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Memória Roda Viva

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Drauzio Varella

4/12/1995

"A doença não dá qualidades especiais que nós não temos. Acho que, muitas vezes, ela reforça determinadas qualidades e determinados defeitos", pondera o médico, que é especialista no estudo do tratamento da aids

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[programa ao vivo]

Matinas Suzuki: Boa noite. A última sexta-feira foi um dia de mobilização internacional contra a aids. Segundo a Organização Mundial da Saúde, gira em torno de 20 milhões o número de portadores da doença em todo o mundo. Para conversar sobre a aids, seu controle e os avanços no seu tratamento, está no centro do Roda Viva o doutor Drauzio Varella. Com 52 anos, ele é cancerologista, casado, pai de duas filhas e especialista no estudo do tratamento da aids. Conhecido por seu discurso franco e direto, Varella alerta que o melhor remédio ainda é a camisinha e diz que o governo está fazendo bem menos do que poderia pela prevenção da aids no Brasil, que já registra mais de 66 mil casos. Para conversar com o doutor Drauzio Varella esta noite no Roda Viva, nós convidamos a jornalista Roseli Tardelli, que é apresentadora da Rádio Musical FM e fundadora do grupo Parceiros de Vida [ONG que auxilia entidades que cuidam dos soropositivos] – aliás, a Roseli foi uma das que me antecederam aqui no Roda Viva; bem-vinda ao Roda Viva, Roseli –; o padre Júlio Renato Lancellotti, diretor da Casa Vida; o psicólogo Esdras Guerreiro Vasconcellos, professor de psiconeuroimunologia da Universidade de São Paulo; a jornalista Regina Echevarria, repórter especial da revista Caras; a jornalista Maria Lins, nossa companheira aqui da TV Cultura, que é editora da Rede Cultura de Televisão; o doutor Júlio Abramczyk, redator médico da Folha de S.Paulo; e o Marcelo Mendonça, secretário de redação do Jornal da Tarde. O Roda Viva é transmitido em rede nacional por 48 outras emissoras de 17 estados brasileiros. Nós lembramos que você pode participar, pode enviar perguntas e dúvidas sobre a aids através do telefone 252-6525 e do fax 874-3454. Eu lembro que existem poucos recursos para se lutar contra a aids e um deles é a informação, portanto, se você tem dúvidas, não deixe de nos perguntar. Boa noite, doutor Drauzio. O senhor está lançando, fez uma tradução, de uma nova obra sobre a questão da aids, Tratamento clínico da infecção pelo HIV, que é do doutor John G. Bartlett, da Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos. Por que o senhor escolheu essa obra? Qual o sentido de lançar essa obra no mercado editorial brasileiro?

Drauzio Varella: Esse é um livro para médicos, basicamente, Matinas; é um manual. Acho que é o manual mais completo que existe sobre aids, um manual absolutamente prático. Um médico que gosta de examinar doentes, que entende um pouco de medicina, com um livro desses na mão, trata qualquer doente com aids. É muito interessante, porque é um livro que está sendo feito pela Editora Três e foi um livro adaptado ao Brasil. E a maior parte dessa adaptação foi feita pela Conceição Lemes, com um trabalho jornalístico maravilhoso, com todos os remédios em português, o custo dos tratamentos, que é uma coisa fundamental, porque nós, médicos, cansamos de receitar remédios cujos preços nós desconhecemos. O livro dá os custos dos tratamentos, o que fazer em cada situação determinada, e eu acho uma coisa importante... Desde que eu peguei esse livrinho aí, eu não sei mais ver doente sem o livro na mão.

Matinas Suzuki: Esse livro, na verdade, se destina mais à classe médica para ela poder se informar e poder reproduzir os conhecimentos? Mas o senhor recomendaria também para leigos e interessados?

Drauzio Varella: Não, acho que não. É um livro médico mesmo. É um livro médico, só que produzido pela Editora Três, não por uma editora de livros de medicina, esse livro pode ser vendido a 40 reais. Os livros feitos por editoras de medicina... e se fosse feito por uma dessas editoras comuns, sairia, no mínimo, 150 reais. Não sei por quê, os livros de medicina são bastante caros.

Matinas Suzuki: Doutor Drauzio, aqui na cidade de São Paulo, no dia 1º, na semana passada, no dia mundial do combate à aids, foi sancionada a lei que proíbe a discriminação aos portadores do vírus do HIV na cidade de São Paulo. O senhor acha que uma legislação desse tipo é importante para o combate à doença ou não tem uma eficácia tão grande?

Drauzio Varella: Acho que a legislação é fundamental, porque a discriminação... Se você tem uma lei que protege, a pessoa tem onde reclamar. Sem a lei, ela vai reclamar para quem? E a discriminação em cima dos HIV positivo é uma discriminação que não é brincadeira. E isso é uma grande maldade, porque é uma hora em que você está fraco, doente, com uma doença às vezes impiedosa, você ainda não poder entrar em contato com os outros, porque os outros fogem de você, é muito pesado. Isso obriga muita gente a ficar trancada em casa, num pequeno apartamento, não sair, não pegar nem o elevador para descer do prédio, porque tem vergonha do jeito que os vizinhos se comportam.

Roseli Tardelli: O senhor já acompanhou algum caso assim, doutor?

Drauzio Varella: Dezenas de casos, isso é o mais comum. Essa coisa do coitado vir andando pela rua e os outros ficam se cutucando: “Olha, fulano está com aids”. Especialmente no interior, é um horror isso; nos bairros também das cidades onde as pessoas se conhecem, nas grandes cidades...

Roseli Tardelli: Na avaliação do senhor, por que existe tanta resistência da sociedade em lidar com a aids de uma outra forma?

Drauzio Varella: Eu não sei dizer exatamente por quê, mas acho que basicamente por ignorância. Acho que por ignorância, por não saber como é a doença, por não ter uma idéia exata do que aquilo representa. Preconceito é ignorância sempre, não é?

Maria Lins: E ele não diminuiu do ano passado para esse ano, por exemplo?

Drauzio Varella: Eu acho que vai melhorando. A impressão que eu tenho, quando comparo o início dos anos 80 com o que está acontecendo agora, eu acho que está havendo uma melhora mesmo substancial, uma redução do nível de preconceito. Mas está longe de ter desaparecido. Os doentes sofrem muito por causa do preconceito ainda hoje.

Maria Lins: Drauzio, no ano passado a gente fez este programa na mesma época [refere-se à entrevista de Drauzio Varella ao Roda Viva em 1994: http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/23/entrevistados/drauzio_varella_1994.htm] e foi um ano com um balanço muito negativo em relação à aids. Este ano, 95, foi um ano melhor? Aconteceram conquistas? O que mudou? O que é mais esperançoso hoje?

Drauzio Varella: Bom, eu iria passar o resto do programa falando o que eu acho que é mais esperançoso. Eu estou muito otimista neste momento. Eu realmente procuro não ser inflamado com as boas notícias, porque infelizmente esse vírus da aids ensinou para a gente que muita coisa que parecia lógica e com grande chance de dar certo, na prática, acabou não dando. Mas acho que 95 foi um ano especialmente feliz. Acho que algumas descobertas foram marcos neste ano de 95. Se eu tiver dois minutinhos, eu faço um resumo rápido disso. Acho que a primeira descoberta fundamental foi a descoberta com aquela criança que pegou o vírus e o eliminou. E pegou o vírus de verdade, porque o diagnóstico foi feito por cultura, quer dizer, vai lá, mete uma agulha na veia da criança, colhe, põe no meio adequado e o vírus cresce. Se o vírus apareceu no corpo da criança depois que ela nasceu, ela estava infectada pelo vírus, está certo? Lá pelo qüinquagésimo dia após o nascimento, eles repetiram a cultura e não conseguiram mais isolar o vírus. E a partir daí começaram a repetir a cultura de tudo quanto foi jeito, e a criança nunca mais teve o vírus e os anticorpos nunca mais apareceram, portanto o teste de aids da criança ficou completamente negativo. A criança não está infectada. Então, foi pela primeira vez a demonstração de um fenômeno do qual nós já suspeitávamos, que é o da capacidade que talvez alguns tenham de adquirir o vírus e rejeitá-lo por via imunológica, e dessa forma não adquirir a doença. [Isso] explica o caso de todas as pessoas que mantiveram longos relacionamentos sexuais com outras infectadas e nunca pegaram o vírus, por exemplo. Primeira demonstração importante. A segunda...

Matinas Suzuki: Doutor, isso [ocorre] em que porcentagem, tem um cálculo de porcentagem?

Drauzio Varella: Varia muito com as populações que você estuda. Mas, por exemplo, em população de hemofílicos, onde se sabe exatamente o que aconteceu, os que pegaram infecção pelas transfusões, o índice de conversão das esposas de hemofílicos – porque a hemofilia só dá em homem –, o índice é ao redor de 25%. Isso quer dizer que 75% dessas mulheres que mantiveram vida conjugal durante longo tempo não pegaram o vírus. Então, é isso que desconcerta com o vírus da aids, porque alguns conseguem ter um contato muito longo e não pegar o vírus; outros, no primeiro contato, pegam o vírus.

Regina Echevarria: Essas mulheres de que o senhor fala tinham algum teste positivo? Nunca tiveram teste positivo?

Drauzio Varella: Nunca. O teste, depois que positivou, nunca mais “despositiva”, nunca mais negativa.

Regina Echevarria: Fora o caso dessa menina de que o senhor acabou de falar.

Drauzio Varella: Essa menina não teve o teste positivo, porque em criança não vale, porque a criança recebe os anticorpos da mãe. Só vai valer na criança quando essa criança tiver um ano e meio mais ou menos, porque [então] ela já eliminou os anticorpos da mãe, aí se o teste dela permanecer positivo, provavelmente é porque ela tem o vírus mesmo.

Regina Echevarria: E como se descobriu que essa menina tinha o HIV?

Drauzio Varella: Porque foi tirado sangue dela e cultivado; foi cultivado o sangue, e aparecia o vírus na cultura. Quer dizer, a criança tinha o vírus na circulação.

Júlio Lancellotti: Doutor Drauzio, na questão da criança, a pergunta que eu vou fazer tem um aspecto social e pedagógico também. O número de crianças infectadas é grande a partir, como o senhor lembrou, de um ano e oito meses, quando se comprova realmente que ela tem o vírus. Esperava-se que essas crianças viveriam uma média de seis a sete anos de vida. No entanto, a primeira geração de infectados via vertical está chegando aos 11 anos. Algumas dessas crianças estão sendo alfabetizadas, estão lendo. E elas estão descobrindo que tem alguma coisa diferente na sua vida. A minha questão é: em todas essas campanhas, tudo que se faz, é dentro de uma sociedade “adultocêntrica” que não leva em conta os olhos das crianças, a leitura que elas fazem do mundo. E essas crianças lêem: “aids, essa porra mata”. Ou outros cartazes, outras coisas que se fazem. Como o senhor vê isso? A criança que vai crescendo é infectada, tem o HIV positivo e lê esse mundo adulto.

Drauzio Varella: Eu queria responder essa pergunta depois da outra, porque senão eu vou ficar perdido aqui. Então, a primeira descoberta, a primeira demonstração fundamental este ano: parece que pode pegar o vírus e eliminar. Segunda: estão surgindo duas tecnologias para que se possa determinar a carga do vírus na corrente sanguínea. E isso é uma coisa muito importante, porque até hoje como você fazia os tratamentos de aids? Você dava AZT [zidovudina], DDI [anti-retroviral utilizado por pacientes com intolerância ao AZT], DDC [anti-retroviral usado no tratamento da infecção pelo HIV], os remédios que estão aí no comércio. E você se baseava na contagem de células CD4. Célula CD4 é um tipo de célula que organiza a resposta imunológica. Isso se faz no exame de sangue, você vê lá o número. À medida que a infecção vai progredindo, esse número de células CD4 vai caindo. Então, os médicos se baseavam nisso, davam o remédio e viam o que acontecia com essas células. De repente, essas células começaram a cair [daí concluíam que] o remédio parou de funcionar, vamos mudar de tratamento. Mas até aí nós estávamos lidando com o quê? Com a conseqüência da infecção, não com a causa. Por que as células vão diminuindo, diminuindo? É porque o vírus se multiplica. Então, se eu vou me basear, para tomar decisões de tratamento, na queda das células CD4, eu estou lidando com a conseqüência, não estou lidando com a causa. A causa é a multiplicação viral, e hoje há testes em que você consegue... há kits que praticamente já estão no comércio, ainda não estão disponíveis, mas vão entrar rapidamente. Com esses kits, você colhe o sangue do doente, faz o teste e conta o número de partículas virais.

Maria Lins: A quantidade de vírus que ele tem no organismo. Dá para contar isso.

Drauzio Varella: Lógico, e aí você dá o remédio e não precisa ficar esperando as células caírem. Você dá o remédio, e se você não conseguir abaixar essa carga viral, troca o remédio porque ele não está funcionando. Se você conseguir abaixar a carga viral, você mantém a medicação. Então esse é um conceito muito importante que vem do laboratório. Do laboratório também vem um detalhe que eu acho que é fundamental: você pega esses vírus e tenta desenvolver substâncias que ajam contra eles. O vírus desenvolve resistência e começa a se multiplicar. Essa dinâmica da multiplicação está super conhecida hoje. Você sabe que quando a pessoa tem um certo nível de imunidade, a partir daí forma-se um bilhão de novas cópias do vírus por dia, um bilhão de novas cópias. Só que o vírus, quando está no plasma, vive só seis horas. E um bilhão de cópias de vírus, a gente fala “nossa senhora”, mas não é tanto assim, isso não dá um peso de nada. E o vírus se multiplica formando esse novo número de unidades, mas no plasma vive só seis horas. Isto acontece permanentemente, quer dizer, não existe aquela fase da aids que chamam de fase de incubação da aids: a pessoa pega o vírus e daí a sete, oito anos vai desenvolver a doença, então nesses sete, oito anos, [dizem] o vírus está latente, ele não está se multiplicando. Não, ele está se multiplicando o tempo todo, o que abre uma perspectiva muito interessante. Você passa a ter uma hipótese racional para tentar destruir o vírus nessa multiplicação, para dar os agentes antivirais. Nessa área dos agentes antivirais, houve um progresso muito interessante este ano.

Julio Abramczyk: Drauzio, mas ao lado desses avanços houve algum avanço para detectar precocemente o HIV positivo, mas com sorologia negativa? Aquela tal da janela sorológica?

Drauzio Varella: Acho que sim, acho que o PCR-RNA é uma metodologia interessante; a cultura também. Acho que há alguns métodos hoje que permitem avaliar essa fase, que não tem grande interesse epidemiológico, mas às vezes tem interesse individual muito grande. O que acontece na prática, o que é: a pessoa tem, por exemplo, uma relação sexual suspeita, ou injetou droga uma vez. Aí aparece desesperada: “Ai que besteira que eu fiz ontem, como é que eu faço? Estou desesperado”. Você fala: “Bom, agora tem que esperar”. Porque para o teste dar positivo, leva uma média de seis a 12 semanas. Vou repetir: pegou o vírus hoje, o teste vai ser negativo e vai se tornar positivo, em média, de seis a 12 semanas. Quer dizer que, se você pega o vírus hoje, não interessa sair amanhã fazendo teste, vai dar negativo. Vai ter que passar esse nervoso de dois a três meses.

Julio Abramczyk: Mas ele é contaminado?

Drauzio Varella: Pode passar [a ser contaminado]. Essa faixa é perigosa, porque essa fase em que a pessoa pegou o vírus, na infecção recente, a multiplicação do vírus é muito mais acelerada.

Maria Lins: Quer dizer, o teste é negativo, mas a pessoa já começa a contaminar a partir do primeiro dia?

Drauzio Varella: A partir do primeiro... não sei se do primeiro dia, ninguém sabe isso, lógico, mas é bem precocemente, com certeza. Agora, o padre. Padre, eu não tenho experiência com criança; o senhor é que tem uma experiência muito maior do que a minha. Eu nunca acompanhei crianças nessa idade, 7, 8 anos. Eu acho que o princípio que o senhor está dizendo parece muito lógico para mim. Quer dizer, a visão que a criança tem, sabendo que ela tem um vírus que todo mundo diz que é mortal, que mata... Mas eu não tenho experiência pessoal com isso.

Regina Echevarria: Drauzio, que orientação o senhor costuma dar para um paciente que chega, por exemplo, no seu consultório e fica sabendo pelo senhor que ele é um HIV positivo? Como o senhor acha que deve ser tratada uma pessoa que recebe essa notícia, que a partir daquele momento está se vendo como um condenado à morte?

Drauzio Varella: Olha, eu não tenho a pretensão de ter resposta para essa pergunta, porque eu acho que tem que ser um sábio para poder responder uma questão como essa. O que eu vejo na prática é o seguinte: quando as pessoas descobrem que estão com o vírus, deve acontecer alguma coisa muito importante na vida daquela pessoa, porque você bate os olhos nela e você reconhece o pavor que elas têm no olhar. O olhar da pessoa que acabou de descobrir que está com o vírus – acabou, que eu digo, é no período de alguns meses – é um olhar muito significativo, muito mesmo. Alguns morrem por dentro mesmo, e morrem de verdade durante muito tempo. Mas depois vem um instinto de sobrevivência, que é uma coisa muito forte em todos os seres vivos, e de repente parece que aquela pessoa começa a reviver. Alguns conseguem reviver muito mais; alguns conseguem até ter uma vida mais interessante do que a que tinham antes, conseguem dar uma reviravolta. Já vi muito, mas muito doente me dizer: “Olha, por incrível que pareça eu sou mais feliz hoje do que quando eu não era infectado”. Alguns conseguem isso, e outros não conseguem.

Julio Abramczyk: Qual é sua experiência com os casos terminais?

Drauzio Varella: É variada também. Eu tenho muitos anos de cancerologia, tenho 25 anos de cancerologia, e eu tenho a impressão de que a doença não cria nada nas pessoas, sabe? A doença não dá qualidades especiais que nós não temos. Acho que, muitas vezes, ela reforça determinadas qualidades e determinados defeitos também. Ela reforça as características da personalidade de cada um. Então, a reação do doente grave, do doente que vai morrer, é muito dependente desse repertório que essa pessoa trouxe para esse momento.

Esdras Vasconcellos: Você não acabou de dizer que alguns pacientes passam então a ter uma vida melhor depois da infecção? Assim eu entendi o que você colocou agora há pouco. Isso quer dizer que a soropositividade pode ter uma contribuição para a melhora da qualidade de vida. Essa experiência que você colocou, se eu entendi corretamente, é uma experiência da qual eu também participo diariamente na clínica. Quer dizer, pessoas que antes tinham uma vida bastante complicada em todos os sentidos e que, a partir de uma soropositividade, passam então a tê-la mais regulada, mais regrada, de uma forma mais saudável, digamos assim. O senhor não acha que isso é uma melhora?

Drauzio Varella: Bom, eu não queria ter essa melhora na minha vida [ri]. Eu não queria ter; para mim, não.

Esdras Vasconcellos: Mas a doença pode ser um caminho para isso, não?

Drauzio Varella: Infelizmente, é triste você ver que uma pessoa só consegue ser mais feliz a partir do momento em que percebeu que a vida pode ir embora, não é? É triste, não precisava chegar a esse ponto para se sentir mais feliz. Mas alguns conseguem, e eu acho muito legal que consigam, entende? Acho muito legal mesmo, porque se você vai viver menos tempo, você vai viver menos tempo e ainda amargurado e infeliz? Se vai viver menos tempo, pelo menos tenta viver melhor, não é? Acho que o princípio básico é esse.

Roseli Tardelli: Em algum momento o senhor acenou com a possibilidade de cura num prazo de quanto tempo?

Drauzio Varella: Não, eu não acho... Olha, eu tenho uma visão clara a esse respeito. Roseli, se você me der dois minutinhos, eu lhe explico, porque aí tem um raciocínio numérico que tem que ser feito devagar, senão o pessoal desliga a televisão. O vírus da aids forma um bilhão de unidades por dia, está certo? Vamos guardar esse número. Cada dia, um bilhão de unidades. Acontece que, para cada dez mil unidades, aparece um mutante, aparece um que é diferente dos pais dele. Então, um bilhão está se formando por dia, e um em cada dez mil... vamos fazer a conta [...]: forma-se um milhão de vírus mutantes todos os dias. Então, alguém diz: “nossa, então não tem como destruir isso”. [Mas] tem, porque desse um milhão de vírus mutantes, alguns vão morrer sozinhos, são inviáveis, outros são sensíveis às drogas que o paciente está tomando, a maioria morre. Mas alguns escapam. Esses que escapam têm disparidade genética com os pais, e disparidade genética que chega a 50%. Quer dizer, o vírus filho é 50% geneticamente diferente do vírus pai. Só para dar uma idéia do que representa esse grau de diferença genética, entre o homem e o chimpanzé, a diferença genética é de 1%. Entre o homem e o peixe-espada, é 30%. E o vírus chega a dar 50% de diferença. Então, o que acontece? Teoricamente, é impossível você inventar uma droga que destrua completamente o vírus, porque ele vai mudar, mudar, mudar... Essa é a estratégia de sobrevivência dele. O vírus, tanto quanto nós, quer ficar vivo. E a estratégia de sobrevivência dele é sofrer mutações, ele vai mudando, mudando, mudando. Imagine um milhão de cópias diferentes, e o sistema imunológico tem que ir lá e controlar, controlar... Assim, ele esgota o sistema imunológico, entende? Então, você vem com uma droga, ele vai desenvolver resistência a essa droga. Este ano houve documentação de um fenômeno que eu acho que é da maior importância na associação... Você dá AZT [zidovudina] para um doente e todo mundo diz: “depois de algum um tempo ele fica resistente”. Alguns ficam depressa, dois meses depois já são resistentes ao AZT. Mas entre dois e 12 meses, a resistência é de praticamente 100%. Bom, então você dá o AZT; aí houve uma experiência feita dando o AZT e uma droga que é parente dele, que é o 3TC. O 3TC é considerada a droga do ano de 1995. Então, dá o 3TC junto com o AZT. O que acontece? Você vai buscar um ano e meio depois, ainda tem sensibilidade ao AZT. E sabe qual a explicação? É que o 3TC induz resistência no vírus também, só que o vírus se modifica, sofre mutação para escapar do 3TC e se torna sensível ao AZT. Então, isso é um achado fundamental, porque parece que é muito mais importante você dar a associação de drogas do que dar uma droga isolada. Hoje, você dar AZT puro para um doente com aids é considerado um tratamento antiviral antiquado. Hoje, a tendência toda é para se fazer a combinação de drogas, o que vai ser um grande problema, porque isso fica caro, não é?

Maria Lins: Por isso que essa teoria combinada acaba, no final, não matando [todos os vírus]. Outro dia eu estava lendo que algumas drogas hoje em dia chegam a matar 99% dos vírus. Quer dizer, por que não mata 100%? É por causa dessa mutação, então?

Drauzio Varella: Exatamente. O saquinavir, por exemplo, esses inibidores da protease aí – tem três agora, o saquinavir está quase que no comércio, foi praticamente aprovado pelo FDA [Food and Drug Administration, organização dos Estados Unidos responsável pelas autorizações de novos medicamentos e alimentos] já –, mas tem o ritonavir e o indinavir [anti-retrovirais utilizados para tratar infecções do vírus HIV e a aids], que vem vindo aí. Algumas vezes eles chegam a diminuir a carga viral em 100 vezes. Diminuir 100 vezes significa o quê? Se você tem, sei lá, 200 de carga viral, se diminuir 100 vezes, passa a ter dois. É muita diminuição, fica com 1%.

Matinas Suzuki: Mas esse medicamento não está à disposição dos brasileiros, não é?

Drauzio Varella: Não, e nem dos americanos. Na Europa já está [disponível]. Aí, nós embarcamos e ficamos presos sempre no mesmo problema: o remédio é aprovado lá fora, o FDA aprova, as centrais européias aprovam, e aí cai aqui no nosso Ministério da Saúde. Aí espera, viu? O DDI levou acho que quase um ano; o DDC levou mais de um ano para chegar ao Brasil.

Roseli Tardelli: Por que, doutor Drauzio?

Drauzio Varella: Não sei, eu não sei o que acontece.

Matinas Suzuki: O senhor acha que o Ministério da Saúde não está preparado tecnicamente para a questão da aids, por exemplo? Além da burocracia, da inoperância, o senhor acha que há preparo para entender, para acompanhar as pesquisas, para adotar novos sistemas de tratamento como as drogas que estão sendo aprovadas lá fora?

Regina Echevarria: E da falta de humanidade com as pessoas doentes.

Matinas Suzuki: É, além da falta de humanidade.

Esdras Vasconcellos: Ou interesses.

Drauzio Varella: Eu não sei. Quem não tem preparo para analisar o Ministério da Saúde sou eu. Eu nunca trabalhei no Ministério da Saúde. Mas eu acho que alguns pontos são fundamentais e teriam que ser adotados. Por exemplo, há uma droga nova... e com câncer é a mesma coisa: a droga sai lá fora e os doentes, coitados, ficam comprando dos importadores, porque não é que a droga não entra no país – entra sim –, só que entra através dos importadores. Então, se você quer comprar, tem, só que em vez de custar 100, vai custar 180, entendeu? Até que o governo, um dia qualquer, não se sabe por qual razão, resolve aprovar. Mas isso pode levar meses. Uma situação como essa é ridícula, absurda. Se o FDA aprovou, tem que aprovar aqui e acabou.

Roseli Tardelli: Não estava na hora de mudar essa postura, ou será que as autoridades constituídas vão esperar ter algum portador na família para tomar alguma atitude?

Drauzio Varella: Olha, é diferente quando você está analisando uma situação de epidemia como essa... É diferente de quando você está sentado no seu escritório no ministério, em Brasília, absolutamente longe dos doentes, longe dos problemas que os doentes vivem. E aí você diz: “Não, vamos esperar um pouco mais, tem uma burocracia, não entregaram não sei que papel, tem que fazer não sei o quê, pegar a assinatura de não sei quem”. E pára tudo, não é? Porque é um problema entre outros que você tem. Mas quando você está na ponta de cá da linha, com aquele doente, e você pensa: “Pô, se esse cara tivesse acesso a esse remédio, talvez melhorasse”. Pode ser até que não melhorasse, mas só a dúvida que você tem de que ele poderia melhorar já é uma coisa muito frustrante. Se eles estivessem vivendo esse tipo de realidade, eles não fariam assim.

Julio Abramczyk: Já que você falou do Ministério da Saúde, eles iam iniciar um teste com umas vacinas. Você sabe em que pé que está...?

Drauzio Varella: Eu não sei, porque eu não acompanho bem essa parte de vacinas. O que eu sei é que estavam sendo testadas algumas frações protéicas do vírus aqui, o P120 e o P160, mas eu não acompanho esses estudos e não sei como eles estão agora.

Marcelo Mendonça: E o uso da talidomida para a aids? Provavelmente o grande público não sabe, mas a talidomida continua a ser fabricada e é usada para casos agudos de hanseníase. Inclusive, gerou uma nova onda de atingidos pela talidomida, porque o controle não é rígido, então mulheres em idade fértil tomam, e no Brasil estão acontecendo vários casos novos [de má-formação fetal por causa do uso de talidomida por grávidas]. Quer dizer, as pesquisas existem, tanto para câncer quanto para a aids.

Julio Abramczyk: Mas a talidomida não era usada como tratamento, era usada para alguns sintomas paralelos, como dor.

Drauzio Varella: É, mas você sabe que ela tem uma ação antiviral também; é uma ação discreta, mas tem ação antiviral. Mas a talidomida é uma droga interessante, porque o grande problema da talidomida é com as mulheres grávidas, ela induz má-formação fetal; deu aquela grande desgraça e ficou uma droga maldita. Mas é uma droga bem suportada. Usa-se também para estomatite, para úlceras inespecíficas de esôfago, estômago, com respostas interessantes, úlceras de boca.

Marcelo Mendonça: Você está acompanhando as pesquisas sobre o possível uso da talidomida para o tratamento de aids?

Drauzio Varella: É porque ela tem uma ação antiviral, mas a experiência é muito inicial ainda. Passou pouco do tubo de ensaio. Agora é que estão começando a mexer na [fase] clínica. Nos Estados Unidos a talidomida tem muito problema político, por causa dessa experiência no passado.

Júlio Lancellotti: Doutor Drauzio, sobre a questão dos presos, o senhor tem toda uma ação junto à massa carcerária, à população carcerária em São Paulo. Os presos homens têm tido direito à visita íntima. As presas não têm, e nós temos pressionado a Secretaria dos Assuntos Penitenciários para que as presas também tenham esse direito, porque se os presos homens têm esse direito, por que as presas mulheres não têm direito à visita íntima?

Drauzio Varella: Lógico.

Júlio Lancellotti: E até foi estranho, porque a pastoral carcerária assume a posição de que as mulheres presas têm que ter esse direito também. E foi constituído um grupo de trabalho junto à Secretaria dos Assuntos Penitenciários. Como o senhor vê essa questão, uma vez que dizem que 45% das mulheres encarceradas são HIV positivo. Como o senhor vê essa questão e qual experiência o senhor tem na questão da área masculina da prisão?

Drauzio Varella: Na área feminina, eu não tenho experiência nenhuma. Eu estive na penitenciária feminina umas duas vezes, não mais que isso. Fizemos um vídeo lá uma vez, mas...

Júlio Lancellotti: O senhor acha que a visita íntima seria um risco?

Drauzio Varella: Eu acho que tem que ter o direito, porque a visita íntima humaniza muito a cadeia. A visita íntima deixa a cadeia um lugar... Olha, você entra na cadeia na segunda-feira, terça-feira, e você entra na cadeia na sexta-feira. A perspectiva da visita no fim de semana muda o ambiente total da cadeia. Tanto que é muito raro acontecer rebelião em sexta-feira. Aconteceu aquela do pavilhão nove [refere-se ao Massacre do Carandiru], mas aquilo foi um enorme acidente, não foi uma coisa planejada. Nunca tem rebelião de fim de semana porque no fim de semana acalma, as mulheres vão lá e isso diminui as violências sexuais dentro da cadeia. E deixa a cadeia um lugar mais agradável, mais tranqüilo.

Júlio Lancellotti: Que sugestão prática o senhor teria para que as presas tivessem a visita íntima e o risco de contaminação fosse menor?

Drauzio Varella: Eu acho que tem que entregar preservativo. Na detenção nós fazemos assim: depois de idas e vindas, graças ao doutor Manoel [...], que tem conseguido esses preservativos, tem um funcionário na detenção que coordena, que é o senhor Waldemar Gonçalves. Ele coordena essa distribuição das camisinhas, e cada preso recebe duas camisinhas. E eles todos pegam. Eles pegam a camisinha para vender? Não, não tem valor de mercado, porque se você distribui de graça não tem por que ele pegar. Vai vender para quem? De graça, não tem valor de mercado.

Esdras Vasconcellos: E usam?

Drauzio Varella: Só Deus sabe.

Esdras Vasconcellos: Porque, conhecidamente, em todas as campanhas e em todas as estatísticas, tanto no Brasil quanto na Europa, a camisinha é colocada como um dispositivo altamente eficiente, porém altamente rejeitado também. E uma das últimas informações que tive é que a perfuração do látex, que é de cinco micros, é muito maior do que o diâmetro do vírus, que é um micro. O que você acha disso?

Drauzio Varella: Não, isso é uma bobagem. As pessoas que falam isso são ignorantes. Isso é besteira grossa, grossa. Não existe possibilidade de o vírus atravessar a camisinha. Se existisse, haveria descrições na literatura de casos de pessoas que se infectaram usando camisinha, e não há um único caso descrito na literatura. Nenhum, de uma pessoa que usou camisinha no início da penetração até o final e pegou aids.

Esdras Vasconcellos: Isso quer dizer que essa informação é falsa.

Drauzio Varella: É totalmente falsa e absurda, total. Tem um estudo europeu conjunto, que foi feito com casais discordantes. Casal discordante é quando um está infectado e o outro não. Em 190 e poucos casais, era o homem o infectado. E em cento e pouquinho, era a mulher. O total dava 304 casais. Bom, esses casais eram casais da Bélgica, da Holanda, da Alemanha, da Inglaterra, da França. De países pobres da Europa, só tinha Portugal e Grécia, que também não são tão pobres, casais de classe média. Eles pegavam os casais e diziam: tem um infectado e o outro não. Davam aulas sobre sexo seguro e acesso total a preservativos etc. E a cada seis meses os casais se apresentavam outra vez. Aí eles testavam o homem e a mulher para ver se o outro tinha adquirido o vírus. Desses casais, 48% usaram preservativos 100% das vezes. Quando eu li esse artigo – saiu no [The] New England [Journal of Medicine] em agosto do ano passado –, eu quase caí de costas, porque é uma situação diferente. É diferente do garoto que sai com uma menina, e ele não sabe se ela está infectada ou não, e não usa camisinha. É diferente, aí não. Aí são casais que sabem que o outro está infectado. E ainda assim, 52% mantiveram relações sexuais sem usar camisinha. Bom, entre esses 48% que usaram camisinha todas as vezes, eles fizeram uma somatória do número de relações sexuais que esse grupo deve ter mantido durante os 20 meses, que foi a duração média do trabalho, e chegaram à conclusão de que foram 15 mil relações sexuais, 15 mil eventos. Nenhum pegou o vírus.

Esdras Vasconcellos: Muito bem, agora, do outro lado, existe uma estatística da Johns Hopkins, onde atua o professor Bartlett, autor do livro que você está publicando. E lá na Johns Hopkins foi feito um estudo, em 93, mostrando que, apesar de toda a campanha da camisinha nos Estados Unidos, mais que 13 bilhões de relações sexuais sem camisinha tinham acontecido naquele ano, num levantamento feito. Quer dizer, é um dispositivo que, se por um lado é eficiente e não contém essa porosidade, conforme você está colocando, ele é reconhecidamente altamente rejeitado. Todas as estatísticas mostram que é. Eu acompanhei estudos de contracepção na Europa, na Alemanha, onde a camisinha, apesar de ser também um dispositivo contraceptivo altamente eficiente, era também altamente rejeitado. Esses dispositivos que existem no mercado não atentam às necessidades do ser humano. Como é que você vê isso? Quer dizer, aquilo que mais é eficiente no combate à aids é exatamente aquilo que o ser humano não quer usar na sua relação sexual. Como é que se resolve esse dilema, Drauzio?

Drauzio Varella: Não, eu não sei resolver. O mundo está procurando a solução desse dilema. O mundo quer achar essa solução.

Esdras Vasconcellos: Você não acha que bater em cima da camisinha é no final querer...?

Drauzio Varella: Qual é a outra alternativa que você tem?

Esdras Vasconcellos: Talvez um trabalho de conscientização...

Drauzio Varella: Demora muito, ô louco, demora muito...

Esdras Vasconcellos: Mas acontece que não se faz nenhuma campanha de conscientização e fica-se batendo em cima de um dispositivo ineficiente.

Drauzio Varella: Tem que dar camisinha, a camisinha tem que ser disponível. Acho que tem que ser o contrário. Nós vendemos aqui no Brasil... o mercado brasileiro é de 8,5 milhões de camisinhas por mês. Imagine, 8,5 milhões; a população é de 150 milhões de habitantes.

Matinas Suzuki: E o preço [da camisinha] conta no Brasil?

Drauzio Varella: Lógico, Matinas, você pega um menino de 18 anos de idade que sai com a namorada. Ele tem que comprar três camisinhas, não é verdade? [Matinas ri]. Saudades. Três camisinhas custam três reais. Com três reais dá para comer um [prato] comercial na cidade, um arrozinho, um feijão, um bife, batatinhas fritas. Para um menino que às vezes se alimenta mal em casa, é um preço absurdo. Você sabe que a caminha no Brasil tem 32% de imposto, 32%! É um número absurdo! O governo não só...

Matinas Suzuki: [interrompendo] O senhor tem o índice desse imposto em outros países?

Drauzio Varella: O pessoal tira, ô louco, você vai querer ganhar dinheiro na camisinha? É burro, burrice é pouco para isso.

Roseli Tardelli: Tem muita gente que ganha dinheiro com aids?

Drauzio Varella: Com aids? Ah, não sei isso. Deve ter, tem gente que ganha dinheiro com tudo.

Matinas Suzuki: Eu preciso fazer umas perguntas aqui dos telespectadores. O [apresentador de televisão] Serginho Groisman, que está nos assistindo, do Programa Livre, diz que no programa dele ele pediu para uma garota colocar uma camisinha no microfone e ela colocou direitinho. Então, pergunta: você, Drauzio, não acha que falta uma informação maior sobre como colocar? A outra questão que ele coloca é a seguinte: a maioria dos adolescentes tem informação sobre a camisinha, mas a gravidez e o número de HIVs positivos cresce, por quê?

Drauzio Varella: Acho que é porque ninguém gosta de usar camisinha, em primeiro lugar. Ninguém gosta mesmo. Em segundo lugar, porque não existe camisinha aqui para todo mundo usar. Está na cara: 8,5 milhões de camisinhas por mês, não existe camisinha para todo mundo.

Julio Abramczyk: Drauzio, não pode ser um problema cultural, visto que o adolescente é um contestador por natureza?

Drauzio Varella: Mas eu acho que o principal problema neste momento não são os adolescentes. Acho que é mais fácil você convencer o adolescente, aquele que vai entrar na vida sexual, do que você pegar aqueles que já estão na vida sexual e fazê-los mudar o comportamento.

Maria Lins: O número de adolescentes contaminados tem aumentado bastante ultimamente, inclusive é comum a gente ouvir relatos do tipo assim: uma menina que foi contaminada na primeira relação sexual que teve, com o primeiro namorado que ela teve. Quer dizer, a menina que não teve relações sexuais ainda está mais sujeita a se contaminar do que uma mulher que já tem uma experiência sexual maior?

Drauzio Varella: Acho que o primeiro ato sexual da menina é mais perigoso, porque tem sangramento, porque tem penetração que forma estrias. A menina nessa idade às vezes tem a vagina muito estreita, e na penetração rompem pequenas fissuras na mucosa vaginal e o vírus entra muito mais fácil.

Júlio Lancellotti: O senhor também não vê o crescimento, na questão dos adolescentes, da questão do narcotráfico, que cresce assustadoramente em relação aos jovens e aos adolescentes?

Drauzio Varella: Acho que a questão da droga é uma questão muito grave, para a qual parece que a gente não acorda de jeito nenhum.

Maria Lins: E a distribuição de seringas, que causou tanta polêmica recentemente, como é que você vê?

Matinas Suzuki: A esse respeito, a Eva Gomes, do Guarujá, pergunta: “Qual a sua opinião sobre a distribuição de kits para viciados em drogas injetáveis? É realmente um incentivo aos viciados, inclusive utilizando água destilada para dissolver a cocaína?”. Ela faz uma observação: "Esse kit já é distribuído no Guarujá", aqui no estado de São Paulo.

Drauzio Varella: Olha, na última vez que eu estive aqui, me fizeram essa mesma pergunta e deu uma briga geral [risos]. Então, eu quero começar respondendo assim: eu sou a favor, eu sou a favor da distribuição dos kits. Agora, em relação à eficiência disso, eu me questiono um pouco e vou dizer por quê. Há 10 anos, em 1985, nós tínhamos que ter feito isso obrigatoriamente. Tínhamos que ter feito isso correndo em 1985, porque naquela fase a droga da moda era a cocaína injetável. Droga tem moda. Naquela época era a cocaína injetável. Em 1990, quando eu cheguei no Carandiru, eu cansava de ver gente com o braço todo furado, o pessoal que tomava baque na veia. E esse pessoal morreu todo, todos se infectaram e morreram. É raro; quando escapava um, ele dizia: “Olha, na minha rodinha ali, só escapei eu, o resto morreu tudo”. Agora, de 92 para cá, quando entrou o crack, o crack varreu a cocaína injetável. Não é que não exista quem usa cocaína injetável, mas como eles dizem, são os “baqueiros velhos”, aqueles que já usavam anteriormente, os sobreviventes da primeira geração que tomou o impacto da aids. Agora, o crack é universal, é universal porque é uma droga que vicia muito rapidamente. O menino vai experimentar, dá uma cachimbada, duas, três e está viciado. E fica um viciado tão enlouquecido, é uma droga tão compulsiva, que ele passa a viver atrás da droga o tempo inteiro e ele não faz mais nada, o crackeiro não faz mais nada. No Carandiru, eles dizem que quando tem esses assaltos com faca em rua, que vem um cara, assalta uma senhora que vem passando, eles falam que isso é coisa de crackeiro, porque o crackeiro vende o revólver. O assaltante crackeiro vende o revólver, atrás do crack.

Júlio Lancellotti: E por isso ele se prostitui, se infecta...

Drauzio Varella: E aí aumenta a incidência de aids.

Júlio Lancellotti: Porque se veiculou a falsa teoria de que o crack ia diminuir a contaminação da aids, porque ele não é venoso. Mas na verdade as pessoas que usam crack acabam se prostituindo, e aí...

Drauzio Varella: É, mas eu acho que deve ainda ter um impacto positivo nesse sentido, padre, porque a transmissão do vírus da aids por via sexual não é tão eficiente quanto a transmissão por droga injetável. Com a droga injetável não tem jeito, e aí entra a questão do kitzinho e tal. Eu acho muito importante fazer isso porque é um jeito de a sociedade estender a mão para o pessoal que está aí na pesada e às vezes na rua da amargura.

Júlio Lancellotti: Agora, como o senhor vê uma realidade econômica e social como o Brasil, quando falta [o medicamento antibiótico] Bactrim nos hospitais de infectologia, quando não tem os remédios básicos? Como é que o Estado vai bancar seringas?

Drauzio Varella: É, mas aí um erro não justifica o outro. [...] A dúvida que eu tenho... aliás, são duas dúvidas. Primeiro, esses programas foram todos aplicados em países onde a venda de seringas é proibida. Você não chega, nos Estados Unidos, numa farmácia e compra uma seringa. Na França, na Bélgica, você não faz isso. Agora, aqui no Brasil, você compra seringa, não é o problema. Mas quem já assistiu ao pessoal injetando cocaína, um na veia do outro, fica muito impressionado, fica muito reticente em relação à eficiência. Olha, vírus é uma coisa que se transmite com uma facilidade tão grande, que há vários casos descritos... o tubo em que você faz a cultura do vírus é um tubo com rosca, e isso vai no freezer. E há casos descritos de vírus que passaram de dentro de um tubo com rosca para dentro de outro tubo, infectando outras culturas, e não era em laboratório vagabundo. O laboratório do [médico Dani] Bolognesi, na Duke University, foi infectado pela amostra do soro do vírus francês. Isso em laboratório, o pessoal técnico trabalhando impecavelmente. Agora, você imagina um bando de meninos ignorantes que não têm nenhuma formação de nada, com a seringa e com não-sei-quê ali, ficando enlouquecidos, e injetam na veia... é rápido. Toma droga na veia, aquilo dá um baque e já tem que tomar de novo. São muitas picadas durante a injeção.

Matinas Suzuki : O Carlos Rocha, de Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro, diz o seguinte: “Sou portador do HIV há quatro anos, com aids atualmente. Estou no estado avançado e já usei várias drogas, AZT, DDI, mas nada faz mais efeito. Estou desenganado pelos médicos, não tem mais jeito. Será que teria alguma chance se eu usasse o saquinavir, o novo medicamento?”

Drauzio Varella: Olha, esses casos são sempre casos dramáticos, sabe? E evidentemente a gente não tem a resposta para isso. O saquinavir não existe no Brasil ainda, nem nos Estados Unidos foi lançado. Talvez se consiga aí, tem sempre um importador que acaba conseguindo, acho que é uma tentativa. Agora, essa coisa do doente desenganado é uma coisa estranha, porque como é que você pode desenganar uma pessoa? Como se o médico soubesse que aquela pessoa... “Olha, não tem mais nada...”. Sempre há o que fazer pelos outros. Mas pega o doente grave, ele pode ficar desidratado, e dá para hidratar, isso às vezes melhora muito a qualidade de vida. Se você pega um doente com diarréia em casa, que fica desidratado, todos nós já tivemos essa experiência, você quer morrer, você fica largado. Um sorinho na veia nessa hora, repor o volume, deixar a pessoa mais equilibrada, às vezes melhora muito a qualidade de vida. O tratamento da aids, como o tratamento de qualquer doença grave, com o câncer é exatamente a mesma coisa, tem que ser um tratamento de suporte também. O fato de você dizer que o AZT não funcionou, o DDI não funcionou... mas tudo bem, pode ser que você não tenha nenhum antiviral que funcione e ainda pode ser que você tenha uma qualidade de vida muito razoável.

Matinas Suzuki: Drauzio, a questão da aids envolve uma questão médica, de conhecimento técnico, essa coisa toda; uma questão social, porque a gente sabe que a aids se desenvolve muito mais rapidamente hoje em dia entre as classes menos favorecidas, que não têm condições de controle; e envolve uma questão moral: trabalhar com a resistência da sociedade, seja para adotar maneiras de se prevenir – o caso da camisinha –, seja pela rejeição do portador, pelo estigma moral que se dá. Você também trabalha com câncer e há um livro famoso da [escritora e ativista norte-americana] Susan Sontag [1933-2004] que fala sobre a doença como metáfora [o título do livro é A doença como metáfora], o câncer também tendo o estigma de uma doença amaldiçoada, maldita, essa coisa toda. Isso muda também o caráter do médico? O médico deixa de ser só um conhecedor técnico e passa a ser também um missionário social, um pregador? Quer dizer, você volta a uma medicina que parecia que estava sendo... que mudou muito rapidamente com a evolução técnica. Você acha que há uma mudança no médico que lida com essas doenças?

Roseli Tardelli: Os senhores estão mais humanos, doutor Drauzio?

Drauzio Varella: Eu não sei isso, eu não sei...

Julio Abramczyk: Melhorou a relação médico-paciente?

Drauzio Varella: É, não sei dizer, não. Eu acho que é um pouco forçado, porque é complicado esse tipo de doença. Nós, na faculdade de medicina, somos treinados para curar as pessoas, e você lidar com doenças em que você não tem condições de curar as pessoas é uma coisa que desafia muito a personalidade do médico. Então, muitos se afastam disso, não só de aids, mas de qualquer doente grave com possibilidade de morte, porque não sabem lidar com essa dificuldade básica. Mas acho que isso mudou muito. Especialmente vejo isso nos médicos mais jovens. Hoje você tem um grande número de médicos que tem especialidades comuns, não são infectologistas nem cancerologistas, e que atendem doentes com aids. Alguns tratam muito bem, sabem o que fazer, sabem como organizar, são bons clínicos. Acho que essa meninada nova que já está entrando nessa situação, por outro lado, começa a achar a aids uma doença interessante para ser estudada.

Maria Lins: O medo entre a classe médica não existe mais? Enfermeiros...

Drauzio Varella: Ah, existe ainda. O preconceito entre a classe médica não é muito diferente do preconceito na população de um modo geral. Você tem de tudo, tem gente que tem pavor ainda, e tem outros que começam a ter curiosidade: “Por que esse paciente teve essa febre agora? E por que aconteceu isso? Por que eu dei tal remédio e ele respondeu daquele jeito?”. A aids é uma doença muito instigante, porque é você tratar o ser humano sem sistema imunológico. Com sistema imunológico, tudo é fácil. Você dá um antibiótico, o sistema imunológico reage e tal, vai indo, ganha um pouquinho de tempo e pronto. Agora, quem não tem sistema imunológico é que precisa de tecnologia mesmo, não é?

Marcelo Mendonça: Drauzio, para ficar nessa questão moral, você não acha que a pesquisa de medicamentos da aids avança mais rápido do que as pesquisas e estudos de como dar o apoio psicológico? Porque, na verdade, o maior grupo de aidéticos são transgressores sociais, homossexuais, viciados em drogas, quer dizer, a culpa que aflora...

[...]: Isso já mudou, Marcelo.

Drauzio Varella: Hoje, o número maior... se você pegar essas duas parcelas, homossexuais e usuários de drogas injetáveis, as mulheres já ultrapassaram esses dois grupos, ultrapassaram em 94.

Marcelo Mendonça: Está bem, mas pergunte para qualquer um na rua o que é a aids...

Drauzio Varella: Tem o estigma, não é?

Marcelo Mendonça: O estigma fica.

Regina Echevarria: Mas o senhor não acha que esse estigma é até aumentado em função de que a própria sociedade, através de seus convênios médicos, rejeita os pacientes com doenças infecciosas?

Drauzio Varella: Acho que a questão dos convênios médicos é uma questão que alguém vai ter que enfrentar isso aí. Isso não pode...

Maria Lins: Quem seria? O Ministério da Saúde?

Drauzio Varella: Só pode ser o governo, o único que tem condições de enfrentar. Porque isso não pode continuar do jeito que é. Imagine: você paga um convênio médico por vinte anos, aí um dia você tem um câncer de mama e eles dizem: “Ah não, câncer a gente não trata”. Aí, um dia você pega aids numa transfusão, “Ah não, aids a gente não trata”. Por que isso? No mundo inteiro tratam, no mundo inteiro.

Roseli Tardelli: Deixe eu pegar um gancho nessa afirmação da Regina. A gente acabou fundando o Parceiros de Vida porque o caso do meu irmão Sérgio foi o segundo caso, em 15 anos de história de aids do mundo, que ganhou em primeira instância contra a [empresa de planos de saúde] Golden Cross aqui em São Paulo. Quando eu contava isso em Nova York, ninguém acreditava.

Drauzio Varella: Eles riam de você, não é?

Roseli Tardelli: [Eles diziam] “Mas como o Brasil não atende aids?". O Brasil não atende aids. Por que não atende aids? Pelo preconceito ou porque ainda é uma doença muito cara? Não é, né?

Drauzio Varella: É cara nada. Sabe, eu acho que a aids, se você atende um doente com aids do jeito que nós atendemos aqui é caro, porque você espera o doente aparecer quase morrendo de falta de ar. Porque aí ele vai 30 vezes ao hospital e não é atendido, está cheio, ele mora longe, não-sei-quê, e quando ele está quase morrendo, ele vai para o hospital e vai parar na UTI. Aí é caro. Agora, se você tem ambulatórios funcionando na periferia, num hospital-dia, o doente vai, toma um sorinho, volta para casa, não é tão caro e é muito mais humano.

Roseli Tardelli: Por que não existe uma posição do governo em relação a essa coisa dos convênios, por exemplo?

Drauzio Varella: Eu não sei. Eu sei de uma coisa: os convênios no Brasil são caros, alguns deles são tão caros e às vezes mais caros do que os convênios internacionais. E eles fogem de tudo, de todos os jeitos, de todas as formas, para poder cair fora dessas questões de doentes que dão mais trabalho. Bom, por outro lado, na Constituição brasileira está escrito que na área de saúde não é possível você ter uma firma que não seja brasileira. Por que essa reserva de mercado? Que é isso? Por quê? Você sabe que o mercado da indústria farmacêutica no Brasil, tudo o que se vende de remédio, 8 bilhões de dólares, todas as multinacionais estão no Brasil, porque 8 bilhões de dólares é muito dinheiro em qualquer lugar do mundo. Então você vê aí, é Merck, é Roche [duas das maiores indústrias farmacêuticas multinacionais], todo mundo está no Brasil. Agora, o mercado de seguro-saúde, até onde eu sei, é um pouco maior do que esse. E não tem ninguém? É uma reserva de mercado? Que diferença faz para o doente que está no hospital se quem vai pagar a conta do hospital dele fala inglês, fala alemão, fala holandês, português? Ele quer que a conta seja paga. E que ele tenha acesso à melhor tecnologia possível. Isso alguém vai ter que enfrentar, não pode ficar assim. E é um lobby no Congresso...

Roseli Tardelli: Alguém é quem? É o Ministério da Saúde, é o presidente da República, é a sociedade civil como um todo? É quem, doutor Drauzio?

Drauzio Varella: Eu não sei; acho que um jeito bom é ir pressionando, como a maioria tem feito, movendo, movendo ação.

Maria Lins: Mas tem um lobby no Congresso para defender os convênios, para não aceitar [...]?

Drauzio Varella: Está na Constituição que não pode ter firma estrangeira, Maria. Você acha que tem cabimento uma coisa dessas? Porque uma firma estrangeira não pode chegar aqui no Brasil e dizer: "Não, aqui nós não atendemos aids também". Como, se atende nos Estados Unidos? Quer dizer, certamente não vão poder trabalhar desse jeito. Então, enquanto são todos brasileiros aqui, está ótimo, a cafajestice está liberada.

Júlio Lancellotti: Doutor Drauzio, hoje o senhor está, apesar de outras entrevistas, dando a conhecer alguns outros aspectos. A minha pergunta é a seguinte: o impacto da aids sobre o doente é violento, como o senhor lembrou; sobre as pessoas que cuidam dos doentes, como nós que temos casas de apoio e outros grupos que têm casas de apoio, o impacto é muito forte. Qual é o impacto da aids no Drauzio Varella?

Drauzio Varella: Olha, eu não fui pego tão de surpresa, padre, porque eu, como vinha com uma experiência muito grande com doentes de câncer, e na realidade a morte de um doente por uma doença grave não tem grande diferença, no caso da aids há um pouco mais de preconceito do que no caso do câncer, é basicamente essa a diferença. Então, não fui pego tão de surpresa. Eu já tinha uma experiência grande e incorporei essa experiência a esse novo grupo de doentes que vinham. Acho que os infectologistas sofreram mais, porque os infectologistas estavam acostumados, nos últimos anos, a curar todo mundo. Vinham os doentes, “pega a bactéria, isola, cultura, vê o antibiótico certo, dá a cura, tchau”, e vai para casa. E eles, de um momento para outro, se viram diante de doentes que não tinham mais cura e que exigiam cuidados permanentes. Acho que eles sofreram mais.

Esdras Vasconcellos: Drauzio, eu queria voltar na questão colocada pelo Matinas: por que a classe médica, por que os médicos consideram tão pouco a influência do aspecto psicológico sobre o sistema imunológico? Nós sabemos que existem pacientes que desenvolvem todos os sintomas da aids muitas vezes não sendo nem soropositivos, só pelo pânico, pelo medo dessa doença. Do outro lado, nós temos pacientes que, apesar de estarem com uma relação do CD4 e CD8 péssima, baixíssima, mesmo assim dispõem de saúde, cumprem as suas funções sociais, estão aí tendo uma vida normal como outro qualquer. Antes até se pensava que um número baixo de CD4 representava praticamente um paciente terminal. Hoje isso está se transformando num mito. Um paciente que tenha 20...

Drauzio Varella: [interrompendo] Não é um mito, para a maioria vale, mas tem uma pequena porcentagem que [...].

Esdras Vasconcellos: Exato, mas tem aí um monte de pacientes, um número muito grande de pacientes com número 20 de CD4 que estão aí muito bem, sem apresentar nenhum sintoma.

Drauzio Varella: Esse é um pequeno grupo de pacientes...

Esdras Vasconcellos: Cada vez maior.

Drauzio Varella: Maior porque cada vez tem mais gente com aids. Mas esse grupo é mais ou menos fixo, é um grupo pequeno de pacientes que têm CD4 baixo e se mantêm impressionantemente bem.

Esdras Vasconcellos: Sim, isso quer dizer que o sistema imunológico tem uma capacidade muito grande, bem mais do que aquilo que se imagina, e que os fatores psicológicos, morais ou religiosos, sejam eles quais forem, têm uma influência muito grande no estado geral de saúde.

Drauzio Varella: Não, você não pode tirar essa conclusão, porque o fato de um vírus deixar a pessoa, a partir de um determinado momento, entrar em equilíbrio, isso pode ser [decorrente de] fatores do sistema imunológico da pessoa, mas pode ser [decorrente de] fatores do vírus também. O vírus pode ter sofrido mutações para um vírus de multiplicação mais lenta. Existe isso também, não são só os que se multiplicam mais depressa. Você pega esse caso aí que há pouco tempo foi relatado na Austrália, desse cara que tinha o vírus, 15 anos depois estava bem, e ele tinha doado sangue. E uma assistente social foi atrás das pessoas que receberam a transfusão dele. Eram sete pessoas, uma tinha morrido, mas não por aids. As outras seis também estavam há um tempão enorme bem e ótimas. E aí foram ver, e o defeito era no gene nef do vírus. O vírus tinha um gene defeituoso que não o tornava apto a se multiplicar.

Esdras Vasconcellos: Isso quer dizer que o fator psicológico não influencia em nada o estado geral de saúde do paciente?

Drauzio Varella: Também não estou dizendo isso.

Esdras Vasconcellos: E o que você poderia dizer a respeito da influência do fator psicológico sobre o sistema imunológico?

Drauzio Varella: Pouco, porque eu sou muito ignorante nessa área.

Esdras Vasconcellos: E por que há relutância para incorporar esse fator? Porque eu vejo na pergunta do Matinas exatamente isso. Por que esses fatores, que são extremamente importantes, e você que trabalha com pacientes com câncer tem essa vivência na clínica diariamente... o paciente às vezes se encontra em estágio terminal, mas fatores da personalidade dele, da vida, da saúde mental dele, dos sentimentos, dos pensamentos conseguem mantê-lo ainda muito bem. Esses elementos, que são extremamente determinantes para o sistema imunológico, são geralmente desprezados na clínica médica, na clínica hospitalar.

Drauzio Varella: Eu vou lhe responder isso com toda franqueza. Eu, como médico, sou muito orientado pelo procedimento científico. Eu não conheço na literatura nenhum trabalho que eu tenha lido – você pode me citar 200, mas não conheço nenhum trabalho que eu tenha lido – que tenha me convencido disso. Pessoalmente, por convicção pessoal, nunca eu li um trabalho e falei: “Pô, isso aqui, olha, o cara amarrou essa situação de um jeito que, cientificamente, não pode ter outra saída, a explicação é essa”. Nunca tive a felicidade de ler um artigo desses. Em aids, por exemplo, há um trabalho célebre publicado, um trabalho importante, saiu na [revista científica] Annals of Internal Medicine, em que não se conseguiu estabelecer a relação entre o número de células CD4 – o número de células CD4 é que dá uma idéia de como está a imunidade da pessoa – e o stress psicológico ou o stress físico. Eu, em 25 anos de profissão, nunca me convenci de que isso fosse verdade. Não porque eu seja um idiota que não estou nem preocupado, que não ache que o fator psicológico tenha importância. O fator psicológico tem importância em tudo, até nessa nossa conversa neste momento, e ainda mais para uma pessoa doente. Mas eu nunca vi alguém, através de mecanismos psicológicos, mudar o curso de uma doença grave. Nunca vi isso, nunca tive essa felicidade de ver. E aí vem o outro lado dessa questão, que é o lado de que eu não gosto nesse tipo de raciocínio: não existe prova científica definitiva de que o psicológico tenha capacidade de modificar o curso de doenças do tipo câncer e aids, mas também não existe a prova contrária. Não existe a prova de que o psicológico não pode fazer isso. Então, se não existe prova disso, acho que o nosso trabalho, qual tem que ser? Você acredita nisso? Tenta provar. O outro acredita? Tenta provar cientificamente. O que nós não podemos é atirar no doente a culpa pela evolução da doença, entende? É isso que eu sou contra e canso de ver as pessoas fazerem: “fulano de tal? Só podia ter um câncer mesmo. Imagina um cara com aquela cabeça!”. Isso a medicina fez a vida inteira. Você já não ouviu falar isso? Ouve-se falar.

Esdras Vasconcellos: Isso já vem desde a Antiguidade, os gregos afirmavam isso.

Drauzio Varella: A medicina fez isso com a lepra, fez isso com a tuberculose, fez isso com todas as doenças, e faz com a aids.

Julio Abramczyk: Eu só queria fazer uma perguntinha: em termos de números de pacientes no Brasil, as estatísticas brasileiras são confiáveis?

Drauzio Varella: Não, não são confiáveis. E eu vou explicar por que não são confiáveis. Olha, aqui no meio da cidade de São Paulo, eu, que sou informado disso, até um pouco engajado, eu demoro mais do que eu gostaria para notificar. Você vê os caras na cadeia: tem 20, 40, 50 para atender, e você vai parar, pegar folha, ficar ali fazendo questionário? Na hora, lhe parece que atender o doente é mais importante do que aquilo.

Julio Abramczyk: Então, pode-se supor que os números que aparecem estão muito aquém da realidade?

Drauzio Varella: Muito aquém da realidade, porque uma grande parte não é contada. Por exemplo, você pega os que morrem de tuberculose, quem está contando? Quem sabe, desses que estão morrendo de tuberculose, quantos tinham aids? Olha, tuberculose vai ser o pior... alguns dizem que já é; o [médico infectologista e epidemiologista clínico] Adauto Castelo [Filho] diz que já é, e o [médico infectologista] João [Silva de] Mendonça também diz que é o pior problema de saúde pública do país. E eu estou de acordo com eles, é um problema seriíssimo, e uma coisa que ninguém está dando bola. Em Nova York, Julio, a epidemia de tuberculose que renasceu em Nova York veio das cadeias – Nova York, Miami, Los Angeles –, veio das cadeias para a população. Por quê? Porque a sociedade vai lá e empilha aquelas pessoas ali. Um tuberculoso passa para os outros. Quem tem o vírus da aids no sangue tem muito mais chances de desenvolver tuberculose, muito mais. A chance é cem vezes maior, 113 para ser exato. Então, dos que estão infectados pelo vírus da aids, de 25% a 30% vão ter tuberculose, é um número muito grande. E a aids ele não passa no contato casual, mas tuberculose ele passa. Então, nós vamos fazer renascer no Brasil o problema da tuberculose, e eu não vejo ninguém sério falando a esse respeito. E nós temos no Brasil gente ótima, temos técnicos muito preparados que teriam condições de tomar as medidas fundamentais para conter a tuberculose. Porque a contenção da tuberculose é baratíssima. Você pega um doente HIV positivo, se você não dá isoniazida [fármaco utilizado para o tratamento da tuberculose] para ele, 25% a 30% vão ter tuberculose. Aí você dá isoniazida, cai para 4%, 5%, quase que acaba. E isoniazida não custa nada, você dá um ano de isoniazida e não gasta 10 dólares.

Julio Abramczyk: Em Nova York, eles estão levando assistentes sociais às casas dos pacientes. Isso seria possível aqui no Brasil?

Drauzio Varella: Eu acho que seria desejável, eu acho que seria possível, não é difícil. A questão é ter gente que organize. Tem gente que só entende disso, só faz isso na vida. Tem uma meninada aí superpreparada, estudada, que foi para o exterior estudar, gente que vem das melhores universidades americanas. O Brasil não é um país miserável, completamente cheio de ignorantes. Tem gente preparada aqui que poderia trabalhar e fazer um trabalho sério nessa área.

Matinas Suzuki: Eu vou lhe pedir, por favor, para responder aqui o bê-á-bá, e eu peço para você em casa, por favor, faça a lição de casa, preste atenção nas respostas do doutor Drauzio e ajude a informar o seu vizinho, o seu filho, o seu amigo de trabalho, a sua companheira de trabalho sobre essas questões. Eu fui acumulando aqui propositalmente um volume de perguntas sobre esses temas e você também tem um papel importante, portanto faça a lição de casa, preste bastante atenção nas respostas a essas questões e ajude na divulgação e no esclarecimento. O Aílton, de Carapicuíba, e a Vanilde Leite, do Maranhão, querem saber: “Se um inseto picar algum contaminado e depois picar outra pessoa, é possível transmitir o vírus?”. E o Aílton pergunta: “É possível ser contaminado através da picada de pernilongo?”

Drauzio Varella: Não, não é possível. Não existe isso, não tem um bicho que possa picar o homem e transmitir o vírus da aids para ele. Esquece, não existe essa possibilidade.

Matinas Suzuki: A Maria Bernadete, de Guarulhos, pergunta: “A pessoa que faz vasectomia é mais imune à aids?”

Drauzio Varella: Não, não tem nada a ver. Pega aids do mesmo jeito que o outro.

Maria Lins: E transmite também.

Drauzio Varella: Transmite também. Não tem nada a ver.

Matinas Suzuki: O Marcos Donizete, de Osasco, pergunta: “A chance de o homem transmitir o vírus é maior do que a da mulher?”

Drauzio Varella: Isso é uma coisa tão engraçada. Nos Estados Unidos e na Europa, realmente parece que o vírus passa mais fácil do homem para mulher do que da mulher para o homem. Na África e na Ásia, especialmente o sudeste asiático, ali onde tem a Tailândia, a Índia, é um para um, é um homem para uma mulher, ninguém passa mais fácil, os dois passam com a mesma eficiência. Então, quando eles falam na situação americana, dizem: “Não, realmente a aids transmite mais fácil do homem para mulher”. Nós, aqui no Brasil, nos identificamos com quem? Com os africanos? Não, imagina! Nós nos identificamos com os americanos. E é uma burrice isso, porque na verdade o vírus aqui no Brasil é do subtipo B, como é nos Estados Unidos, em 90% dos casos. Mas há 10% que são outros subtipos do vírus, alguns desses provavelmente mais adaptados para transmissão sexual. Então, não pode o homem idiota ficar achando: “Não, é mais fácil...”. É mais fácil, mas se você pega o vírus, pegou e acabou. E isso que coloca as mulheres em perigo também. Porque muita gente... o cara tomou droga no passado, sabe que tem risco de estar infectado, mas ele pensa: “Bom, a chance de eu pegar dela é muito pequena, é maior de eu transmitir, então tudo bem”. Tudo bem, e aí expõe as mulheres, não é? Por isso que a aids vai na direção das mulheres direto agora, direto.

Matinas Suzuki: A Andréa Luciana, do quarto ano de medicina, em Porto Alegre, quer saber: “Na relação entre duas lésbicas, uma com aids e a outra não, há chances de contaminação?”

Drauzio Varella: Olha, os casos que existem descritos na literatura, que eu conheço, são dois casos, e nesses casos houve sangramento profuso por ferimento no local. Não há transmissão do vírus nas relações homossexuais entre mulheres.

Matinas Suzuki: A Fátima Esteves, aqui de Santana, e o Marco Antônio, também de São Paulo, gostariam de saber se a aids é transmitida pelo beijo, ou pela saliva, ou pela lágrima.

Drauzio Varella: Não, não é transmitida pelo beijo, muito menos pela lágrima, a aids não passa beijando, beijar está liberado geral [risos].

Matinas Suzuki: O Márcio Perez, de Santana, pergunta: quais os perigos e a prevenção a ser adotada quanto ao sexo anal?

Drauzio Varella: Sexo anal é a via mais eficiente para a transmissão; o vírus penetra muito facilmente a mucosa do reto; na superfície do intestino o vírus penetra com muita facilidade. Então, o sexo anal, no caso de haver relação sexual anal, que faz parte do repertório sexual de muitas pessoas, tem que ser feita com preservativo do início ao fim da penetração, a camisinha tem que ser usada do início ao final da penetração, isso é muito importante, tanto para o sexo anal quanto para o sexo vaginal.

Matinas Suzuki: E nosso campeão disparado da noite é o sexo oral. O Bira, de Goiânia, o Tadeu, aqui de São Paulo, o Gilson de Souza, o Fernando Nunes, do Tatuapé, o Roberto, de Ribeirão Preto, o Paulo, de Itatiba, o Evandro, de Campinas, o Pedro Moréu, da Vila Guilherme, a Renata, aqui de São Paulo, todos esses querem saber se é possível ou não se contaminar com o sexo oral e como se precaver.

Drauzio Varella: Vou explicar para vocês: os médicos nunca gostam de responder essas perguntas sobre sexo oral, porque o estudo que vai provar se o sexo oral transmite ou não aids nunca vai poder ser feito. Porque como você teria de fazer um estudo desses? Pegar um grupo de casais discordantes – um infectado e o outro não –, e aí dizer: vou pegar, por exemplo, 500 casais. Aí eu chego para 250 e digo: “Olha, vocês vão praticar sexo oral, só, não pode ter outro tipo de sexo”. E os outros 250 não vão poder praticar sexo oral. Esse estudo nunca vai poder ser feito, e seria a única forma de você demonstrar se quem praticou sexo oral pegou ou não pegou o vírus. O estudo que chega um pouco mais próximo disso, se é que a gente pode usar a palavra “próximo” aí, é sobre esses casais que eu citei, do estudo europeu, em que aqueles 48% dos casais que não transaram sem camisinha de jeito nenhum e não pegaram o vírus da aids. Uma porcentagem – eu não lembro o número exatamente agora – de 20% a 30% desses casais praticaram sexo oral desprotegido e nenhum deles pegou o vírus da aids. A minha opinião pessoal, para eu não ficar em cima do muro aqui, dizendo “não se sabe”, é que o sexo oral é uma parte muito importante no repertório sexual de muitas pessoas, então acho que a medicina tem que ter uma posição em relação a isso. A minha pode estar errada, outros podem ter opinião diferente, mas a minha opinião pessoal é a seguinte: muito dificilmente uma pessoa infectada leva o vírus da aids com a boca para o sexo da outra. Eu acho que a possibilidade disso é mínima, se é que existe alguma possibilidade. No contrário, pode ser. Os casos que eu conheço de pessoas que se infectaram por sexo oral, em todos esses casos houve deglutição de esperma, quer dizer, a pessoa engoliu esperma. Sem engolir esperma, eu não conheço nenhum caso descrito. Mas é difícil você ter certeza absoluta, porque as pessoas tiveram sexo oral e sexo vaginal também. Dificilmente se tem um único comportamento sexual. Mas eu acho que a questão do sexo oral, na medida em que a epidemia vai evoluindo e não aparece ninguém que pegou aids com sexo oral sem engolir esperma, vai dando um pouco mais de segurança.

Matinas Suzuki: Então, não há comprovação de nenhum caso que tenha sido transmissão por sexo oral?

Drauzio Varella: Sem engolir esperma, não há nenhum caso descrito.

Maria Lins: Drauzio, na transmissão heterossexual, pelo que você estava colocando ainda há pouco, parece que a prevenção está um pouco nas mãos das mulheres, porque se as mulheres se negarem a manter relações sexuais com homens que não usem camisinha seria uma forma de parar o crescimento da doença. O que você diria às mulheres que confiam nos homens, e eles não querem usar camisinha e elas aceitam e acabam transando e pegando o vírus?

Matinas Suzuki: Maria, incrível que essa era a próxima pergunta. O Steve Allen, que é inglês e mora em Recife, Pernambuco, diz que o programa não está abordando muito sobre a campanha, e pergunta: “A arma mais poderosa não é a palavra “não”, em vez da camisinha?”

Drauzio Varella: É poderosa total, mas o problema é que as pessoas às vezes se recusam a usar. A questão da aids é muito complicada porque ela envolve o sexo. O sexo é um tipo de atividade que a natureza criou para poder preservar o DNA, porque é isso que a natureza quer fazer. A natureza não quer saber se você vai nascer de olho castanho, azul, verde, ela quer que você passe o seu DNA para frente. Então ela faz um design – no caso do homem esse design tem dois olhos, anda sobre duas pernas etc –, e esse design serve só para passar esses genes para frente, mais nada. Então ela cria impulsos sexuais que são muito poderosos, muito poderosos mesmo. Quando você tem que impedir a disseminação de uma doença como essa, você tem que bloquear esses impulsos poderosos e pôr uma barreira, uma proteção. Então, há a necessidade absoluta de que a gente eduque as pessoas a fazerem isso. Agora, educar quando? Quando elas são pequenininhas, porque não adianta você pegar uma pessoa com 50 anos de idade, nunca transou com camisinha, e dizer: “Olha, de agora em diante você vai...”. A chance de dar errado é muito grande, porque a pessoa já tem um comportamento que está ali empedernido. Agora, a criança pequena é para quem você tem que falar. Aí o pessoal fala: “Ah, mas você vai pegar uma criança de 10, 12 anos e vai invadir a ingenuidade da criança”. Bom, primeiro que [a criança de] 10, 11 anos já não tem tanta ingenuidade assim, porque a gente esquece como a gente era com 10, 11 anos de idade. Já não há tanta ingenuidade. Segundo, que é a única alternativa, não tem outra. Você não pode deixar um filho ou uma filha iniciarem a vida sexual sem ter a consciência de que têm que se proteger. E voltando à questão das mulheres, a epidemia vai toda na direção das mulheres agora. Se você perguntar: tem algum grupo de risco hoje? Tem, são as mulheres. E quais mulheres? São as mulheres mais ingênuas. A prostituta não transa sem camisinha, toma cuidado; a prostituta às vezes se infecta com o namorado, porque as mulheres se apaixonam com muita facilidade.

Júlio Lancellotti: As trabalhadoras do sexo dizem que os companheiros habituais usam preservativos e os companheiros eventuais não. E o perigo parece que está aí nos eventuais. Mas em relação à mulher, eu gostaria de perguntar a sua opinião acerca de um projeto de lei que andou ensaiando de tramitar pelo Congresso Nacional que propunha o aborto compulsório para as mulheres HIV positivas.

Drauzio Varella: Compulsório? Não, não pode ser compulsório, imagina. Essa questão das mulheres... eu vou aproveitar para falar uma coisa importante.

Regina Echevarria: Todas as mulheres grávidas [e com HIV positivo] transmitem o HIV para o filho?

Drauzio Varella: Não, essa questão das mulheres... eu vou aproveitar para tentar esquematizar qual a natureza desse problema. Nem toda mulher grávida passa o HIV para o filho; as porcentagens variam muito. Na África parece ser mais alta, na Europa, mais baixa; as vezes dá porcentagem de 12%, 15%, às vezes chega a 50%, 60%, conforme a estatística. Foi feito um estudo, que é crucial na história da epidemia, que foi publicado um ano e pouco atrás. Foi um estudo feito pela Universidade de Califórnia em conjunto com um pessoal da França, e esse trabalho foi feito da seguinte maneira. Eles pegavam as mulheres grávidas, e metade das mulheres grávidas tomavam AZT durante a gravidez, da 14ª à 34ª semana. Não davam logo no comecinho da gravidez para não correr o risco de ter má-formação fetal. No momento do parto, penduravam um sorinho com AZT na veia da mulher, porque mais ou menos 30% das mulheres infectam as crianças na hora do parto. Então, pingavam AZT na veia e ficava correndo continuamente enquanto durava o trabalho de parto. A criança nascida tomava AZT por boca durante seis semanas, começando rapidinho, seis, oito horas depois do nascimento, a criança começava a tomar AZT por boca. Bom, das mulheres que não tomaram AZT, 27,7% tiveram filhos que nasceram com o vírus da aids; das mulheres que tomaram AZT, 7,8% [tiveram filhos com o vírus]. Quer dizer, caiu de 28% para 8%. Uma coisa que é barata, não sai caro, e que reduz a incidência, reduz muito, porque você ter, em 100 mulheres, 28 que têm filhos HIV positivo é uma coisa; agora, oito terem filhos HIV positivo é outra coisa completamente diferente. Então, eu acho que o teste para aids, toda mulher grávida tem que fazer, devia de ser mandatório no país.

Julio Abramczyk: Os maridos não deveriam fazer?

Drauzio Varella: Todo mundo; acho que, por uma questão de responsabilidade, tinha que fazer o teste. Vai ter filho? Faz o teste para aids. Você não faz para sífilis? Por que não pode fazer para aids? Agora, as mulheres grávidas [com HIV positivo] têm que tomar AZT na gravidez, não tem discussão, isso deveria ser mandatório no país inteiro. Sai muito mais barato se a gente esquecer o lado humano e pensar na cost-effectiveness, como os economistas gostam de dizer, sai muito mais barato você dar AZT para mulher grávida do que depois você tratar a criancinha com aids. Sai muito mais barato, isso deveria ser uma coisa pelo país inteiro. Os médicos deveriam ser obrigados a pedir o teste para aids, porque tem que fazer o teste. Todas as mulheres grávidas devem fazer o teste para aids.

Júlio Lancellotti: As mulheres grávidas todas, mas tomar AZT, só as que têm HIV positivo...

Drauzio Varella: Só as que têm o vírus da aids, lógico.

Regina Echevarria: Quando o senhor acha que as autoridades sanitárias vão encarar esse problema como uma epidemia mesmo? Em algum lugar do mundo isso já começou a ser encarado como uma coisa muito grave e muito séria?

Drauzio Varella: Acho que em muitos lugares do mundo, muitos. E não só do mundo desenvolvido, não, mesmo no mundo mais pobre, muitos lugares. Hoje você pega países como a Tailândia, por exemplo, tem uma bela estrutura de atendimento, tem programas sociais de divulgação de conhecimentos em relação à prevenção. Na África há programas conduzidos pela Organização Mundial da Saúde, porque os europeus têm uma consciência pesada em relação à África, não é? Então na África a Organização Mundial da Saúde dá muito mais atenção. A América Latina é que fica meio no canto do mundo e ninguém dá muita bola.

Roseli Tardelli: Doutor Drauzio, nessa linha de pergunta da Echevarria, aqui durante o programa foram levantadas três questões: a morosidade na experimentação de medicamentos novos por parte do Ministério da Saúde; a taxação das camisinhas, que hoje é de 32%; e a situação absurda dos convênios e seguros de saúde. Como é que os médicos, os jornalistas e as pessoas que estão em casa assistindo à gente podem entrar nessa história? Porque, por experiência pessoal – acho que a Regina deve pensar igual, o padre Júlio deve pensar igual –, a aids é uma guerra, não é? É uma guerra. Quando é que o Brasil, quando é que a sociedade brasileira, na avaliação do senhor, vai parar de usar a "política do avestruz" de fazer de conta que a aids não está aí?

Drauzio Varella: Eu não sei, acho que a vida num país como o Brasil tem muito pouco valor. [Aqui] não é uma coisa importante a vida humana. São países pobres, com grandes diferenças sociais, alguns totalmente ricos, muitos miseráveis, um grande bando de miseráveis, e a vida, nesse tipo de miséria, perde muito o valor, acho que esse é o problema. Aí fora a vida tem valor, não é? Ninguém quer ver morrer um, morrer outro, [mas] aqui não. Aqui, se são só os pobres que estão morrendo, por exemplo, ninguém se toca com isso, ninguém dá importância, essa é a realidade. Só que, no caso da aids, existe uma coisa que é diferente de outras doenças, porque é impossível você isolar o vírus da aids numa categoria social, num grupo, não há como fazer isso na sociedade atual, não há essa possibilidade. Então, todos nós vamos ter um caso de aids na família, todos nós vamos ter. Muitos aqui já devem ter tido até casos de aids na família. Todos vamos ter, não adianta pensar que porque você vive num universo especial, que você tem uma vida privilegiada, que não-sei-quê, que a sua filha não vai poder pegar aids, lógico que vai poder pegar. Então, essa visão do avestruz é uma visão suicida, é uma visão que vai levar a grandes desgraças familiares. Você [Roseli] tem um caso de aids na família, você sabe muito bem como é.

Esdras Vasconcellos: Agora, fica bem mais fácil tratar da aids sem criar em torno dessa contaminação todo esse pânico que se criou.

Drauzio Varella: Lógico...

Esdras Vasconcellos: Porque, do ponto de vista epidemiológico, naturalmente que a infecção está crescendo, mas eu acho que, do ponto de vista emocional, a epidemia já está passando, porque um número cada vez maior de pessoas estão se conscientizando de que essa doença é combatível, de que é possível viver muitos anos, e viver saudavelmente com essa infecção, portanto, estão perdendo esse pânico, esse pavor da aids. Ela está deixando de ser essa grande metáfora, como foi citado pelo Matinas, a metáfora do medo e do pânico, e eu acho que isso é extremamente positivo, porque aí então pode se conscientizar a população de uma forma adequada, sem precisar usar o pânico, o pavor, o medo e o preconceito para poder criar então uma consciência.

Matinas Suzuki: Drauzio, o Paulo Moura, de Sarapuí, São Paulo, e até aproveitando a presença do padre Júlio no programa, pergunta: “Qual o papel que a Igreja [Católica] tem desempenhado nisso?”. E eu acrescentaria: recentemente o Papa, por exemplo, condenou o uso da camisinha. Que impacto você acha que tem isso sobre o controle da doença? A Igreja deveria ter um outro papel?

Drauzio Varella: Estava demorando, não é? [risos]

Matinas Suzuki: E há uma pergunta aqui, da Vera, aqui de São Paulo: “Você é cristão?”

Drauzio Varella: Eu não sou religioso. Quer responder primeiro padre? [risos] Eu mesmo, então. Olha, eu acho o seguinte: uma coisa é a Igreja Católica inteira, outra coisa são as pessoas que tomam as decisões da Igreja Católica. Acho que as decisões têm sido mal tomadas na Igreja Católica por um entendimento errado do que representa essa epidemia. Esse pessoal que toma essas decisões interpreta a epidemia de aids como sendo uma epidemia de uma doença sexualmente transmissível e que o jeito certo de combater a epidemia é você pregar a abstinência. Se você não tem sexo antes do casamento e não tem sexo fora dele, a sua chance de pegar aids é mínima, é insignificante. E se a mulher com quem você casou ou o seu marido é negativo, a chance é zero. Então, eu acho que esse é o mecanismo perfeito para você combater a aids. Só que o problema é que há uma grande parte da sociedade que não acha graça em viver desse jeito, esse é o problema fundamental. Se todos obedecessem, estava resolvido o problema. Mas o pessoal não obedece, esse é o problema. Para esses que não obedecem, como é que vai fazer com eles? Não tem alternativa, tem que dar camisinha para eles.

Maria Lins: A maioria é católica, e os católicos não seguem esse...

Drauzio Varella: Muitos não obedecem, tem gente que não acha graça nenhuma ficar virgem a vida inteira, o cara acha que não é legal, então muitos não obedecem. Agora, esses que não obedecem, esses têm que receber informação, não interessa se estão certos ou errados, eles têm que receber informação. A informação tem que ser clara para eles: “Olha, já que você vai fazer assim mesmo, então você usa camisinha”. Isso não é invenção minha, isso é um programa da Organização Mundial da Saúde de combate à aids no mundo inteiro: tem que reforçar o uso da camisinha. Existe uma estratégia mundial de combate à aids. São técnicos que fazem isso, gente superpreparada em todos os níveis do conhecimento científico. E chegaram à conclusão de que se deve usar a camisinha no mundo inteiro, essa deve ser a estratégia, porque essa é a única que tem se demonstrado eficaz nos estudos cientificamente conduzidos. Nós não vamos discutir com a ciência, nem a Igreja pode, porque isso não é um assunto religioso, isso é um assunto científico. O combate à aids deve ter uma orientação médica, não uma orientação religiosa.

Júlio Lancellotti: O senhor acha que a informação que foi dada até agora não foi suficiente? Por exemplo, essa campanha publicitária que está agora sendo levada pelo Ministério da Saúde. Ao seu ver, ela é eficiente, ela é eficaz?

Maria Lins: Houve algum avanço, já que dessa vez não adiantou a Igreja gritar, porque a campanha foi ao ar?

Drauzio Varella: Eu acho que houve muitos avanços. A campanha agora é um pouco mais divertida, e eu também não vou dizer que eu sou contra a campanha, pelo amor de Deus. Eu acho que eu me engajei nisso... fui um dos primeiros... ainda gasto grande parte da minha energia nisso.

Julio Abramczyk : Mas a Campanha do Bráulio funcionou? Ou do pseudo-Bráulio?

Drauzio Varella: Não sei, acho que qualquer coisa é boa, acho que qualquer coisa que façam é melhor do que nada, está chamando o assunto. Agora, você faz uma campanha dessas, até onde eu sei essa campanha teria custado 4,5 milhões de dólares; eu fico pensando: se você conseguir produzir uma camisinha por 30 centavos, com 4,5 milhões de dólares dá 13,5 milhões de unidades de camisinha, é muita camisinha. Você faz uma campanha dessas e, quando eu estou lá no rádio, falo: “Olha, use camisinha”, faço as brincadeiras que eu faço com os adolescentes e tudo... eu tenho certeza que eu estou falando com uma classe média, para determinado nível da classe média e para cima. Eu não estou falando para os outros, porque os outros não podem comprar camisinha. Os outros podem estar convencidos de que precisam comprar camisinha, mas eles não podem e não compram. E tanto não compram, que nós jogamos no mercado 8,5 milhões de unidades por mês, imagine, com esse bando de adolescentes que nós temos no país, esse mundo de gente aí. Então, na verdade, essas campanhas servem para a gente lembrar que a aids existe, serve para mudar o comportamento sexual das camadas mais elevadas da população. Mas meter a mão no problema, descer fundo no problema mesmo, não é a campanha que vai fazer, é ter camisinha acessível para todo mundo em todo lugar.

Matinas Suzuki: O escritor João Silvério Trevisan, aqui de São Paulo, pergunta: “A eclosão da aids deixou claro o despreparo psicológico, cultural da classe médica em geral para confrontar-se com a questão da peste e da morte. As faculdades de medicina nunca pensaram em fazer inovações cruciais nos seus currículos para melhorar a qualidade humana dos médicos brasileiros?”

Drauzio Varella: Acho que essa é uma afirmação com a qual eu concordo, é verdade. O preparo humano que as faculdades de medicina dão no Brasil é insignificante, muito ruim, de péssima qualidade quando existe. A aids checa isso muito claramente. Acho que nós médicos estávamos completamente despreparados para isso. Não só aqui no Brasil, em muitos outros lugares do mundo também.

Matinas Suzuki: Agora, Drauzio, o nosso programa está chegando ao fim. Eu sou jornalista e há um ditado nas redações, quando você fecha uma edição de jornal, você fala “mais uma batalha perdida”, ou seja, é uma profissão que frustra muito. Eu imagino que a sua, trabalhando com doentes terminais, deva ser uma frustração muito grande. Como você consegue, lidando com tantos casos difíceis, lidando com tantas vidas correndo risco imenso de sobreviver, como você consegue ter ânimo e disposição para continuar fazendo campanhas e lutando pela vida de tanta gente?

Drauzio Varella: Não, está cheio de gente aí fazendo assim. É porque esse tipo de medicina tem também um lado muito interessante, porque acho que é a medicina no maior grau que ela pode existir. Você pegar um doente que está com amidalite, dá um antibiótico, manda para casa, uma criança, fica boa com certeza absoluta, lógico que é gostoso, mas é diferente você estar ali lidando com uma pessoa que está ali ficando fraca, e você dá um remédio, tenta outro, lê, estuda, conversa com os outros. Isso é a mágica da medicina, é a verdadeira mágica, é a luta do médico contra a morte mesmo, que é o objetivo básico da profissão: impedir que as pessoas morram. E esse aspecto vem sendo trazido pela medicina moderna muito claramente, porque no passado havia determinadas situações em que não se fazia mais nada pelos doentes. Eles iam para as Santas Casas [de Misericórdia] morrer, ficavam com uma senhora voluntária dando uma sopinha. Hoje não, hoje você tem essa luta toda: os doentes com câncer que fazem transplantes, que fazem procedimentos agressivos. E essa medicina é muito interessante de ser feita. Isso apaixona muitos jovens também. Então, acho que vai sair uma geração... sou muito otimista nesse sentido. Acho que a medicina no Brasil chegou a um nível que não podia ter chegado mais baixo, mas daí vai emergir alguma coisa interessante.

Matinas Suzuki: Doutor Drauzio Varella, muito obrigado pela sua presença no Roda Viva desta noite. Tenho certeza que nos ajudou a subir mais um degrauzinho na campanha contra a doença da aids. Eu queria agradecer bastante a presença dos nossos entrevistadores e também a participação dos telespectadores, que hoje foi bastante intensa. E espero que o programa tenha sido bastante proveitoso para todos. O Roda Viva volta na próxima segunda-feira às 10h30 da noite. Uma boa semana e uma boa noite para todos.
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