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Memória Roda Viva

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Alda Marco Antônio

15/7/1991

A secretária do Menor do governo Quércia fala dos programas socioeducativos que buscam minimizar a situação de risco social em que se encontram muitas crianças e adolescentes, infratores ou não

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[Programa ao vivo, permitindo a participação de telespectadores]

Jorge Escosteguy: Boa noite. Estamos começando mais um Roda Viva pela TV Cultura de São Paulo. A convidada do Roda Viva desta noite é a secretária do Menor do estado de São Paulo, Alda Marco Antônio. Alda Marco Antônio nasceu em Uberaba, Minas Gerais, onde foi líder estudantil, formou-se pela Universidade de São Paulo em engenharia ambiental e foi coordenadora e presidente da Comissão Sindical do Conselho Estadual da Condição Feminina. Durante o governo Orestes Quércia [1987-1991], foi secretária de Relações do Trabalho, e em seguida secretária de Estado do Menor, secretaria recém criada naquele governo. E foi confirmada no posto pelo novo governador, Luiz Antônio Fleury Filho [que sucedeu Orestes Quércia no governo de São Paulo]. Dentre os programas da secretaria, destacam-se 14 deles considerados inovadores, que atenderam a cerca de 250 mil crianças. Oito desses programas foram considerados modelo para o mundo pela Organização das Nações Unidas. Para entrevistar Alda Marco Antônio esta noite, nós convidamos a jornalista Mônica Teixeira; o editor de política da revista Isto É Senhor, Marcelo Parada; Jan Rocha, correspondente do jornal The Gardian; Maurício Stycer, editor de cidades do jornal Folha de S.Paulo; Percival de Souza, repórter especial do Jornal da Tarde e comentarista da TV Globo; Myriam Mesquita, socióloga e consultora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, e Dácio Nitrini, diretor de operações jornalísticas do SBT. Boa noite, secretária.

Alda Marco Antônio: Boa noite.

Jorge Escosteguy: Os programas da Secretaria do Menor foram muito elogiados, inclusive pela ONU, mas ainda subsiste um problema. Um pouco antes do programa, nós estávamos conversando ali, a Heloisa Granito, que é jornalista aqui da TV Cultura, comentava e fazia esta pergunta. Ou seja, que apesar de tudo isso, todos que saímos em São Paulo, pelas ruas, encontramos pelas esquinas crianças pedindo esmolas, vendendo coisas, sendo exploradas por maiores etc. Como resolver esse problema? De repente esses programas não seriam apenas um paliativo para um universo tão grande, que é o problema do menor em São Paulo e no Brasil?

Alda Marco Antônio: Em primeiro lugar, eu devo dizer a você que nós estamos abrindo e conseguimos abrir uma senda na escuridão do atendimento público a crianças e jovens, no Brasil. Nossos programas são absolutamente inovadores, são modestos em termos de custos e revolucionários em termos de qualidade, em termos de resposta. Acontece que o que você vê no quadrilátero milionário de São Paulo, na Zona Sul, em termos de crianças pedindo esmola, não é uma questão simplesmente de educação. É também uma questão policial, já que essas crianças estão sendo exploradas por adultos, e hoje se constitui uma grande indústria: a indústria de se pedir esmola nas esquinas de São Paulo, de se vender balas. Em termos gerais, eu poderia responder a você e a todos os telespectadores, que essa questão está sendo enfrentada pelo lado da educação, com liberdade, que é o maior lema da Secretaria do Menor. Os programas estão criados, consagrados, não só por autoridades nacionais como também por autoridades estrangeiras, tanto que hoje abrimos a nossa experiência a educadores de outros países. Mexicanos e uruguaios estão hoje sendo treinados pela Secretaria do Menor. O fato da extensão desses programas a todas as crianças que deles necessitam não é uma decisão que está no âmbito da Secretaria do Menor, mas sim no âmbito dos governos. Agora, vou alertar: enquanto o Brasil for este país miserável, que explora os adultos, que paga salários indecentes, onde um trabalhador com carteira assinada não consegue sequer levar comida para dentro de casa, nós estaremos sempre correndo atrás de crianças na rua, porque elas saem à procura de comida, elas saem por uma questão de sobrevivência. O país precisa retomar o caminho do desenvolvimento e precisa, antes de tudo, respeitar quem trabalha, respeitar o trabalhador adulto.

Jorge Escosteguy: Agora a senhora disse que é um problema de polícia, esses menores explorados por maiores...

Alda Marco Antônio: Sem dúvida, eles estão...

Jorge Escosteguy: [falando ao mesmo tempo em que Alda] Está havendo algum trabalho com a polícia? Ou seja, a polícia não está lá?

Alda Marco Antônio: Eles estão sendo explorados por adultos que são criminosos, porque estão explorando crianças e, além de tudo, são contraventores penais, porque são vadios, estão fazendo vadiagem. Eu volto a repetir: a Secretaria do Menor trabalha no ângulo da educação, aborda essas crianças, ainda que com muita dificuldade, porque essas crianças têm a sua cabeça feita pelos adultos. Do lado dos adultos, é o lado do crime, e do lado do crime quem tem que atuar é a polícia.

Jorge Escosteguy: Mas há alguma iniciativa da Secretaria do Menor junto à Secretaria de Segurança ou a polícia, para que seja coibida essa prática?

Alda Marco Antônio: Nós trabalhamos muito bem junto com a Secretaria de Segurança, por exemplo, no SOS Criança, onde as atendentes dos telefones são policiais femininas, nós trabalhamos em colaboração. Nas ruas não; nas ruas nós não trabalhamos em colaboração com a Secretaria de Segurança.

Jorge Escosteguy: Mas não seria o caso de pedir, já que é um crime flagrante e evidente, a colaboração da Secretaria da Segurança, para coibir esse crime?

Alda Marco Antônio: A Secretaria de Segurança tem a obrigação de coibir, eu creio que ela está tentando coibir. Porém é uma questão muito ampla, muito grande. Nós sabemos que na cidade de São Paulo existem 105 mil mandados de prisão que não podem ser executados, porque não existem vagas nas prisões. Então, veja você, a dificuldade que deve ter a Secretaria de Segurança de lidar com o tráfico pesado, de lidar com sequestros, de lidar com crimes pesados. Provavelmente é considerado na Secretaria de Segurança, um crime menor, não sei, não posso responder, não tenho procuração para responder pela secretaria...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] A senhora acha que é um crime menor?

Alda Marco Antônio: Não, eu acho um crime maior. Eu acho um crime bárbaro, eu acho que ele está deturpando a personalidade das crianças, e deveria ser coibido. Mas nós não podemos distanciar essa questão do resto do Brasil. Eu estou lhe dizendo e vou reafirmar: nós temos 105 mil bandidos adultos na cidade de São Paulo, que já cometeram crimes, que já foram julgados, e que foram condenados, e que não podem ser presos porque não existem condições de prisão para eles, não existem vagas nas prisões. Então esse é o quadro geral em que nós vivemos. Condenar a Secretaria de Segurança porque ela não prende esses marginais, esses marginais que exploram as crianças, talvez fosse um assunto à parte.

Dácio Nitrini: Dentro desse raciocínio, doutora Alda, o procurador Munir Cury, que chefia os promotores que trabalham exatamente na área ligada ao Estatuto da Criança e do Adolescente, aqui em São Paulo, pode estar certo quando ele faz críticas à Secretaria do Menor, dizendo que ela não cuida da vigilância e da segurança dentro das unidades da própria Febem [Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor] como deveria, o que permite fugas de quadrilhas organizadas de jovens adolescentes que estão em alto grau de delinqüência.

Alda Marco Antônio: Eu não concordo em nada com o que você disse, e se o procurador Munir Cury disse isso, ele está errado. Porque dentro da unidade da Febem, nós não podemos trabalhar com armas, os vigilantes têm que trabalhar desarmados e isso é certo. Eu concordo com a lei, porque senão os acidentes lá dentro seriam muito perigosos.

Dácio Nitrini: Mas tem ocorrido fugas freqüentes, porque a imprensa tem registrado. Como trabalhar com isso?

Alda Marco Antônio: As fugas sempre aconteceram. Hoje nós temos em média duas fugas por dia, muito menos do que aconteceu no ano passado, e muito menos do que aconteceu no ano retrasado. Esse procurador deveria apontar o dedo na direção certa, quem faz a vigilância por fora dos muros da Febem é a Secretaria de Segurança Pública. A Secretaria do Menor, que é hoje responsável pela Febem, faz a vigilância interna com vigilantes civis desarmados. Nada se pode fazer mais do que nós fazemos. E eu fico abismada de ver uma autoridade achar demais duas fugas em média por dia, num presídio onde existem 850 a novecentos jovens presos. Eu não acho isso absolutamente nada de extraordinário.

Myriam Mesquita: Secretária, acompanhando o seu trabalho, como venho acompanhando há largo tempo, eu considero que o problema da criança e do adolescente em situação de perigo, abandono, o infrator etc, se constitui num problema resultado, independente de ele se constituir até em novas causas em termos de problema. Resultado de toda uma situação de miséria, como a senhora já colocou, de toda uma situação de abandono. Nesse sentido, em que medida haveria uma integração de outras áreas do governo para que a Secretaria do Menor tivesse condições de maior execução das suas políticas? Eu acho que esse seria o seu objetivo, nós reconhecemos o seu trabalho. Agora, independente disso, eu tenho a impressão de que se houvesse uma integração maior na área da Secretaria da Justiça, da Secretaria da Segurança, da Saúde, Educação e do judiciário, eu tenho a impressão de que a coisa não emperraria.

Alda Marco Antônio: Isso já está acontecendo, Myriam. O seu próprio trabalho que, aliás, eu quero elogiar de público, recentemente lançado, a pesquisa que o Núcleo de Violência da USP realizou, aponta que um dos mais trágicos problemas das crianças hoje acontece dentro de casa, com crimes praticados por pais, por parentes, por pessoas que deveriam cuidar das crianças. São os assassinatos que ficam escondidos, por espancamentos e por sevícias sexuais. Nós estamos fazendo um trabalho muito bonito junto com a Secretaria de Justiça, através de um serviço chamado Serviço de Advocacia da Criança, onde entram a Ordem dos Advogados do Brasil, a Procuradoria Geral do Estado, Secretaria de Justiça e Secretaria do Menor. Nós fomos obrigados a criar um serviço de advocacia com advogados especializados a defenderem crianças de suas próprias famílias, de seus próprios parentes. Também na área da Secretaria de Educação, nós vamos muito bem. Já entrou no currículo das normalistas do magistério, em 180 escolas aqui em São Paulo e na Grande São Paulo, a questão da violência doméstica. Nós estamos lá dando aula para as futuras professoras, para que elas saibam identificar o que é violência no sentido amplo, para que elas saibam reconhecer uma criança que está sendo espancada, que está sendo violentada, e para que ela entenda uma rede de apoio que existe para poder colaborar com essa criança. Com relação à integração das outras secretarias, ela vai muito bem, sempre no nível de cúpula. A Secretaria de Saúde também vai muito bem, mas nós sabemos das limitações da rede pública de saúde no estado de São Paulo e de resto, em todo o Brasil. Com relação à ampliação dos programas, eu volto a dizer, é uma decisão política que não passa pela Secretaria do Menor. Provavelmente, com certeza, eu adoraria que os nossos programas reconhecidamente bons pudessem ser estendidos a todas as crianças que dele necessitam, não só no estado de São Paulo como também em todo o Brasil.

Mônica Teixeira: Doutora Alda, a senhora falou na primeira resposta em indústria de exploração dos menores, das crianças, falou em violência doméstica agora, apresentando um quadro em que os pais seriam os infratores, e ao mesmo tempo diz que o número de crianças que está nas ruas pedindo coisas e vendendo coisas aumentou por causa da situação econômica do país. Afinal de contas, todo o menor que está na rua é infrator? E todo o menor que está na rua vem de uma família cujos pais são infratores, porque batem nele, ou estão sob a direção de algum bandido, como a senhora falou?

Alda Marco Antônio: Não, nem todas as crianças que estão na rua são infratoras, nem todas elas roubam. A maioria das crianças que estão na rua está pedindo esmolas. Elas são filhas de famílias deterioradas. Nós percebemos que na ditadura, silenciosamente, grandes contingentes de famílias da zona rural se transferiram para as cidades e se acomodaram como puderam nas periferias das grandes cidades. Os pais, invariavelmente, que sabiam capinar, às vezes, cuidar do gado, levantar uma cerca, que tinham uma função social no campo, passaram a não tê-la mais na cidade. Tudo o que ele sabia fazer no campo não tinha mais condição de ser feito. Não encontrou emprego, procurou um dia, dois dias, um mês, dois meses, acabou desistindo e virou invariavelmente um alcoólatra e engrossa o contingente do lumpesinato urbano [camada pobre da sociedade, destituída de recursos econômicos e especialmente caracterizada pela ausência da consciência de classe]. A mãe, sim, encontrou emprego como empregada doméstica ou como faxineira, e as crianças dessas famílias ficaram desassistidas. Quando não ficam trancadas dentro de casa, elas saem, ganham a rua até por uma questão de sobrevivência. E elas ganham a rua numa situação muito precária; ganham a rua sem estarem minimamente sociabilizadas para enfrentar a violência dessa cidade. E quando elas passam a viver na rua, quando elas passam a dormir na rua, elas também precisam se tornar crianças violentas para sobreviver no meio violento. Então nem todas as crianças, eu acho que grande maioria das crianças que estão na rua não são infratoras, são simplesmente crianças que buscaram a sobrevivência fora de casa. Eu hoje tenho certeza absoluta de que as crianças apanham dentro de casa até a morte e não saem de casa. São seviciadas até a morte, não saem de casa. Elas só saem de casa quando a fome aperta. E nós somos animais, racionais, mas somos animais, e quando a fome aperta não tem jeito. Nós até defendemos que a criança em situação de perigo corra para a rua, ganhe a rua, porque às vezes a rua é o único lugar democrático que ela conhece, e às vezes a rua vai lhe salvar a vida.

Mônica Teixeira: É fácil tirar uma criança que está vivendo na rua e colocá-la dentro de um programa da Secretaria do Menor, qualquer que seja ele?

Alda Marco Antônio: Não, essa situação não é fácil, mas ela tem uma diferença. A criança que já foi para a rua, que está separada completamente do seu pai, da sua mãe, que passa a viver dos expedientes da rua... Quais são os expedientes da rua? Pedir esmola, cheirar cola, fumar, roubar, depois ter o contato com o bandido adulto, traficar drogas. A criança que vive nesses expedientes tem um grau de dificuldade. Às vezes nós passamos um ano e meio, um ano e oito meses, para conquistar uma criança dessa, para uma vida normal, mas é possível. Quase que 100% de segurança, de resultado positivo nós temos. A grande dificuldade que nós encontramos, de fato, são as crianças acompanhadas por adultos, nas ruas. Essas não são para nós crianças de rua, elas estão na rua, estão em situação de rua, mas moram com os seus pais, vêm geralmente à tarde. E eu chamo de quadrilátero milionário de São Paulo, esta zona que vai da avenida Paulista até a avenida Faria Lima, do Mappin Itaim até a avenida Henrique Schaumann, por quê? Porque os semáforos desses cruzamentos ali são geralmente mais lentos; os carros passam, param, e as pessoas têm um poder aquisitivo alto, provavelmente têm algum complexo de culpa na cabeça, porque dão esmolas altíssimas, dão cédula de mil cruzeiros, dão cédula de quinhentos cruzeiros de esmola, e nós sabemos que na esquina ...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] A senhora é contra ou a favor da esmola?

Alda Marco Antônio: Depende, viu, Escosteguy, depende do tipo de esmola, eu não posso ser contra a esmola de uma maneira geral.

Jorge Escosteguy: Nesse caso, no farol, ele pede ali um dinheiro.

Alda Marco Antônio: Sim, mas eu não posso dizer que sou contra a esmola porque eu estaria sendo contra um ato de solidariedade humana. De repente uma pessoa de fato está precisando ...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Não, a senhora disse que, por um complexo de culpa, acabam dando esmola. Então eu pergunto para a senhora se a esmola é só um complexo de culpa ou é um ...

Alda Marco Antônio: [interrompendo] Sim, por complexo de culpa, eu não preciso ser, eventualmente, contra a esmola. Ela dá também, porque às vezes tem complexo de culpa. O que eu estou querendo dizer é que nesses cruzamentos desse quadrilátero milionário, é muito rendosa a ação de pedir esmola e de vender balas. Então com essas crianças, Mônica, de fato é muito mais difícil trabalhar, porque os adultos não deixam a aproximação; essas crianças também já estão com a cabeça feita, elas também não querem saber do educador. Outro tipo de criança que nós temos hoje e é uma novidade, há um ano e pouco, nós estamos cuidando de famílias inteiras que passaram a morar nas ruas. Infelizmente, nós que já tínhamos os sem-teto, já tínhamos os sem-terra, agora nós temos os sem-parede. Onde eles encontram uma cobertura, uma marquise, infelizmente, estão morando. Nós ainda não conseguimos quantificar, tem uma estimativa do Jornal da Tarde de que existem cem mil pessoas morando nas ruas. E de fato não consegui quantificar ainda, mas é muito grande o número de famílias que moram nas ruas com as crianças. E as famílias saem para trabalhar de manhã, e as crianças ficam na sua casa, que é a rua.

Jorge Escosteguy: Antes de passar para o Maurício e para você, eu quero registrar a presença do doutor Jacob Pinheiro Goldberg, um dos nossos convidados também para ajudar a entrevistar hoje a secretária do menor, Alda Marco Antônio. Por favor, Jan.

Jan Rocha: Bem, eu queria lhe perguntar o seguinte. Em maio houve uma denúncia de que crianças ou jovens que dormem na Praça da Sé, no Largo São Francisco também, estavam sendo agredidas à noite por supostos policiais. Inclusive houve casos de jovens queimados com ácido, de outro que desapareceu, de uma moça agredida. Eu queria saber se houve algum inquérito? Se a senhora sabe o resultado de alguma investigação sobre esses casos?  E essas acusações contra os policiais?

Alda Marco Antônio: Olha, Jan, eu estive muito perto dessas acusações, porque nós trabalhamos, nós temos uma rede de trezentos educadores nas ruas. Mas os nossos educadores trabalham das oito da manhã às dez da noite. Às vezes eles trabalham até um pouco mais tarde, mas nós não gostamos que eles varem, por exemplo, a meia-noite, porque aí o crime é muito mais pesado, a prostituição é muito mais pesada, e não é local de trabalho para os nossos educadores. Mas nós tivemos sim, muitas denúncias, nós tivemos sim, crianças machucadas, crianças queimadas. Eu recebi, naquele mês fatídico de maio, foi maio, final de abril, maio inteiro, começo de junho, praticamente todas as noites eu fui acordada de madrugada por telefonemas de amigos, de padres, de pessoas que trabalham a noite inteira, inclusive de jornalistas que passavam a noite inteira na Praça da Sé, e que me traziam essas denúncias. Por um lado, todos os jovens – eram jovens, não eram bem crianças – todos os jovens agredidos que quiseram passar pelo SOS passaram e passaram por exame de corpo de delito. Apenas uma única moça consentiu em fazer o exame de corpo de delito. Todos os outros, ainda que machucados, ainda que queimados, tiveram medo. Tiveram medo de passar por exame de corpo de delito e tiveram medo de acareação, por exemplo, com agressores. De fato eles diziam a nós que eram policiais, mas isso não ficou provado. Eu levei o caso até o governador, eu levei o caso até o secretário de Segurança, e de fato nós não conseguimos apurar se foram mesmo policiais. Felizmente isso já terminou.

Maurício Stycer: Eu queria fazer uma pergunta, aproveitando, como a senhora disse, que não conseguiu provar alguns casos, o caso talvez mais notável de violência contra menores de rua ocorrido no ano passado, documentado por uma foto publicada na primeira página da Folha, quando um PM colocou o cano do revólver na boca de um menino. O soldado foi identificado, abriu-se inquérito e não se falou mais no assunto. É um caso que não precisaria aí de nenhum menor depor, de nada. E a conseqüência mais importante que houve no caso foi a necessidade de o menor que recebeu um revólver na sua boca, sair da cidade, sair do estado, fugir, porque estava sendo ameaçado de morte por outros PMs. A senhora acha que é do âmbito da sua secretaria coibir esse tipo de atitude, acompanhar, exigir punição? A senhora acha que é uma decorrência normal das coisas que esse inquérito se perca, que não se fale mais do assunto, que o assunto morra?

Alda Marco Antônio: Não, eu não acho normal. Eu fico indignada, porque tudo o que acontece com criança ninguém sabe nada depois. Nessas mortes que estão acontecendo, ninguém identifica o autor, e quando identifica, é isso que você acabou de dizer: ninguém sabe o que aconteceu. No caso específico desses meninos, eles estavam sendo atendidos pelos nossos educadores de rua, tanto que no mês subseqüente, nós tivemos um trabalho muito grande de reunir cinco outros irmãos daquele menino, reunir a mãe e tirá-los de São Paulo. Fomos nós que tivemos que mandá-los de volta para o seu lugar, para o seu estado de origem. E o que eu sei é que aquele policial foi afastado, está sendo julgado. Agora, de uma maneira geral, a criança no Brasil está sendo ...

Maurício Stycer: [interrompendo] Esse policial, uma semana atrás, estava em Guarulhos e atendeu... correu atrás de um suposto assaltante, à paisana estava esse soldado, estava armado, atirou e matou um outro soldado, e um camburão da polícia veio, atirou nele, ele levou oito tiros e foi parar no hospital. Ele estava agindo em Guarulhos normalmente, à paisana, o que é ilegal, com uma arma.

Alda Marco Antônio: Bom, eu não tinha conhecimento desse fato, mas o que eu quero dizer a você é que hoje a questão da criança é tão grave, ela é tão desvalorizada, que matar criança no Brasil é hoje quase que como se não estivesse acontecendo nada. 416 jovens foram assassinados no ano passado só em São Paulo. Eu lhe pergunto: se tivessem sido 416 comerciantes, ou 416 advogados, ou 416 médicos, ou 416 donas de casa, será que a sociedade estaria tão quieta como está hoje? Eu acho que não! Eu acho que nós precisamos fazer valer...

Marcelo Parada: [interrompendo] A que a senhora atribui esse marasmo da sociedade, secretária?

Alda Marco Antônio: Eu acho que nós, os adultos, somos muito cruéis. Pensamos só em nós mesmos. É uma questão cultural que está atingindo em cheio hoje o povo brasileiro. Pensamos só nas nossas carreiras, no nosso brilho, no nosso êxito. Acabamos esquecendo os idosos e esquecemos as crianças. Nós estamos sendo cruéis demais, porque nós estamos esquecendo nosso futuro.

Dácio Nitrini: [interrompendo] Será que é só isso, secretária? A própria Folha de S.Paulo publicou na capa do caderno Cotidiano, a pesquisa do núcleo de violências, da Universidade de São Paulo, mostrando que a PM de São Paulo é uma das mais violentas que existe. É algo que está estampado nos jornais diariamente. Eu tenho alguns anos de imprensa, o Percival tem outros, todos nós aqui temos alguma experiência de denúncias, e em tese, o que está nas páginas dos jornais deve espelhar a preocupação da sociedade. A senhora passa já à sua segunda gestão consecutiva no governo do estado. A senhora sente algum eco ou a impressão que a senhora tem é de que há apenas uma brecha, onde há alguém ali bradando, e na verdade as autoridades que detêm o poder político real sobre a segurança não reagem?

Alda Marco Antônio: Você está sugerindo que eu deva ser a nova secretária de Segurança? [risos]

Dácio Nitrini: Não. Eu estou sugerindo que a senhora responda com toda sinceridade, se a senhora consegue, objetivamente, coisas práticas em relação à diminuição da violência policial contra os menores, nem vou dizer contra todos, que é área de sua responsabilidade.

Alda Marco Antônio: Olha, Dácio, a minha relação com a cúpula da polícia é muito boa, tanto com o secretário, com o delegado geral, com os comandantes, o relacionamento é fraternal, nós temos o mesmo chefe, nós recebemos a mesma orientação. Porém nós temos natureza de trabalho diferente. A Secretaria do Menor trabalha com educação, e a Secretaria de Segurança trabalha com repressão. Nós nos entendemos muito bem na direção, mas o embate se dá na rua. E na rua, quando o embate é entre jovens e policiais, entre crianças e policiais, entre educadores e policiais, muitas vezes nós encontramos policiais despreparados. Eu realmente não posso imaginar que a polícia possa ser dócil na rua, por exemplo, mas eu também gostaria que ela fosse mais respeitosa em muitos casos de embate, de situação limite, que nós temos vivido na rua. Só que não é da minha responsabilidade.

Dácio Nitrini: Se a rua tem esse perigo todo, tem esse embate diário, por que há programas de desinternação, de retirada dos menores do âmbito da responsabilidade direta do Estado? Eu não tenho detalhes, mas...

Alda Marco Antônio: [interrompendo] Você está se referindo à Febem?

Dácio Nitrini: À Febem!

Alda Marco Antônio: Puxa vida, Dácio, desinternação! Quando nós lutamos pela desinternação, nós estávamos lutando para garantir um direito líquido e certo. Quando o Estatuto da Criança e do Adolescente veio, ele disse: “nenhuma criança com idade abaixo de 12 anos pode ficar presa”. Então nós lutamos para que o judiciário garantisse um direito. Nós estávamos lutando por um direito! [fala com ênfase] Eu não acredito que alguém aqui possa querer que crianças fiquem presas sem estar previsto na lei.

Dácio Nitrini: Não, não é isso que estou querendo, não estou propondo. Eu estou dizendo se a rua é perigosa, se internar é perigoso, como é que se resolve essa questão?

Alda Marco Antônio: Mas hoje a sociedade é perigosa! Veja só os milionários! O [Wagner] Canhedo [à época da entrevista, era dono da Vasp, empresa de aviação] acabou de contratar cinqüenta seguranças armados só para fazer a segurança das pessoas de sua família. Não é diferente para essas crianças, não é diferente para mim, não é diferente para você. Nós temos que mudar a sociedade. Esta sociedade é que não presta, esta sociedade é que já não vale mais nada, todos os valores estão mudados. Nós temos que fazer algo novo, e nós temos a proposta para esse algo novo. Tem que se começar respeitando o adulto que trabalha, e tem que se começar de fato a educar crianças, a respeitar crianças, a atrair e manter crianças nas escolas. Eu fui secretária de Relações do Trabalho no ano de 1986, ano em que mais teve dinheiro na mão da população, foi o ano em que menos teve assalto a mão armada, foi o ano em que teve menos crimes, menos assalto a banco... Por que isso? Porque as pessoas tinham esperança, porque tinham emprego. Eu administrei 670 greves em um ano, e em muitas delas, com meia hora de conversa na porta da fábrica, ficava resolvido. Não sei se você se lembra da greve pipoca [paralisações localizadas e em seqüência nas várias indústrias de um mesmo setor]. Não se fazia greve geral; [fazia-se] greve pipoca em cada fábrica. Então os operários conseguiam, às vezes, com duas horas de greve, 10% de aumento numa época em que estava tudo congelado. Então o que não presta para nós hoje é a sociedade, de uma maneira geral. Nós precisamos mudar tudo isso. E não é fácil. Se fosse uma tarefa fácil, os caminhos estariam aí. Mas tem essa receita, que é uma receita muito minha, que hoje espero, entendo, sei lá, acredito que conheço um pouco as crianças, conheço um pouco o mundo das relações do trabalho, conheço um pouco este país que eu adoro, que eu amo, que chama Brasil, mas que está ruim, está ruim para nós todos. Pior para as crianças, porque elas são mais frágeis, porque elas estão sem escola, porque elas estão sem roupa, porque quando elas adoecem, não tem vaga no hospital, elas estão desassistidas, é uma desesperança geral. E nesse quadro todo, sobe a violência e a violência acaba sobrando para todos.

Percival de Souza: Doutora Alda, eu queria voltar à questão da exploração do menor. A senhora mandou um petardo aí em direção ao curador de menores, o representante do Ministério Público, e um projétil, vamos dizer assim, mais suave em direção à Segurança Pública. E o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê aquele que eu considero o verdadeiro terceiro sistema de poder, o Ministério Público – fortalecido pelo estatuto – o poder judiciário e um conselho tutelar, que foi considerado inconstitucional pelo Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo. Quer dizer, não existe o conselho tutelar, que deveria ser um órgão forte, presente em todos os municípios, inclusive na nossa cidade. Então a minha pergunta é a seguinte: o estatuto prática e o estatuto retórica, como a senhora vê? O estatuto e a real questão dos adolescentes e das crianças hoje?

Alda Marco Antônio: Olha, Percival, o estatuto de fato é algo que moderniza o Brasil.  Nós não podemos dizer que o estatuto é difícil de ser cumprido antes de tentarmos, a verdade é essa. Tem muita gente que diz que é uma lei para a Suíça, que é uma lei para a Suécia, eu não acho tanto isso, não. Eu acho que ele tem dificuldades sim, em ser aplicado. Ele tem dificuldades, mas ele tem grandes méritos, ele moderniza este país. Pela primeira vez, ele considera a criança como sujeito de direitos. Não sei se você se lembra, antes da Constituição de 1988, não existia a figura da criança na legislação brasileira, a não ser na CLT. Criança só aparecia até os seis meses de idade, naquela lei que diz que deveria ter creches nas empresas onde tinha mais de trinta funcionários acima de 16 anos de idade. Não aparecia mais criança na legislação brasileira; ia aparecer só depois dos 12 anos, com possibilidade de trabalhar. Portanto, olha só que coisa cruel: a criança brasileira aparecia na legislação brasileira só na CLT, na Consolidação das Leis do Trabalho. Agora ela ganha personalidade, ela aparece e aparece como? Como sujeito de direitos e não como objeto de discriminação social, objeto de controle social. Porque o Código de Menores, na verdade, fazia o controle social da criança. Ou seja, se a criança deu trabalho, você bota para dentro dos muros e esconde. Você não vai resolver a questão da criança dentro da Febem; pelo contrário, você vai piorar a situação da criança dentro da Febem. Mas a sociedade hipócrita, como era a nossa, preferia esconder essa questão. Então prende, põe a criança dentro da Febem, ninguém sabe o que acontece com essa criança e a sociedade pensava que estava livre dela, só que ela voltava depois dos 18 anos, escolada, porque isso era a verdadeira escola do crime. Hoje não. Hoje o estatuto prevê a criança como sujeito de direitos. A ela tem que ser dada educação. Inclusive uma coisa muito bonita que está na Constituição e que está também no estatuto, é a garantia da educação como um direito a partir do nascimento, que  é a questão das creches, que nós temos que encarar com mais responsabilidade. Os nossos administradores públicos têm que encarar essa questão das creches como uma obrigação dos administradores, da sociedade e como um direito da criança. Então eu não vejo assim com grande dificuldade; nós somos o único estado brasileiro que criou o SOS Criança, que está previsto no estatuto, um local que atende as crianças perdidas e abandonadas, diferentemente do que as infratoras, as quais são colocadas imediatamente à disposição das autoridades. A autoridade judiciária é que vai decidir se ela vai ser liberada ou se ela vai ficar presa; porém as perdidas e abandonadas não correm mais o risco de ficarem juntas com as infratoras, como acontecia antes do estatuto. Só isso, Percival, só isso, não precisava de mais nada, já teria revolucionado a legislação brasileira.

Jacob Pinheiro Goldberg: Secretária, as modificações ocorridas nos últimos anos, tanto de natureza jurídica como social, e algumas delas você acabou de apontar, implicam também numa mudança da mentalidade infanto-juvenil. A gente não pode conceber ou imaginar que a criança e o menor abandonado, em geral, o adolescente, sejam elementos que estagnaram, ficaram congelados ou paralisados no processo de transformação social. O que é que você pode imaginar em termos de projeção desse patrimônio intelectual? Existe um patrimônio intelectual, independente das situações de conjunturas que são trágicas e estão sendo abordadas. Mas existe um patrimônio intelectual. Você acha que ele está inteiramente comprometido em termos de futuro?

Alda Marco Antônio: De jeito nenhum! Doutor Jacob, eu gostaria que o senhor fosse visitar as nossas experiências luminosas, os programas que complementam o horário escolar através da arte, através da arte-educação, nas escolas de circo, nas escolas de teatro, nas escolas de artes plásticas, nas escolas dos cortiços e nas escolas das vielas das favelas. Você precisa ver que a criança – hoje eu estou convencida disso – é a matéria-prima mais maravilhosa que tem. Você faz da criança o que você quer fazer. Então se você dá uma coisa boa, ela lhe dá uma resposta maravilhosa, brilhante, exuberante, é uma coisa mágica. A criança só precisa de cuidados. Eu, como ecologista de profissão, eu acho que nós, os seres humanos, somos os mais frágeis seres vivos do mundo. Porque não basta dar para um ser humano alimento, não basta dar roupa, não basta dar remédio quando ele está doente, não basta dar um teto, não basta dar educação, não basta dar sociabilização. Tem que dar tudo isso e tem que dar respeito, tem que dar carinho, tem que dar amor, porque a criança precisa se sentir segura. Qualquer ser humano precisa se sentir seguro, particularmente a criança. Se ela não se sentir segura, ela não será um adulto apto, um adulto pleno, um adulto que poderá ser produtivo para a sociedade, produtivo para si mesmo, conseguir a sua própria felicidade e fazer a felicidade dos outros. Se entendi bem a sua pergunta, eu acho que sou a pessoa mais esperançosa do mundo. Por quê? Porque nós fizemos uma experiência extremamente barata, uma experiência que ocupa muitos artistas, transformados em arte-educadores, que trabalham com as crianças, as mais pobres e as mais abandonadas de São Paulo; crianças que não conhecem o próprio rosto, porque nunca viram espelho dentro de casa; crianças com a auto-estima anulada, porque apanham, porque são seviciadas, porque têm piolho na cabeça, porque têm frieira no dedo, porque não conhecem a própria identidade, muitas não sabem o próprio nome. E essas crianças, com esse tipo de vivência, com dois ou três meses de assistência respeitosa na área da arte-educação, se transformam, ficam lindas, ficam maravilhosas, porque o seu olho começa a brilhar. E o seu olho começa a brilhar, porque ela começa descobrir coisas que são agradáveis a ela. Ela começa a ter o direito de ser criança, direito de brincar e o direito de ter esperanças, e também o direito de ser respeitada, porque a maioria das crianças, infelizmente, não são respeitadas. Respeite a criança, dê a ela o mínimo que ela precisa, que ela vai responder. Você sabe disso porque você é um grande psicólogo, psicanalista, e você sabe que elas respondem muito bem.

Myriam Mesquita: Secretária, a senhora fez referência à sociedade. Nós sabemos que as políticas públicas devem ser implementadas pelo Estado, mas me parece que se a sociedade civil não estiver como co-participante, muito pouco dessas políticas podem ser fadadas ao sucesso. E a senhora fala, inclusive, numa sociedade como a senhora gostaria que fosse. Nesse sentido, no que a senhora acha que a sociedade está cooperando? No que ela atrapalha? E no que ela realmente tem condições de colaborar? Lembrando, por exemplo, a iniciativa privada que há pouco tempo, questão de alguns anos, quatro ou cinco anos, nós tivemos um projeto em São José dos Campos, se não me engano, por um prefeito que era do PMDB, inclusive, que foi muito bem sucedido com o apoio da iniciativa privada. O índice de delinqüência infantil e juvenil, aspas [faz sinal com as mãos], baixou incrivelmente, e que a empresa privada apostou na proposta do prefeito e o sucesso foi muito grande. E para isso se precisa pensar em objetivos a curto prazo, a médio prazo e a longo prazo. Como a senhora vê a postura da sociedade, o que ela pode fazer e o que ela está atrapalhando?

Alda Marco Antônio: A maior dificuldade que nós tivemos para implantar esse trabalho  felizmente está quase que superada, quase, não vou dizer completamente, foi o preconceito. O preconceito da sociedade, a cultura estabelecida, as pessoas acomodadas, as instituições acomodadas, o medo do novo. Quando nós percebemos que internatos fazem muito mal para as pessoas, sobretudo para crianças e jovens, quando nós quisemos substituir a prática autoritária, repressora, que existia em todas as políticas públicas até então, e que estabelecemos a educação em meio aberto, a educação com liberdade, com respeito, com garantia de direito, e resolvemos nos utilizar de um expediente tão simples, que é de fazer com que essas crianças, ao invés de morarem em grandes internatos, fechados, numa instituição total, que tem escola lá dentro, que tem médico lá dentro, e que ela não sai lá de dentro, e nós resolvemos substituir por pequenas casas, por pequenas casas alugadas nos bairros, onde esses jovens que já tivessem tido uma história de rua ou uma história de infração, pudessem morar como numa república, nós tivemos alguns dissabores muito pesados. Nós tivemos até que mudar algumas casas, porque a vizinhança, de fato, não aceitava. Isso aconteceu no começo. Mas com relação às casas abertas, às casas-abrigo, às casas de moradia da Secretaria do Menor, nós hoje temos muita amizade com os vizinhos, os vizinhos protegem muito bem as nossas casas. Tivemos um acidente numa das casas-abrigo. Aquele tornado que passou aí pelo ABC e que derrubou uma série de caminhões, derrubou também por inteiro uma das nossas casas-abrigo. E se não fosse o apoio dos vizinhos que recolheram imediatamente 15 crianças e os funcionários, o acidente para nós, talvez, tivesse sido muito mais grave. Então, com relação a casas-abrigo, casas abertas, casas-moradias, a experiência da secretaria do menor, nós vamos muito bem. Mas tem um caso recente aí na imprensa, de que todo mundo vai se lembrar. Nós estamos numa ação conjunta com a Pastoral do Menor, tentando tirar da unidade do Pacaembu, da Febem, onde tem crianças com idade abaixo de sete anos, 17 crianças portadoras do vírus da aids. Essas crianças contraíram a doença através da placenta, através do útero materno, e umas duas ou três, por transfusão de sangue. São bebês, e nós queremos que eles tenham uma vida mais adequada, morando numa casa do bairro, que eles possam ter uma assistência melhor. A casa está sendo montada pela Pastoral do Menor, através de doações, e nós estamos enfrentando uma questão judicial. Um dos vizinhos impetrou um mandato de segurança para que a casa não se instale. Ora, isso é supremo ato de preconceito. Eu quero até aproveitar e fazer um apelo a esses vizinhos, se estiverem assistindo a este programa, para que renunciem a esse ato de preconceito. As crianças não vão transmitir a aids assim. Nós todos sabemos que aids se transmite só pela relação sexual, ou por transfusão de sangue, ou por contato direto de sangue. Não vai acontecer isso. Eu queria fazer um apelo às famílias vizinhas da Casa Vida, lá no Belém, para que possam receber com amor essas crianças. Mas não é fácil, Myriam, a gente vai ter que lutar sempre contra isso.

Marcelo Parada: Secretária, a senhora tocou nesse assunto da aids, eu gostaria que a senhora nos desse os dados mais recentes de que dispõe sobre a incidência dessa doença em menores abandonados e qual o trabalho também que a sua secretaria tem feito nessa área.

Alda Marco Antônio: Eu vou fazer uma análise separada da Secretaria do Menor, que trabalha em meio aberto, e da Febem, [Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor] que trabalha em meio fechado. A Secretaria do Menor já atendeu, ou está atendendo hoje, 238 mil crianças. É uma cifra gigantesca. Muitas cidades do estado de São Paulo não têm essa população. De toda essa população, nós encontramos três casos de jovens portadores do vírus da aids. Um infelizmente faleceu, não da aids, ele foi fazer surf no trem e infelizmente foi eletrocutado, bateu a cabeça num fio de alta tensão. Os outros dois estão indo bem, estão sendo atendidos pelo Centro de Referência da Aids, da Secretaria de Saúde, e um inclusive luta boxe, está treinando boxe, a doença está controlada. Nós temos a seguinte postura: fazer exames só quando há alguma dúvida e não discriminar; contar, inclusive, para os outros jovens que moram com eles nas casas, para que possam prevenir sobre a doença. Com relação à Febem, o quadro se divide em dois panoramas. O panorama dos bebês, que eu acabei de dar. Nós recebemos dos hospitais crianças abandonadas, portadoras do vírus da aids. Felizmente em alguns casos acontecem alguns milagres, e essas crianças nascem com o vírus da aids e depois de dois anos de tratamento, o vírus desaparece. Existe até um termo técnico que se usa dizer, “negativou”. Então quando uma criança aparece com o exame negativado, nós fazemos uma festa, porque nós sabemos...

Marcelo Parada: E na rua?

Alda Marco Antônio: Da rua, três casos. Na rua, a Secretaria do Menor atende três casos. Na Febem, nós tivemos um caso famoso de um menino que fugiu, fugiu do próprio hospital, foi para Santos, mas não chegam a dez os casos de jovens portadores desse vírus, com idade acima de 14 anos. E temos hoje 17 bebês que estão sendo preparados para irem para a Casa Vida. Então eu vou dizer a você que o panorama é triste, porque essa doença é insidiosa, infelizmente, não se conhece ainda a cura, e ainda que fosse uma única criança portadora dessa doença, eu acharia muito. Então nós temos na experiência de rua, três casos, e na Febem 17 bebês e mais dez ou 12 casos de jovens com idade acima de 14 anos.

Jorge Escosteguy: Secretária, nós vamos precisar fazer um rápido intervalo, o Roda Viva volta daqui a pouco, entrevistando hoje a secretária do menor do Estado de São Paulo, Alda Marco Antônio. Até já.

[intervalo]

Jorge Escosteguy: Voltamos com o Roda Viva, que hoje está entrevistando a secretária do Menor do estado de São Paulo, Alda Marco Antônio. Secretária, no primeiro bloco, conversando ali com o Dácio, ele perguntava se o seu trabalho tem obtido alguma espécie de ressonância, de apoio, junto ao governo do estado, falou-se em Secretaria de Segurança etc, e a senhora disse: “Ah, quem me dera, política de governo. Quem me dera poder fazer um programa maior, ampliar esse programa que aparentemente, apesar de grande, ainda é pequeno para o tamanho do problema em São Paulo”. Talvez o que ele quisesse dizer, e me ocorreu isso um pouco, é se de repente esse programa tão elogiado – recebeu elogio da ONU – não pode se transformar em algo como, mal comparando, o Cieps do Brizola, por exemplo, uma coisa mais de fachada no sentido de promover um governo, mas pára num determinado estágio, ou seja, atinge um determinado um número de crianças, como é o caso do Cieps, e não vai dali para frente. Ou seja, se o governo está sentindo os resultados disso e de repente põe mais dinheiro, até como a senhora disse, é um programa barato, ou seja, se é barato melhor ainda, porque os Cieps são caros. Mas enfim, se está havendo uma resposta do governo no sentido de dizer “bom, se é uma coisa boa e está funcionando, a ONU aprovou etc, vamos ampliar esse programa, vamos fazer a Secretaria de Segurança controlar o maior infrator que põe as crianças na esquina para pedir esmola, ou que bate na criança”. Não pode, de repente, acontecer um pouco isso? Ser um programa muito bonito, todo mundo gostar, achar ótimo e tal, mas fica ali naquele âmbito e não cresce para o resto.

Alda Marco Antônio: Deixa eu só começar pelo início da sua pergunta. Eu acho que o Dácio não perguntou se eu tenho apoio do governo.

Jorge Escosteguy: Eu perguntei. Ele falou um pouco e eu...

Alda Marco Antônio: Claro que eu...

Dácio Nitrini: [interrompendo] Eu fiz um intróito [parte inicial] um pouco longo, talvez um circunlóquio [uso excessivo de palavras no enunciado] [risos], e uma das coisas que eu coloquei foi exatamente um certo desencontro entre a Secretaria do Menor e uma decisão política maior de governo mesmo.

Alda Marco Antônio: Não, isso não existe, isso não existe. Eu tenho um apoio irrestrito do governador Fleury e isso é provado, porque ele me confirmou. Ele me confirmou e deixou todas as pessoas que estavam fazendo um trabalho em seu lugar ...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Mas, veja bem, desculpe. Eu não discuto o apoio do governador, é evidente que tem o apoio, tanto que a senhora foi confirmada e o programa foi confirmado. Eu digo no sentido de ampliar esse programa.

Alda Marco Antônio: E depois tem mais, o relacionamento. O governador Fleury foi uma das pessoas que mais me ajudaram na implantação dessa secretaria. Como secretário de Segurança, ele teve a oportunidade inclusive de sentir essa questão do preconceito de vizinhos das casas abertas e foi um grande colaborador e está sendo. Está sendo muito fácil trabalhar com o governador Fleury hoje. Às vezes, às dez horas da noite, eu me esqueço de que já é hora tão avançada e ligo para o Palácio dos Bandeirantes, e ele está lá, ele me atende com toda cordialidade e tem dado todo o apoio. E eu tenho certeza que se dependesse dele, esse programa iria para todas as crianças. Agora tem uma questão importante. Vocês tocaram numa questão que nós temos que enfrentar, que é a questão da mudança da qualidade da lei. O Estatuto da Criança e do Adolescente dá hoje a responsabilidade de se cuidar de crianças e jovens aos poderes municipais. Não é mais o Estado que tem a obrigação de cuidar de criança pobre, de criança infratora. Agora é o município, e isto é sábio, vem no sentido da filosofia da Constituição de 1988. Nós temos que fazer com que os municípios assumam a responsabilidade pelo seu produto social. Então é a prefeitura, é a câmara municipal, é o representante do judiciário, são os representantes do ministério público e a sociedade, organizadamente ou individualmente, as pessoas individualmente é que têm responsabilidade. E hoje o Estatuto da Criança e do Adolescente é um instrumento muito poderoso na formação dessa nova mentalidade municipal. Então nós estamos com a Febem aqui em São Paulo, tentando educar os infratores, até que os municípios possam adequar esse atendimento dentro dos municípios. A lei é clara: a responsabilidade é dos municípios. E hoje eu ouvi um pronunciamento público do governador Fleury, na abertura do primeiro treinamento de educadores de rua, treinamento internacional, na sede do Centro de Convenções da Secretaria do Menor, de que ele está disposto – e eu já sabia disso, e ele falou isso publicamente hoje – a fazer com que a Secretaria do Menor seja um instrumento de apoio aos poderes municipais, de retaguarda técnica, para que os municípios se adéqüem, para que eles possam ficar e cuidar muito bem das suas crianças carentes e também com os eventuais infratores do seu município. Então essa questão para mim hoje está muito clara, ela não depende mais do governo do estado, ela depende sim dos poderes municipais que têm hoje recurso para isso. Os recursos vêm da educação, os municípios são obrigados a empregar um quarto de seus orçamentos na educação e cuidar de criança. De qualquer forma que se diga, é educação.

Jorge Escosteguy: Quer dizer que finalmente nós conseguimos encontrar um secretário de estado que diz que não precisa mais de recurso para tocar a sua pasta, ou não? Em geral todos pedem mais recursos, a senhora diz que não depende mais do governador.

Alda Marco Antônio: Não! Olha, Escosteguy, nós aprendemos a trabalhar com poucos recursos, inclusive nós desmistificamos uma série de coisas. Educação para mim, por exemplo, não é fábrica de escola. Educação para mim é transferência de saber no sentido lato, é a relação do adulto, de quem ensina com a criança. E nós na Secretaria do Menor ensinamos nas vielas das favelas. O programa, considerado número um pelos cientistas da ONU, que passaram três meses conosco aqui em São Paulo, se chama A turma faz arte, e acontece nas favelas, que acontece nos campinhos de futebol; dia que chove não tem esse programa, não tem telhado. Isso é educação para mim, não precisa fazer fábrica de escola, entendeu? O prédio, às vezes, é importante, mas o prédio sozinho não faz escola. Nós ensinamos embaixo de lona de circo. Quer coisa mais bonita? Nós ensinamos, e o ato de ensinar, para nós, é um ato barato. Nós desmistificamos essa coisa de que é caro cuidar de criança. Não é caro não! Caro é não cuidar de criança, caro é deixar a criança analfabeta, caro é deixar a criança à sua própria sorte, abandonada à sua própria sorte, porque fica caro para ela, caro para a família dela, caro para a sociedade, que depois, provavelmente, vai ter que manter essa criança em algum presídio. Então veja, eu sempre acho que tem pouco recurso, porque eu sempre gostaria de fazer mais. Mas hoje nós somos um centro de referência mundial para treinamento de recursos humanos, e esse papel nós já assumimos na frente de qualquer outro estado brasileiro. Nós hoje temos condições de treinar recursos humanos, treinar técnicos dos municípios, para quê? Para que eles possam reproduzir políticas adequadas lá dentro. Ninguém melhor do que as próprias pessoas dos municípios para entenderem o que aquele município precisa, o que aquelas crianças daquele município precisam, sem uma tutelagem do Estado. Eu aqui da capital vou ditar para uma cidade do interior do estado com cinco mil habitantes, o que é melhor para ela? Não! A comunidade de lá é que tem que se reunir, é que tem que saber o que é melhor para aquelas crianças. Agora, técnicas modernas, preparação de recursos humanos, isso nós estamos em condições de fazer aqui de São Paulo.

Mônica Teixeira: Eu estou sentindo na senhora, e tenho o maior respeito pelo trabalho que a senhora desenvolveu e vem desenvolvendo aqui em São Paulo, mas eu estou sentindo na senhora uma espécie de defeito de toda pessoa que assume um cargo público. De repente a senhora está pintando um quadro que me parece muito mais róseo do que na verdade é o quadro da criança abandonada, ou pobre, ou carente, do que eu vejo na cidade de São Paulo e nas poucas viagens, aí pelo interior. Será que o trabalho da Secretaria do Menor, doutora, não é uma gota no oceano só? Em primeiro lugar. E em segundo lugar, a piora, a deterioração da condição econômica não transforma o esforço que a senhora fez nesses quatro anos, não faz recuar os resultados desse esforço de quatro anos que a senhora tem feito?

Alda Marco Antônio: Olha, Mônica, eu só estranho você ter dito que eu coloquei as coisas cor-de-rosa, porque normalmente eu não coloco, eu tento me ater à realidade. Gota d’água no oceano é gota d’água no oceano. Nós vivemos num estado que tem 32 milhões de habitantes, 47% são menores de idade, e destes, mais da metade são pobres, têm carências de todo jeito.

Mônica Teixeira: Pois é, e qualquer uma dessas crianças pobres, doutora, vai ser olhada por qualquer PM que esteja na rua, por exemplo, como um suspeito, vai ser tratada como se fosse um bandido em potencial, então ...

Alda Marco Antônio: [interrompendo] Se essa criança estiver na escola, não! [com ênfase] O que eu defendo é uma escola pública decente, é uma complementação do horário escolar, decente. Então o que aconteceu com a Secretaria do Menor, Mônica, e que está o mundo inteiro aí hoje, buscando ensinamentos, é que nós criamos um caminho. Eu nunca disse que a questão está resolvida, longe de estar resolvida. Aliás, não se resolve a questão da criança, só pelo lado da criança. Tem que resolver a questão do adulto, porque atrás de cada criança abandonada, de cada criança carente, de cada criança espancada, tem os adultos dela, no mínimo dois adultos, o pai a mãe, que também são violentados, que também são explorados, que também comem mal, que também se transportam mal, que também moram mal. Então a questão é grave, é uma questão da sociedade inteira. O que nós fizemos foi abrir caminho. Agora veja você. Nós temos uma escola pública que foi elaborada, que foi gestada, numa época em que a criança mais pobre que ia para essa escola levava lanche na lancheira, ia bonitinha com uniforme, ela ia entendendo o que a professora fala. Hoje, sem pesquisa, mas pela observação que eu tenho, pelo dado de observação real, pela minha experiência de quatro anos nas favelas, nos cortiços desta cidade, eu digo a você que, infelizmente, mais da metade das crianças em idade escolar está fora da escola. Por que elas estão fora da escola? Em primeiro lugar, porque a nossa escola não contempla mais essa criança. Essa criança nem está sociabilizada para entender o que a professora fala, e tem algumas barreiras. Ela não tem sapato, ela não tem material escolar, ela não tem uma pessoa que fala: “está na hora de ir para a escola”. Quando ela consegue vencer essas barreiras, que são grandes, e entra numa sala de aula, ela vai ver uma professora, vai ouvi-la e não vai entender nem os gestos nem as palavras dessa professora. O que acontece? Ela passa 15 dias nessa escola e não volta mais. Ela vai engrossar o longo caminho da evasão escolar. Nós precisamos pensar numa escola pública que contemple essa criança, que não pode ser sociabilizada dentro de casa, e temos que pensar sim na complementação do horário escolar. Essa criança não pode ficar solta nem no barraco e nem na rua, e para isso nós temos a alternativa do circo-escola, dos clubes, das escolas de teatro.

Mônica Teixeira: Agora você traçou um quadro que não é róseo, não é? Então, pelo tamanho do problema – eu volto a perguntar – o trabalho da Secretaria do Menor não é uma gota no oceano, infelizmente?

Alda Marco Antônio: Mas é uma gota! Agora, poderá não ser. Como, como?

Dácio Nitrini: [interrompendo] Qual é a porcentagem de dinheiro do orçamento que a Secretaria do Menor trabalha?

Alda Marco Antônio: [faz sinal com a mão para que Dácio espere] 0,2% do orçamento do estado.

Mônica Teixeira: Os programas da secretaria são baratos, isso  ...

Alda Marco Antônio: Agora deixa eu dizer: poderá não ser. Como? Se a política federal voltar a se desenvolver, Mônica! Porque a questão das pessoas que passaram a morar na rua em São Paulo, foi depois do Plano Collor 1, que causou a maior recessão que este país já viu; impiedosa, que não se preocupou com ninguém. E estão aí as pessoas na rua, passando fome só as crianças, não. As crianças são as mais frágeis, passam mais fome, morrem mais depressa, mas os adultos também estão sofrendo. Então em um país onde uma cidade que é a mais rica do país, São Paulo, tem 1,2 milhão de desempregados da cidade, fora os desempregados de outra cidade, o que você quer? Vai ter escola para todo mundo? Não pode ter! Esse é o contexto do país. Então nós não podemos pensar a criança fora do país em que ela vive.

Mônica Teixeira: Perfeito.

Jan Rocha: A senhora sabe muito bem a repercussão que todo esse assunto de violência contra crianças tem no exterior. Inclusive, na semana passada, no parlamento europeu passou por unanimidade uma moção condenando as autoridades brasileiras pela indiferença frente aos assassinatos e violências contra menores. Há uma indignação lá fora, e a gente não vê, exatamente, essa mesma indignação aqui dentro. A senhora está indignada, mas a gente não vê isso entre outras autoridades. A senhora tem falado, por exemplo, do apoio do governador Fleury. Eu queria saber se o governador fica indignado realmente, se os outros secretários estão indignados. Eu acho que só quando tiver um clima de indignação total é que a coisa vai começar a mudar. Como a senhora disse, a sua cidade tem que mudar. E como acabou também de dizer, afinal São Paulo é a cidade mais rica, o estado mais rico. Então não é possível que no estado mais rico, na cidade mais rica da federação, continue tendo esse problema, essa questão de milhões de crianças sofrendo. Como é que ...

Dácio Nitrini: [interrompendo] De alguma maneira, Jan, o governador conhece o problema, porque ele é promotor, foi presidente da Associação Paulista de Promotores e foi secretário de Segurança Pública.

Jan Rocha: Pois é, mas uma coisa é conhecer o problema que todo mundo conhece friamente e tal, e outra coisa é ficar indignado a ponto de querer mudar as coisas, então ...

Alda Marco Antônio: [interrompendo] Você sabe o que vai colaborar, Jan? É uma notícia que saiu ontem na imprensa: a comunidade econômica européia proíbe a seus membros, qualquer ajuda ao Brasil, até que essa questão seja resolvida. Se todos os países ricos do mundo fizerem como a comunidade européia, provavelmente essa questão será resolvida.

Mônica Teixeira: [interrompendo] Deixa eu só pegar uma carona ...

Jan Rocha: [interrompendo] Mas qual é o risco, desculpe, de resolver com medidas até de imagem num nível federal, o que já acontece em relação ao meio ambiente, e não assim, no dia-a-dia. Porque eu digo que é a sociedade que tem que ficar indignada. Por exemplo, poderia fazer muito mais em São Paulo, se tiver uma colaboração maior da indústria, da iniciativa privada. Você diz que faz muita coisa com pouco dinheiro. Se tivesse toda a sociedade empenhada em fazer programas, em tirar as crianças das ruas, em aumentar o horário, a carga escolar, etc e tal, muita coisa poderia ser feita.

Alda Marco Antônio: Que bom, Jan, que você está falando isso! Vamos fazer um apelo aqui de público a todas as pessoas que pensam como a gente, para fazer isso ...

Jacob Pinheiro Goldberg: [interrompendo] E talvez até – só pegando carona – quem sabe, esses países cuja opinião pública se indigna dessa maneira, possam estudar uma forma de conversão da dívida externa também em favor de programas sérios de amparo às crianças, tais quais imaginam em relação à ecologia, não é?

Alda Marco Antônio: Não tenho dúvida. Eu acho que aqui a gente já está abrindo alguns caminhos.

[sobreposição de vozes]

Jan Rocha: [interrompendo] Tem que colocar a questão da dívida, porque afinal tem essa relação entre o Brasil pagando bilhões de dólares a cada ano pela dívida, e a situação de pobreza, desemprego, austeridade e recessão.

Alda Marco Antônio: Mais do que isso, Jan: pagando dívidas de usineiros. Nós vimos aqui, há 15 dias, o Brasil pagando oitenta bilhões de dólares para usineiros do Nordeste...

Jan Rocha: [interrompendo] Pois é. Nisso aí também falta indignação, não é.

Alda Marco Antônio: Então neste país tem dinheiro, tem dinheiro. Ele está sendo mal empregado. O dia em que se tomar uma decisão política séria, as crianças serão atendidas.

Mônica Teixeira: Mas então, por exemplo, o governo do estado de São Paulo...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Só um minutinho, por favor, desculpe, eu estou seguindo a ordem aqui, o Maurício está há muito tempo querendo fazer uma pergunta. Quanto aos usineiros, parece que eles têm famílias muito grandes, muitos filhos .... [risos]

Maurício Stycer: Secretária, no final do ano passado quando entrou em vigor o Estatuto da Criança e do Adolescente, a senhora disse que ia dinamitar a Febem. Isso foi apenas uma frase de efeito ou vai de fato dinamitar a Febem?

Alda Marco Antônio: Olha, naquele momento ...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Secretária, desculpe, só um minutinho, só complementando, alguns telespectadores também perguntaram pela Febem. O Marcos José, aqui de São Paulo, sobre os objetivos da Febem; o Fernando Costa, de Ribeirão Preto, perguntando por que se encontra desativada a Febem de Ribeirão Preto; o Marcos, de Lins, por que o fechamento da Febem em Lins? Acho que é isso, sobre a Febem é isso.

Alda Marco Antônio: Naquele momento, eu pensava mesmo em implodir o prédio. Eu acho que aquele prédio é tão indigno, que só merecia ser desmanchado, por dois motivos. Um, simbólico, para que a sociedade rejeitasse aquela excrescência: salinhas de 13 metros quadrados, onde dormiam 25 crianças, sem banheiro, sem janela, sem luz, sem uma torneirinha; para ir ao banheiro, tinha que bater numa porta metálica, até que o funcionário do andar de baixo viesse atender. Quando não conseguia, era obrigado a fazer as suas necessidades ali. Uma excrescência! Eu tinha vontade de implodir, de fato, para que a sociedade, como símbolo, o rejeitasse. E como um ato concreto que jamais pudesse abrigar crianças novamente. Felizmente hoje ele não está implodido fisicamente, mas está implodido para nós. Ele não volta para a Febem, não é mais nosso, criança não entra mais ali. Agora respondendo ao pessoal que pergunta ...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Eu esqueci, desculpe, também da Marina Garcia, aqui de São Paulo. Ela gostaria que a senhora falasse das condições precárias em que se encontra hoje a Febem do Tatuapé, onde as crianças estão largadas, sem condições nenhuma etc.

Alda Marco Antônio: Ah, essa menina está sonhando! Isso não é verdade, isso não é verdade!

Jorge Escosteguy: Ela fez a pergunta à senhora, por favor.

[sobreposição de vozes]

Alda Marco Antônio: Isso não é verdade. Ela conheceu a Febem o quê? Há quanto tempo? Eu a convido para ir ver a Febem agora.

Jorge Escosteguy: Ela telefonou hoje, posso lhe garantir isso.

Alda Marco Antônio: Pois é. [risos]

Dácio Nitrini: Agora em Lins houve uma reação muito grande ao fechamento da Febem, parece que houve até disputa judicial, porque as famílias não queriam receber os menores de volta.

Alda Marco Antônio: Então vamos por parte. Ribeirão Preto está fechada, não será reaberta. Era pior do que a Febem de São Paulo, nos áureos tempos da ditadura. Um local de repressão, construído para repressão e não tinha nenhuma possibilidade de continuar. Está fechada, vai continuar como um bem, eu considero um bem nós termos conseguido fechar a Febem de Ribeirão Preto. Com relação a Lins, ela não tratava e não trata até hoje, de infratores. Ela trata de abandonados, e nós tínhamos lá a seguinte situação: duzentas e poucas crianças internadas e 109 crianças em semi-internato. Foi fechado o semi-internato e será fechado o internato. Nós estamos convictos, nós temos certeza absoluta de que esses grandes internatos são um mal em si. Ainda que muito bem administrados, eles quebram algo muito importante do ser humano, que é a individualidade. Não dá para criar ser humano, sobretudo criança e adolescente, num local em que vivem duzentos ou trezentos. O que é isso, meu Deus! Quebra a dimensão do ser humano. O ser humano nasceu para viver numa casa, no máximo com dez, com 15. E nós vamos conseguir fechar todos os grandes internatos. Fechamos o semi-internato de Lins, já nos entendemos com as autoridades locais, com o senhor prefeito, com o presidente da Câmara Municipal, com vários vereadores. Inclusive recebemos em meu gabinete vários representantes da imprensa local que entenderam a nossa posição. Também existe a possibilidade de aquela fazenda enorme que tem lá, e que cuidava de pouco mais de trezentas crianças, passar a cuidar, sob a administração dos poderes municipais, de mais de três mil crianças, fazendo inclusive a otimização daqueles recursos, mas de três mil crianças em liberdade, porque olha o que acontecia. Perto de duzentos meninos ou 150 que estavam internados lá, oitenta são da cidade de São Paulo. E que tipo de menino? Menino que se perdeu do pai na rodoviária e nunca mais encontrou, simplesmente meninos perdidos, que indo para lá, para o interior do estado, nunca mais tem chance de reencontrar a sua família. Nós estamos trazendo esses meninos de volta, vamos procurar as suas famílias, e vamos procurar fazer a reaproximação. Agora Lins está com uma oportunidade única na mão. A cidade de Lins, a sociedade de Lins poderá dar um exemplo ao Brasil, ganhando uma fazenda enorme com muitos recursos e montar lá um programa modelar, um programa na área da complementação escolar, mas não para 109 crianças, como tinha lá. Para três mil, porque é uma fazendona.

[sobreposição de vozes]

Jorge Escosteguy: Secretária, só um minutinho, por favor. Lins, além de ter uma grande oportunidade, parece ter um grande problema, um grave problema. Ligou uma telespectadora aqui, deixando o telefone, depois eu passo para a senhora, dizendo que tem um grave problema na Febem de Lins, que vai lhe transmitir por telefone.

Alda Marco Antônio: Ela podia transmitir ao vivo, não é? Já que é grave.

Jorge Escosteguy: Não, ela só disse que tem um grave problema, deu o telefone.

Percival de Souza: Eu queria aproveitar a sequência ...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Desculpe, só mais um minutinho, Percival. Só mais uma pergunta de telespectador em relação ao tratamento dos menores. O Ítalo Beloni, aqui de São Paulo e o Valdeon Diniz, também de São Paulo. Eles falam sobre o trabalho de recolhimento do menor à noite. Mas os dois viram uma reportagem na TVS – se eu não me engano – mostrando os menores sendo recolhidos e cheirando cola ao serem recolhidos. Então eles perguntam como é que fica esse controle? Ou seja, se permitem que os menores cheirem cola ao serem recolhidos?

Alda Marco Antônio: Olha, para a gente trabalhar com essa criança de rua, a gente não pode se apavorar, porque senão você não trabalha com ela. Nosso trabalho se chama educação em meio aberto, então ele é feito por educadores. Esses educadores vão para as ruas, antes de abordar a criança, ele tem que entender qual é a dinâmica da rua: onde essas crianças se agrupam, onde elas se escondem, onde elas dormem, onde elas comem, onde elas cheiram cola; quem é o adulto que a explora, mas que também em determinados momentos a protege. E é preciso entender a situação em que essa criança está. Se você aborda uma criança pela primeira vez e se horroriza porque ela está cheirando cola, ela jamais vai deixar que você se aproxime e tenha amizade com ela. Então nas nossas casas – eles já sabem – nos albergues, nas casas abertas, nos clubes, não entra cola, não entra produto do furto, não entram armas, existem essas regras. Provavelmente as crianças deixaram a cola em algum local para entrar no ônibus que as recolhe e que as leva para o albergue. No entanto um educador de rua não pode se horrorizar quando vê uma criança cheirando cola, porque senão ele não vai conseguir ajudá-la.

Jorge Escosteguy: E com isso está respondida a pergunta da Ana Cláudia, aqui de São Paulo, que queria saber os critérios, ou como deve ser o educador de rua.

Percival de Souza: Secretária, eu queria saber o seguinte, acho que muita gente quer saber isso também. Hoje, considerando-se a sua filosofia de trabalho, o que se faz exatamente com o menor infrator, autor de crimes que preocupam mais a sociedade: homicídio, roubo a mão armada, tráfico de drogas. Esse menor, esse adolescente internado, o que se faz com ele hoje, na Febem?

Alda Marco Antônio: Bom, quando ele é pego, é pego pela polícia. A polícia passa com ele pelo distrito mais próximo, faz-se um boletim de ocorrência, encaminha-se até o SOS criança, que funciona todos os dias do ano, 24 horas por dia. Ele é colocado à disposição do curador de menores e da autoridade judiciária, o juiz de menores. É o juiz que vai analisar a o seu caso e vai determinar, com certeza, nesses casos tipificados como você falou, determinar a internação. E hoje o local que nós temos para internação é o famoso quadrilátero do Tatuapé, que já abrigou mais de cinco mil crianças e jovens, e hoje tem 850 internos. O que nós estamos fazendo hoje com essas crianças é tentando combater o ócio. Quando nós entramos na Febem no ano passado, exatamente, há um ano, essas crianças ficavam, esses jovens ficavam absolutamente ociosos o dia inteiro. A atividade era a alimentação, e o banho nem era todo dia. Hoje nós reabrimos as oficinas de trabalho, nós estamos plantando horta e estamos criando uma série de programas na área cultural e esportiva, para dar mais opções.  O que nós gostaríamos era, aí sim, de cumprir o estatuto nesta fase, nós ainda não estamos conseguindo. O estatuto prevê que as unidades devam ser pequenas, de vinte, trinta vagas no máximo, para que você possa substituir a repressão pela educação, para que você possa preparar esse jovem para que ele, ao sair do internato, saiba no mínimo ler, escrever e contar, ou seja, esteja alfabetizado, para que ele aprenda na área laboral, um tipo de profissão, um tipo de trabalho, que permita a ele procurar um emprego quando sair de lá. E também que ele esteja psicologicamente apto, que ele passe por uma avaliação, e que a volta dele à sociedade possa ser produtiva para ele e para a sociedade. Então o que nós estamos fazendo hoje, Percival, é procurar educar, substituir a repressão pela educação.

Marcelo Parada: Secretária, eu queria retomar uma questão que foi abordada pela senhora, que eu acho que deixa de alguma maneira – a quem vê este programa – um pouco intranqüilo. Que é ver que a relação entre duas secretarias, no caso a da senhora, que é a do menor e da Segurança Pública, não vai lá às mil maravilhas. Até por um ...

Alda Marco Antônio: [interrompendo] Não é verdade. Se a população está pensando isso, está pensando errado. A nossa relação é muito boa.

Marcelo Parada: Mas enfim. Quer dizer, eu não sei se, até pelas questões específicas, por atribuições específicas de cada uma delas, há esse chamado embate que a senhora disse, entre educadores, às vezes, e...

Alda Marco Antônio: [interrompendo] Às vezes, nem sempre.

Marcelo Parada: ... entre policiais militares. Quer dizer, a secretaria desempenha um grande papel, inclusive, de alertar, de orientar e de educar a sociedade. Eu queria saber se a senhora já pensou, ou desenvolve, ou pensa em desenvolver algum trabalho de orientação para dentro do governo? Quer dizer, não seria importante, então, colocar esses PMs, ou...

Alda Marco Antônio: [interrompendo] Eu tenho um exemplo muito bonito para dar.

Marcelo Parada: Por exemplo, ontem na Folha de S.Paulo, Dom Luciano [Pedro Mendes de Almeida, presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) de 1987 a 1994], que fez um trabalho belíssimo na Zona Leste, nessa área de menores, chamava a atenção que no Rio de Janeiro, os quartéis de corpo de bombeiros estão sendo usados agora na época do frio para recolhimento de menores etc. Será que não seria o caso de abrir os quartéis aí para os menores dormirem à noite.

Alda Marco Antônio: Eu tenho um exemplo muito bonito.

Maurício Stycer: [interrompendo] Deixe eu acrescentar uma coisa, secretária? A senhora disse que o orçamento destina 0,2% para a sua pasta, ou é 2%?

Alda Marco Antônio: 0,2%.

Maurício Stycer: É uma prioridade do governo uma secretaria que recebe 0,2% do orçamento, ainda que a senhora alegue que tenha custos baixos?

Alda Marco Antônio: É prioridade, e eu acho que estou fazendo um excelente trabalho, tanto que estamos reconhecidos e estamos conseguindo ajudar outros países, treinando educadores.

Maurício Stycer: Quantos por cento do orçamento a Secretaria de Segurança recebe?

Alda Marco Antônio: Não sei, mas vou lhe dizer, vou lhe responder com precisão dando um exemplo muito bonito...

Maurício Stycer: 10%, o Percival está dizendo.

Alda Marco Antônio: 10%? Chegaremos lá.

Marcelo Parada: A senhora é uma otimista, hein, secretária?

Alda Marco Antônio: Sou! E se não fosse, não teria chegado onde estou. Sou e acho que tenho que ser, porque tenho nas minhas mãos um resultado muito positivo de um trabalho que eu considero muito bom. Vou lhe dizer exatamente em cima da sua pergunta. Exemplificando, nossos educadores, que são quase todos, mulheres, tiveram problemas com a polícia na zona da Faria Lima, na zona de Pinheiros, porque elas trabalham com essa população e foram confundidas com vadias por policiais. O que nós fizemos? Pedimos, fizemos um entendimento com o comandante da área, com o delegado da área, fomos ao Conseg, temos usado muito os conselhos de segurança, que têm nos dado uma abertura muito boa. Fiz uma palestra, não só para policiais civis e militares da região, como também para comerciantes que se reuniram ali no Conselho de Segurança. Olha, mudou! Mudou da água para o vinho. O relacionamento dos nossos educadores com os policiais na área de Pinheiros é maravilhoso. Eles se protegem mutuamente.

Marcelo Parada: Mas isso é uma política da secretaria? Quer dizer, esse é um plano permanente ou esse foi um ato isolado diante de um problema?

Alda Marco Antônio: A Secretaria do Menor tem como plano permanente mudar mentalidade, seja de quem for, seja de um indivíduo, seja da polícia, seja do farmacêutico, seja de quem for. Nós temos essa política permanente, porque eu entendo que a nossa maior tarefa é mudar mentalidade. Não adianta implantar um CIEP bonitão aí, lindão, um predião cheio de concreto, se não mudar a mentalidade de quem vai dar aula lá dentro, se não mudar a mentalidade do vizinho dele, porque senão vai lá roubar, vai lá quebrar. Quer que eu lhe diga uma coisa, nós trabalhamos com circo. Você quer coisa mais vulnerável do que o circo, é uma lona. Sabe qual que foi roubado, dos nossos circos? Nenhum! Nunca! Porque a população protege essas escolas, protege os nossos educadores, porque a relação é uma relação muito saudável, porque eles vêem aquilo como algo muito bom. Então essa é uma questão sistemática para nós.

Mônica Teixeira: Agora nesses quatro anos, doutora Alda, a senhora conseguiu de alguma forma mudar a mentalidade do policial militar e do policial civil, na relação com a criança, efetivamente?

Alda Marco Antônio: Olha, Mônica, se a criança é vítima, eles são ótimos! Eles são grandes parceiros, eles ficam, tanto quanto eu, indignados, com uma criança seviciada, com uma criança violentada, e são grandes parceiros. Quando a criança é infratora, existe essa dificuldade. É uma coisa dicotômica.

Mônica Teixeira: Mas não há muita criança que é vista como infratora sem absolutamente ser? Que é tratada pela polícia como infratora, sem absolutamente ser? A senhora fala muito em infração, em indústria de exploração, não sei o quê, mas não me parece que a senhora está botando num saco só uma quantidade muito grande de crianças, onde a ligação com a infração é graduada, não é tão completa assim, tão profunda assim?

Alda Marco Antônio: Olha, Mônica, da experiência que nós temos, isso de fato se passa, mas não é só com a polícia não, se passa com a sociedade, com o cara da esquina, com o jornaleiro, com o farmacêutico, com todo mundo. O problema é muito maior. Nós temos que lutar por uma mudança de mentalidade geral. Os policiais são frutos dessa sociedade.

Mônica Teixeira: Então, mas nesses quatro anos, a senhora conseguiu mudar a mentalidade? Porque a senhora está falando que a principal tarefa da Secretaria do Menor é mudar a mentalidade. A senhora acha que nesses quatro anos, resultou o seu trabalho?

Alda Marco Antônio: Sem dúvida! Por onde nós passamos, sem dúvida. Mudanças radicais. Vizinhos, que no começo rejeitaram as nossas casas, hoje são grandes colaboradores; promovem festas, festinhas para as crianças que moram do lado, entendeu? Houve de fato uma grande mudança. Nós estamos alugando casas nos bairros, com muito mais facilidade, perdeu-se o medo. O que eu acho, e aconteceu um milagre, uma coisa bonita com vocês, com os jornalistas, vocês sim, responderam assim, perfeitamente, quem é que chama hoje criança de rua – entre vocês aqui – de “trombadinha”? Ninguém! Ninguém tem coragem hoje, nenhum jornalista tem coragem de redigir uma matéria e chamar uma criança de rua de trombadinha. Isso é uma mobilidade social e isso foi um grande avanço. Eu acho que nós temos uma colaboração nesse trabalho, é uma coisa bonita, é lindo. Porque eu recordo, eu tenho matérias de jornais de 1987, esta cidade de São Paulo tem uma grande dívida com criança de rua, uma criança de rua morreu espancada na rua por um cidadão. Essa é uma chaga vergonhosa que nós não vamos conseguir apagar nunca mais, e na época em que eu assumi a Secretaria do Menor, Mônica, as reportagens eram terríveis, páginas inteiras: era o trombadinha que tomou correntinha, relógio, prisão, morte de criança espancada na rua. Hoje o panorama é outro. Pelo amor de Deus! [com ênfase] A mudança foi muito grande.

Marcelo Parada: Não tem mais trombadinha?

Alda Marco Antônio: Olha, eu diria que tem muito mais trombadão. [risos]

Marcelo Parada: Mas tem muito trombadinha, também.

Alda Marco Antônio: Tem muito mais trombadão.

Jacob Pinheiro Goldberg: Eu acho que grande parte da discussão, ou pelo menos uma parte da discussão desembocou em algo que me dá a impressão de ser desafiante e promissor – não sei qual é a sua opinião. Nessa mudança de mentalidade, nas últimas décadas, se verificaram algumas revoluções, não é? Da mulher, do negro, do índio, do homossexual. Quer dizer, nada daquilo que correspondesse a uma utopia, mas existia uma dinâmica nessa direção. Você vê alguma possibilidade de que isso aconteça também com a criança e com o adolescente nos próximos anos? Ela se transformando também em sujeito da sua história, da sua transformação? Eis que ela não é um adulto imbecilizado ou débil mental. Ela não é menor pela condição dela, meramente; ela não tem que ser só um objeto do paternalismo, da sociedade, não é?

Alda Marco Antônio: É verdade! Eu acho que as condições estão dadas para isso, Jacob. A sociedade que nós construímos, que todos construíram, não serve mais para ninguém. Você tocou aí em pontos importantíssimos, a ecologia... é sobrevivência. Nós estamos premidos pela nossa própria sobrevivência. A questão das minorias culturais, dos negros, das mulheres, dos homossexuais e das crianças. Nós vamos ter que olhar para dentro de nós mesmos e vamos ter que perguntar que sociedade nós queremos. É esta sociedade que maltrata os pobres, que mata os pobres de fome e que seqüestra os ricos para tomar o dinheiro deles? O que é isso, que obriga o pessoal da classe média a construir grades imensas e a criar feras dentro de casa, cães que matam pessoas! Esta é a sociedade que nós queremos? Não é, não pode ser, não pode ser. Tem que haver uma saída. E eu sou ecologista, sabe Jacob, então eu sei que quando a Inglaterra se desesperou e se descabelou, porque estava acabando o carvalho, não se podia mais construir navios, não tinha madeira mais, se descobriu o ferro, se descobriu o aço. Quando acabava a lenha, não tinha mais como criar energia a partir do carvão, o mundo estava desesperado, ia viver na escuridão, se descobriu o petróleo. E nós estamos num desses momentos limite: a fumaça está nos sufocando, os rios brasileiros, tão grandes, estão morrendo, porque os garimpeiros estão sujando, contaminando esses rios com mercúrio. Puxa vida! Ou nós somos seres humanos ou nós somos ratos. Nós vamos ter que dar uma virada nisso aqui. E a virada é pela educação, a virada é pela criança, a virada é pelo respeito humano.

Jorge Escosteguy: Secretária, a senhora falou há pouco em mudança de mentalidade, há três telespectadores que tocam na seguinte questão. Ricardo Andrade pergunta: “Se a situação está tão precária, porque a Secretaria do Menor não faz uma campanha pelo controle da natalidade”? O José Belmiro, de Santo Amaro, acha que a sociedade não tem mais condições de suportar este peso nos ombros, com as pessoas que têm cada vez mais filhos. E a Maria Lúcia, da Vila Mariana, pergunta como fica o planejamento familiar nessa cidade, simplesmente?

Alda Marco Antônio: Bom, eu sou feminista, feminista assumida, feminista organizada, e há quase vinte anos, eu luto com as minhas companheiras pelo direito ao conhecimento do próprio corpo. Enquanto as mulheres não conhecerem o seu próprio corpo, como funciona, como funciona a questão da maternidade, não adianta. Só se vier um programa altamente totalitário, autoritário, como houve na China. O que nós queremos é que nos postos de saúde públicos, para as mulheres das classes populares, para as mulheres pobres, tenha lá um ginecologista que possa dizer a ela como é que se evita filho, como é que ela pode ter filho quando quiser ter, ou evitar os filhos quando quiser evitar, que ela não queira ter. Então é uma questão para mim intimamente ligada à questão da mulher, à questão da saúde pública que é negada a nós, mulheres. Porque quando nós vamos lá no posto de saúde, o médico que está lá, pode ser um ortopedista, pode ser um pediatra, pode ser quem for, que atende também a mulher. Então essa questão do controle da natalidade para mim é uma questão muito simples, é uma questão do direito que a mulher tem a conhecer o seu próprio corpo e controlar o seu ciclo reprodutivo.

Jorge Escosteguy: Uma outra questão também polêmica é sobre a emancipação do menor que comete crime, tipo assassinato, estupro, violência etc. A pergunta é do Ivaldo Ramos, de São Bernardo do Campo. Eu me lembro que quando se discutia a questão, por exemplo, de dar direito de voto aos 16 anos, as pessoas que eram contra dar o direito de voto ao menor de 16 anos, uma dessas pessoas, se não me engano, foi o ex quase secretário Guilherme Afif Domingues. Ele dizia que abrir a possibilidade de o menor ter o direito de votar aos 16 anos era abrir a possibilidade de ele também ter o dever de não cometer crimes e, portanto, ser criminalizado a partir dos 16 anos. Então o Ivaldo Ramos quer saber a sua opinião sobre isso, se é o caso ou não de emancipação do menor, com menos de 18 anos, em caso de crimes graves.

Alda Marco Antônio: Tem pessoas que defendem o rebaixamento da idade para a criminalização, a responsabilização, porque se diz por aí, que o menor é inimputável. De fato é. Porém essas pessoas não sabem que com ele, a lei é muito mais severa do que com um adulto. Quando o menor de idade comete um crime, ele recebe uma pena sem julgamento, ele vai direto para a prisão, não tem conversa. Hoje, [em casos de] crime de morte, estupro, tráfico de drogas, assalto a mão armada, [o menor] vai para a cadeia, que é a Febem, não tem outro nome, vai para a cadeia sem julgamento. E o maior que pode matar e se defender em liberdade e, às vezes, nem vai preso? Então essa questão para mim é muito simples. Eu gostaria que o menor de idade no Brasil já nascesse emancipado e que já tivesse o respeito que se dá aos maiores de idade.

Jorge Escosteguy: Nosso tempo está terminando, o Percival tem uma pergunta, curta, por favor.

Percival de Souza: Eu queria saber o que a senhora pensa da adoção, e considerando-se que crianças na Europa, hoje, que sejam brancas e de olhos claros estão com a cotação de vinte mil dólares, desde que saiam do Brasil.

Alda Marco Antônio: Credo, é? Eu sou a favor da adoção. Claro que eu sou a favor da adoção. Eu acho um ato de desprendimento, um ato de amor, quando ele é sincero. Eu acho que uma mulher estéril, um homem estéril, tem o direito de ter filho e muitas crianças abandonadas têm o direito a ter uma família. Então eu só posso ser a favor da adoção nacional, a favor da adoção internacional, desde que ela seja acompanhada por autoridades idôneas, por autoridades responsáveis. O que eu não posso aceitar é o tráfico de crianças, eu não posso aceitar casos como nós vimos em Fortaleza, onde bandos traficavam bebês. Por quê? Ninguém sabe. Qual o destino dessas crianças? Nós vimos também que no Rio de Janeiro, foi descoberto um apartamento com 25 crianças, e que iam para o Uruguai e de lá para outros países. Isso eu não posso aceitar. Criança não é mercadoria, criança é um ser humano muito complexo, está numa situação especial de crescimento, que precisa de uma proteção muito séria, precisa de vários tipos de proteção. Então eu não posso aceitar que criança seja mercadoria, seja comercializada, e a adoção seja paga, por exemplo. Eu só entendo a adoção como um ato de amor.

Jorge Escosteguy: Secretária, uma última pergunta feita pela Mônica Sanches, aqui de São Paulo. Ela está assistindo ao programa e acha que a senhora responde as perguntas como se estivesse em campanha política. Então ela pergunta se a senhora pretende se candidatar a algum cargo tipo prefeitura de São Paulo? [risos]

Alda Marco Antônio: Olha, eu não estou em campanha, ela não deve me conhecer, esta ênfase é natural da minha pessoa, mas me considero apta a ser. Se o meu partido me escolher, contará com uma candidata com este entusiasmo que ela viu aqui no programa.

Jorge Escosteguy: Muito bem. Nós agradecemos então a presença esta noite aqui no Roda Viva da secretária do Menor do estado de São Paulo, Alda Marco Antônio. Agradecemos também aos companheiros que ajudaram a fazer a entrevista, aos telespectadores, lembrando que as perguntas que não foram feitas ao vivo serão entregues após o programa à secretária.

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