandiru [antiga casa de detenção de São Paulo]. Porque o cara que tem o tanto de processos que ele tem, o tanto de dúvida, sabendo que está proibido de ser candidato a 2002, muda para São Paulo para ser candidato... É, no mínimo, de uma coragem, sabe! Eu acho. Ou ele está desprezando o povo paulista, está achando que isso aqui é um estado que só tem marionete, ou efetivamente ele está fazendo um deboche. Eu acho que ele não é candidato para valer e, se for candidato, sinceramente não paga para ser. Não paga para ser. Porque eu não tenho dúvida nenhuma que, durante o processo de campanha, vai voltar histórias que o Collor sabe que são verdadeiras.

Luiz Felipe D'Ávila: Você mencionou o Tarso Genro como um dos nomes possíveis do PT para ser lançado como candidato a presidência da República. Eu me lembrei do nome do Tarso porque, numa recente matéria enorme que o Economist [The Economist, revista semanal inglesa sobre assuntos nacionais e internacional] fez sobre o Brasil, até um grande ensaio sobre o Brasil... ele disse uma frase que eu achei muito curiosa. Foi quase uma confissão, ele diz assim: "Nós ainda não convencemos a sociedade de que somos capazes de governar o país". Isso foi uma frase, assim, que me chamou muita atenção, vinda do Tarso Genro, falando para uma revista estrangeira como o Economist. Isso não seria uma certa frustração de uma ala do PT, de que a presidência da República só será conquistada se o PT mover um pouco mais ao centro, fizer uma aliança mais ampla como ocorreu em todos os países do mundo em que a esquerda chegou ao poder recentemente?

Lula: O PT só tem essas duas alternativas, meu caro. Ou ele efetivamente faz uma aliança mais ampla do que o próprio PT, do que as esquerdas... Ou seja, com setores do PMDB, com os desgarrados que hoje estão fugindo do PSDB, com o PPS... ou nós temos que fazer uma inflexão sabe com quem? Os milhões de excluídos que não fazem política neste país. Pessoas que não compreendem nenhum discurso mais e que, muitas vezes, procuram na igreja a saída dos seus problemas, que são eminentemente políticos. Qual é a tese que eu defendo? A gente deve discutir aliança política, mas não deve ficar apenas discutindo aliança política nos chamados bastidores. Nós precisamos... O PT precisa voltar para a rua para organizar essa gente. Fazer como nós fazíamos em 1982, sabe por quê? Porque a nossa base original está de minuta. Nós não temos, em 1999, a quantidade de trabalhadores organizados que nós tínhamos em 1982, ela diminuiu. Então, nós precisamos saber por que tem muita gente que era nossa e está vendendo churrasquinho, está vendendo cachorro quente, está vendendo carteirinha [sorri e gira a cadeira]. Essa gente está desprotegida não apenas socialmente, mas ideologicamente. E o partido precisa, efetivamente, se voltar para essa gente [sendo interrompido], organizando essa gente. E nós temos tempo porque são 3 anos, 3 anos [até as eleições de 2002].

José Paulo Kupfer: Essa gente é a mesma gente que o presidente diz que está com ele. É aquela grande maioria desvalorizada, silenciosa [fazendo referência ao livro do francês Jean Baudrillard, À sombra das maiorias silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas], que está com ele, que votou nele [sendo interrompido por Lula]. Essa gente está com quem?

Lula: Eu vou falar uma coisa: essa gente não está com ninguém. Você veja que a oscilação é muito grande. Eu acho que nós temos que trabalhar ideologicamente essas pessoas. Nós temos que apresentar para essas pessoas um rumo a ser seguido, uma proposta concreta, objetiva que possa dar para eles expectativa de que, a partir dali, vai ter uma solução para seu problema.

José Paulo Kupfer: Essas pesquisas de popularidade te dizem alguma coisa para valer nesse momento? Dizem alguma coisa para daqui a 3 anos?

Lula: Acho que elas mostram que o Fernando Henrique Cardoso caiu, está em desgraça. Quem está no poder tem muita margem de manobra. Eu vou dar um exemplo para você, meu caro: [em] junho de 1998, eu empatei tecnicamente com o Fernando Henrique Cardoso... [em] uma pesquisa feita pela Datafolha [instituto de pesquisa]. Fernando Henrique Cardoso chama à Brasília os donos dos principais meios de comunicação e diz o seguinte: "Olha, se vocês continuarem falando da fome, do desemprego e da seca no nordeste, o Lula ganha as eleições. E se é para isso acontecer, ou vocês param de falar ou eu desisto". Quase que como num passe de mágica, esses três assuntos desapareceram de grande parte da imprensa brasileira. Até que deu... Aí apareceu um monte de artistas importantes da Globo [referindo-se à Rede Globo de Televisão] fazendo propaganda. A seca continua, o desemprego aumentou e a fome aumentou. Então, veja, obviamente, com Fernando Henrique Cardoso, tem uma margem. Afinal de contas, quanto que ele tem para gastar ai? Essa conversa tem provas mesmo. Essa conversa foi veiculada pela imprensa.

José Paulo Kupfer: Pela própria imprensa?

Lula: Pela própria imprensa.

José Paulo Kupfer: Ela botou o rabo entre as pernas e ela disse que botou o rabo entre as pernas?

Lula: [interrompendo] Você pode pegar qualquer uma das revistas de grande circulação que essa matéria foi publicada, e eu tive a sorte de ficar sabendo antes, porque também os colunistas políticos de Brasília foram chamados.

Eliane Catanhêde: Não. Espera aí! Eu sou colunista política de Brasília e não fui chamada, não! Me esqueceram. Esqueceram de mim [ri e todos falam ao mesmo tempo].

Lula: Não foi porque talvez já tivesse conversado com o dono do jornal, mas aqueles que não... chamaram.

Eliane Catanhêde: O dono do jornal, não. Espera aí, Lula. Você está falando uma coisa séria. O dono do jornal falou com quem? Comigo ele não falou nada, nem o governo falou nada.

Lula: Eu vou dizer uma coisa para você, não é coisa séria, não, é coisa verdadeira. Fernando Henrique Cardoso reuniu os donos dos jornais para dizer o seguinte: "Olha, cuidado, que eu perco as eleições". Então, obviamente que o Fernando Henrique Cardoso... [sendo interrompido] Eu não estou fazendo acusação. Eu não quero fazer merchandising. É só você pegar a revista Veja depois das eleições que você vai constatar isso.

Carlos Alberto Sardenberg: Mas que donos de jornais?

Lula: Todos, todos os principais jornais... [sendo interrompido]

Carlos Alberto Sardenberg: [interrompendo] Quem? Estado [referindo-se ao jornal O Estado de S. Paulo, Folha [Folha de S. Paulo], Globo [jornal O Globo], Jornal do Brasil?

Lula: E os principais canais de televisão. Agora, deixa eu dizer mais uma coisa. Estou dizendo isso para dizer o seguinte: Fernando Henrique Cardoso tem margem de manobra. Ele tem 3 anos de mandato ainda. Sabe, obviamente que ele pode se recuperar, se não chegar ao que ele foi no começo do Plano Real... mas ele pode chegar ainda a ter 30 ou 40% e aí passa a ter peso no processo eleitoral e passa ter importância com um candidato apoiando o governo.

Eliane Catanhêde: Não, mas eu acho que o Kupfer levantou uma coisa importante, que você não respondeu, que é o seguinte: independente de o Fernando Henrique ter chamado ou não ter chamado, eu não tenho nenhuma informação sobre isso e eu dei o testemunho de que eu não fui, ele falou o seguinte: "Por que que o PT tem o discurso para os desvalidos e esses desvalidos são exatamente aqueles que não votam no PT? Por que é isso?" Por exemplo, em Brasília, o Cristóvão Buarque tinha todo o discurso dele, social, só que quem tinha faixazinha do PT, quem fazia o discurso do PT, quem fazia a campanha do PT era a elite, Lula. A elite que lê jornal, que lê o que os donos dos jornais fazem... e quem não lê é que votou contra você. O erro não está na imprensa, está em vocês.

Lula: É tudo isso, minha querida. Minha querida, hoje começa a aparecer nos jornais de Brasília os banqueiros, só um banqueiro que gastou quase 900 mil [reais] para ajudar o Roriz [Joaquim Roriz, ex-governador do Distrito Federal] na parte mais pobre da população. Ora, você sabe que a parte mais pobre é a parte mais vulnerável... é com um discurso ideologicamente correto e uma cesta básica. Muitas vezes a cesta básica é mais imediata, as pessoas votam... [sendo interrompido]

Eliane Catanhêde:  [interrompendo] Isso é uma constatação, como é que você pode dar a volta por cima disso, qual é seu antídoto para isso?

Lula: Veja, acreditando no trabalho... como eu vou defender até a morte que o PT não deva distribuir a cesta básica para ganhar votos. Nós vamos ter que entrar num trabalho de politização da sociedade. É esse o nosso desafio, por isso que eu estou dizendo... [sendo interrompido]

Eliane Cantanhêde: [interrompendo] Ou seja, vão ficar esperando 365 anos!

Lula: Não, não. O PT precisa combinar efetivamente o seu trabalho de articulação política com o seu trabalho de organização de base. Ou o PT faz isso ou ele perde. Não é que perde a eleição, perde na política, perde na credibilidade da sociedade. Veja, nós defendemos a reforma agrária e muitas vezes nós esquecemos de falar nos milhões de pequenos produtores que já têm a terra e que, muitas vezes, não se reconhece defendido pelo PT. E, quando Caiado [Ronaldo Caiado, deputado federal de direita, líder da UDR - União dos Ruralistas Brasileiros] chama para passeata, eles vão à Brasília. Então, nós temos que deixar claro que nós queremos a reforma agrária para quem não tem a terra, mas nós queremos  política agrícola para quem já tenha terra.

Heródoto Barbeiro:  Lula, vamos ao intervalo.

Lula: Claro, você é que manda.

Heródoto Barbeiro: Vamos ao intervalo, a gente volta daqui a pouquinho com o nosso entrevistado de hoje que é o presidente de honra do PT, que é o Luiz Inácio Lula da Silva, a gente volta daqui a pouco.

[Intervalo]

Heródoto Barbeiro: Nós voltamos aqui no Roda Viva com o nosso convidado que é o presidente de honra do PT, Luiz Inácio Lula da Silva. Lula, têm duas perguntas aqui bastante interessantes e as duas se referem ao presidente do Congresso Nacional, Antônio Carlos Magalhães [político baiano de renome nacional, conhecido como ACM (1927-2007), foi ligado à ditadura militar e, depois, manteve-se sempre perto do poder com alianças partidárias diversas, ex-senador da República pelo PFL]. Os dois telespectadores querem saber a respeito do convite que você fez para o senhor Antônio Carlos Magalhães expor... eu não sei se ao PT ou à ONG da qual você é presidente... até acho uma confusão a respeito disso. Eles gostariam de saber exatamente em que situação foi isso. O que você acha desse projeto de combate à pobreza elaborado por Antônio Carlos Magalhães?

Lula: Ao menos um telespectador me dá a chance de falar sobre isso. Não, primeiro, Heródoto, o convite foi feito pelo Instituto da Cidadania, não é uma coisa do PT, é uma parceria que nós estamos fazendo, Instituto de Cidadania, o Toninho Trevisan, [presidente da BDO, uma das mais antigas empresas de auditoria no Brasil] mais a Isto É [revista brasieira semanal] que, inclusive, vai publicar o encarte do seminário que estamos fazendo. O seminário tem dois períodos: de manhã vamos discutir desenvolvimento e à tarde vamos discutir saída para a pobreza. E por que foi pensado convidar o ACM? Você imagina, Heródoto, se o Lula saísse pelo Brasil, como faço isso há 30 anos, falando de pobre. Não é novidade para ninguém, é? Ninguém daria [bate uma mão na outra em gesto de indiferença]... não sairia nem no Painel da Folha [Folha de S. Paulo], não é novidade. O Lula nasceu na política para isso. Agora, se o Lula sai defendendo os pobres dos bancos, aí vira manchete do jornal. Então, ACM falar de rico não é nenhuma novidade, porque todo mundo sabe que, nesses 40 anos... que ele faz política foi para favorecer os ricos. Na medida em que ele começa a falar dos pobres, vira notícia. Para jornalista tem aquele ditado: "Se você está passando numa rua e um cachorro late para você, ninguém dá importância, mas se você parar e morder o cachorro vira manchete" [sendo interrompido].

Ricardo Noblat: [interrompendo] Convenhamos, não é, Lula?

Lula: Então por que nós acionamos o ACM? Porque nós queremos... Se eu chamar só o dom Mauro Morelli [um dos idealizadores do programa Fome Zero, do governo de Lula] por exemplo, que não vai poder estar presente porque vai estar viajando, seria uma coisa tão normal, que ninguém nem daria importância. Nós chamamos o ACM para gerar polêmica. Porque, se é verdade que o ACM quer acabar com a pobreza, Heródoto, veja... Tem 54 projetos, tramitando no Congresso Nacional, que cuidam da questão da pobreza; desses, 25 são do PT. Então, se o ACM está falando de verdade em acabar com a pobreza, ele poderia transformar esses projetos em caráter de emergência ou urgência e votar esses projetos. A segunda coisa é que, na proposta original do ACM, ele tira um pouquinho de recursos da prefeitura, tira um pouquinho de recursos do estado e monta um bolo que vai dar para o PFL administrar, porque é o presidente da câmara, é o vice-presidente da República. Não, nós queremos acabar com a pobreza fazendo um debate envolvendo as entidades, o Congresso Nacional, sabe? E nós vamos colocar, claramente, como é que nós vamos acabar com a pobreza. Porque para eu acabar com a pobreza... significa você ter uma parte de política, solidariedade, mas, sobretudo, você tem que ter como objetivo gerar oportunidades de empregos para essa gente, porque é isso que dá cidadania. O povo brasileiro está cansado de viver de esmola, de favor [gesticulando]. É preciso que essas pessoas aprendam a ganhar a sua sobrevivência às custas de seu trabalho. E esse é o papel do Estado. Isso não significa que você não tenha que ter uma política de solidariedade. É por isso que, em 1993, eu entreguei para o Itamar Franco... que depois foi coordenado pelo Betinho [Herbert de Sousa (1935 - 1997), um dos ativistas dos direitos humanos no Brasil, criador do programa fome Zero] um programa de política de segurança alimentar que coloca a questão de segurança alimentar [como] questão de soberania nacional. O povo tem o que comer, no mínimo, 3 vezes por dia. Então, se o ACM, que até agora foi um homem que governou para as elites, começa a falar de pobre nos interessa para o debate. O FMI começou a falar de pobre agora, depois de empobrecer muita gente: vamos chamar para um debate. O que eu não posso ficar é debatendo comigo mesmo, imagina, eu e o Zé Dirceu, debatendo só nós dois. Não ia ser manchete em nenhum jornal, não ia dar espaço. Então, nós queremos a polêmica, porque quem sabe da polêmica a gente encontre uma solução para o problema da fome no Brasil.

Heródoto Barbeiro: Qual é a questão que ficou pendente?

Roberto Müller: Eu queria deixar esclarecido... pedir o seu esclarecimento e voltar, pedir licença para voltar a essa questão dessa tal reunião que teria havido em Brasília entre proprietários de jornais, mencionada por você, e o então candidato Fernando Henrique Cardoso. Eu não tive notícias disso, mas entendi e pergunto, faço observação como pergunta: entendi que você teria dito que soube disso pela imprensa. A imprensa publicou isso?

Lula: A revista Veja publicou fartamente isso.

Roberto Müller: Deixa eu entender... A revista Veja publicou que os donos de jornais se reuniram com Fernando Henrique para proibir que publicassem notícias e ela publicou?

Lula: Não, não. O Fernando Henrique Cardoso chamou os donos dos jornais, dos principais jornais, para comunicar a situação delicada da imprensa continuar falando da fome, do desemprego e da seca do Nordeste. Isso foi em junho e no mês de julho... saiu na imprensa.

Roberto Müller: Quer dizer, os jornalistas todos obedeceram a essa... ?

Lula: [interrompendo] Não sei se os jornalistas todos, meu caro, não sei se os jornalistas todos... Eu estou dizendo que houve essa reunião. E o Fernando Henrique Cardoso, você pode perguntar para ele. Como ele está por baixo agora, quem sabe ele atenda todo mundo.

Roberto Müller: Não, eu quero saber dos jornalistas, que me interessa aqui. Eu quero saber se, de repente, os jornalistas todos... nós paramos de tratar esse assunto porque recebemos um telefonema de alguém. A mim nunca ninguém telefonou.

Lula: Eu não sei qual é o grau de autonomia que cada um de vocês tem no jornal [sendo interrompido]. Não sou jornalista, não sei. Eu sei que a direção do jornal, a editoria de política, ela pauta os assuntos para os jornalistas [sendo interrompido]. Agora é uma questão que você pode resolver, isso, discutindo com o Fernando Henrique Cardoso. Eu só estou retratando informações que eu tive, informações que eu tive de gente que participou e logo depois...

Eliane Catanhêde: [interrompendo] Lula, isso é tão simplista. O Fernando Henrique poderia fazer a mesma coisa agora, dizer: "Olha, gente, eu estou com 60% de impopularidade. Chama todo mundo, pára de falar de não sei o quê"...

Lula: [interrompendo] É porque agora não adianta mais, querida.

Eliane Cantanhêde: [interrompendo] O que é isso, Lula. É tão simples isso.

Lula: Aquela reunião [em] que ele lançou o Plano Plurianual... Ou seja, nem ele estava acreditando naquilo que ele estava falando. Então, ele percebe que as pessoas mentem uma vez, mentem duas vezes... chega uma hora que a mentira tem uma dimensão [tal], que as pessoas não acreditam. Então, o Fernando Henrique Cardoso vai ter que sair do achismo e ele vai ter que fazer, não tem jeito. Eliane, você imagina que, no nosso querido Brasil, até 1997 a gente só importava US$2 bilhões e 800 milhões de produtos agrícolas. Hoje estamos importando praticamente 8 bilhões de dólares de produtos agrícolas. Então, nem naquilo que era elementar, que nós sabíamos fazer, nós não estamos dando conta. Hoje... E a Folha de S. Paulo publicou e outros jornais publicaram... Se falava de muito dinheiro que havia vindo para o Brasil, muito dinheiro. Hoje fica claro que 78% do dinheiro que veio foram para comprar empresas estatais ou empresas privadas nacionais. Cadê o dinheiro novo para investir no setor produtivo?

Ricardo Noblat: Eu gostaria de fazer uma pergunta. Presidente, nenhum... quero dizer, salvo se for um insano, eu digo, presidente nenhum escolhe errado, deliberadamente, ou [escolhe] prejudicar deliberadamente a população. Você acha que no caso do Fernando Henrique, que você mesmo julgava, um certo momento, preparado como disse e tudo. Você acha que ele se perdeu por onde? Você acha que o que foi? Ele resolveu renegar todas as suas idéias e propostas? O que aconteceu com ele?

Lula: [faz uma pausa, sorri e faz sinal de negativo com a cabeça] Noblat, eu te confesso que eu nem penso no que aconteceu, mas obviamente que... O que eu acho é o seguinte: o Fernando Henrique Cardoso, na minha opinião, vendeu a alma ao diabo, porque, hoje... Eu imaginava que, em um determinado momento, ele era refém do PFL. Hoje não, hoje eu acho que ele é conservador. Eu, na conversa que tive com ele, depois de meia hora, disse: "Fernando, vamos conversar sobre futebol, porque sobre política não dá. Nós estamos com posições tão antagônicas, que não há um espaço". Fernando Henrique Cardoso... Eu não sei se pela vaidade pessoal dele, o Fernando Henrique Cardoso é um político sem ouvidos, ele só tem boca. Você está conversando com ele, a impressão que você tem é de que ele está ouvindo. De repente, você constata que ele não ouviu nada. Aquilo não entra na cabeça dele. Se ele não acreditar, não entra. Então... o Fernando Henrique Cardoso, ele tem 3 anos [de mandato]. Ele pode, efetivamente, fazer alguma coisa, é só ter vontade. Agora, quando ele trocou o ministério, pensei: "Vai trocar o Malan, não trocando o Malan não muda nada". Porque o Malan é quem chefia a economia brasileira e subordinou-a ao FMI. Aliás, eu digo, sem medo de errar, que, na minha opinião, o Malan é um infiltrado do FMI no governo brasileiro [sendo interrompido]. Não é possível que ele não tenha sensibilidade com o que está acontecendo no Brasil.

Luiz Felipe D'Ávila: A pobreza é uma questão importante que você acabou de mencionar. E é curioso que há uma certa similaridade entre o discurso do ACM e algumas propostas defendidas pelo PT sobre como resolver o problema da pobreza. E é engraçado que você acabou de fazer uma colocação sobre a pobreza... que o discurso vai quase no caminho que eu considero um caminho sensato, ou seja, gerar emprego, gerar crescimento da atividade econômica. Mas o discurso do Antônio Carlos Magalhães e de alguns membros do PT vai exatamente no sentido oposto: é aumentar o peso do assistencialismo estatal, aumentar a ajuda do Estado. Como é que você vai conseguir conciliar? Porque [para] crescer economia, fazer com que a economia funcione, precisamos dar mais crédito, fazer as reformas tributárias, fazer todas essas reformas que nós acabamos de discutir aqui, trabalhista e tal. Por outro lado, existe o combate à pobreza com uma política assistencial, que é exatamente aumentar o gasto do Estado e dar benefícios ou, como você bem disse, esmolas: cestas básicas, coisas que não ajudam a combater a pobreza. Como é que nós vamos conciliar essas duas propostas, aumentar o crescimento econômico sem aumentar o gasto com o assistencialismo estatal?

Lula: Elas se complementam, uma não exclui a outra. Porque, veja, você não pode dizer para as pessoas: "Fiquem esperando a economia crescer enquanto surge o dinheiro". Você precisa priorizar. Eu vou dar um exemplo para você: com metade do dinheiro que o BNDES [Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social] vai liberar para a Ford [empresa automobilística] na Bahia, quase 700 milhões de reais... com metade desse dinheiro, nós faríamos o saneamento fitossanitário em toda a produção de cacau da Bahia e nós poderíamos gerar 200 mil empregos, não, 5 mil empregos [gesticula e gira a cadeira]. É uma questão de prioridade, quando o BNDES financia praticamente 25% de todo o processo de privatização... Ora, esse dinheiro poderia ter sido canalizado para outro setor da atividade econômica que pudesse gerar emprego mais imediato, principalmente a agricultura, a habitação, saneamento básico, a pequena e média empresa. Éuma questão de definição. Acontece que, cegamente, a equipe econômica do governo parece que tem uma tampa [coloca as mãos no rosto] e não consegue, efetivamente, ver nada, porque eles só trabalham com estatística, eles não têm sensibilidade com o ser humano. Porque eles não sabem, efetivamente, o que é a miséria nesse país. Eles não sabem o que é uma mulher passar dois dias vendo o filho chorar atrás de um pedaço de pão e não ter dinheiro para comprar. Eu só queria que o Malan tivesse essa mesma benevolência, com o povo pobre do Brasil, que ele tem com o FMI, só isso. A mesma paixão, sabe. O ouvido...Ouvisse o povo um pouco porque não é possível tanta insensibilidade. Agora, quem sabe, o Banco Mundial começa a falar de pobreza, o FMI volta a falar de pobreza, o ACM fala de pobreza, daqui a pouco, o Fernando Henrique Cardoso fala de pobreza... aí, quem sabe então, a equipe econômica tira umas migalhas para cuidar da pobreza nesse país.

José Paulo Kupfer: Quando o governo analisa as propostas que, enfim, você faz ou fala delas, vem sempre junto, a idéia assim: "Isso é inflacionário". Na melhor hipótese, assim: "Ah, eles estão querendo uma pequena inflação, como se fosse"... E aí, logo diz: "Isso é coisa igual à gravidez, não tem pequena gravidez". As propostas que você faz... você leva em conta uma pequena inflação, você aceita uma pequena inflação?

Lula: É plenamente possível um país conviver com uma pequena inflação, desde que a economia cresça a patamares que você possa ter possibilidade de colocar milhões de adolescente no mercado de trabalho. O que nós não podemos é ficar com uma recessão brutal que causou, em poucos anos, praticamente, 10 milhões de desempregados. De onde essa gente vai sobreviver? Daí fica dizendo: "Não, vamos... Tem muita criminalidade, tem muita violência, precisamos acabar colocando a polícia na rua". Não. Se nós quisermos acabar com a violência, é preciso ter polícia, sim, é preciso ela estar preparada tecnicamente, cientificamente [pontuando com os dedos], é preciso o soldado ganhar melhor, mas é preciso, sobretudo, investir na geração de empregos, na distribuição de renda.

José Paulo Kupfer: Tem que ter essa pequena inflação ou não é necessário?

Lula: Pode ter, pode ter.

José Paulo Kupfer:  E ela não corre o risco de crescer ou de ficar...

Lula:  [interrompendo] O governo pode ter poderes para controlar. Você pode utilizar a abertura do mercado externo para você controlar a inflação.

José Paulo Kupfer: Como é que é isso?

Lula:  Veja, na medida que você tem um determinado produto exagerando no preço, você importa outro produto ou você pode controlar.

José Paulo Kupfer:  Tá bom. Como é que você vai conseguir dólar para você pagar essa importação? Será que não foi isso? Não foi o grande problema que nós tivemos, controlamos a inflação desse jeito e agora perdemos os dólares?

Lula: O Brasil controlou a inflação equivocadamente. O Brasil sustentou o controle da inflação num câmbio que nem o governo [sendo interrompido] do Fernando Henrique acreditava e no dólar falso, meu caro. Eu não quero isso. Eu fui à Argentina agora e começou aquela briga entre o Menem [Carlos Menem,ex-presidente da Argentina] e Fernando Henrique Cardoso de quem é culpado, sabe, pelo "natimorto", dizendo que o Mercosul [Mercado Comum do Sul] tinha acabado. A Argentina culpava o Brasil e o Brasil culpava Argentina. Eu falei: "Menem, o Mercosul não está em crise, quem está em crise é o Brasil e a Argentina". Porque um tempo... Fernando Henrique Cardoso mentiu quando disse que o real valia um dólar e o Menem mentiu que o peso valia um dólar. Porque não vale, efetivamente, sabe, não vale. Se hoje for desvalorizar para poder a Argentina se tornar competitiva e não ter o déficit comercial que tem, quebra. Sabe por quê? Porque a dona de casa comprou um ventilador, comprou em dólar, está devendo em dólar, irresponsabilidade [sendo interrompido]. Se a gente quiser estabilidade, meu caro, nós temos que ter uma estabilidade. O que dá estabilidade para o país é o crescimento da economia, é o crescimento do setor produtivo, é o crescimento da agricultura. O nosso querido Brasil... faz exatamente [girando a cadeira] 15 anos que produz apenas 80 milhões de toneladas de grãos. Esse país poderia produzir 120 milhões de toneladas de grãos. Então, o governo brasileiro tem que ter a consciência disso.

Eliane Catanhêde: Já que você citou a Argentina e o Brasil, vamos voltar um pouquinho lá ao Chávez, [presidente da Venezuela. Protagonizou o golpe de Estado contra o presidente Carlos Pérez] na Venezuela. Às vezes o teu discurso é semelhante ao dele, só que você é um pouco mais cauteloso, e ele é mais ousado.

Lula: Você conhece o discurso dele, eu não conheço, você esteve lá [sorri].

Eliane Catanhêde: Conhece. Você lê, tanto que você achou fantástico.

Lula: Lógico, lógico que eu achei fantástico.

Eliane Catanhêde: Você disse que era fantástico e deu aquela polêmica toda e, depois disso, teve a renúncia da presidente da Corte Suprema. O Congresso de rebelou, mudou um pouco a visão que o próprio continente estava vendo do processo na Venezuela. Você mudou ou você continua achando...

Roberto Müller: Deixa eu pegar uma carona nessa pergunta. Quando esteve aqui o deputado José Genuíno [do PT], nesse mesmo programa, tendo lido uma recente entrevista sua, e pedi a ele que tentasse com brilhantismo, que é sua característica, que tentasse explicar aos telespectadores o que você queria dizer quando se referia ao Chávez e ao que ele está fazendo no seu país, teria usado a expressão ruptura democrática. O que é isso?

Lula: Primeiro que não houve ruptura democrática

Eliane Cantanhêde: [interrompendo] Mas ele falou.

Lula: É uma palavra que não soa bem na minha boca. Na minha boca não soa. Eu duvido que alguém no Brasil tenha feito mais discurso do que eu. Essa palavra ruptura democrática não é minha. Veja, voltando a pergunta da Eliane, veja o que eu disse. Eu disse que o comportamento do Chávez tem sido fantástico, por quê? O Chávez participa de uma eleição em que ele diz que as estruturas das instituições da Venezuela estavam apodrecidas, que ele ia ganhar, ia convocar uma Constituinte para mudar essas estruturas. Ele ganha com quase 60%, convoca uma Constituinte, tem 92% dos votos e começa a mudar. Aí algumas pessoas estranham: "Mas ele quer fechar o Congresso!?". Minha querida, eu fui deputado constituinte e durante os 4 anos em que funcionou a Constituinte, mesmo funcionando simultaneamente com o Congresso Nacional, ele não funcionou, embora o presidente fosse o mesmo, Ulysses Guimarães. Não funcionou. Então, veja, eu não estou botando a mão no fogo pelo que o Chávez vai fazer, eu acho que o processo até agora está correto.

Eliane Catanhêde: Mas, olha, faltaram duas coisas aí no seu raciocínio. Primeiro, o Congresso brasileiro não estava funcionando em 1988 porque eram as mesmas pessoas e foi uma autodecisão. Lá [na Venezuela] não. Foi a constituinte do Chávez que está impedindo o Congresso ordinário de funcionar, primeiro. Segundo, e o Supremo [Supremo Tribunal]? O Supremo no Brasil continua funcionando na constituinte.

Lula: Deixa eu falar uma coisa para você, querida. O Supremo lá também continua funcionando. Se a juíza renunciou, o problema é dela.

Eliane Catanhêde: Por que será que ela renunciou?

Lula: Porque a verdade é o seguinte: tem corrupção no poder judiciário, em todas as esferas. Então, se a pessoa...

Eliane Cantanhêde: Então, fecha.

Lula: Não. Não fecha. Você julga. É por isso que aqui, no Brasil, nós éramos favoráveis à CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] do poder judiciário. Lamentavelmente, ela foi feita apenas para a Justiça do Trabalho. Porque, se o Antônio Carlos Magalhães, estivesse falando seriamente, ele começava pela Justiça Federal da Bahia, não pela Justiça do Trabalho. Então, nenhum poder pode querer estar livre de investigação. E a Constituinte, ela foi convocada, é uma Constituinte livre e soberana, ela está funcionando. Eu acho que nós temos que entender o seguinte: o Chávez possivelmente possa estar causando algum medo porque ele voltou a falar em soberania nacional. Voltou a falar em valores nacionais, em empresa nacional. Isso causa um certo medo a uma certa quantidade de pessoas na América Latina, uma elite perversa, sabe, que não se preocupa com a fome, que não se preocupa efetivamente com o social nesse país. Então, eu acho que é o seguinte: nós devemos dar uma chance ao Chávez, até porque os mesmos que são contra o Chávez hoje não foram contra o Fujimori [Alberto Fujimori, presidente do Peru de 1990 a 2000, renunciou à presidência depois que foram descobertas irregularidades no governo, sendo posteriormente preso] no Peru.

Eliane Catanhêde: Você está falando internamente, no Brasil?

Lula: No Brasil. E deram um golpe no Peru.

Roberto Müller: O Lula presidente, como trataria o Judiciário, a corrupção no Judiciário?

Lula: Não, Lula presidente, não. É porque eu não vou fazer política de fantasia. Eu não sou presidente. O Lula é cidadão brasileiro. Sobre o controle externo do Judiciário, eu sou favorável a fazerem investigação no Judiciário porque está cheio de juiz aí dando liminar atrás de liminar, sem nenhum critério. Um dá uma favorável às 8 horas da manhã, outro dá às 9 horas, outro dá outra à meia noite. Tem que acabar com essa bandalheira. Então, eu sou favorável a isso como cidadão brasileiro. Como presidente, eu não tenho nenhuma ascendência sobre o Poder Judiciário.

Carlos Alberto Sardenberg: Agora, pegando essa questão do Chávez, também, qualquer que seja o candidato eleito nas próximas eleições presidenciais, qualquer que seja, provavelmente com muita certeza, o presidente não vai ter a maioria como tem acontecido. Vai ser eleito presidente e não vai ter maioria no congresso, quer dizer pelo menos o seu partido não terá a maioria, ele vai ter que construir essa maioria de algum modo. Essa idéia do presidente ganhar e chamar uma Constituinte, você acha uma boa idéia de resolver esse problema?

Lula: Deixa eu falar uma coisa. Eu fico feliz aqui... mas eu estou rindo por dentro de ouvir vocês dizerem isso. Essa história de maioria ou de minoria [sorri e gesticula]... porque durante 3 eleições eu fui vítima da idéia de que eu não ia ter maioria, para que serve essa maioria de Fernando Henrique Cardoso? Para que serve? Serviu para comprar voto, para votar, para eleger eles, porque, veja, se eu sou presidente da República e eu tenho uma aliança que tem 400 deputados e esses parasitas não comparecem para votar... Realmente, você tem que fazer alguma coisa, não é ficar brigando com eles, não. Nós precisamos criar mecanismos para reforma política, inclusive que o eleitor possa depois castigar o que ele votou. Porque não é possível. E depois tem uma coisa no Fernando Henrique Cardoso, que é aquele negócio que eu disse agora há pouco, ele não tem ouvido, ele não houve. Então, deixa eu contar uma coisa para você, efetivamente faz mal o jogo... faz mal o jogo de negociação no Congresso Nacional. Você imagina se é o Lula, que não é cientista político, que manda o Pimenta da Veiga ir conversar com o Itamar Franco naquele papel ridículo que ele fez, ou seja, o Pimenta da Veiga estava fora da política pelo menos 10 anos, pelo que eu sei, estava advogando... ora, de repente o Fernando Henrique Cardoso chama e coloca como articulador político. Articulador político é, no mínimo, quem tenha, sabe, fácil convivência com o Congresso Nacional, que tenha penetração nas mais diferentes correntes. Será que ele não aprendeu isso no curso de sociologia na USP?

Heródoto Barbeiro: Lula, tem uma pergunta inusitada, já que você está citando tanto o presidente Fernando Henrique... eu estou tentando juntar todas aqui. Essa aqui eu vou destacar porque realmente é uma pergunta insólita. É do professor da Universidade de Brasília Carlos Pio. Ele gostaria que você apontasse 3 aspectos positivos do governo Fernando Henrique.

Lula: Eu não tenho. E gostaria, se a imprensa tem, por favor, digam.

Eliane Catanhêde: Você não tem 3 aspectos positivos do governo Fernando Henrique?

Lula:  Eu não tenho, eu não tenho.

Eliane Cantanhêde: Você jurou que você não tem?

Lula: Eu juro que eu não tenho. Eu juro que eu não tenho, eu gostaria de ter.

Eliane Catanhêde: Então eu tenho uma pergunta para você. Por que você não encampa definitivamente a tese do Brizola, que é a renúncia?  Porque, se você não consegue apontar 3 pontos positivos do governo...

Lula: Não. Tenho 3. Eu não tenho um, não tenho um. Aliás, eu vou lhe contar uma coisa, o que é triste nesse governo é que uma coisa, que não tinha há dois anos atrás, começa a ter agora que é, sabe, a marca da corrupção de muita gente no governo. Todo dia sai uma pela imprensa, é uma pena que se demora em apurar nesse país, demora muito para apurar. Por que que eu não defendo a tese da renúncia? Sabe por quê? Porque eu tenho certeza que um dia o PT vai ganhar a eleição neste país. E eu não quero que amanhã alguém faça com o PT a tentativa de apressar o fim do nosso mandato. Eu prefiro que o Fernando Henrique Cardoso crie coragem e assuma o papel de presidente da República e cumpra aquilo que ele prometeu durante as eleições, até porque num processo, nessa brincadeira de renúncia... Toda vez que acontece um golpe, não é a esquerda que sobe. Então, eu sou muito cauteloso com esse negócio, eu sou muito cauteloso. Então, o que eu quero é que o Fernando Henrique Cardoso cumpra... ele lembra de todas as coisas que ele falou para o povo e cumpra, faça isso. Agora, obviamente que o povo vai para rua, cria um clima, sabe, ele pode até renunciar, eu acho que ele não tem grandeza nem humildade para renunciar.

Luiz Felipe D'Ávila: Lula, o Fernando Henrique foi eleito porque pelo menos o povo reconheceu que ele garantiu a estabilidade da moeda, o trunfo do real.

Lula: Foi você que está dizendo. No Brasil tanta gente é eleito por outras coisas.

Luiz Felipe D'Ávila: Porque o senhor acha que o Fernando Henrique foi eleito, o que, qual foi a principal bandeira do governo Fernando Henrique que o fez ser reeleito no segundo turno numa vitória esmagadora?

Lula: Eu vou lhe contar uma coisa: se o povo brasileiro votasse somente por bandeira, o jogo eleitoral possivelmente fosse outro, tem outros fatores que implicam no processo eleitoral do nosso país. Veja você tem o processo da manipulação dos meios de comunicação. As eleições de 1998... numa pesquisa que nós fizemos, nós e o Ciro Gomes, juntos, do dia primeiro ao dia 11 de agosto, em que... e era por isso que nós éramos contra a tese da reeleição. Ciro tem 3 minutos, eu tenho 17, Fernando Henrique Cardoso 49, mas o governo 2 horas e meia. Ora, qual é a igualdade? Qual é a igualdade? Uma máquina como a televisão, que fala com milhões de pessoas ao mesmo tempo, do Oiapoque ao Chuí... Isso não pesa no processo eleitoral? Além disso, veja a prestação de contas, Lula prestou contas de RS$4 a 5 milhões, Fernando Henrique Cardoso de RS$36 milhões, qual é a lógica? Então, veja, estou dizendo que tem vários fatores que pesam, vários fatores que pesam. Você tem dois, apenas: tem uma parte dos eleitores que são ideológicos, que votam ideologicamente pela direita, vota ideologicamente pelo centro, votam ideologicamente pelo centro. Agora tem uma outra parcela que vota de acordo com o cantar do galo, lamentavelmente é isso. Eu gostaria sabe do quê? Que as eleições no Brasil fossem voto ideológico, sabe, ou o cara é de esquerda ou é de direita, ou o cara é de centro, que votasse numa lista de deputados, não votassem em nomes, que não votasse mais no partido do que nas pessoas, sabe, porque daí você tem de quem cobrar. Quando votam como votaram no Collor, depois o Collor é pego de calça curta com aqueles negócios todos de falcatrua, aí, não tem nem partido para você cobrar, acabou o partido dele, sabe. Então, se você vota num partido que existe, qualquer eleitor pode cobrar do partido em qualquer lugar do país.

José Paulo Kupfer: Você está dizendo que o nosso eleitor ainda não sabe votar?

Lula: Não, eu estou dizendo que o nosso eleitor vota de acordo com os dados de informação que ele recebe e normalmente as informações são precárias.

Heródoto Barbeiro: Lula, nosso tempo está se esgotando. Lula, nós queremos agradecer sua gentileza... da sua participação conosco, aqui, no Roda Viva, muito obrigado.

Lula: Acabou? Agora que eu estava gostando...

Heródoto Barbeiro: Acabou [risos]. Bem, nós queremos agradecer a colaboração dos jornalistas aqui presentes. Aos telespectadores que mandaram as suas perguntas para cá, nós procuramos agrupá-las e todas elas serão entregues ao Luiz Inácio Lula da Silva. O Roda Viva estará de volta na próxima segunda-feira ás 10:30 da noite. Tenham uma boa semana e até lá!

 

 

 

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