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Memória Roda Viva

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Francisco de Oliveira

1/12/2003

Um dos fundadores do PT, o sociólogo critica os rumos do início do governo Lula e, pessimista, explica seu ensaio em que adota o ornitorrinco como uma metáfora do Brasil

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[programa ao vivo]

Paulo Markun: Boa noite. Ele é um dos principais teóricos do pensamento de esquerda no Brasil e um dos mais críticos também. Fundador do PT, chegou a interpretar a eleição de Lula como a refundação do Brasil, mas suas críticas se voltaram contra o governo de Lula e se voltam também contra os economistas que defendem a influência do pensamento dominante e contra tudo o que impede a sociedade brasileira de se livrar dos seus velhos impasses. O Roda Viva entrevista esta noite o sociólogo Francisco de Oliveira, que tem falado da necessidade de uma nova e melhor interpretação da economia e para quem o Brasil parece mesmo um ornitorrinco.

[inserção de vídeo]

Narração Valéria Grillo: Visto assim [imagens de um ornitorrinco], ele é um bichinho simpático e chega a ter uma certa graça, mas o ornitorrinco é estranho: é um mamífero que bota ovo, um intermediário primitivo entre o mamífero e a ave na escala da evolução, um animal que não parece uma coisa nem outra, não é isso, nem aquilo. Por isso, o ornitorrinco é a metáfora usada por Francisco de Oliveira para traduzir o Brasil de hoje, um país também que não é isso, nem aquilo, não vai para frente nem para trás na escala do desenvolvimento, perde-se entre a riqueza e a miséria na contradição de ser uma importante economia mundial e de estar na lista dos países mais desiguais do mundo. Na semana passada, Francisco de Oliveira participou, na Universidade de São Paulo, do debate “O ornitorrinco latino-americano”, uma análise sobre o Brasil, Cuba, Argentina e Venezuela, que também marcou o lançamento do segundo número da revista Margem esquerda e de mais dois livros dele. Aos 70 anos de idade, esse pernambucano de Recife, com formação em sociologia e economia, tem uma longa história acadêmica: trabalhava na Sudene nos anos 60 com Celso Furtado quando veio o golpe militar, e precisou exilar-se na Guatemala e depois no México. De volta ao Brasil, trabalhou no Cebrap, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, de 1970 a 1995. Foi também professor de economia na PUC de São Paulo e professor titular de sociologia da Universidade de São Paulo, onde se aposentou. Fundador histórico do Partido dos Trabalhadores, Francisco de Oliveira tornou-se referência entre a intelectualidade petista e um dos mais atuantes pensadores do partido. Mas ultimamente se fez um dos mais duros críticos da atual política econômica e social. Abriu o verbo contra alguns integrantes do governo, provocando reações também duras de antigos companheiros, como José Dirceu, chefe da Casa Civil da Presidência. Autor de vasta obra, onde analisa a estrutura social brasileira e a falta de uma interseção melhor entre política, economia e sociedade, o sociólogo pernambucano reaparece com dois novos livros: A navegação venturosa, uma reunião de ensaios sobre o economista Celso Furtado, e Crítica à razão dualista, obra escrita em 73 e reeditada agora com o ensaio “O ornitorrinco”, a metáfora que melhor traduz o Brasil na visão de Chico de Oliveira.

[fim do vídeo]

Paulo Markun: Para entrevistar o sociólogo Chico de Oliveira, nós convidamos Luiz Antonio Novaes, diretor executivo do jornal O Globo; Leda Paulani, professora de economia da FEA, Faculdade de Economia e Administração, da Universidade de São Paulo; Fernando de Barros e Silva, editor-chefe do caderno Brasil do jornal Folha de S.Paulo; Mauro Chaves, editorialista e articulista do jornal O Estado de S. Paulo; Luiz Guilherme Piva, economista, cientista político e assessor econômico da Funcef, Fundação dos Economiários Federais; e Paulo Arantes, professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. O Roda Viva, você sabe, é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e para Brasília também. Boa noite, Chico de Oliveira.

Francisco de Oliveira: Boa noite, Paulo.

Paulo Markun: Eu queria que você começasse explicando um pouco mais, em detalhe, por que o Brasil é um ornitorrinco. A gente já mostrou um pouco na matéria as características do animal, mas eu queria que o senhor explicasse as características da sociedade.

Francisco de Oliveira: É fácil de descrever as características da sociedade, quer dizer, nós temos um dos piores índices de desigualdade do mundo, e ao mesmo tempo não somos mais um país subdesenvolvido; temos uma subordinação financeira ao sistema internacional que repercute no fato de que o setor financeiro da economia brasileira é desproporcionalmente grande, o que indica uma extremada concentração de riqueza. Se nos faltassem outros indicadores, bastaria esse para mostrar o grau de desigualdade na sociedade brasileira. Um contingente de indigentes e mesmo de miseráveis enorme em proporção à população brasileira, quer dizer, um país que fez tudo da Segunda Revolução Industrial, mas que não tem capacidade de fazer a terceira, de empreender a Terceira Revolução Industrial. Em resumo, é um país completamente capitalista, do ponto de vista de que não há mais fronteiras de expansão, como havia no passado, e ele se encontra agora nessa situação de não poder fazer a Terceira Revolução Industrial.

Paulo Markun: Mas o raciocínio da opinião publica, da mídia, da sociedade e dos governos, seja o governo Fernando Henrique, ou o governo Lula, ou governo Collor, era sempre que isso é um processo, nós estamos aqui, mas daqui a pouco vamos estar um pouco mais para frente e, de repente, chegaremos a uma situação econômica de maior desenvolvimento, vai diminuir a desigualdade. O senhor acha que isso não vai acontecer?

Francisco de Oliveira: Olha, isso já aconteceu. O problema brasileiro não é falta de crescimento. As estatísticas que o IBGE acaba de publicar mostram algo que os estudos de história econômica já sabiam, isto é, o Brasil foi o segundo país de maior taxa sustentada do século de crescimento econômico. E com isso se produziu uma sociedade extremamente desigual. Então, as esperanças de que retomada de crescimento reduz as iniqüidades da sociedade brasileira são esperanças apenas, não há nada na história brasileira que comprove essa esperança. Ao contrário, tendo sido o segundo país de maior taxa de crescimento, produzimos essa sociedade. O século XX brasileiro, além dos outros séculos para trás, não autoriza nenhum otimismo. Otimista no Brasil é um pessimista mal informado.

Fernando de Barros e Silva: Eu queria fazer pergunta de jornalista, saber se você já abandonou as fichas na aposta de que este governo possa deixar o Brasil melhor do que ele é hoje. Porque a perspectiva do seu ensaio é aquilo que nós nos tornamos e não aquilo que nós podemos ser, é um ensaio muito desesperançado. O ornitorrinco mais ou menos reúne... a gente até pode discutir o conteúdo dele [do artigo], que é muito interessante, tem a proposta de que há uma nova classe social no Brasil etc. Agora, a sua reflexão é essa: nós nos tornamos esse bicho esdrúxulo e eu não estou vendo mais saída para a sociedade brasileira. Numa entrevista que o senhor deu à Folha de S.Paulo, [o senhor] falava que talvez a gente tenha que repensar a noção de progresso novamente. Então, eu queria que o senhor aprofundasse um pouco essa perspectiva isolada, digamos assim.

Leda Paulani: Posso emendar? No mesmo sentido, mas com outra área, vamos dizer assim. “O ornitorrinco” já foi visto como um manifesto de fundação de uma nova esquerda, em um dos debates de que a gente participou por aí; mas por outro lado você, a despeito de tudo, ainda é PT, você ainda faz a crítica do governo PT enquanto alguém que fundou o partido etc. Então, eu lhe pergunto: a gente pode ver o ornitorrinco como um manifesto de fundação de uma nova esquerda ou o resgate do PT é possível, depois desse um ano?

Francisco de Oliveira: Não, não é um manifesto de fundação de uma nova esquerda, eu não tenho essa pretensão. A minha pretensão é ajudar a pensar uma nova esquerda. Essa que está aí é velha e anacrônica; ela persiste nessa idéia, tipicamente uma idéia que o século XX não confirmou. Então, combinando a sua questão com a do Fernando, a minha posição é a seguinte: não se trata do fato de que não vai haver mais crescimento, o que está dito ali é que esse crescimento será intermitente, não pode ser sustentado internamente, porque a Terceira Revolução Industrial jogou a capacidade de acumulação para um nível muito além da capacidade interna da economia brasileira e de qualquer economia periférica. Há uma descartabilidade técnico-científica enorme que faz com que você tenha que correr eternamente atrás do prejuízo. Então, vai haver crescimento, mas são surtos que não são sustentados.

Luiz Guilherme Piva: Bom, a gente se conheceu na época em que eu estava CUT, trabalhando sobre câmaras setoriais, e hoje estou no fundo de pensão, no ramo da Funcef, e eu queria falar sobre o ornitorrinco mais adiante. Eu quero falar um pouco sobre isso que a Leda disse, sobre a posição à esquerda, primeiro ressaltando que os seus alvos de críticas atualmente são posturas dos fundos de pensões, e eu acho que o que os fundos de pensões fizeram no passado é justificadamente criticado assim. Mas com a mudança da legislação de uns anos para cá, do papel dos conselhos e, principalmente, dos novos gestores, eu acho que esse tipo de erro tem que ser revisto. De toda forma, você tem uma trajetória intelectual sempre à esquerda democrática, mas saudavelmente distante do esquerdismo. Você seria – isso dentro e fora do PT – algo como um social-democrata puro, vamos dizer assim, no que se tem de base operária da experiência européia, dos mecanismos de gestão compartilhada, dos recursos públicos, no seu trabalho intelectual dos anos 70, na defesa das alianças e na defesa das câmaras setoriais que eu mencionei agora. E agora você nos surpreende com a crítica esquerdista, não ao partido ou à política econômica que é criticável em [...], mas uma crítica esquerdista aos poucos institutos, vamos dizer, socialdemocratas que temos, que é gestão compartilhada de recursos como o do FAT [Fundo de Amparo ao Trabalhador], ou dos fundos de pensão e de recursos que um dia você chamou de anti-valor, chamou positivamente de fundos públicos que compartilham o excedente. E as pessoas que criticavam as câmaras setoriais, chamando isso de rendição à lógica do capital, mais ou menos falavam o que você está falando agora do FAT e dos fundos, que estão atendendo à lógica do capital, o investimento patrimonial do capital. Por que esse esquerdismo tardio?

Francisco de Oliveira: Não é tardio. O meu esquerdismo é desde criancinha, só que eu nunca fui tolo, isto é, eu nunca pertenci às fileiras daqueles que pensavam a revolução nos termos clássicos. A minha crítica vai no seguinte sentido: o problema do reformismo é que ele não existe mais. O problema dos partidos reformistas é que eles não são reformistas. O problema da social-democracia é que ela deixou de ser reformista. Então, você compara a minha crítica numa e noutra conjuntura; eu estudei isso do ponto de vista do Estado de bem-estar e sempre fui francamente favorável a isso; nunca me assustou aquilo que a esquerda condenava taxativamente, não é? Social-democracia, para a esquerda, era o social-fascismo dos anos 10 e 20. Eu nunca pensei assim, aliás, dediquei-me na França a tentar mergulhar para saber o que era, o que tinha sido a social-democracia. Qual é a minha diferença? A diferença é que, na forma como os fundos estão funcionando, eles são corporativistas, quer dizer, falta o terceiro olhar, que é o olhar da sociedade. Os fundos foram constituídos como? Os fundos são uma criação da ditadura. Todos os principais, salvo o Previ [Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil], que vem anterior... uma instituição que os funcionários do Banco do Brasil criaram já há muito tempo, todos os outros são criação da ditadura. Foram criações da ditadura com dois objetivos: o primeiro, o de cooptar a franja mais elevada do funcionalismo das grandes estatais; e o segundo, exatamente de constituir fundos de acumulação, fundos compulsórios de poupança.

Luiz Guilherme Piva: Por isso que hoje tem uma gestão compartilhada: os trabalhadores comandam os conselhos deliberativos, fiscal e definem a política de investimento.

Francisco de Oliveira: Mas falta a sociedade.

Mauro Chaves: Professor Francisco, o senhor mencionou agora a ditadura, e o senhor tem dito que esse governo é um governo autoritário. O senhor, como petista histórico...

Francisco de Oliveira: [interrompendo] Não, eu não disse que esse é um governo autoritário...

Mauro Chaves: [interrompendo] Eu ouvi em entrevistas, o tema autoritário...

Francisco de Oliveira: [Disse que] há personalidades autoritárias nesse governo.

Mauro Chaves: Tudo bem, mas veja o seguinte: o senhor, como petista histórico, o senhor sempre foi uma liderança intelectual do PT, eu queria entender realmente a partir de quando, quando e como, quando o PT mudou? Esse processo evidentemente não foi [...] nas eleições. O senhor não acha que isso foi simplesmente um estelionato eleitoral ou algo desse tipo, o senhor não vai achar isso. Então, eu queria saber como começou essa mudança, qual foi a grande mudança e por que, porque o senhor tem dado realmente diagnósticos da situação. Eu queria saber o seguinte: será que o senhor acha que esses quadros não estavam preparados, os quadros do PT? O senhor acha que o presidente Lula, apesar de todo o carisma, não teria condições de orquestrar esse governo? O que o senhor acha dos ministros? Eu gostaria de ver na sua crítica o que está realmente errado e como começou esse grande desvio que o senhor detecta nas suas críticas?

Francisco de Oliveira: Não faço críticas a ministros, nem críticas de caráter pessoal. Isso é uma questão que deve ser esclarecida desde logo, porque...

Mauro Chaves: [interrompendo] Mas o senhor fez, o senhor foi contundente, inclusive o senhor...

Francisco de Oliveira: Exatamente por isso, a sua pergunta me suscita a seguinte questão: eu posso até ter sido infeliz ao referir-me ao ministro José Dirceu, eu não sou infalível, estou disposto a aceitar quando erro. Minha crítica ao ministro José Dirceu é política, isto é...

Mauro Chaves: [interrompendo] Mas é isso que me interessa.

Francisco de Oliveira: É isso que interessa. Portanto, eu vou lhe dizer...

Mauro Chaves: Eu acho, inclusive, que a crítica pessoal desvia...

Francisco de Oliveira: Eu não faço crítica pessoal. A minha crítica é política no sentido de que estive no Colégio Sion [em São Paulo, local onde o PT foi legalmente fundado, em 10 de fevereiro de 1980]; eu voto no PT desde 1982; eu votei no ministro Dirceu para presidente do partido; eu votei dessa vez outra vez no presidente Luiz Inácio Lula da Silva e eu não teria votado se eles tivessem dito que iam fazer o programa que estão fazendo. Portanto, eu tenho direito de cobrar do ministro José Dirceu, do presidente Lula e de todos os outros ministros...

Mauro Chaves: [interrompendo] O problema econômico, professor? O senhor fala só do programa econômico ou, por exemplo...

Francisco de Oliveira: Não, falo de tudo, falo de tudo.

Mauro Chaves: ...Justiça, meio ambiente, tudo?

Francisco de Oliveira: Não, não estou falando de Justiça, meio ambiente. Estou dizendo que eu, como eleitor, e acho que milhões de eleitores, não teria votado se soubesse que esse governo iria fazer a reforma da Previdência que fez, a reforma tributária que está fazendo, a política econômica que realiza. Então, eu tenho o direito de, como eleitor e como cidadão, exigir do governo que faça o programa com o qual ele pediu o voto dos brasileiros, inclusive o meu.

Luiz Antonio Novaes: Professor, ainda em relação ao quando o senhor chegou a essas conclusões, o seu texto do ornitorrinco é de julho de 2003, e eu imagino que o senhor não tenha chegado a essa conclusão única e exclusivamente em decorrência dos atos que o governo tomou em seis, cinco ou quatro meses, não sei exatamente, quer dizer, aí é um processo, não é? A pergunta é: quando o senhor chegou à conclusão de que, com esse grupo que chegou ao poder, foi, na realidade, junto uma nova classe? Quando o senhor chegou à conclusão de que esse grupo constitui uma nova classe, como o senhor fala?

Francisco de Oliveira: Não é esse grupo que constitui uma nova classe. O PT, como o PSDB, estão banhados na emergência do que eu chamo “a nova classe social”, que tem reparos teóricos, é um conceito impreciso. Diz o meu poeta favorito, que não é um dos grandes poetas brasileiros, que “o que espanta é o novo”, o velho não espanta ninguém, mas tudo que é novo assombra, e é indefinido, é impreciso. O que eu estou tentando dizer? Estou tentando dizer que na confluência de privatizações, desregulações, neoliberalismo sobre uma economia periférica, como a brasileira, criou-se uma nova classe social, que é essa que gestiona a articulação entre o fundo público e a acumulação privada. Aí estão os principais atores do PSDB, que politicamente se chamam PSDB e PT. Podem nem ser do partido, portanto não é questão de quando chegou.

Mauro Chaves: Eu queria só esclarecer uma coisa: essa expressão “nova classe”, o senhor está usando naquele sentido de gírias, no sentido de nomenclatura, é nesse sentido que o senhor usa?

Francisco de Oliveira: Sim, também.

Mauro Chaves: Quer dizer, pessoas que se aproveitam do poder...

Francisco de Oliveira: Não são pessoas, a classe não são pessoas.

Mauro Chaves: Grupo dirigente?

Francisco de Oliveira: Não, nem grupo dirigente. “Pessoas”, na interpretação marxista clássica, são uma função no sistema econômico, que é o que eles exercem.

Mauro Chaves: Mas existem como pessoas.

Francisco de Oliveira: Um lugar e um papel; as pessoas passam.

Paulo Arantes: Têm acesso a um fundo público...

Francisco de Oliveira: Tem acesso a um fundo público.

Paulo Arantes: ...que é indispensável para a acumulação neste país.

Francisco de Oliveira: Para a acumulação privada.

Paulo Arantes: Portanto, têm um papel político central.

Francisco de Oliveira: É isso que é.

Paulo Arantes: Mas deixe eu falar. Já vi que quem não interrompe não fala. Eu gostaria de voltar um pouquinho atrás, já que você já está começando a entrar no diapasão da ira justificada, [quero] voltar atrás para a instrução dos telespectadores e dizer que nós estamos diante de um dos grandes intérpretes da sociedade brasileira, que faz parte daquilo que se chama tradição crítica brasileira, que começa nos anos 30 e culmina, entre outros, no grande mestre do Chico de Oliveira, o Celso Furtado, contra o qual ele comete uma heresia: ele diz que a idéia de subdesenvolvimento e de superação do subdesenvolvimento é uma coisa passada. Eu gostaria que você, Chico, dissesse o seguinte: antes de nós entrarmos na querela, na polêmica sensacionalista de jornal, quem disse o quê, contra quem, então o que põe no lugar, você tem uma nova intuição da sociedade brasileira, e essa nova intuição da sociedade brasileira como uma coisa já formada, já completada, que, portanto, não vai mais se constituir como uma sociedade nacional, como nós imaginávamos no passado, é que norteia o seu diagnóstico drástico e a sua contraposição. Então, [gostaria que você] falasse um pouco dessa intuição da sociedade brasileira que você tem, comparada com os clássicos, Celso, Caio Prado e assim por diante, Sérgio Buarque [de Hollanda (1902-1982), historiador brasileiro, autor de Raízes do Brasil (1936)]. Você chega a dizer: “o que nós assistimos é o teatro de uma sociedade derrotada e essa sociedade derrotada pede remédios políticos drásticos”. Explique mais, situe-se nesse universo, senão as pessoas apenas imaginam que você é apenas um ressentido ou um esquerdista que gosta de xingar ministro, e que é um destemperado.

Francisco de Oliveira: Eu nem gosto de xingar ministro; não tenho nada contra ministro.

Paulo Arantes: E, enfim, nós estamos presenciando, possivelmente, uma reformulação da esquerda no Brasil e um repensamento radical do que é a sociedade brasileira na pessoa de um dos últimos representantes de uma tradição crítica que pensava o contrário, se contrapunham, inclusive, àqueles que achavam que nós éramos uma sociedade errada no desvio. Esse era o pensamento de direita, e portanto tínhamos que modernizar e ocidentalizar. E você diz: não, nós somos um monstrengo, daí o ornitorrinco, mas isso não é um desvio, isso é o rumo.

Francisco de Oliveira: Não, isso não é um desvio.

Paulo Arantes: Fale um pouco sobre isso.

Francisco de Oliveira: Isso daí foi um produto, de novo apelando ao IBGE, do segundo mais intenso crescimento capitalista do século, do século que foi de 1870, provavelmente, a 1970, o Brasil foi a segunda economia de maior crescimento do mundo. Portanto, não é mais o subdesenvolvimento, por quê? Porque subdesenvolvimento supunha uma espécie de mundo em que havia uma porta; qual era essa porta? Essa porta eram os setores e as fronteiras ainda não exploradas, ainda não submetidas à lógica do capital. Ainda não imersas dentro de uma reprodução, de uma acumulação nitidamente capitalista. Essa era a porta. A expansão da fronteira agrícola, por exemplo, um estilo de acumulação primitiva que incorporava gente, terra e meios de fatores de produção no processo. Esperava-se – essa era a suposição dos que teorizavam o subdesenvolvimento – que essa possibilidade de fronteira fosse incorporando e corrigindo as distorções da desigualdade do crescimento. O que eu estou dizendo é que essa porta fechou-se, por quê? Porque não há nenhum reduto da sociedade brasileira, nem territorial, nem setorial, nem espacial, nenhum mais, que já não esteja submetido à lógica da reprodução do sistema. Não há mais essa possibilidade; aí o sistema se retroalimenta dentro do que ele já formou.

Paulo Arantes: Posso acrescentar mais uma coisa? Além de você dizer que é uma sociedade derrotada – você poderia explicar um pouco mais –, você diz também outras coisas: que o Brasil atualmente é uma sociedade sem forma. Sendo uma sociedade sem forma, você tem uma explicação para isso, não há mais uma conexão linear entre interesses, classes sociais, partidos e representação política, de modo que quem pretende deter a chave desse mistério e explicar em termos clássicos, não está explicando nada, não está entendendo nada. Daí a barafunda em que nós estamos metidos. Ninguém sabe quem está aliado a quem, quem está representando o quê.

Mauro Chaves: O senhor permite, professor, eu gostaria de complementar, não sei, talvez esclarecer um pouco a posição nossa. Eu acho que este é um programa jornalístico, e nós não estamos aqui em um debate acadêmico, e eu acho que é muito importante que o telespectador e a população em geral saibam de posições, que o senhor tem assumido posições políticas. Eu acho importante a sua posição crítica. Então, que o senhor esclareça... eu confesso que eu não fui esclarecido ainda em que o senhor discorda fundamentalmente desse governo e a partir de quando, como o colega também perguntou. A partir de quando o senhor começou a discordar? O que os que estão no poder agora, com os quais o senhor lutou durante muito tempo, finalmente depois de um grande esforço chegaram ao poder... Muito bem, o senhor, com uma contundência muito grande, critica esse governo, e eu gostaria de saber o seguinte: o que está realmente errado? Quando começou esse desvio? Então, eu acho isso talvez mais interessante para se explicar, para a população entender, do que talvez, com todo o respeito com a conversa teórica, mas eu acho que é talvez importante o senhor esclarecer esse lado jornalístico.

Luiz Guilherme Piva: O pessoal está querendo transformá-lo em líder da oposição.

Francisco de Oliveira: É, ele quer me transformar. Se eu for capaz de, em termos jornalísticos, responder à questão do professor Paulo Arantes, eu presto melhor serviço do que ficar atacando o governo, atacando pessoas e grupos. Não é meu interesse, não estou nessa; a minha preocupação fundamental é entender o novo modo de ser do capitalismo na periferia.

Mauro Chaves: Eu não estou pedindo para o senhor atacar ninguém, apenas que o senhor esclareça quais são as suas divergências com relação a esse governo, não é atacar.

Francisco de Oliveira: Se eu for esclarecer as divergências com esse governo ao senhor, eu não saio deste programa.

Luiz Antonio Novaes: Mas, professor, um ponto chave da sua argumentação...

Francisco de Oliveira: Eu queria estabelecer quais são os pontos de discordância de uma interpretação da sociedade brasileira. Isso que governo erre, acerte, é comum, eu também erraria se estivesse lá, por que não? Quem é infalível? A questão é outra, a questão é desvendar...

Luiz Antonio Novaes: [interrompendo] Ah, sim, mas quando o senhor fala em núcleo duro do governo, nós não estamos necessariamente entendendo que o senhor esteja se referindo a pessoas, embora elas sejam pessoas. O senhor está caracterizando um grupo que atua com determinação, interesse...

Francisco de Oliveira: O núcleo duro tem sido uma denominação dada pela imprensa em geral a um grupo, às pessoas centrais do governo.

Luiz Antonio Novaes: Que mandam.

Francisco de Oliveira: Não é isso que caracteriza a classe.

[sobreposição de vozes]

Paulo Markun: Eu só queria fazer uma observação, desculpe, eu vou ter que usar o meu papel de mediador aqui e esclarecer. Este programa existe há 18 anos, ele é um sucesso há 18 anos por duas regras básicas: a primeira é que nós não temos nenhum preconceito, nem nenhum tipo de intenção de trazer pessoas aqui para atacar, defender, falar mal, falar bem de A, B ou C. Vêm pessoas de todas as tendências, de todas as opiniões; isso não tem nada a ver especificamente com o Chico de Oliveira, que está presente aqui. A segunda é que nós nunca estabelecemos – nem o mediador estabelece, que seria a única pessoa que teria a responsabilidade de fazer isso – qual é a linha de perguntas que será feita. Isso não é feito anteriormente, todo mundo aqui sabe disso. Portanto, eu assisto com interesse a essa polêmica que está se estabelecendo entre os entrevistadores, mas eu queria lembrar que nós estamos em um programa de entrevistas e que a nossa função é fazer perguntas para que o entrevistado responda. Se ele quiser responder ou não, é problema dele, nós podemos até ficar insatisfeitos e achar que a resposta não foi suficiente. Agora, conduzir o programa é a responsabilidade do mediador e ele deixa livremente que o debate se estabeleça porque essa é a regra do programa, não é porque eu estou aqui dormindo. Então, eu só queria lembrar, porque senão daqui a pouco vai virar um programa que vai ser uma polêmica sobre como conduzir o Roda Viva, e isso não vai acontecer. Por favor.

Francisco de Oliveira: Muito obrigado.

Fernando de Barros e Silva: Essa intuição a que o professor Paulo Arantes se referiu, eu queria saber se o rumo que o governo Lula tomou nesse primeiro ano, que acho que define o mandato, precipitou essa sua intuição. Porque eu queria saber sobre o papel da política... Já que você faz uma análise de grande escopo, que pega os países do tipo do Brasil, industrializados, mas que convivem com uma desigualdade social extrema etc, o ornitorrinco, você está falando que nós somos incapazes de acompanhar a terceira revolução tecnológica; você está falando de grandes processos, de coisas estruturais. Qual é o espaço da política na sua análise? Eu queria saber se essa sua intuição, essa tentativa de análise que você está formulando se precipitou pelo desgosto que você teve com o que você viu na condução da política econômica do governo Lula.

Francisco de Oliveira: Acho que sim, acho que você tocou em um ponto que é importante, e eu estou tratando de processos de longo fôlego, mas para mim a política não é indiferente, se fosse eu não votaria, se fosse eu não teria participado de fundação do PT, de ter passado esses anos todos fazendo um papel... Os que me conhecem sabem, eu vou de norte a sul, a todos os cantos, faço conferências, debato, quer dizer, eu faço um esforço que é, ao mesmo tempo, de militância e de tentativa de entender o que está se passando, por quê? Porque eu acredito na política, senão... Então, para mim, acho que você tocou em um ponto que é interessante, quer dizer, eu diria que o governo Lula de fato precipitou esse momento em que a ficha caiu definitivamente, a condução da política precipitou.

Fernando de Barros e Silva: Em uma entrevista à Folha, você dizia que o Lula poderia ser um momento de refundação do Brasil, e relendo essa entrevista, que foi dada no calor da eleição, tem uma carga emotiva etc, [mas] dois dias depois da eleição – acho que foi dada no dia seguinte e publicada dois dias depois –, você já fazia muitas críticas ao que poderia ser a condução, você já previa que a condução da política econômica ia ser conservadora, como você fala, “Eles não vão poder fazer marola, as pessoas que estão esperando grandes mudanças vão se frustrar”, está na entrevista. Então você já tinha uma intuição. Agora, você ao mesmo tempo dizia que o Lula poderia ser o momento de refundação do Brasil, comparável – [você] usou – comparável à Revolução de 30, à Abolição [da escravidão no Brasil, em 13 de maio de 1888] e a grandes momentos da história brasileira. Enfim, parece que tem uma curva no seu pensamento, uma curva que vai dessa expectativa, que já está cheia de ressalvas, à crítica aberta e à falta de...

Leda Paulani: Eu só queria lembrar que, nessa mesma entrevista, o Chico disse o seguinte: que a crítica tinha que continuar, o papel crítico dos intelectuais tinha que estar sempre alerta, porque era preciso impedir – isso também você disse nessa entrevista – que a direita avançasse sobre a conquista popular que a vitória do Lula representava. Então, para completar, se de um lado ele já tinha essa intuição de que não seria fácil fazer as reformas no stricto sensu de esquerda etc, mas o papel crítico do intelectual tinha que estar presente para impedir que a direita avançasse sobre a conquista popular que foi a vitória do Lula.

Fernando de Barros e Silva: Avançou, Chico, a direita avançou?

Leda Paulani: Exatamente, é isso que eu queria saber.

Fernando de Barros e Silva: Curto e grosso, pergunta de jornalista.

Francisco de Oliveira: Avançou.

Leda Paulani: A direita avançou?

Francisco de Oliveira: Avançou, tanto que eu estou pensando em um processo e essa entrevista exatamente diz isso. Portanto, não é a questão das pessoas, mas porque acho que a política é uma das formas inventadas para que a sociedade não seja uma mera reprodução automática da economia, é pela política que a gente entra. Mas observando esse processo, que eu já venho estudando há alguns anos, não é de agora, eu antecipava certas ressalvas, chamando a atenção para o fato de que os quatro, os três grandes momentos de fundação e refundação da história brasileira são pontos de não retorno, mas tiveram desenvolvimento conservador. Classicamente, dos momentos, você não volta para trás, ninguém restaurou o trabalho escravo, mas a conseqüência da Abolição ou, digamos, o desenvolvimento pós-Abolição frustra, é conservador. Eu apontava esse risco, o que eu chamei a quarta refundação do Brasil, não de forma leviana, mas observando o comportamento da própria economia e da sociedade brasileira e as indicações dadas do que seria o governo Lula, entre as quais ressalta a “Carta ao povo brasileiro” [documento assinado por Lula em julho de 2002. Nele, ao mesmo tempo em que afirma a necessidade de mudanças no país, assume uma série de compromissos sociais, econômicos e políticos, entre eles o respeito a contratos já firmados e o pagamento de débitos externos]. Ali, se a ficha não caiu para todos, deveria ter caído. Ali era claramente um momento de inflexão para uma agenda conservadora.

Paulo Markun: Vou juntar aqui algumas perguntas de telespectadores que eu acho que, na verdade, giram em torno da mesma direção. Marcos, que manda sua pergunta pela internet, diz o seguinte: “Esse seu pessimismo é reflexo das sucessivas desilusões eleitorais, é um pessimismo realista que vê uma possível mudança com o atual processo de tomada de consciência da sociedade ou é um pessimismo sem perspectiva positiva futura?”. Lucas Hoffman, aqui de São Paulo, pergunta: “O que o senhor acha dos radicais do PT? Eles podem formar a base de uma reformulação da esquerda brasileira?”. Sérgio Souza Torres, de Ipanema, no Rio de Janeiro, administrador, pergunta se na sua opinião um movimento como o do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra] poderá transformar o ornitorrinco em um cisne [risos]. Carla Domeni, de Mogi das Cruzes, pergunta: “Qual seria a receita política para matar ou curar o ornitorrinco?”. Quer dizer, em resumo, se existe alguma perspectiva, porque já que o senhor tem esse claro compromisso da militância política, quer dizer, a consciência de que a militância política é importante, a participação política, senão não seria do PT etc e tal, e que tem uma realidade que não lhe agrada e provavelmente também não deve agradar a sociedade brasileira como um todo, supostamente, senão o pessoal da classe, como é que se sai dessa, se é que se sai?

Francisco de Oliveira: Eu vou religar sua pergunta com a questão que o Paulo Arantes formulou. O que tem de diferente hoje? Eu estudei em “Crítica à razão dualista”, que eu republico junto agora com “O ornitorrinco”, o tratamento da questão do trabalho. Então, aparece lá o que a literatura, uma literatura influenciada pela OIT [Organização Internacional do Trabalho] começou a chamar de trabalho informal. O que é o trabalho informal no subdesenvolvimento? Ele é uma forma de acumulação primitiva, isto é, é a forma de substituir capital ali onde não tem, não tinha capital. Então, o que espantava os críticos dos anos 50, 60, 70, inchação das cidades, a mim não me espantava, [visto que] essa é a forma que o sistema periférico usa para usar o seu principal recurso e crescer, não é? Qual é a diferença da informalidade do mundo capitalista de hoje? É que eu dizia: nos anos 50, você tinha uma informalidade que era um problema de falta de capital, você substituía capital por força de trabalho. Qual é o problema da informalidade de hoje? É que ela existe por excesso de capital. Então, o que está quebrando aí? O que está quebrando aí é um tema que é central na reflexão sociológica e da economia política já há algum tempo, que é a questão do trabalho formal: que lugar tem o trabalho formal nessa sociedade? E eu digo, baseado em toda uma tradição da sociologia do trabalho, que o lugar do trabalho formal nessa sociedade, numa sociedade periférica, está comprometido. Daí que as formas anteriores da política, que repousavam muito sobre essa articulação: trabalho, classes, interesses, sindicatos, partidos, quebrou-se; daí que essa forma da política não responde mais, é preciso inventar outra.

Paulo Markun: O MST, por exemplo, não é a forma tradicional.

Francisco de Oliveira: O MST não é a forma tradicional, daí o relativo sucesso do MST em articular a sua proposta, a sua ação. Mas se o MST visa, no fundo, voltar às formas de desenvolvimento tradicionais, o equívoco vai aparecer rapidamente.

Luiz Guilherme Piva: Eu quero voltar à idéia do ornitorrinco, que eu pelo menos leio na sua formulação muito mais como se referindo a essa conformação da associação de classes que se acomoda no Estado, que se instala no Estado, do que a descrição da sociedade que você faz muito melhor...

Francisco de Oliveira: [...] uma discussão da sociedade.

Luiz Guilherme Piva: [...], mas aí que eu acho que é o problema da minha diferença, porque eu tenho alguns problemas com o seu conceito; eu acho que você perdeu o conteúdo...

Francisco de Oliveira: Não é o conceito, Piva...

Luiz Guilherme Piva: Eu acho que você perdeu o conteúdo em nome da piada. Você teve o achado do ornitorrinco, e aí o conceito eu acho que apresenta alguns problemas. Primeiro, é que eu vejo no conceito do ornitorrinco...

Francisco de Oliveira: Não é um conceito, Piva.

Luiz Guilherme Piva: Uma imagem, uma metáfora.

Francisco de Oliveira: É uma tentativa...

Luiz Guilherme Piva: Uma metáfora do ornitorrinco.

Francisco de Oliveira: É preciso sair dessa coisa...

Luiz Guilherme Piva: Eu acho que ela fica muito...

Francisco de Oliveira: ...de que você só faz uma coisa quando o conceito está pronto.

Luiz Guilherme Piva: Então, ela padece do mesmo erro, por exemplo, daquela obsessão do [cientista político brasileiro] Raimundo Faoro [1925-2003] com o “estamento”, que é o conluio que explica, que sufoca tudo e impede a conscientização de todos, impede a realização das sociedades. Segundo, ao fazer isso você despolitiza a sociedade, porque você passa a atribuir as precariedades todas a esse ente a-histórico, as precariedades deixam de ser responsabilidade da dinâmica econômica, política e social que você tão bem, tão brilhantemente identificou na “Crítica à razão dualista”, e passa a ser fruto de um conluio de classe a-histórico que sufoca tudo, desconscientiza...

Francisco de Oliveira: Quem disse isso?

Luiz Guilherme Piva: ...cria o trabalho informal. Na entrevista à Folha, você fala que esse conluio de classe cria uma massa despolitizada e que precisa de um...

Francisco de Oliveira: Primeiro, eu não falei de um conluio de classe...

Luiz Guilherme Piva: ...de um apóstolo para...

Francisco de Oliveira: ...eu não trabalho com essa noção de conluio de classe.

Luiz Guilherme Piva: Uma associação de classe dos gestores de fundos do PT com os tucanos.

Francisco de Oliveira: Não falei de associação, eu falei de uma classe com duas metades, duas partes da mesma laranja, não falei nem de conluio e não estou despolitizando. O que eu não vou fazer é repolitizar nos velhos termos, porque não dá, não dá mais.

Luiz Guilherme Piva: Sim, eu concordo.

Francisco de Oliveira: Você não pode pensar uma sociedade que é dirigida pela centralidade do trabalho com uma sociedade que tem 60% de informais.

Luiz Guilherme Piva: Mas imaginar que essa associação de interesses de gestores com banqueiros cria o trabalho informal, que despolitiza, desconscientiza, que vai precisar [...] novos apóstolos para conscientizar...

Francisco de Oliveira: Quem despolitiza é o trabalho informal, não é o conceito.

Luiz Guilherme Piva: Eu acho meio complicado...

Francisco de Oliveira: Primeiro, isso não é um conceito; você está me dando uma honorabilidade que eu não tenho. Eu não estou querendo conceito; isso, meu amigo – se é que ele ainda se considera [meu amigo] – José Arthur Giannotti sempre me cobrou: “Cadê o conceito?”. Eu não tenho conceito.

Luiz Guilherme Piva: Pois é, eu ia falar, o meu terceiro problema é esse. Quando você fala dessa nova “classe”, ou seja, considerar que algumas dezenas de gestores ou uma centena é uma nova classe, por um marxista de boa cepa como você, precisa de algumas explicações... É diferente do anti-valor. Quando o Giannotti ficou incomodado e ficou lhe perguntando sobre anti-valor, você se encheu e falou: “Se você não gostou do meu conceito, invente um para você, porque esse aqui é meu e eu sei do que se trata”. Classe não é bem assim; [o conceito de] classe está mais ou menos bem assentado do que se trata. Como marxista, inventar classe assim...

Francisco de Oliveira: Não está assentado, essa é a questão. Se nós ficamos assentados em cima desse conceito e não tentamos retrabalhá-lo com o material da sociedade capitalista empírica, a gente não faz nada. Eu estou usando, arrisco a dizer... eu não tenho por que, eu não estou defendendo aqui a minha indicação ao prêmio Nobel. Então, pas question [fora de questão], eu estou usando armas de uma tradição teórica para tentar destrinchar esse fenômeno que eu não sei direito...

Fernando de Barros e Silva: Nesse nexo, acho que valeria a pena tentar explicar melhor, porque você diz: os sindicalistas que se transformaram em gestores de fundos de pensão, e esses são os petistas; os economistas...

Paulo Markun: [interrompendo] Os intelectuais que viraram banqueiros.

Fernando de Barros e Silva: Os intelectuais que viraram banqueiros. Por que eles são uma classe? Eles não detêm os meios de produção, mas tampouco são meros trabalhadores; eles se transformaram numa outra coisa, e gerem os fundos públicos.

Francisco de Oliveira: Eles estão no ponto de interseção entre os fundos públicos, que são os mais potentes na economia brasileira... você tem o FAT, que financia a acumulação de capital através do BNDES, [que] é a principal fonte de capital de longo prazo, e você tem os fundos de pensão que estão mais na circulação de capitais propriamente do que na acumulação de capital, embora alguns façam também essa função. É aí que eles se constituem como classe, e classe não é o número de indivíduos. Como número de indivíduos, são relativamente poucos. Classe é o que dá a direção do processo. E eles dão a direção do processo.

Luiz Antonio Novaes: [interrompendo] Mas, professor, onde acontece a ligação dessa classe – que a gente consegue identificar na sociedade, não há problema nenhum – com um grupo de poder, a ponto de se dizer que ela é a classe dominante politicamente, vamos dizer assim, do país hoje? Onde está a junção? Eu vejo a classe, mas por que é ela a classe dominante hoje, politicamente falando?

Francisco de Oliveira: Eu não disse que ela é a classe dominante, você que está botando na minha boca o que eu não falei.

Paulo Markun: Mas no livro o senhor disse...

Francisco de Oliveira: Não.

Paulo Markun: O senhor disse com todas as letras que – eu vou citar, eu vou ler aqui – “São dois lados simétricos dessa nova classe: de um lado o grupo do PSDB e do outro, o do PT. O núcleo formulador das políticas de Fernando Henrique veio da PUC-Rio, templo do neoliberalismo, e o núcleo formulador das políticas do governo Lula, veio da escola da Fundação Getúlio Vargas”, por onde passou o ministro Guido Mantega, os ministros [Luiz] Gushiken e [Ricardo] Berzoini, onde o [Antonio] Palocci estudou, onde o Celso Daniel estudou. Quer dizer, o senhor menciona, e esse parágrafo é... não se trata de interesse mórbido de jornalistas no sentido de fazer acusações, mas é porque o senhor nominou especificamente, como se esses dois...

Francisco de Oliveira: Aliás, eu nunca penso que jornalista tem interesse mórbido – viu, Paulo?

Paulo Markun: Não, às vezes têm [quando] vêem um alvo para vender notícia...

Francisco de Oliveira: Têm [interesses] mórbidos como eu tenho também.

Paulo Markun: Mas o senhor nominou dois núcleos de pensamento.

Francisco de Oliveira: Nominei, e nominei para ajudar, quer dizer, na verdade esse artigo é um grito de socorro. Eu quero ser ajudado nessa questão. Eu tomo o que me parece relevante para exemplificar e ajudar a dar corpo a isso, que parece algo imaterial.

Paulo Markun: Mas, voltando à pergunta, existe um otimismo no fim das contas, quer dizer, se resolve esse problema ou estamos fadados a ser submetidos a essa realidade?

Francisco de Oliveira: Não, não se resolve, não se resolve.

Paulo Arantes: Chico, posso interferir um pouquinho? Quem sabe toda essa perplexidade é porque a gente está... você usa palavras, digamos, de um outro ciclo histórico.

Francisco de Oliveira: É.

Paulo Arantes: Como “classe” e assim por diante. Se nós reformulássemos da seguinte maneira, inclusive para ser mais otimista, já que os telespectadores estão um pouco chateados.

Leda Paulani: Incomodados.

Paulo Arantes: Incomodados, perplexos com o caráter sombrio das suas análises. Digamos assim, todo mundo falou em transição civilizada entre o fim do segundo turno e... Vamos tomar ao pé da letra: transição civilizada. Digamos que a elite dirigente – há algum problema com [o termo] elite, elite dirigente, que intelectual da USP e banqueiros formam parte da elite dirigente do Brasil? Não. Digamos que a elite dirigente, nessa transição civilizada – e em certo sentido ela foi civilizada, porque se há alguma coisa que a eleição do Lula representou, em termos de desbarbarização desse monstrengo que é o Brasil, é o fato de que um ex-líder sindical, um operário seja presidente da República, e que isso não tenha provocado sublevações nos Jardins, assassinatos, linchamentos e assim por diante. Isso é um ganho, é um ganho para a civilização brasileira, convenhamos, eu topo isso. Então, essa elite, na transição civilizada, essa elite, digamos assim, organizada do país, conectada com o resto do mundo, desfrutando, portanto, dessa conexão e do seu papel privilegiado aqui dentro, como classe dominante – aí no sentido mais tradicional –, se abriu um pouquinho e deu lugar para que, digamos assim, os porcos magros entrassem e tomassem assento junto com os porcos gordos, de modo que se formou um novo bloco do país organizado, que um jornalista chamou de andar superior, e assim por diante, andar de cima. O andar de cima tem um novo cômodo, e lá se alojou um novo grupo, um novo estamento, uma nova elite. Você cita mesmo [o termo de] Robert Reich, um novo tipo de analista simbólico; o nosso amigo Fernando Haddad poderia chamar de agentes da inovação, e assim por diante. São aqueles, como você diz, aqueles que detêm a medida – que é arbitrária em certo sentido ad hoc ao capital, que é o acesso aos fundos, de modo que houve, portanto, uma transição civilizada no sentido de... onde é que se viu isso? Claro que se viu um pouco na Europa, se viu a entrada do bloco dominante, dessa cúpula sindical que foi, digamos, a culminação do Partido dos Trabalhadores, com uma diferença, aí entra a periferia. Você faz a diferença. Isso aconteceu há meio século na Europa. Só que lá houve luta de classe no sentido antigo, arrancaram-se direitos, e assim por diante, aqui não. Aqui, quando esse bloco entra... “então nós vamos nos tornar europeus”, esse bloco entra para desfazer uma coisa que ele não construiu. Essa é a novidade, quer dizer, a grande novidade do começo deste milênio. Bom, aí já começamos a entender a singularidade que você está tentando descrever e que nós estamos querendo puxar para trás com conceitos antigos, estou certo?

Francisco de Oliveira: Acho que sim.

Paulo Arantes: Eu o li bem?

Francisco de Oliveira: Freqüentemente você me interpreta melhor do que eu mesmo.

Mauro Chaves: E não construiu nada? Quer dizer, é isso que você quer dizer? Desfazendo o que não construiu...

Paulo Arantes: Exatamente.

Mauro Chaves: E sem construir nada no lugar?

Paulo Arantes: Exatamente. Isto é, quando a social-democracia francesa, espanhola, italiana destroem o Welfare State [Estado de bem estas social], eles fizeram, eles destroem com a mão direita o que eles fizeram com a mão esquerda. [Mas] aqui estão destruindo com a mão direita o que eles não fizeram com a mão esquerda.

Francisco de Oliveira: Nós não fizemos.

Paulo Markun: Quer dizer, não havia uma pergunta. Por favor, Leda.

Leda Paulani: Eu acho que nessa definição, talvez o tema mais controvertido do seu ornitorrinco seja realmente essa tal nova classe que, enfim, recebe críticas de um lado e elogios do outro etc, mas eu acho que tem um ponto que une essa nova classe também, que não é só o lugar de pontos diferentes estarem ligados com os fundos públicos. Esse é o lugar e daí a possibilidade de definir como classe. Mas fora isso, eu acho que tem uma coisa da linguagem, e essa linguagem é idêntica, tanto do gestor do fundo de pensão, quanto do analista de mercado de uma financeira que é ligada ao grupo Safra, ou qualquer grande grupo financeiro, é rigorosamente a mesma linguagem [Francisco de Oliveira gesticula, concordando]. Eu acho que isso passa por aquilo que você chama de enquadramento da vontade política pelos rigores da nova forma capital. Essa nova forma capital, até onde eu entendo, é a forma financeira da valorização que domina, e um dos mecanismos mais importantes de transferência, inclusive de propriedade, da esfera produtiva para uma esfera que vai ser gerida com a lógica financeira, que é de curto prazo, que é rentista etc. E são justamente os fundos de pensão, que assumem proporções gigantescas e passam a ser donos de parcelas substantivas do capital produtivo, não é? Então, eu acho que isso é o que torna igual a linguagem, quer dizer, essa lógica financeira invade também o lado produtivo pelo lado da propriedade e invade também pelo lado dos rendimentos através da dívida pública, e isso aí é outro caminho.

Mauro Chaves: Eu queria entender só uma coisa, inclusive pela observação dela, para eu entender melhor: a diferença dessa nova classe... qual é a diferença fundamental entre essas duas novas classes? Porque isso já existia: o fundo já existia, isso já era gerido de alguma forma, não era? Eu queria saber qual é a grande novidade.

Leda Paulani: [Mas] não tinha a dimensão que tem hoje.

Mauro Chaves: Então, é em termos puramente quantitativos? O que eu não consigo entender muito é essa grande diferença do governo atual, o governo Lula... é como se houvesse...

Francisco de Oliveira: [interrompendo] Mas é que você está centrando no governo Lula, e eu estou fazendo uma análise de um processo que desenvolve...

Mauro Chaves: [interrompendo] Mas eu acho que tem cabimento... o senhor tem feito críticas ao sistema que...

Francisco de Oliveira: Eu estou dizendo que o governo Lula revela... ele ajudou...

Mauro Chaves: Mas isso já não existia no governo Fernando Henrique, professor?

Francisco de Oliveira: Claro.

Mauro Chaves: Então, o que eu queria saber é qual a diferença, se houve alguma. Ela [Leda Paulani], por exemplo, levou para um caminho de que atualmente a coisa está mais exacerbada, existem fundos... Quer dizer, se resume a isso? A grande diferença é a administração de fundos de pensão?

Francisco de Oliveira: O senhor disse “se resume a isso”?

Mauro Chaves: É, porque, no fundo, qual é a diferença?

Francisco de Oliveira: Não é que se resume, quer dizer, o FAT é o principal financiador da acumulação de capital a longo prazo no Brasil.

Mauro Chaves: Mas já existe há muito tempo.

Francisco de Oliveira: Não, não existe há muito tempo, existe só desde 88.

Luiz Antonio Novaes: Mas, professor, se eles deixassem de ser corporativos, como o senhor já disse, o senhor voltaria a ser otimista? O senhor recuperaria alguma parcela de otimismo?

Francisco de Oliveira: Não, não me peça otimismo, porque otimista é o pessimista mal informado. Não é essa questão.

[sobreposição de vozes]

Paulo Markun: O senhor cita no seu livro dois exemplos de trabalho que me chamaram a atenção. Um, que eu pratico em casa, acho que todos os telespectadores que estão nos assistindo a essa altura do campeonato provavelmente praticam, que é entrar na internet e consultar a conta bancária, e portanto substituir o trabalho de um bancário, não é? Eu confesso que nunca havia passado pela minha cabeça que, naquele momento, eu estava fazendo algum tipo de trabalho sem ser remunerado por isso, e sempre para mim me pareceu que era uma enorme vantagem. A segunda é o casamento absolutamente fantástico entre o sistema de just in time das empresas que produzem refrigerantes e cervejas e os vendedores ambulantes que vendem cerveja e refrigerante na porta dos estádios, e que para o senhor são, na verdade, também farinha do mesmo saco, quer dizer, parte de um mesmo processo.

Francisco de Oliveira: Não chame assim [de senhor], fica muito formal, você é um velho conhecido.

Paulo Markun: Então está bom, é verdade. Para mim, às vezes, é difícil saber quando chamar de você. Mas, enfim, o que eu queria entender é isso. E finalmente, nesse ensaio, que no fundo está norteando a nossa conversa, há a avaliação de que haveria uma saída que seria um investimento maciço em ciência e tecnologia, em pesquisa, para se escapar disso e se fazer a terceira revolução, mas na sua visão isso é impossível, porque o dinheiro necessário para isso não existe. Quer dizer, mais uma vez são três fotografias...

Francisco de Oliveira: O sistema joga você para frente de uma maneira que você é obrigado a correr atrás do prejuízo e a ficar copiando o que vai ser descartável. Qual é uma das saídas? – apenas muito genérica, porque eu não tenho nem a capacidade, nem temos o tempo aqui para fazer isso – você precisa de uma fortíssima redistribuição de renda no Brasil. Isso, aliado a um pesado investimento em ciências e tecnologia, pode apontar uma saída.

Paulo Markun: E você acha que um governo que assumiu, como o governo Lula assumiu agora, teria condições políticas de realizar isso?

Francisco de Oliveira: Acho que teria.

Paulo Markun: Teria força para isso?

Francisco de Oliveira: Acho que teria. Essa é a questão exatamente que toca na questão da política, que o Fernando, o Piva e você [aponta um dos entrevistadores] tanto reclamam. Acho que teria. Aliás, me espanta que ele não tenha feito. Exatamente por isso, porque ele conta com beneplácito, pelo menos até provem o contrário, dessa nova classe, porque ao invés de fazer os fundos de pensão como estão sendo pensados, por que não pensar em um sistema que acople os fundos, acople a Previdência Social ao BNDES, por exemplo? Isso é só para que o telespectador não fique pensando que eu sou um pessimista irremissível.

Paulo Markun: Como assim?

Francisco de Oliveira: Por que não acoplar?

Paulo Markun: Como assim, como é que você acoplaria? Que sentido teria essa ligação?

Francisco de Oliveira: Todo mundo está pensando que você vai aumentar a taxa de poupança com os fundos de pensão, [mas] isso é para quem não leu Keynes, não é? Você não aumenta a poupança... a minha querida Leda é muito melhor do que eu nisso para dizer. A poupança de fato só aumenta quando você aumenta o investimento, quer dizer, ter caderneta de poupança e ir aumentando não significa aumentar a poupança. Como é que você faz isso? Uma reforma da Previdência seria ligar a própria previdência ao BNDES, e você faria um sistema em que o BNDES pagaria as aposentarias. No momento em que a taxa de lucro do BNDES não permitisse mais, o governo entra e paga a diferença. Isso é só uma coisa muito grosseira para dizer que quem está pensando que a existência de déficit – e este é um problema –, a existência de déficit significa déficit de fato não entendeu nada de economia. Aliás, se não houvesse déficit na Previdência, este país não funcionaria. Isso é uma bobagem elementar, quer dizer, isso é economia de contador, com o perdão dos contadores.

Paulo Markun: Pergunta de três telespectadores: Ayr Leper, de Petrópolis, Porto Alegre, que é ator, pergunta se você não acha que o programa Fome Zero não vai levar a nada. A pergunta já tem uma resposta. Luis Caldeiras, de Niterói, no Rio de Janeiro, economista, pergunta como você vê programa Fome Zero e também o fato de o Brasil ser importador de alimentos. E, finalmente, Bruno Madureira, de São Paulo, da Freguesia do Ó, estudante, “Qual é a sua opinião sobre o Fome Zero?”

Francisco de Oliveira: Bem, eu acho que compete a mim satisfazer um pouco esses telespectadores que prestigiam o programa. O Fome Zero para mim é o seguinte, vou dizer sem ambigüidades. Todos nós... eu, por duas razões muito fortes, eu não posso fazer críticas ao Fome Zero de forma leviana. A primeira razão é a minha formação cristã. Acho que isso é uma aquisição que muita gente também compartilha, e a minha formação cristã... eu não sou um homem religioso, não sei se feliz ou infelizmente, mas a minha formação cristã não me permite ver a questão da fome do alto de uma superioridade de quem não passa fome. Então, esse é o primeiro ponto. O segundo ponto é que a minha formação socialista também não me permite que eu não compartilhe da necessidade de atacar de frente a questão da fome no Brasil. Dito isso, para não pensarem que eu sou um cínico privilegiado, eu digo que o Fome Zero não atinge seus objetivos. Fome Zero, quem quer que tenha se dado ao trabalho de estudar o orçamento de uma família do sertão, ou para quem se dirige o Fome Zero, sabe que isso não move a economia, isso não cria empregos, isso não move... então, ele termina sendo um gesto, eu não diria inútil, nem inócuo, porque eu não acho que matar a fome de alguém seja inútil ou inócuo, mas ele não tem o condão transformador que se deposita nele.

Fernando de Barros e Silva: Mas você vê alguma diferença estrutural entre o Fome Zero, com seu slogan, e os programas de complementação de renda do segundo mandato do governo Fernando Henrique?

[...]: Ou do Banco Mundial.

Francisco de Oliveira: Não vejo nenhuma diferença. Esses programas são o que eu estou chamando de “funcionalização da miséria”, eles tornam a miséria suportável e funcional. Vejam bem o que ocorre hoje. No passado, o chamado exército industrial de reserva – isto é, os desempregados, para dizer de uma forma não pedante e não marxista, para não agredir os telespectadores –, no passado os desempregados tinham que se virar para estarem prontos de novo para entrar no mercado de trabalho quando o ciclo econômico os requisitasse, não é? Foi por aí que surgiu a seguridade social, quer dizer, numa questão de direitos que se colocavam contra os empregados, como gente que tem que passar fome quando um ciclo de negócios baixa. O que fazem as políticas de governo hoje? Fazem isso, elas sustentam contingentes de desempregados para que eles estejam à disposição quando o ciclo econômico voltar. O único erro lógico aí é que o ciclo econômico não vai voltar, isto é, não se criarão mais empregos na intensidade e velocidade que se criaram no período da industrialização da Segunda Revolução Industrial. Não se criarão mais, a não ser que a gente queira rodar para trás. O que obriga isso? Obriga que o governo tenha uma... o governo sim, o Estado, tenha uma forte política de redistribuição de renda. Ela é tão importante...

Paulo Markun: [interrompendo] Feita de que maneira? Feita com o quê, com que tipo de instrumento?

Francisco de Oliveira: Feita – o Piva lembrou – com a primeira condicionante, [que] é o crescimento; feita, em segundo lugar, com uma reformulação tributária poderosa, no sentido de transferir renda de fato. Ora, com o programa neoliberal, os dez anos do programa neoliberal, o que fizeram no Brasil? Transferiram renda, uma barbaridade, ao transferir a propriedade das grandes empresas estatais, o governo transferiu renda, capacidade de geração de renda para um setor da sociedade importante. Esse é um dos problemas da concentração de renda no Brasil. Você criou instrumentos para piorar a concentração de renda, em vez de melhorar. Aí, como você faz para desfazer isso? Você tem que fazer uma operação contrária, transferir renda dos muito ricos para os mais pobres, mas transferir de forma estrutural, transferir de forma estrutural. Transferir na forma do programa Fome Zero é que não resulta em transformação.

Luiz Guilherme Piva: Chico, só para completar o raciocínio, eu comecei, na minha primeira pergunta, a criticar o seu suposto esquerdismo tardio ao criticar esses institutos social-democratas do FAT, dos fundos de pensão, e você rebateu alegando o corporativismo e a falta da sociedade... Passamos aí pela discussão da poupança, investimentos, eu concordo com você, e a necessidade de crescimento econômico. Pergunta objetiva: está em discussão pelo menos os três maiores fundos de pensão, Previ, Petros [Fundação Petrobras de Seguridade Social] e Funcef estão discutindo [...] com o Ministério do Planejamento, com o BNDES, a possibilidade de serem parceiros em projetos e Parceria Público-Privada em empreendimentos de infra-estrutura no Brasil. Isso é uma opção acertada? Isso você vê com bons olhos? Isso é uma quebra do corporativismo e uma alavanca para o crescimento econômico?

Francisco de Oliveira: Pode ser uma alavanca para o crescimento econômico, mas não é ainda a quebra do corporativismo, porque isso roda num circuito em que só o governo e os cotistas dos fundos têm intervenção. Esses fundos são criados... por isso que eu não recuso o nome: eles são fundos públicos, eles não são privados. Nenhum sindicato... quer dizer, houve aqui, há muitos anos, uma vez em que, acho que sindicatos ligados à Força Sindical fizeram um sorteio de carros e apartamentos para um público enorme que acorria aos comícios. Os sindicatos podem fazer isso? Não, não podem. O dinheiro do sindicato é um fundo público, portanto ele não pode fazer isso. Assim como os fundos das estatais são fundos públicos, é lucro das estatais que é investido em nome dos cotistas. Portanto, ou a sociedade tem uma representação dentro desses fundos ou nós estamos dentro de um circuito corporativo...

Luiz Guilherme Piva: Abrir os conselhos, aumentar a representatividade dos conselhos?

Francisco de Oliveira: Introduzir o outro, aquele que está fora desse circuito, senão isso vira a nova classe. É disso que ela se alimenta. Em outras palavras, esses fundos podem ser um importante elemento de redistribuição de renda, mas na forma em que eles atuam, [na forma] em que eles são constituídos, eles não são, eles são elemento da concentração.

Luiz Antonio Novaes: O senhor também faz críticas a esses empréstimos recém-aprovados do governo para sindicalizados ou para sindicatos, mas em condições especiais para sindicalizados, juros especiais para sindicalizados. O senhor vê aí algum risco para o sindicato? Existiria nisso uma maneira de, vamos dizer, ligar o sindicato ao Estado? O senhor veria nisso também uma forma de fortalecer a nova classe, também estaria passando por aí?

Francisco de Oliveira: Veja bem, essa coisa é apresentada como uma novidade, [mas] para mim, que vim do Nordeste, de um estado que foi dominado durante quatro séculos - porque no quinto século eles já perderam pelo latifúndio da monocultura da cana-de-açúcar - isso não é nenhuma novidade, esse é o sistema que a gente chama no Nordeste de barracão.

Paulo Markun: Barracão. É o barracão financeiro?

Francisco de Oliveira: É o barracão financeiro, mas eu não quero ser tão pessimista assim. O que me surpreende num partido como o Partido dos Trabalhadores é pensar que a salvação do trabalho se dará pelo sistema financeiro, aí realmente não dá.

Paulo Markun: Agora, o que dava para fazer no começo do governo? Porque o senhor já tocou de leve, mas o argumento de quem defende as medidas que foram adotadas, que defende lá atrás a “Carta ao povo brasileiro”, tudo o que aconteceu de lá para cá, é o seguinte: nós recebemos uma herança maldita, recebemos um país com a taxa de risco-Brasil batendo em 2.500 [pontos], o dólar a quatro reais, a perspectiva de inflação em torno de 40%. Não havia nada a fazer a não ser retomar a estabilidade. Que você não concorde com isso, não temos a menor dúvida, mas a pergunta é a seguinte: daria para fazer outro tipo de iniciativa governamental? Que tipo de caminho se poderia buscar numa situação como a que o governo atual pegou no país?

Francisco de Oliveira: Olha, se a entrevistada fosse a professora Leda Paulani, ela lhe responderia melhor do que eu. Ela fez artigos em que mostram que essa coisa é falsa, [de] que nós estávamos à beira do precipício... além disso, havia projeções, uma das quais feita pelo João Sayad, que foi secretário de Finanças da Prefeitura [de São Paulo] até há alguns meses atrás, em que ele traçava exatamente o que ia acontecer: no mês tal, o dólar vai bater perto dos quatro reais, quer dizer, dava para você ter se armado dos instrumentos para resistir àquilo que era um movimento especulativo, não tinha fundamento nas contas reais. Como movimento especulativo, eu não quero ser o idiota da família, achar que está tudo bem, dar uma de Poliana [personagem principal de romance infanto-juvenil de Eleanor Porter, é uma menina extremamente otimista, capaz de ficar feliz até nos piores momentos], não, você só sabe... a Varig e a TAM treinam seus pilotos em simuladores no solo, outra coisa é você estar no airbus a 10 mil...

Fernando de Barros e Silva: E o lado político dessa questão? O PT e o Lula, para ser direto, teriam condições de suportar? A gente está falando: uma sociedade autoritária, pouca experiência democrática... O Lula poderia balançar? A gente poderia correr o risco de ter um golpe ou algo do gênero, uma situação de muita turbulência econômica ou não?

Francisco de Oliveira: Não sei, Fernando, para responder sinceramente, não sei. Essas coisas são imprevisíveis para um cientista social.

Fernando de Barros e Silva: Eu não estou pensando em golpe clássico, militar, enfim, alguma maneira de tirá-lo de lá; existem várias maneiras de dar golpe.

Francisco de Oliveira: Olha, eu não quero ser processado por outras pessoas, mas em algum momento do ano de 2002, indicado pelo meu amigo Gilberto Dupas – ele tem essa culpa –, eu fui a um seminário onde estavam os cinquenta maiores executivos da economia brasileira, o que incluía certamente todas as empresas, as grandes empresas internacionais. [Foi] organizado pela Fundação Dom Cabral, e eu fui lá e perguntei ao Dupas: mas você está maluco? Por que me indica para um treco desse? Eu nunca falei para empresário. E ele disse: “Exatamente por isso, eu quero que você assuste eles”. Ele que falou. Então eu fui lá, estávamos eu, pelo lado do PT, o Bolívar Lamounier, pelo lado do PSDB, enfim, e eu tratei de assustá-los o mais que eu podia. Usei recursos de retórica, afinal de contas eu tenho alguns anos de... e eles ficaram impassíveis, não havia nada que os abalasse. Qual foi a convicção? Eu botei o dedo em riste e disse que... eles me perguntaram apenas uma coisa: o senhor acredita que ele cumprirá os contratos? E eu respondi: do que eu conheço do – hoje presidente – Lula, eu acho que ele cumprirá os contratos, porque ele é bastante realista, é realista ao ponto de saber que, se não cumprir, ele será derrubado. E aí dramatizei ao máximo, apontei o dedo e disse: pelos senhores... eles não se abalaram, eles estavam convictos de que o sistema brasileiro é um enorme aparelho digestor capaz de digerir qualquer novidade.

Mauro Chaves: Eu queria só perguntar uma coisinha bem rápida. Em termos de otimismo e pessimismo, hoje, por exemplo, houve um despencamento do risco-Brasil, a Bolsa está batendo recorde, inflação baixa... Isso significa alguma coisa de positivo ou não significa nada para o senhor de positivo?

Francisco de Oliveira: Não, aí a questão é a seguinte: em primeiro lugar, quem analisa a economia internacional sabe que o risco-país caiu em toda a periferia, portanto não foi a ação do governo brasileiro, isso que é surpreendente. O que está havendo com o risco-país? Liquidez internacional.

Leda Paulani: Abundante.

Francisco de Oliveira: Chama-se isso.

Mauro Chaves: E a Bolsa, a mesma coisa?

Francisco de Oliveira: A Bolsa, a mesma coisa, não se trata da ação do... porque eles não agiram simultaneamente no mundo todo. Todo o risco-país, em todos os países, das Filipinas ao Brasil, caiu. É um fenômeno de liquidez internacional, não tem nada a ver...

Mauro Chaves: O senhor acha que isso é momentâneo ou é uma coisa assim...?

Francisco de Oliveira: É momentâneo.

Leda Paulani: Basta subir a taxa de juros americana no começo do ano, como estão dizendo, que nós...

Francisco de Oliveira: E vai subir, porque a economia norte-americana...

Mauro Chaves: Isso é reflexo da economia americana, é isso?

Francisco de Oliveira: ...a taxa de 8% ao ano, a taxa de juros americana vai subir, quer dizer, é um fenômeno besta de oferta e procura.

Mauro Chaves: Isso tudo é reflexo da economia americana, professor, é reflexo da economia americana?

Francisco de Oliveira: Basicamente é; nesta conjuntura, é.

Paulo Arantes: Chico, eu posso lhe fazer uma pergunta a respeito das intuições do ornitorrinco? Inclusive, é um prognóstico que você fala que está fazendo, mas não está publicado ainda. Você descobriu que o famoso populismo brasileiro foi caluniado pela sociologia de esquerda no Brasil e que o verdadeiro populismo vem por aí, está à nossa frente. Você poderia explicar?

Francisco de Oliveira: É isso, eu acho que a sociologia uspiana... houve um fenômeno muito interessante. No fim da [Segunda] Guerra, todas as forças anti-fascistas uniram-se no mundo, e o populismo foi assimilado ao fascismo pela direita internacional e, surpreendentemente, pela esquerda, em razão da luta anti-fascista. Assimilou-se o populismo ao fascismo, e eles não têm nada em comum; na verdade, o fascismo foi uma contra-revolução em todos os países em que ocorreu. O populismo não, o populismo foi uma forma autoritária de incorporar a classe operária, a nova classe. Então, eu acho que sociologicamente comeu-se gato por lebre e isso criou preconceitos, não para se louvar, e de novo dizer que [Getúlio] Vargas é o pai dos pobres. Portanto, desse ângulo, não tem nada que ver. Agora, aquela forma foi, portanto, uma forma de incorporar à agenda política e à cena política uma nova classe social, incorporar autoritariamente, por cima, a clássica via passiva brasileira e latino- americana em geral, que foi mais do que brasileira e latino-americana em geral. Quer dizer, a via passiva, você teve pelo menos, de forma forte, na Alemanha, na Itália e no Japão, exatamente os três países... Hoje, o que você tem? Como não dá para incorporar, o sistema não incorpora mais o operariado; na verdade, a regra neoliberal desincorpora, desregula e, nos termos do [sociólogo francês Robert] Castel, ela “desfilia”, ou seja, você está à frente a que situação? Exatamente às identidades de classe; a relação entre classes, interesses e representação quebrou-se. Aí você está com 60% da força de trabalho na informalidade, você está com o campo aberto para o populismo. O populismo de novo tipo e, ao meu modo de ver, desta vez realmente predatório. Isso, a gente olha a América Latina e, por todo o canto, está aparecendo. Qual é o problema do Chávez [Hugo Chávez], por exemplo, sem apelidá-lo disso ou daquilo outro?

Fernando de Barros e Silva: [interrompendo] Agora, a sociedade brasileira não é estruturada o suficiente, embora haja esse movimento, não é estruturada o suficiente para que um fenômeno desse apareça? Quem seriam as figuras, os veículos que você vislumbra?

Francisco de Oliveira: Não é, Fernando, não é estruturada o suficiente para isso.

Fernando de Barros e Silva: Não?

Francisco de Oliveira: Não é. Pode não adquirir as formas, digamos, ornamentais, para não dizer de forma jocosa, do populismo no passado, mas ela alimentará exatamente...

Paulo Markun: [interrompendo] Será um populismo mercadológico?

Francisco de Oliveira: Mais ou menos isso.

Fernando de Barros e Silva: Você está dizendo que há condições estruturais para o surgimento de um novo tipo de populismo no país...

Francisco de Oliveira: Esse populismo não será uma forma da política, será uma forma das políticas do Estado. No fundo, todas as políticas compensatórias são o anúncio do populismo.

Paulo Arantes: Acho que a direita está fazendo o seguinte diagnóstico, a direita no sentido clássico, da nova direita de que nós estamos discutindo hoje. A guinada que o PT deu na coalizão do poder atual foi surpreendente à direita e, assim, no primeiro trambolhão internacional, ele pode dar outra guinada. Eles temem que seja populista, mas só que eles estão tomando o populismo no sentido antigo. O Chico está falando de um outro populismo, é isso que você poderia especificar mais.

Francisco de Oliveira: É isso, o populismo é política do Estado transformando-se em funcionalização da pobreza. Ela não adquirirá a forma de um partido, de um movimento, ela é mais sutil.

Paulo Arantes: E isso tem a ver com o que você chama de “onguização” da sociedade brasileira?

Francisco de Oliveira: Por isso, as ONGs são capazes de focar. O partido político não é capaz de focar, porque o partido político pretende atender...

[...]: Resolver o problema geral.

Francisco de Oliveira: Geral. A ONG foca.

[...]: A ONG como reação ao populismo.

Francisco de Oliveira: Eu queria que vocês me dessem a chance de explicar, explicar um pouquinho mais a coisa da Venezuela, que é o espantalho que está aí pelo caminho. Todo mundo acha que aquilo... quer dizer, qual é o problema da Venezuela? O problema da Venezuela é que a classe operária está do lado da direita, é anti-chavista; a indústria de petróleo e todas suas conseqüências não criam emprego; o desenvolvimento industrial da Venezuela foi abortado. Então você tem uma situação... o que o Estado pode fazer? Pode fazer o que o Chávez faz, porque, em outras palavras, você não tem mais uma base social classista que agüente o tranco. A Venezuela é bem esse caso, mas o Brasil está muito próximo.

Paulo Markun: O nosso tempo está acabando e eu queria fazer uma última pergunta, [mas] a resposta, infelizmente, tem que ser...

Francisco de Oliveira: Rápida e curta.

Paulo Markun: ...rápida e rasteira, se é que é possível isso. Você acha que, nesse cenário em que a gente está vivendo, existe o caldo para o surgimento de um novo partido, de uma nova organização que tenha algum tipo de consistência? Porque o que a gente vê dos partidos que estão aí é algo que já vem desde o tempo da abertura democrática ou até de antes, se a gente pega o PMDB e o partido que sobrou, o PFL, não é?

Francisco de Oliveira: É, não acho, Paulo, não acho. Não acho exatamente por essas razões estruturais. Eu não faço da política uma repetição, uma tradução mecânica da economia, nem das bases materiais, mas como eu não faço ciência política americana, eu acho que elas estão ligadas, não como tradução uma da outra, mas pensar a política completamente desligada dessas bases, eu não consigo, pode ser insuficiência teórica e conceitual. Se não é assim, você não tem exatamente a possibilidade de fazer essa ligação para constituir novos partidos. Eles vão aparecer um pouco como se trata, de forma ligeira, “legendas de aluguel”, mas por isso que eu acho que a empreitada que se tenta de um novo partido de esquerda, no imediato, ela não...

Paulo Markun: E dentro dos atuais partidos, há espaço para brigar, para se mexer na convulsão?

Francisco de Oliveira: Eu não gostaria de ser tão pessimista e dizer que não, porque eu não vim aqui para ser o seu último programa, senão os telespectadores já não ligam mais para cá. Mas eu diria, nos termos que...

Paulo Markun: Que a vida é dura.

Francisco de Oliveira: Não, não gostaria de dizer de forma mais... dá para fazer muita firula, mas gol de placa é difícil.

Paulo Markun: Chico de Oliveira, muito obrigado pela sua entrevista, obrigado aos nossos entrevistadores, a você que está em casa. Nós estaremos de volta na próxima segunda-feira às 10h30 da noite com mais um Roda Viva . Como sempre, todas as perguntas não formuladas serão encaminhadas ao nosso entrevistado para que ele possa tomar conhecimento e responder, eventualmente. Uma ótima semana e até segunda.

 

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