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Memória Roda Viva

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José Bové

5/2/2001

Autor do livro O mundo não é uma mercadoria, o líder camponês francês e porta-voz da Confederação Camponesa explica por que combate os transgênicos e defende o direito da soberania alimentar a todos os países

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[programa gravado]

Paulo Markun: Boa noite. O Roda Viva de hoje foi gravado em 23 de janeiro, dias antes do início do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, da invasão de uma plantação de soja transgênica no Rio Grande do Sul e da batalha judicial em torno da expulsão do líder camponês francês José Bové do país. Por essa razão é que esse temas não foram abordados durante a entrevista, mas ainda assim, a hora e meia de conversa com ele permite conhecer melhor as idéias daquele que é hoje, no mundo todo, o mais conhecido ativista na luta contra a globalização.

[inserção de vídeo]

Narração Valéria Grilo e edição de Sérgio de Castro: De um lado, a carne de vaca americana, de outro, o queijo roquefort, francês, produtos de duas culturas que encaram a alimentação de modos tão diferentes, a carne bovina americana e o roquefort francês ajudaram a expor ainda mais os problemas surgidos com a globalização. Em 1999 a carne americana com hormônios foi rejeitada por alguns países da União Européia, incluindo a França. Os americanos decidiram, então, sobretaxar vários produtos europeus, incluindo o queijo roquefort. A reação francesa que mais chamou a atenção [aparecem imagens de José Bové] veio deste polêmico e controvertido líder camponês, que estudou filosofia e depois foi ser criador de ovelhas e produtor de roquefort na pequena cidade de Millau, no sul da França. José Bové comandou um grupo de agricultores em um ataque a uma loja do McDonald's. Levado à Justiça, foi condenado e ficou preso durante 19 dias. O julgamento levou ao pequeno vilarejo de Millau cerca de seis mil jornalistas de várias partes do mundo. Agricultores da região e grupos ativistas promoveram passeatas, protestando contra a Organização Mundial do Comércio [OMC] e contra as empresas multinacionais, acusadas de impor seus produtos ao mundo e de interferir até mesmo na soberania de vários países. Os protestos no sul da França anteciparam o que se veria depois em Seattle, nos Estados Unidos [em 30 de novembro de 1999]. Os movimentos antiglobalização atrapalharam a Rodada do Milênio da Organização Mundial do Comércio, chamando ainda mais a atenção para o discurso contra o atual modelo de comércio global. Mais recentemente, sem a violência e a dimensão dos protestos de Seattle, o Fórum Econômico e Mundial, em Davos, na Suíça, também foi cenário dessas manifestações, como também foi o Fórum Social Mundial realizado em Porto Alegre. José Bové, que gravou o programa Roda Viva antes de ir a Porto Alegre para participar do Fórum Social, se envolveu em um incidente, ao invadir e destruir, com o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra], uma plantação de soja transgênica da [indústria multinacional de agricultura e biotecnologia, fundada nos Estados Unidos em 1901] Monsanto no Rio Grande do Sul. A plantação era destinada a um trabalho científico de pesquisa com plantas geneticamente modificadas. Por ter cometido crime de invasão de propriedade e por infringir a legislação brasileira sobre estrangeiros, ele foi notificado a deixar o país em 24 horas. Bové recorreu à Justiça e conseguiu ficar mais um dia em Porto Alegre, até o final do Fórum Social Mundial.

[fim do vídeo]

Paulo Markun: Para entrevistar o produtor José Bové, nós convidamos o agrônomo Francisco Graziano, que também é deputado federal pelo PSDB de São Paulo; o jornalista Jaime Spitzcovsky, colaborador da Folha de S.Paulo e diretor do site PrimaPagina; o geógrafo Bernardo Mançano Fernandes, doutor em geografia agrária e professor da Universidade Estadual Paulista do campus de Presidente Prudente; o jornalista Ulisses Capozoli, repórter da área de ciência e tecnologia e presidente da Associação dos Jornalistas Científicos; também está presente a jornalista Mônica Teixeira, aqui da TV Cultura; o jornalista Luiz Weis, articulista do jornal O Estado de S. Paulo; e Paulo Daniel Farah, repórter e redator da editoria Mundo do jornal Folha de S.Paulo. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília. Este programa está sendo gravado e, portanto, não permite a participação dos telespectadores. Boa noite.

José Bové: Boa noite.

Paulo Markun: Eu queria começar com a seguinte questão: o que o senhor tem contra o McDonald's?

José Bové: Ao depredar o McDonald's em Millau, em 12 de agosto de 1999, não visávamos o estabelecimento comercial, mas sim aquilo de que ele era o símbolo. A ação foi uma resposta a uma decisão da Organização Mundial do Comércio, que em junho, julho de 1999, condenou a Europa porque esta se negava a comercializar carne bovina com hormônios no mercado europeu. Em conseqüência, a OMC autorizou os Estados Unidos a sobretaxarem vários produtos europeus, como o queijo roquefort, de que sou produtor, pois sou fornecedor de leite de ovelha, crio carneiros. Estivemos então com o ministro da Agricultura, o primeiro-ministro francês, a Comissão de Bruxelas para saber que respostas havia no campo jurídico. Não havia. Então quisemos alertar a opinião pública sobre o fato de que a OMC ameaçava a saúde pública ao querer impingir carne com hormônios aos consumidores europeus. Na Europa, o uso de hormônios na bovinocultura está proibido desde 1989. Na ausência de um recurso jurídico, decidimo-nos por uma ação simbólica, atacando um símbolo. O McDonald's havia acabado de chegar à nossa região; decidimo-nos, pois, por essa ação simbólica, denunciando a padronização da alimentação no planeta e, também, a primeira multinacional de alimentação no mundo que usa só produto da agricultura industrial, ou seja, carne processada de boi ou de frango, uma única variedade de batata para todos os McDonald's do mundo e três variedades de salada. É, pois, o símbolo de uma alimentação padronizada e, ao mesmo tempo, de uma produção agrícola que dispensa camponeses. Foi por isso que escolhemos esse símbolo e realizamos essa ação sindical às claras, pois tínhamos avisado, com cinco dias de antecedência, que naquela data iríamos atacar a construção.

Luiz Weis: Em outras palavras, o senhor diria que a utopia da sociedade sem classes cedeu lugar à utopia da sociedade sem junk food [comida rica em calorias e de baixa qualidade nutritiva]?

José Bové: Acho que nessa história era importante demonstrar que hoje as instituições internacionais, como a OMC, não estão aí só para organizar o comércio em nível internacional, mas também para impor uma lógica totalitária e, nesse caso específico, uma lógica totalitária sobre a alimentação. A conscientização da França e da Europa, após essa ação, foi de que a OMC impunha, acima das leis de um país ou de um grupo de países, o tipo de alimentação que as pessoas deviam ter e, a partir daí, a abertura sobre a padronização e a comercialização do conjunto de direitos como, por exemplo, a cultura, a saúde ou a educação. Há, hoje, uma resistência a um modelo único, e foi essa resistência que aquela ação simbolizou.

Luiz Weis: Só para completar, a sua resistência, se bem entendo, é contra o modo de alimentação, para usar a sua expressão, cada vez mais difundido pelo capitalismo ou contra o próprio capitalismo?

José Bové: Acho que devemos ser coerentes. Hoje o mercado existe em nível internacional, não pretendemos negar que existem trocas comerciais. Nossa contestação pretende mostrar que, através das organizações internacionais, como a OMC, tenta-se impor uma lógica de mercado para o mundo todo, como único modo de regulação e como único critério para criar o desenvolvimento. O protesto não põe em questão o mercado como tal, mas o fato de que hoje a lógica de mercado é a única que deve prevalecer no conjunto das relações entre as pessoas.

Jaime Spitzcovski: Senhor Bové, o senhor não acha que o senhor representa também a face de uma França frustrada e, acima de tudo, irritada com o predomínio dos Estados Unidos e também irritada com a incapacidade da própria França de voltar a ter o mesmo papel que já teve em outros tempos no cenário internacional?

Paulo Markun: Só para completar, o produto que o senhor de alguma forma ajuda a produzir é um produto que tem também uma penetração internacional importante, quer dizer, em muitas mesas de brasileiros, deixa-se de comer queijo fabricado no Brasil para se comer queijo roquefort ou o camembert, enfim, queijos produzidos na França; essa internacionalização não é de hoje.

[...]: E ela beneficia os senhores também.

José Bové: Respondendo à primeira parte da questão, nossa reação não se limitava à França, pois tinha sido uma decisão européia que havia proibido os hormônios. Nossa reação foi contra essa lógica internacional que impõe, diante dos responsáveis políticos, uma decisão de mercado, foi essa a reação. Quando defendemos a marca registrada roquefort, um dos 100 produtos europeus sobretaxados pelos Estados Unidos, o objetivo era denunciar a penhora de um produto de uma região pequena da França, pois somos menos de três mil produtores a fazer esse queijo. E, quanto à segunda parte da questão, a produção desse tipo de queijo não recebe ajuda da Comunidade Européia, isto é, não há subsídio a sua exportação. Nosso objetivo era condenar a lógica da OMC e, ao mesmo tempo, dizer que apoiamos o livre-comércio de produtos não subsidiados e não concorrentes com os de outras regiões do mundo. Lutamos contra o fato de que hoje os grandes países, como os da Europa ou os Estados Unidos, subvencionam, direta ou indiretamente, a exportação e destroem o modo de produção agrícola de muitos países, sobretudo os do sul, pois as subvenções agrícolas se referem, sobretudo, ao leite, aos cereais e à carne.

Luiz Weis: E como é que o senhor avalia as barreiras, a política protecionista de seu país e demais países europeus em relação aos produtos primários de exportação de um país como o Brasil, os produtos agrícolas?

José Bové: Acho que isso se refere a uma posição mais geral, a uma reflexão mais ampla sobre o que a agricultura é hoje em nível mundial e como deve se organizar o comércio de seus produtos. Não trabalhamos apenas como sindicato francês, fazemos parte de uma federação internacional que se chama Via Campesina, da qual, no Brasil, o MST faz parte. Ele faz parte desse conjunto de camponeses do mundo, presentes em todos os continentes. E nossa posição é clara: nós dizemos que cada país ou grupo de países deve ter o direito à sua soberania alimentar. Isto é, as instituições internacionais não devem imiscuir-se no que se refere à produção necessária para alimentar as populações dessas regiões.

Luiz Weis: Quer dizer que o senhor defende a autarquia [a auto-suficiência e a autonomia dos países] na produção e no consumo de alimentos?

José Bové: Não, não se deve confundir. Se tomarmos globalmente os números internacionais, há menos de 10% de produtos agrícolas primários que circulam em torno do planeta; mais de 90% dos produtos agrícolas são consumidos nas regiões onde são produzidos.

Luiz Weis: E isso é bom?

José Bové: Hoje, a lógica da OMC é querer estender esses 10% a toda a produção agrícola, o que é um perigo, porque tal lógica favorece só dois grupos de países, os da Europa, de um lado, e os Estados Unidos, de outro, através da política de subvenção e de dumping. Por exemplo, pelo Acordo de Marrakesh, de 1995 [na verdade, este acordo, que criou a OMC, foi assinado em 1994, e no dia primeiro de janeiro de 1995 a OMC entrou em vigor], cada país deve importar no mínimo 5% do que consome, produto por produto. A OMC decidiu isso em Marrakesh. Então, hoje, como os Estados Unidos e a Europa podem subvencionar suas exportações, colocam no mercado produtos a um preço inferior ao custo de produção dos países onde chegam. Por exemplo, nos últimos sete anos a Europa exportou carne bovina congelada a países ao sul do Saara, na África, a US$1,30 o quilo, quando o custo de produção local era de US$2,50 o quilo. Isso acarretou a redução pela metade do plantel desses países africanos. Nós condenamos e lutamos contra isso, e pedimos a supressão imediata de toda subvenção direta ou indireta às exportações da Europa e dos Estados Unidos.

Francisco Graziano: Quando ficou claro que as negociações da OMC em Seattle [entre 30 de novembro e 3 de dezembro de 1999] haviam fracassado, o senhor estava lá e foi ativo manifestante contrário à realização, eu representava, em Seattle, uma comissão do Congresso brasileiro que queria ver a reunião ter sucesso. Por quê? Porque do ponto de vista dos países que querem produzir e exportar, países como o Brasil, como a Argentina, como os países que são os maiores produtores de alimento, o que nós acreditávamos, e acreditamos ainda, é que a OMC pode ser uma arma importante para abrir os mercados dos países que se protegem, e nós não conseguimos exportar carnes, frango, açúcar, suco de laranja, frutas como poderíamos estar exportando, porque há barreiras, há impostos, há tarifas e há proteção de agricultura. Muito bem, a sua visão é que o fracasso da OMC foi um golpe certeiro contras as potências mundiais; a nossa visão é que o fracasso de Seattle foi um golpe contra países em desenvolvimento, como o Brasil, porque nós ficamos mais e mais dependentes dos países hegemônicos. Ou seja, sem a OMC nós ficamos em uma situação de não conseguir abrir os mercados para exportar mais. Há quem argumente que parte da pobreza dos agricultores brasileiros se deve ao protecionismo feito na União Européia de seus agricultores. Como o senhor vê essa dicotomia? Porque do ponto de vista da França é muito compreensível a sua opinião; do ponto de vista dos agricultores brasileiros, nós precisamos exportar mais, porque essa é uma forma de gerar renda aqui para o Brasil.

José Bové: Há duas partes na sua pergunta. Primeiro, a parte sobre a reunião de Seattle. A causa de seu fracasso foi também, sem dúvida, o movimento dos sindicatos e do povo nas ruas, mas não estávamos sozinhos. Se o encontro fracassou, foi porque 75 países se recusaram a assinar a abertura de um novo ciclo de negociações. A recusa veio do interior dos 147 países signatários, pois 75 não renegociariam naquelas condições.

Francisco Graziano: Me permita, [o ex-presidente dos Estados Unidos] Bill Clinton... a nossa visão, a dos países em desenvolvimento, é que o governo americano estimulou as manifestações para que a rodada de Seattle não desse certo, porque eles queriam continuar mantendo o statu quo, por exemplo, não comprando camarão do Brasil para proteger as tartarugas, o que francamente era algo que não aceitávamos.

José Bové: Não acho que se possa dizer isso. Disseram até que eu era pago pela CIA [Central Intelligence Agency, dos Estados Unidos], mas não acreditaram, pois, se fosse o caso, eu estaria hoje bem melhor e não precisaria vir ao Fórum Social Mundial em Porto Alegre. É uma piada. Podemos dizer que 75 países rejeitaram a abertura por razões bem claras: não se tem um balanço das atividades da OMC desde a assinatura do Acordo de Marrakesh. Ora, todos sabem, na ONU os especialistas constataram, no organismo para o desenvolvimento ligado às Nações Unidas, que a distância entre países ricos e pobres aumentou muito, mais ainda após a assinatura do Acordo de Marrakesh. Não houve uma avaliação das negociações de Marrakesh, e quando se iniciou, em 99, o novo ciclo de negociação, nenhum balanço havia sido feito. Hoje, então, podemos dizer bem claramente que um novo ciclo de negociação naquelas condições era o pior momento para recomeçar a negociar, pois não se considerava o que havia acontecido nos cinco anos em que se deterioraram as condições dos países do sul. Tomemos o exemplo que você deu quanto ao Brasil. Hoje o Brasil quer aumentar as exportações para criar divisas, visando a diminuir sua dívida externa, pela qual o FMI e o Banco Mundial são responsáveis. Não acho que esse deva ser, verdadeiramente, o objetivo da agricultura brasileira. Analisando a situação atual do Brasil, que conheço através de discussões com responsáveis brasileiros, quando vemos cerca de 30 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza, passando fome, e outros 30 milhões ganhando abaixo do que necessitam, o que perfaz 60 milhões, e que, ao lado disso, a concentração de terras é tal, que coloca o Brasil em segundo lugar quanto à concentração de terras, com 2% de proprietários tendo 50% da terra, conclui-se que a primeira necessidade do país é que sua agricultura vise a alimentar sua população, mais do que criar divisas pela exportação.

Paulo Daniel Farah: A política agrícola comum consome cerca de 50% do orçamento da União Européia, representando mais de 40 bilhões de dólares por ano em subsídios diretos aos agricultores. Os Estados Unidos dizem que isso prejudica o andamento do comércio internacional, e para os europeus, o agricultor parece ser não mais um simples produtor de alimentos, mas um guardião da natureza, um agricultor jardineiro. Gostaria de saber do senhor qual é a relação entre os subsídios agrícolas e a multifuncionalidade da agricultura.

José Bové: Hoje, de fato, 50% do orçamento europeu vai para a agricultura. A cada US$13 de impostos, US$6,5 vão financiar a política agrícola comum. Ao mesmo tempo, nos Estados Unidos, a relação é praticamente a mesma, com outras ajudas e uma subvenção importante. Nós dizemos claramente que somos favoráveis a uma política agrícola européia para sustentar uma forma de agricultura dentro da Europa. Em 1958, quando a Europa decidiu ter uma política agrícola comum, esse foi o primeiro objetivo político da Europa. O primeiro gesto político foi dizer que os europeus devem ser auto-suficientes para alimentar sua população. Nós dizemos que é uma escolha política que significa que o conjunto de povos sobre a Terra, os países ou grupos de países que se reúnem, possam garantir o mesmo apoio à sua agricultura, o qual permita: dominar a produção e garantir um volume necessário; escolher que tipo de agricultura adotar, isto é, garantir a qualidade da produção, garantir a qualidade do meio ambiente e, ainda, ter camponeses em número elevado. Significa ainda que, graças a essa política, podemos também administrar o preço para que não seja muito alto para os consumidores, ou seja, que haja equilíbrio entre produção e consumo. Isso nos parece importante, e não deve ser uma noção apenas européia, mas internacional, isto é, a soberania alimentar deve ser objetivo de todos os países, e as organizações internacionais como a OMC não devem opor-se a que os países criem sua própria política agrícola, um direito fundamental dos povos da Terra.

Bernardo Mançano Fernandes: Em seu livro O mundo não é uma mercadoria, você destaca a luta e a resistência da Confederação Camponesa. Eu estava vendo que a Confederação Camponesa foi fundada em 1984, o mesmo ano em que o MST também foi fundado; então são dois movimentos, duas organizações camponesas, uma em um país de Terceiro Mundo, uma em um país de Primeiro Mundo que está lutando aí por uma política agrícola, lutando pela terra. Eu pediria para o senhor fazer uma comparação, considerando a diferença entre a França e o Brasil, entre a Confederação Camponesa e o MTS, e o que esses movimentos representam para a organização camponesa no mundo hoje.

José Bové: São realmente dois exemplos, um no hemisfério norte, outro no sul, um em um país industrializado, rico, outro em um país emergente. O papel da Confederação Camponesa na Europa é, hoje, colocar a questão da agricultura e dos modos de produção para atingir uma produção de qualidade, com camponeses numerosos distribuídos no conjunto de território europeu. Nossa luta, hoje, é para que haja camponeses em número elevado em todos os países e para que eles possam produzir com qualidade, isto é, que o modo de produção satisfaça os consumidores, mas sem destruir o meio ambiente. Por exemplo, hoje, na França, a Bretanha, em toda a costa atlântica, no oeste, o lençol freático está poluído por dejetos industriais. O mesmo se dá na bacia parisiense, por causa do excesso de pesticidas e adubo nas plantações. Nós lutamos por uma boa produção, por produtos que satisfaçam os consumidores e também garantam a renda dos agricultores. Tal luta hoje visa também que nossos métodos de produção e regras econômicas não destruam outras formas de agricultura, por isso combatemos os subsídios à exportação, que destroem outras formas de agricultura no mundo. Acho que a luta do MST, hoje, vai na mesma direção, visando criar uma agricultura com mais camponeses, que crie empregos, cujo objetivo principal seja alimentar a população do Brasil e contribuir para o equilíbrio alimentar dos países vizinhos em sua organização de mercado. Existe, pois, um objetivo comum, que é uma agricultura com muitos camponeses repartidos sobre o território, podendo viver e produzir com qualidade. Acho que, sob esse aspecto, temos objetivos comuns sobre a questão da terra. A divisão da terra e das ferramentas de trabalho é o primeiro slogan da Confederação Camponesa, e acho que também do MST. Para nós, o que conta é o uso da terra e sua administração, tendo em vista uma produção com um máximo de camponeses.

Ulisses Capozoli: Eu gostaria de levantar uma questão na mesma direção, ligeiramente diferente: num momento de poder supranacional, como a gente pode entender que um agricultor do interior da França seja alçado à condição de estrela de contestação dessa ordem? Como o senhor se sentiu chegando às capas das revistas, às TVs, às primeiras páginas do jornal? Seria inevitável esperar que um agricultor, por exemplo, tivesse legitimidade para fazer essa contestação... as outras alternativas para contestar essa ordem internacional supranacional estão esgotadas? Quer dizer, o senhor, como um agricultor, claro que é um agricultor com um perfil muito diferente dos agricultores brasileiros, o senhor tem formação superior em filosofia, por exemplo, essa é uma condição muito rara de a gente encontrar no produtor brasileiro, mas como é que o senhor entendeu a sua posição de uma certa estrela, não de um porta-voz, mais precisamente, de contestação de uma ordem supranacional, uma ordem que ameaça a história de todos os povos, por uma uniformização, digamos, muito temerária e preocupante?

José Bové: Bem, a luta da confederação não começou em 1999. Há mais de 20 anos trabalhamos nesse sentido. Nossa primeira luta sobre a questão internacional foi contra o GATT [Acordo Geral de Tarifas e Comércio, que mais tarde se tornou a Organização Mundial do Comércio], que, na Rodada Uruguai [série de negociações para a diminuição das barreiras comerciais entre os países, durou de 1986 a 1994 e culminou com a instituição da Organização Mundial do Comércio], introduziu a agricultura nas negociações internacionais. Criamos, então, a organização Via Campesina, para refletir, em conjunto com os outros camponeses, sobre qual seria o objetivo da agricultura no mundo de hoje. Foi quando começamos a lutar e a organizar redes em nível internacional. O que houve em 1999, na França, com a ação simbólica contra o McDonald's e, depois, a manifestação em Seattle, ampliaram esse movimento. Se ele teve tal repercussão, foi por sua convergência com movimentos de outras categorias sociais, como o dos operários e o de cidadãos que surgiam em várias partes do mundo. Hoje, podemos dizer que o movimento camponês trata de algo fundamental, a alimentação, uma coisa vital para todos os homens. É uma preocupação de todos os habitantes da Terra, ou porque os homens não têm o que comer porque não podem produzir ou porque não têm renda, ou porque hoje há uma deterioração dos produtos, e a agricultura industrial chegou a um impasse, por exemplo, com o caso da vaca louca [doença neurodegenerativa que atinge os bovinos; surgiu na Inglaterra na década de 1980, alcançando o status de epidêmica no início dos anos 90, período no qual se descobriu seu agente causador, uma proteína que podia ser encontrada na ração oferecida aos animais] na Europa, e há outros exemplos. Então, hoje a alimentação se tornou o símbolo dessa resistência internacional com relação ao fato de que certas atividades humanas estão ligadas ao território e não podem ser objeto de um mercado controlado por quatro ou cinco grandes multinacionais. Por isso, a luta camponesa simboliza essa resistência. Lembro ainda que, tomando a Terra em sua totalidade, hoje mais de 60% de seus habitantes são camponeses, o que significa que a agricultura ainda é a principal atividade da humanidade, e a fixação do homem em sua região é fator essencial para que, no futuro, não cheguemos à situação absurda de megalópoles de 50, 60 milhões de habitantes com problemas imensos para o meio ambiente, problemas sociais e de atividade. Hoje, manter elevado o número de camponeses com atividade produtiva voltada à população é condição básica para o equilíbrio no próximo milênio.

Paulo Markun: Senhor Bové, nós vamos fazer um rápido intervalo e o Roda Viva volta daqui instantes, até já.

[intervalo]

Paulo Markun: Nós estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o agricultor francês José Bové, presidente da Confederação Camponesa da França. O senhor lançou este livro, O mundo não é uma mercadoria, que agora vai ser publicado no Brasil pela editora da Unesp, e me informou, agora há pouco, que o livro já vendeu mais de 100 mil exemplares só na França e foi traduzido para diversos países [aparece a imagem da edição francesa do livro; na capa, uma foto de Bové sorrindo ao exibir seus braços presos por uma algema, em referência a sua prisão]. Eu vi aqui na contracapa do livro que os direitos autorais pertencem à editora La Découverte. Eu queria saber se esses direitos autorais financiam o senhor, que afinal deve ter mais tempo ocupado por essa atividade política contra a globalização do que produzindo queijo, leite etc, ou se são destinados para uma organização não governamental.

José Bové: Atualmente sou porta-voz da Confederação Camponesa. Fui eleito no congresso de abril, na França. Trabalho em tempo integral para nossa organização, especialmente no campo das relações internacionais. A organização paga quem me substituiu na empresa, na qual somos cinco sócios trabalhando juntos. Produzimos leite para o roquefort, para outros queijos, e também carne de carneiro, de vaca e de porco, que transformamos e vendemos diretamente ao consumidor. Alguém está me substituindo na fazenda para eu me dedicar inteiramente às atividades sindicais. Mas, ao mesmo tempo, você fez bem em dizer... na França o autor de livros recebe direitos autorais. Sobre um livro vendido a 95 francos na França, 12 francos vão para o autor. Desde quando escrevemos o livro, eu e François Dufour, o co-autor, camponês como eu, decidimos doar integralmente os direitos autorais ao sindicato. É o sindicato que recebe os direitos autorais do livro que escrevemos juntos.

Paulo Markun: Eu só queria me permitir a fazer uma outra pergunta, que eu sei que todos os meus colegas querem perguntar também: o senhor, quando organizou aquele movimento contra a loja do McDonald's, com certeza imaginava que ia dar mais repercussão do que, por exemplo, se vocês fossem protestar diante da embaixada americana, que talvez fosse mais diretamente responsável pelas decisões da OMC. Mas o senhor imaginou que isso fosse provocar essa onda enorme de divulgação mundial que o transformou em uma figura pública citada como uma das 50 mais influentes pela Business Week, por exemplo?

José Bové: Quando organizamos uma ação sindical, acho que o objetivo é que ela seja compreendida e que o maior número de pessoas possa aderir às razões pelas quais a organizamos. Procuramos um alvo que seja coerente com o objetivo. O que não podíamos prever é que, além da grande repercussão na França e na Europa, a ação tivesse repercussão internacional e que pessoas, tanto do norte como do sul, se identificassem com ela. Diria simplesmente que o objetivo de uma ação é atingir o maior número de pessoas, mas não sabemos se no momento em que a realizamos ela coincidirá com os anseios da opinião pública. Em escala menor, é a mesma coisa que, quando os franceses, em 1789, atacaram uma prisão, não podiam prever que isso se tornaria símbolo, a queda da Bastilha [um dos eventos que marcaram a Revolução Francesa] se tornaria símbolo da república para todos os povos da Terra.

Monica Teixeira: Monsieur Bové, é uma espécie de lugar-comum [dizer] que o problema da fome no mundo é muito mais um problema de distribuição de comida do que propriamente de um país produzir ou não produzir comida. Eu gostaria de saber se o senhor partilha dessa idéia, de que o problema da fome é um problema de distribuição da comida, e como isso se articula com essa colocação que o senhor fez, durante todo o primeiro bloco, de que cada país deve produzir a sua própria comida.

José Bové: A Terra tem hoje cerca de 800 milhões de habitantes que não comem o suficiente. Ao mesmo tempo, há grandes regiões vítimas da seca, e um relatório da ONU, neste outono, diz claramente que para combater a fome no mundo de forma eficaz havia duas coisas fundamentais a fazer. Primeira, extinguir os subsídios às exportações nos Estados Unidos e na Europa; segunda, dar acesso à terra para os camponeses. Significa que, se tomarmos globalmente esses dois pontos, é necessário haver, em nível internacional, proteção aos países mais frágeis, sobretudo do sul, para que possam produzir sua alimentação básica sem serem ameaçados pelas importações dos países ricos. Falei da África, poderia falar da Ásia, onde as Filipinas, desde o Acordo de Marrakesh, obrigadas a importar 5% de sua produção de arroz, importaram arroz mais barato do que o produzido ali. Hoje elas importam 20% do seu arroz, o que significa milhares de famílias filipinas excluídas. É preciso extinguir esse subsídio e permitir que um país ou um grupo de países, é uma discussão regional, possam proteger sua agricultura. Ao mesmo tempo, deve haver acesso à terra. Hoje, em muitos países, se não houver reforma agrária, a população não poderá alimentar-se corretamente. A mesma situação que observamos no Brasil, infelizmente existe em muitos outros países, não só na América do Sul, mas na África e na Ásia. Então, hoje, o acesso à terra para os camponeses é crucial para permitir a toda a população do mundo viver e alimentar-se suficientemente.

Monica Teixeira: Só completando: o senhor acredita que esse modelo que o senhor defendeu, que é muito modelo francês, pode aplicar-se, por exemplo, à África Negra?

[...]: Ou à China?

José Bové: A África Negra tem enorme potencial de produção. O problema atual na África não é saber se há terra suficiente, pois há, o problema é que o continente africano está superpovoado em relação a seu potencial. É um problema geopolítico, e hoje o maior problema lá são as guerras que se multiplicam, não apenas pela vontade de seus habitantes, mas porque, pela geopolítica, hoje a África se tornou muito valiosa pela riqueza mineral de seu subsolo. Hoje, vemos conflitos entre Estados Unidos e Europa acontecerem no continente africano. A África é hoje vítima do que houve em séculos passados, uma hemorragia enorme que nenhum outro povo conheceu, hemorragia ligada à escravidão e, depois, à colonização que fez desses países simples fontes de matéria-prima enviada às metrópoles. A África é hoje uma causa política e geoestratégica. Ela necessita que os recursos dos países ricos lhe cheguem de modo sistemático. É preciso não só cancelar a dívida, levá-la a zero, para o conjunto dos países [africanos], mas, ao mesmo tempo, que recursos compensem as centenas de anos de escravidão e colonialismo.

Monica Teixeira: Mas o senhor acha que é um modelo como o europeu que vai dar à África Negra a soberania alimentar? É um modelo como o francês?

José Bové: Acho que há vários tipos de modelo. Eu falo de regras de nível internacional, que são a extinção do subsídio à exportação, a extinção do dumping, que consiste em vender a um país produtos a preços inferiores ao seu próprio custo de produção. É totalmente anormal que cereais, carne, leite cheguem a um país a preço menor do que o custo de produção desses produtos no país. Os países devem poder proteger suas fronteiras, a arma menos cara de proteção à agricultura e acessível a todos os países. Hoje, essa proteção é mais forte nos Estados Unidos e Europa do que no resto do mundo, o que é inaceitável. A proteção deveria ser inversamente proporcional à riqueza e ao desenvolvimento do país, isso é fundamental. Além disso, é preciso haver uma organização comercial que – com regras novas, que chamamos de “comércio eqüitativo” – permita que a exportação de produtos não concorrentes com produtos da alimentação básica da população se faça cobrindo o trabalho dos camponeses e o custo da produção. São regras que devem se adaptar a cada região, passando antes por acordos na ONU. É a OMC que deve cuidar desse problema? Não sei. É a ONU, a FAO [Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação]? O que está bem claro é que deve haver regras internacionais de proteção ao desenvolvimento da agricultura no mundo todo.

Jaime Spitzcovski: Senhor Bové, eu gostaria de ouvir seus comentários a respeito de duas referências a sua pessoa que eu encontrei em um texto publicado no jornal Libération. São críticas que seus adversários fazem ao senhor e eu gostaria de ouvir as suas respostas. A primeira: “Trata-se de um agitador profissional que chegou a fazer cursos de formação na Líbia, cursos financiados por Muamar Kadafi”. Segundo a crítica que consta aqui também desse texto do correspondente Patrick Sabatier, mencionando aqui a declaração de um militante de uma ONG: “Nós não vimos o senhor Bové em nossas reuniões fazer nenhuma pressão sobre delegados europeus ou franceses, ele toma posições maximalistas ao limite da demagogia”. Como o senhor responde a essas críticas?

José Bové: Quanto à primeira parte, faz parte da propaganda utilizada por adversários, sobretudo nos Estados Unidos, pois foi lá que primeiro vi essa referência à Líbia. Davam até a data, 1987. É fantasia, logo refutada, pois infelizmente nunca atravessei o Mediterrâneo, nem estive em nenhum país do [Grande] Magrebe, esse ou qualquer outro. Isso faz parte da intoxicação, faz parte das frases habituais que se ouvem. Eu mesmo ouvi que meu avô foi traficante de armas. Pode-se inventar qualquer coisa, é pura demagogia. A segunda crítica não veio de alguém de uma ONG, mas do presidente de outro sindicato francês, o FNCA, que defende os grandes industriais de carne e cereais na França. Em Seattle, ele ficou com os membros do patronato tentando negociar acordos para manter a exportação, pois sua reivindicação principal é que a produção agrícola continue a exportar. Ele nos contesta, claro, pois temos posições radicalmente opostas. Para nós, a agricultura européia não tem vocação exportadora de matéria-prima que lhe permita concorrer com outras agriculturas.

Luiz Weis: Monsieur Bové, para atingir os seus objetivos, os objetivos de pessoas que pensam como o senhor, o senhor fala em ação simbólica, como o caso da – como o senhor diz? – depredação do McDonald's, ou do eufemismo que o senhor usou para isso, manifestações públicas, movimentos sociais, passeatas. Eu não ouvi em nenhum momento o senhor fazer referência à política convencional: eleições, partidos, enfim, eu devo deduzir daí que a luta política convencional que se dá através das instituições democráticas, de um país democrático como a França, não lhe interessa, isto é, o senhor está além disso? O senhor não tem um compromisso, digamos, ideológico com a democracia?

Paulo Daniel Farah: Eu gostaria de completar a pergunta. No julgamento em torno do desmonte do McDonald's, o senhor se comparou ao Gandhi, que defendia o princípio da não-violência. Eu queria saber até que ponto são táticas válidas de atuação ocupação de prédios públicos e ataques a propriedades, se não envolverem utilização de violência física.

José Bové: Quanto à primeira, sou porta-voz de uma organização sindical. O importante hoje é que, enquanto movimento social, trabalhemos com outros sindicatos e movimentos de cidadãos. É importante hoje que o conjunto desses movimentos crie contrapoderes para pressionar os partidos políticos e dos governos dos países, que são os negociadores. Esses movimentos atingiram legitimidade após Seattle, e hoje são reconhecidos como interlocutores. As instituições políticas de nossos países falharam. Sua missão era defender o interesse das populações. Ora, antes de todas essas reuniões internacionais não houve nenhum debate nos parlamentos nacionais, nem no parlamento europeu em nossa região. Segundo as informações que tive, então, do Brasil, o mesmo aconteceu aqui. O parlamento brasileiro não foi consultado quanto às medidas da OMC. Então, a situação atual exige que os movimentos sociais se reapropriem desse debate e pressionem os governos, porque nosso debate se dá tanto em nível internacional, sobre reivindicações que ultrapassam as fronteiras, quanto como pressão sobre nosso governo, para que ele possa respeitar as escolhas dos cidadãos.

Luiz Weis: Mas essa pressão de que o senhor fala pode ser pacífica ou não?

José Bové: Essa pressão é hoje extremamente pacífica. É uma pressão que fazemos...

Luiz Weis: [interrompendo] Impedir o direito de ir e vir das pessoas, como em Seattle, como se tentou fazer em Praga, é uma atitude legítima e coerente com valores democráticos, que eu imagino que o senhor defenda?

José Bové: Acho que [são] ações simbólicas, pois foi uma ação simbólica o que houve em Seattle: em um só dia, dos cinco dias de negociações, fez-se o cerco do prédio, do local das negociações, para interpelar as delegações sobre o que ia acontecer. Não passou pela cabeça de ninguém que as pessoas iam bloquear as ruas durante cinco dias. O importante era mostrar, de modo pacífico, e o que houve em Seattle foi bem pacífico, que o movimento social estava nas ruas. Havia lá sindicatos, organizações de operários e de camponeses, mas também consumidores e ambientalistas que se uniram naquele protesto. Nos dias seguintes os debates se realizaram, e eu mesmo estava credenciado a entrar no prédio onde se reuniam os delegados da OMC. Houve então as duas coisas. O importante, hoje, é que quando o direito democrático não foi respeitado, quando as populações e os parlamentos não foram consultados sobre negociações como aquelas, e que aquelas pessoas tomaram decisões passando por cima dos eleitos, é preciso dar-lhes um sinal claro de sua legitimidade perdida. O que houve em Seattle, o fracasso na abertura da reunião de cúpula, prova a perda de legitimidade dos negociadores diante de um movimento de cidadãos que é legítimo, porque os objetivos que citamos, ou seja, a necessidade do balanço e o reconhecimento de que a OMC é não-democrática e não-transparente, o que é admitido até por seu diretor, o senhor Mike Moore, e o representante europeu disse que será impossível recomeçar a negociar se não se mudar a estrutura interna da OMC e seu modo de operar. Então, as ações permitiram mostrar à opinião pública a realidade das coisas. Eu defendo a estratégia de ações não violentas de pressão que não atinjam a pessoa e feitas às claras para denunciar. Lá, denunciamos a falta de democracia e de consulta. Mas também, no episódio do McDonald's, se a ação foi ilegal, mas, para nós, legítima, foi porque não tínhamos nenhum recurso jurídico, como camponeses, diante da OMC e dos Estados Unidos. Não há um tribunal francês, europeu ou internacional em que se possa contestar uma decisão da OMC. Algo muito importante para os movimentos existentes seria a criação de um tribunal internacional do comércio exterior à OMC e que saberia aplicar o direito internacional votado pela ONU, que são a Declaração dos Direitos do Homem e os atos econômicos e culturais que os defendem. No direito internacional houve avanço em matéria penal, pois existe um tribunal penal internacional com relação aos direitos do homem e atentados políticos. Na estruturação mundial que está havendo, é importante haver uma estrutura jurídica paralela à do comércio, baseada no direito internacional e nos direitos do homem nos níveis social, econômico e cultural, mas também os novos, estabelecidos em 1966, momento em que esses direitos...

Luiz Weis: [interrompendo] E o sistema político, no seu modo de ver, é inteiramente incapaz de canalizar essas aspirações e esses direitos, então, só resta a atividade extraparlamentar, em que os limites entre a ação pacífica e a ação violenta são por definição muito incertos?

José Bové: Hoje a luta fundamental é pelos direitos. Atualmente a vocação dos partidos políticos é governar, ter legitimidade sobre um território, seja um município, estado ou grupo de estados. Os movimentos de cidadãos se desenvolvem fora das estruturas geográficas, pois as organizações sindicais não se limitam a um país. A Via Campesina está no mundo todo, os sindicatos operários também. As ONGs tratam também de relações norte-sul. Nossa luta tenta obter uma regulação internacional que se adapte às aspirações dos cidadãos. Não é uma luta antipolítica, simplesmente a legitimidade dos estados nas últimas negociações internacionais caminha no sentido oposto ao das aspirações dos cidadãos.

Paulo Daniel Farah: Só para completar, eu queria só insistir naquela pergunta...

Paulo Markun: Sim, da invasão...

Paulo Daniel Farah: ...eu li em uma entrevista...

Paulo Markun: ...a invasão de prédios públicos, não é isso?

Paulo Daniel Farah: Exatamente, eu li em uma entrevista, o senhor acaba de confirmar agora que considera o ataque a uma propriedade uma forma legítima de protesto contra a globalização e o neoliberalismo. Eu queria saber quais são os parâmetros que regem essas ações e gostaria que o senhor comentasse um pouco como o senhor vê a forma de ação do MST aqui no Brasil.

José Bové: Eu acredito, sinceramente, que quando, como falei, estamos em uma situação social em que 60 milhões não têm alimento suficiente para si e suas famílias e que, ao lado disso, há uma concentração da propriedade em que 2% da população detém 50% da terra, e que essa terra, em grande parte, não é utilizada, é um direito legítimo ocupar essa terra, que deve tornar-se produtiva e voltar aos camponeses. Creio que está previsto na Constituição brasileira o acesso à terra e que ela não seja improdutiva. O problema que há hoje é que o processo de reforma agrária adotado pelo presidente do Brasil não atende a essa lógica, e assiste-se ao escândalo da compra de terra pelos camponeses. O acesso à terra deve ser gratuito, de arrendamento, mas não na lógica de que a maior parte dos camponeses ali instalados terão dificuldade para viver. Acho que a ocupação de propriedades privadas improdutivas é não apenas um direito, mas uma verdadeira legitimidade. No nível francês e no internacional, apoiamos esse movimento e decidimos estabelecer, há três anos, um Dia Internacional da Terra, 17 de abril, para lembrar o massacre dos sem-terra que aqui ocorreu [refere-se ao massacre de Eldorado dos Carajás].

Bernardo Mançano Fernandes: Bové, o Banco Mundial, na África do Sul, no Brasil e na Guatemala vem financiando a compra de latifúndios para a realização de assentamentos. Aqui no Brasil, o governo FHC tem uma política chamada Banco da Terra, em que ele empresta dinheiro para os sem-terra para que eles comprem a terra. Qual é o seu ponto de vista com relação a essa política mercantilista, em que o governo abre mão de fazer a reforma agrária? E a outra questão é a seguinte: a Federação Nacional dos Sindicatos de Exploração Agrícola da França não aceita o termo “camponês”. Camponês é um conceito histórico que muita gente vem abandonando e vem utilizando o termo “agricultor familiar”, porque o camponês representaria o atraso e o agricultor familiar representaria o moderno. Você, como camponês, como você se sente com essa discriminação?

José Bové: Quando à reforma agrária, o que está claro para mim é que a terra dos latifúndios deve ser dada aos camponeses. Os proprietários que não cuidam dessas terras, muitas vezes roubadas de pessoas espoliadas... foi assim que muitos latifúndios se formaram. Acho anormal e amoral que os camponeses sejam obrigados a comprar essas terras e que os proprietários sejam indenizados pelo Estado. Os camponeses devem recebê-las gratuitamente para desenvolver sua atividade profissional. Quando chegam ao fim dessa atividade, elas devem passar a outra geração, mas nunca ser objeto de especulação financeira, a pior coisa que pode acontecer à agricultura, pois é uma especulação antieconômica, não baseada em um aumento de riqueza. Essa foi a primeira resposta. Agora, a resposta sobre o termo “camponês”. Quando criamos a Confederação Camponesa, decidimos chamá-la assim, e não de “agricultores” ou “produtores agrícolas”, ou “agrária”, para indicar que reivindicávamos o termo “camponeses”, porque camponês não é aquele que apenas produz, mas que vive em sua terra, trata dela e cuida para que ela possa ser transmitida às gerações futuras. Há o enraizamento sobre um determinado lugar com um modo de produção no qual a terra não existe apenas para ser explorada e produzir o máximo, mas para ser respeitada para que outras gerações possam também trabalhar.

Paulo Markun: Senhor Bové, nós vamos fazer mais um rápido intervalo e o Roda Viva volta daqui a instantes, até já.

[intervalo]

Paulo Markun: Nós estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando José Bové, o presidente da Confederação Camponesa da França. Senhor Bové, eu queria entender como é que o senhor se tornou um produtor de leite, de queijo, em uma pequena cidade de França. O seu currículo menciona que o senhor estudou filosofia em Bordeaux, não é isso? E fez algum tipo de curso nos Estados Unidos; não é especificado que curso é esse. Que curso é esse e como o senhor se tornou um camponês? É uma coisa de família, os seus pais já eram camponeses, como é que é?

José Bové: Fiz meu ciclo escolar completo normalmente, como todo francês, até o fim do curso colegial. Eu me inscrevi para a faculdade, mas não a freqüentei, preferi engajar-me no movimento social e lutar. Foi o que fiz desde o início dos anos 70, apoiando um movimento camponês, o Camponeses de Larzac, oriundo de um movimento de resistência contra o Estado e o exército franceses, que decidiram usar 14.000 hectares para ampliar um campo militar. Esses camponeses rejeitaram essa ampliação e iniciaram uma resistência que durou dez anos. Em 1975, decidi instalar-me, a pedido deles. Pediram-me que ocupasse uma fazenda que havia sido vendida ao exército, uma fazenda não habitada. Eu ali me instalei, como os sem-terra, sem direitos nem título, não contra um proprietário, mas contra o Estado e o exército franceses. Tornei-me, então, camponês, aos 22 anos, nessa fazenda, que continuo a explorar, agora com quatro sócios. Em 1981, após dez anos de luta, tivemos ganho de causa contra o Estado francês. François Mitterrand, então presidente da República, decidiu abandonar o projeto de ampliação, uma vez que ele mesmo participara da resistência contra tal projeto que, então, muitos franceses rejeitavam. Havia um grande movimento de solidariedade contra essa ampliação do campo militar. O interessante é que, a partir dessa vitória, decidimos continuar a luta, não mais contra o Estado, mas para organizar a terra do Larzac de modo diferente. Hoje administramos 8.000 hectares de maneira coletiva. Ali vivem camponeses que, em assembléia geral, decidem quem instalar, o preço do arrendamento e, depois, cada agricultor é responsável por sua fazenda. Tentamos pôr em prática nossa motivação sindical e criamos um escritório imobiliário há 15 anos que mostra ser possível gerir o imóvel através do uso e não apenas através da noção de propriedade.

Paulo Markun: Quer dizer, se eu entendi bem, a sua escolha pelo campo foi uma escolha ideológica e não uma escolha vocacional.

José Bové: Tenho vocação pela terra; tive sorte. Na Europa, quando não se pertence ao meio agrícola, é muito difícil ali se estabelecer, porque a primeira condição é comprar a terra. Para um jovem, isso é algo absolutamente impossível. Por isso, aceitei a chance de me tornar camponês – o que era minha escolha – e, ao mesmo tempo, de fazer a luta de resistência contra um projeto que me parecia prejudicial e que assim foi considerado pelo presidente da República. É preciso saber que, na França, a cada ano, desaparecem 40 mil propriedades agrícolas, e apenas 10 mil se instalam, o que significa uma situação muito grave, na França e na Europa. Diminuem os camponeses e há concentração da terra em propriedades cada vez maiores e mais industriais. Isso resulta da política agrícola comum, voltada apenas para a agricultura industrial, mas não de qualidade, nem de defesa dos camponeses.

Francisco Graziano: Monsieur, a análise dos acampamentos de sem-terra no Brasil, feita pelo Incra, mostra que esses acampamentos que provocam as invasões de propriedade contêm uma faixa de 30% a 70% de pessoas que não são trabalhadores rurais, que são classificados como trabalhadores urbanos e, normalmente, trabalhadores urbanos desempregados, de forma que, hoje, parte considerável das pessoas que estão sendo assentadas em programas de reforma agrária, se filiando ao MST, são trabalhadores que vivem em dificuldade nas cidades, muitas vezes sem emprego, e que acabam tomando caminho de se tornarem agricultores. Há poucos dias, a prefeitura de São Paulo, que é administrada pelo PT, propôs que pelo menos talvez uns 10 mil desempregados da capital de São Paulo se inscrevessem e participassem também do processo para que fossem assentados em reforma agrária. Eu queria perguntar, com a sua experiência, ainda mais conhecendo essa sua história agora, como o senhor vê isso? É possível, é fácil se tornar agricultor? E como o senhor vê uma reforma agrária cuja maior parte hoje das pessoas que vão à terra não são pessoas que têm mais ligação com a terra, num momento em que o mundo é tão competitivo, é tão difícil não produzir, mas é muito difícil vender sua produção? Nós que estudamos a reforma agrária no mundo e no Brasil, e sabemos desses dados da França, como da Alemanha, como dos Estados Unidos, vemos que no mundo todo diminui o número de agricultores. A reforma agrária do presidente Fernando Henrique já deu terras a 430 mil famílias, e 30% dessas famílias já voltaram para onde estavam, e são substituídas por outras, que voltam, depois de um ou dois anos, para onde estavam. Quer dizer, há algo acontecendo no mundo hoje que torna difícil ser um agricultor. Isso acontece na França também? Penso que sim, porque lá dizem que desaparecem proprietários ou desaparecem camponeses, e se esperava – muitos pelo menos esperavam – que, com a modernidade, pudesse haver um retorno ao campo, uma valorização do campo. Afinal, o movimento camponês, o sindicalismo camponês, a reforma agrária valoriza o campo ou nós estamos fazendo algo que é atrasado no tempo?

José Bové: Com relação aos números que dei, 40 mil propriedades que desaparecem na França, que são concentradas, e só 10 mil que se instalam, é preciso saber que, dessas 10 mil, que são insuficientes, só metade são instalações oficiais ajudadas pelo governo e por bancos. Quer dizer que, das 10 mil novas instalações, cinco mil se dão fora do quadro institucional previsto. As pessoas da cidade têm hoje uma grande vontade de se instalar no campo para ter uma renda e uma qualidade de trabalho diferente da que têm. Muitos são desempregados que decidem entrar na produção agrícola, mesmo em áreas pequenas, para recuperar a dignidade. Então, eu entendo que em um país como o Brasil, onde há muito desemprego e trabalho informal, as pessoas queiram ter um trabalho no campo, porque isso dá um status social, qualidade de trabalho e possibilidade de se desenvolver em uma atividade em que se vê o fruto da produção. Quando se vê a área do Brasil, a extensão de terras não exploradas ou mal exploradas, vê-se a possibilidade de instalar centenas de milhares de famílias. Mas é preciso acompanhar esse processo por uma formação de base e pelo acompanhamento no caso desse projeto. Eu visitei certo número de áreas ocupadas e também áreas ocupadas que foram legalizadas. Nas últimas, pela formação durante a ocupação, pela criação de cooperativas de produção e de comercialização, vi que há um projeto social. Há, ao mesmo tempo, escolarização, formação agrícola prática e um projeto social e econômico que permite garantir uma renda pela venda dos produtos. Isso me parece muito positivo, porque a ocupação da terra não é um fim em si mesma, é um processo de reconquista econômica que permite que populações hoje nas favelas em São Paulo, no Rio ou outras cidades, possam recuperar a dignidade no trabalho do campo.

Ulisses Capozoli: Eu, na verdade, gostaria de retomar... valeu a pena esperar você [Francisco Graziano] um pouquinho fazer o comercial do Fernando Henrique. O senhor [José Bové] falou agora há pouco da necessidade de acesso à terra, não só para a produção agrícola, mas para a construção da cidadania. O MST faz isso, de um jeito ou de outro; a imprensa brasileira hostiliza freqüentemente o movimento dos sem-terra, procurando os defeitos que tem, os problemas que tem, como se os outros movimentos não tivessem defeito nenhum, para dizer: olha, não faz sentido, são brutos, são isso, são aquilo. Outro argumento freqüentemente utilizado – o Graziano usou agora há pouco – é que uma parcela das pessoas que têm acesso à terra acaba voltando para a cidade, o que certamente indica a ausência de uma política agrícola. O Brasil é um país com uma tradição, uma memória escravista muito forte, não fez inovações, não faz inovações; isso significa dizer que parte dessas pessoas que voltam para a cidade, na verdade fazem isso por falta de uma política agrícola. As elites agrárias brasileiras tiveram interesse histórico sempre em resultados imediatos; não se pensou a longo prazo. O que eu queria pedir para o senhor fazer, na medida em que esse programa é visto em todo o Brasil, é dar sua opinião sobre qual é a contribuição, de fato, que um movimento como o movimento dos sem-terra pode dar para uma eventual modernização das relações sociais no Brasil. Essas questões de retorno são verdadeiras, mas certamente por falta de uma política agrícola. Se a reforma agrária do Brasil fosse bem sucedida e nós tivéssemos uma montanha de alimentos, de arroz, de feijão, não teria para quem vender, porque não tem consumo, porque tem um desemprego enorme...

Francisco Graziano: [interrompendo] Ulisses, 35% das terras que estão sendo desapropriadas no Brasil são terras de péssima qualidade, aqui fala um engenheiro agrônomo.

Ulisses Capozoli: Certamente.

Francisco Graziano: Então, você argumenta que há falta de uma política agrícola; a verdade é que hoje se invadem terras que estão aparentemente ociosas, porque são terras de péssima qualidade. E como são de péssima qualidade, elas não se prestam para fazer agricultura, ainda mais com gente que não sabe fazer agricultura.

Ulisses Capozoli: Certamente.

Francisco Graziano: Então, não é falta de política agrícola, é um processo de invasão, ocupação e assentamento em condições que você olha mais para frente e fala: isso não vai dar certo.

Ulisses Capozoli: Mas eu gostaria que ele respondesse.

Paulo Markun: Eu só acho que nós podemos transformar isso facilmente em um debate sobre o MTS, aliás, já tivemos na cadeira onde está o José Bové o presidente do MST, certo? Então, essa questão já foi amplamente debatida e certamente voltará a ser discutida no Roda Viva inúmeras vezes. Eu acho que era importante ter a questão e a gente não tentar transformar isso em um bate-bola.

Ulisses Capozoli: Eu gostaria de saber a opinião dele, o que ele acha.

Paulo Markun: Sim, muito bem.

Ulisses Capozoli: Uma pessoa de um...

Paulo Markun: Fique tranqüilo, porque você vai ouvir.

Ulisses Capozoli: ...país de Primeiro Mundo, como interpreta isso?

José Bové: Acho que o acesso à terra deve se acompanhar de uma verdadeira reforma agrária e de um projeto político de apoio à agricultura. Deveria ser prioridade do governo brasileiro acompanhar a instalação dos camponeses, dar-lhes a terra, mas também acompanhá-los. Falei da formação; acho isso fundamental. Falou-se também dos vários tipos de terra; terras de baixa produtividade tinham sido ocupadas. Hoje não existe um projeto agrícola único, e o perigo do modelo brasileiro, como posso ver, é que o governo só apóia um tipo de produção, a produção industrial em larga escala, o que não alimenta a população nem cria emprego. Deve-se adaptar a agricultura às diferentes zonas, com técnicas de produção de baixo custo que permitam às pessoas produzir e ter uma renda, isso que é importante. Na criação dessa política, é preciso um grande investimento. Acho que é mais importante o Brasil apoiar um projeto desse tipo do que favorecer a introdução dos transgênicos ou permitir a instalação de grandes grupos industriais, sobretudo franceses. Falo do Grupo Doux, um dos maiores produtores mundiais de frango, que se instalou sem oposição do governo brasileiro para produzir frango industrial sem criar empregos aqui, só para exportar para o Oriente Médio. O objetivo é driblar a regra do GATT e depois da OMC para produzir no exterior com matéria-prima barata e empregados com salário menor do que os da França. Acho que é preciso fazer uma escolha política a respeito, e infelizmente não me parece que o senhor [Fernando Henrique] Cardoso se ocupa do bem-estar das populações desfavorecidas deste país.

Monica Teixeira: Monsieur Bové, eu queria saber se o senhor e as pessoas que pensam como o senhor efetivamente acreditam que é possível estabelecer uma outra ordem que substitua essa ordem comercial da globalização que o senhor está descrevendo. E, se o senhor efetivamente acredita, de que maneira, que passos serão dados, com que táticas, com que estratégia se poderá chegar a uma outra ordem em que, como o senhor diz no seu livro, o mundo não seja uma mercadoria? Também queria entender um pouquinho, se o senhor puder, por que o mundo não pode ser uma mercadoria e por que o mundo é uma mercadoria. Muita pergunta...

José Bové: Se escolhemos esse título para o nosso livro, é porque a lógica atual das instituições internacionais é transformar todas as atividades em mercadoria. Quanto ao bem industrial, a introdução da agricultura, nós vimos, visa a transformar a agricultura em mercadoria. Hoje, isso ocorre com os bens da saúde, educação, cultura, e o cúmulo dessa transformação: chegou-se à comercialização da própria vida, com patentes sobre seres vivos. Então, para nós, a luta é global, não apenas agrícola. Não é uma luta corporativista em que cada um luta por seu setor, mas um movimento social internacional. Acho que hoje há vários níveis de resistência; há a resistência diante de instituições internacionais, que hoje não se sentem à vontade, porque sabem que não atendem às aspirações das populações, nem às dos países pobres. O objetivo do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, é permitir coordenar tais resistências a aprofundar as diferentes possibilidades de alternativas modernas. Mas a luta deve continuar em cada país, diante dos governos que se dobram às multinacionais ou aos grandes países, como os Estados Unidos, que impõem a lógica anunciada em Seattle. Concretamente, a próxima resistência do continente americano será contra o projeto dos Estados Unidos de organizar um grande mercado aberto entre a América do Norte e a do Sul. A mobilização será em Quebec, durante a reunião dos presidentes desses países, em abril. É preciso pressionar os governos, no Brasil e na América Latina, para que defendam sua população dessa lógica liberal dos Estados Unidos, que querem contornar a existência de um bloqueio das entidades internacionais. É preciso ir mais rápido do que elas. Os Estados Unidos, que projetaram esse mercado para 2005, querem agora estabelecê-lo em 2002. É outro nível de resistência. O terceiro é diretamente diante das multinacionais. Gostaria de falar de uma luta que começou de forma muito forte na Europa e agora está se expandindo. É possível vencer as multinacionais, e provamos isso com relação aos OGMs [organismos geneticamente modificados], ou transgênicos. Na Europa, quando essa luta começou, em 1998, contra a Monsanto e a Novartis [grupo farmacêutico suíço], diziam: “É impossível ganhar, eles são muito fortes”. Três ou quatro anos depois, os camponeses europeus se negam a produzir OGMs; 80% dos consumidores os rejeitam; e há uma moratória européia sobre variedades novas colocadas no mercado. Então, ganhamos na Europa. É preciso que essa resistência se generalize. Por isso fomos solidários, em 1998, quando vim ao Brasil, e disse a membros do MST e também da Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura] e outros movimentos sociais que a luta contra os OGMs era primordial, não só de camponeses e consumidores, mas de toda a sociedade. E que, se ela fosse ganha, isso serviria a muitas outras lutas. Quando vejo que o Rio Grande do Sul proibiu a produção de OGMs; que uma resistência se organiza na Ásia; que nos Estados Unidos, este ano, pela primeira vez, o número de hectares de OGMs diminuiu em relação a outros anos, é algo muito importante. E acho que, a esse respeito, está se travando uma luta central, que extrapola as categorias sociais e que é uma aposta no futuro pelo conjunto de toda a humanidade.

Monica Teixeira: Quer dizer que a luta contra os OGMs é, digamos, uma maneira de alcançar, de fazer esse terceiro nível na luta política hoje, que é o combate às multinacionais? O que eu estou querendo saber é se os senhores são de fato contra a tecnologia ou, nesse momento, escolheram como inimiga a idéia do OGM para combater as multinacionais.

José Bové: Acho que combatemos os OGMs por razões de fundo. Primeiro, porque são um risco para o meio ambiente, por causa da grande quantidade utilizada de inseticidas e herbicidas. Ainda, a longo prazo, são um risco para a saúde pública, por utilizar genes resistentes a antibióticos como base. Logo, há um risco potencial. Ainda há o risco de alergias cruzadas, ou seja, há riscos à saúde pública. Mas há também riscos fundamentais à liberdade dos camponeses no mundo de poderem produzir sua própria semente. Os OGMs não visam a trazer melhorias aos camponeses ou aos consumidores, mas, da parte de quatro ou cinco multinacionais, controlar a totalidade da cadeia alimentar, do plantio até o consumo, e impor um modelo único. A Monsanto, por exemplo, controla 68% das sementes de milho no mundo, desde antes da criação dos OGMs. Ela quer controlar, com a patente, a totalidade das sementes. Um agricultor que reutilizasse sementes da Monsanto no ano seguinte poderia ser processado por furto de patente pela Monsanto. Há, realmente, um desejo de hegemonia. Como é difícil vigiar a reutilização das sementes por cada agricultor, a Monsanto inventou um finalizador, que é um gene que impede a semente de germinar no ano seguinte. É um controle total da plantação. Esse processo de algumas multinacionais é um verdadeiro perigo para o futuro da agricultura no mundo, porque é o controle de toda a produção agrícola por quatro ou cinco multinacionais. Elas entenderam que perderam a luta na Europa, então se voltam para a América do Sul e tentam pressionar o Brasil, e hoje também a Ásia, com a ajuda da OMC, com a abertura das fronteiras, para impor na Ásia, particularmente na Índia, os OGMs no arroz. Em setembro houve uma grande manifestação em Bangalore, no sul da Índia, onde mais de 60 mil camponeses cercaram o edifício-sede das negociações. Essa resistência é, pois, uma resistência de fundo, entendida também por outras categorias sociais e não apenas pelos camponeses.

Jaime Spitzcovski: Senhor Bové, eu queria voltar à questão política. Em algum momento, o senhor chegou a ter 80% de apoio da opinião pública francesa, segundo pesquisas. Com esse formidável, fantástico patrimônio político, o senhor nunca foi convidado a ser candidato em uma eleição? De quem poderia partir esse convite? O senhor aceitaria?

José Bové: Já respondi a essa questão, mas não no Brasil. Eu me situo como sindicalista e como representante de um movimento social, não devemos confundir. Não tenho vocação para governar um território, mas para fazer o direito internacional evoluir em direção ao direito das populações e, ao mesmo tempo, defender um conceito de agricultura em relação aos consumidores e organizar esse movimento social fora de corporativismos. Essa tarefa basta para ocupar meus dias e noites, e não tenho vontade alguma de entrar na vida política. Não pertenço a nenhum partido político e afirmo sempre que não pretendo aceitar nenhuma candidatura por nenhum partido.

Jaime Spitzcovski: Mas Lech Walesa [sindicalista, foi o presidente da Polônia entre 1990-1995] dizia a mesma coisa no começo de sua carreira política e terminou presidente da Polônia.

José Bové: E acabou muito mal; foi uma catástrofe para o movimento sindical polonês [risos].

Paulo Daniel Farah: Senhor Bové, o senhor também é conhecido por sua atuação antimilitarista. O senhor se opôs aos testes nucleares franceses em 95, por exemplo; em visita a Colômbia, o senhor criticou a estratégia norte-americana de combate ao narcotráfico, o Plano Colômbia, que é baseado em uma forte ação militar. Eu queria que o senhor comentasse um pouco essas críticas, o senhor inclusive previu um futuro Vietnã no país [refere-se à Guerra do Vietnã]. Eu queria saber se outros movimentos sociais têm procurado o senhor, justamente por essa divulgação do seu nome, por ser porta-voz do movimento.

José Bové: Fui à Colômbia em julho de 2000, em missão da instituição internacional Via Campesina para apoiar o movimento camponês e o movimento indígena que eram vítimas da luta armada. O movimento camponês na Colômbia perdeu, em 10 anos, 1.600 representantes sindicais, que foram assassinados. Ao mesmo tempo, os índios são expulsos do nordeste do país, os índios Wounaan são expulsos por multinacionais como a Oxy, a Occidental Petroleum, multinacional petrolífera de origem americana, que os expulsa de suas terras para ali perfurar poços de petróleo. Era essa a situação. Quando cheguei, discutia-se o Plano Colômbia, e a Europa era questionada sobre seu apoio a esse plano. É significativo que todos os países europeus, menos a Espanha, recusaram-se a apoiar e a seguir o Plano Colômbia, porque ele não solucionará o problema do narcotráfico, que poderá se deslocar. Ao contrário, os camponeses é que são expulsos de suas terras, e há riscos suplementares pela utilização de fumigação ou de cogumelos, e de destruição vinda de um meio importante que vai atacar não só as culturas de coca, mas toda a agricultura. A solução, então, para a coca não é militar, mas é dar aos camponeses a possibilidade de viver de sua produção agrícola. E se muitos plantaram coca na Colômbia, foi porque a produção agrícola perdeu o valor, e as produções tradicionais não garantem a subsistência. Isso porque a Colômbia é hoje um país em total decadência. Foi vendida aos Estados Unidos e às grandes multinacionais. O país, que produzia leite em volume importante, hoje importa leite da Argentina a um preço menor do que se produzisse. A mesma coisa com o milho, cuja produção era auto-suficiente; hoje importa milho dos Estados Unidos. Eis a situação caricatural, a abertura do mercado sem proteção da produção local para manter a população. Na periferia de Bogotá, mais de cinco milhões de camponeses vivem em favelas, em situação insuportável, porque foram expulsos de suas terras. Sou contra o Plano Colômbia por essas razões e pelo risco de o conflito se alastrar aos países vizinhos. Sabemos que, através desse plano, os Estados Unidos querem o controle militar de todo o norte da América Latina, o que é um perigo potencial de extensão do conflito a esse território.

Paulo Markun: Senhor Bové, nosso tempo está acabando e eu queria fazer uma última pergunta; na verdade, uma consideração final muito curta, em função do tempo. Por toda a exposição que o senhor fez, passa a sensação de que a tese que o senhor defende tem uma boa repercussão junto ao grande público, tem uma argumentação sólida, mas, muito provavelmente, do momento em que o senhor participou daquele desmonte da loja do McDonald's até hoje, certamente o número de lojas de McDonald's e de hambúrgueres vendidos no mundo deve ter aumentado e não diminuído. Claro que isso era um movimento simbólico, era um momento simbólico, mas a sensação que eu tenho é de que há uma enorme diferença de forças e de recursos, não financeiros, mas de força mesmo, militar, de força de poder de Estado, entre essa organização sindical de todos esses pequenos movimentos ou grandes movimentos de camponeses, ONGs, defensores do meio ambiente, e a estrutura de poder econômico que hoje domina o mundo. Eu queria saber qual é a chave para que isso mude. Antigamente, quando o marxismo estava na moda, havia um raciocínio que fazia isso: a soma de todos os trabalhadores faria com que eles tivessem mais força do que o resto do poder, mas a gente sabe muito bem onde foi parar essa história, no surgimento de estruturas de poder que se perpetuavam, que não representavam mais trabalhador nenhum. Minha pergunta é a seguinte: onde é que vai parar essa história, do ponto de vista do senhor? São centenas, milhares de Josés Bovés que vão se reunir em uma grande praça e vão decidir a mudança do mundo?

José Bové: Acho que, ao contrário do que ocorreu nesse século que terminou, em que houve uma certa ilusão sobre países que podiam servir como exemplos a ser copiados, para equilibrar as forças, hoje ninguém mais crê no amanhecer mágico. É na luta cotidiana, na base, na recuperação do poder sobre a vida cotidiana que está a primeira grande coisa. E também em reuniões, como a de Porto Alegre, o objetivo não é fazer, ao final da semana, uma lista de dez pontos que seria a receita a ser aplicada no mundo inteiro. As coisas se construirão aos poucos por essa reapropriação da vida no âmbito do cotidiano, mas, ao mesmo tempo, para o estabelecimento de regras internacionais de acordo com as aspirações dos cidadãos e dos direitos do homem. Hoje, a questão dos direitos do homem não se refere apenas a direitos políticos e cívicos, mas também a um direito coletivo para as populações. Falei de moradia, saúde, alimentação, educação, cultura. São direitos fundamentais devidos a todos os povos. O que desejamos é que as instituições internacionais sejam garantia dos direitos fundamentais dos povos.

Paulo Markun: Senhor Bové, muito obrigado pela sua entrevista, obrigado aos nossos entrevistadores e a você que está em casa. Nós voltaremos na próxima segunda-feira, sempre às 10h30 da noite, com mais um Roda Viva. Uma boa noite, uma ótima semana e até lá.
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