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[programa ao vivo, permitindo a participação dos telespectadores]
Heródoto Barbeiro: Olá, boa noite! Encerrados os dois grandes eventos anuais da moda brasileira, o Fashion Week do Rio e de São Paulo [principais eventos de moda brasileiros, geralmente realizados no início do ano, onde estilistas e consultores de moda apresentam as novidades das estações], os holofotes deixaram a passarela e vão em busca de luz no horizonte, não só na moda, mas nos negócios que ela representa. [É] uma cadeia de produção que faz do Brasil o sexto maior produtor têxtil do mundo e que movimenta um universo de grifes, estilistas e tudo mais. A crise econômica [crise econômica 2008-2009] pode diminuir os investimentos, mas quase nunca diminui a vaidade. Portanto, estilo, glamour, elegância e negócios são temas que a gente vai tratar aqui com uma reconhecida especialista no assunto. Glória Kalil, jornalista e consultora de moda, é a convidada desta noite no Roda Viva. Você vai ver a entrevista em trinta segundos.
[intervalo]
Heródoto Barbeiro: Há mais de trinta anos, ela pesquisa o universo de roupas, tecidos, desejos e dúvidas que muita gente manifesta ao se olhar no espelho. Como se vestir? Como se comportar? Glória Kalil se tornou referência quando se discute moda e estilo no Brasil.
[Comentarista]: Glória Kalil Rodrigues Meyer é de São Paulo. Nasceu no dia 19 de setembro de...Bem, o ano ela não revela. Costuma dizer que não se pergunta idade nem peso para mulheres acima dos cinquenta anos. É formada em sociologia política, mas começou carreira profissional nos anos setenta, como produtora de moda da Editora Abril. Depois, foi diretora na indústria têxtil Scala D'Oro [empresa do seu primeiro marido, José Kalil] e, em seguida, se lançou pessoalmente nos negócios da moda. Foi a primeira empresária a trazer uma grife internacional para o Brasil, a Fiorucci, marca que representou durante vários anos. De volta ao jornalismo nos anos noventa, Glória Kalil ampliou os seus canais de comunicação com o público. Participou de quadros em programas da TV Globo e levou sua visão de moda para a internet, com o site www.chic.com.br. É um diário pessoal e público que, paralelamente às palestras, artigos na imprensa e projetos especiais, faz dela referência quando o assunto é moda, estilo, comportamento e elegância. Já escreveu cinco livros, que a colocaram na lista das autoras mais lidas no país. O sucesso editorial é atribuído à maneira de Glória Kalil lidar com os problemas e dúvidas que mulheres e homens levantam quando se olham no espelho: tronco longo, tronco curto, pernas finas, sem bumbum, quais são as estratégias de ataque, o careca, o barrigudo, o baixinho. Bem humorada, oferece reflexões e dicas a partir de um ponto de vista comportamental e ajuda a revelar e aumentar o interesse sobre o assunto junto ao público e ao mercado da moda, agitado neste mês de junho por duasFashion Weeks , a do Rio de Janeiro, em sua 15ª edição, e a de São Paulo, que chegou a seu 27º ano. Nos dois eventos, uma maratona de desfiles mostrou a acirrada disputa que envolve grifes e estilistas. Por trás dos panos, grandes e pequenos nomes da moda também sofrem os efeitos da crise econômica [crise econômica 2008-2009]. O dinheiro curto, além de atrapalhar a criatividade, vem tirando o sono de uma cadeia produtiva que passa por acessórios, jóias, artefatos de couro, e chega à indústria têxtil e de confecção como a segunda maior empregadora de mão-de-obra no país.
Heródoto Barbeiro: Para entrevistar a Glória Kalil, nós convidamos a Cristiane Mesquita, que é pesquisadora e consultora de projetos de moda; Eliane Trindade, que é editora da Revista da Folha [revista de cultura, comportamento e entretenimento, publicada pelo jornal Folha de S.Paulo aos domingos]; o escritor e roteirista Paulo Lins; a economista Lídia Goldenstein. [O cartunista] Paulo Caruso está aqui de volta. Ele esteve em Portugal e volta com traços lusitanos agora...E também, aqui do meu lado, está a companheira Carmem Amorim, da TV Cultura, com as mensagens mandadas pelo nosso endereço eletrônico na internet. Glorinha, boa noite. Muito obrigado pela participação aqui no Roda Viva.
Glória Kalil: Boa noite. É uma delícia estar aqui!
Heródoto Barbeiro: Glorinha, vamos falar um pouco a respeito de paletó, gravata e credibilidade. Houve uma época em que os congressistas lá em Brasília quiseram abolir a gravata e tal. É isso que faz com que senadores e deputados tenham credibilidade, usar gravata e paletó no plenário?
Glória Kalil: Se fosse só isso, né, Heródoto! [risos] De fato, roupas são códigos importantes. Os códigos existem e a gente tem que conhecê-los, até para desrespeitá-los. Eu sempre acho que regra de moda, código de moda, código de etiqueta, a gente tem que conhecer. Conhecendo, você pode até fazer as suas, que é o que eu invoco, que eu acho que é interessante. É você tomar essas rédeas, pesar o que é importante ou não, e fazer a sua coisa. E, de fato, terno é supostamente uma roupa formal. Eu não diria que é uma roupa que dá credibilidade, mas ele implica em uma formalidade. E, se o senador não tem credibilidade, a culpa não é do terno, é dele. [risos]
Heródoto Barbeiro: Por exemplo, em alguns parlamentos, como em Israel, o pessoal vai, muitas vezes, de "manga de camisa" [camisa, sem paletó].
Glória Kalil: É, é uma questão de código e de cultura, não é? Eu acho que se a gente...Houve até uma tentativa aqui, se não me engano, foi o Jânio Quadros que tentou mudar para uma espécie de um jaleco safári, lembra?
Heródoto Barbeiro: Lembro, mas não é bem do meu tempo, lembro vagamente. Eu vi lá nos seus livros...
Glória Kalil: É, eu também vi na Cinemateca [Brasileira].
[risos]
Glória Kalil: Eu acho que, de fato, as roupas têm uma simbologia, e a simbologia do terno é a da formalidade. O cargo, seja de senador ou de deputado, tem uma certa formalidade. É por isso que a coisa fica associada...
Heródoto Barbeiro: É certa ou é lenda essa história de que o político tem que aparecer na campanha eleitoral com terno azul e gravata vermelha? A gente vê o pessoal usando esse tipo de roupa...Há alguma procedência científica ou é puro "chute"? É coisa de marketeiro [de acordo com dicionários brasileiros, refere-se aos profissionais de marketing. Mas, no Brasil, é frequentemente usado para designar pessoas que trabalham com marketing político]?
Glória Kalil: Eu não sei de onde saiu essa história. Há roupas que combinam, aparecem melhor em televisão, mas isso a gente sabe, não é? Coisa listrada, xadrez, determinadas cores aparecem melhor. Deve ser por aí...A tentativa de fazer uma coisa mais agradável, mas que haja um código...Ou então eles estão querendo copiar o presidente norte-americano, se associar à imagem de um presidente importante. Quem vai saber o que [se] passa na cabeça de um candidato?
Heródoto Barbeiro: A elegância está diretamente ligada ao comportamento?
Glória Kalil: Para mim, sem dúvida nenhuma. Uma pessoa é elegante quando tem um comportamento elegante. Não é só o que ela veste. Vamos dizer a verdade: vestir é uma maneira de você se apresentar. Hoje em dia qualquer roupa representa muito a pessoa, fala o tipo de pessoa que você é, mas depois disso você tem que desempenhar...Então, elegância é uma somatória de aparência com a maneira de se portar.
Eliane Trindade: Você já fez alguma consultoria ou assessoria para algum político, algum candidato?
Glória Kalil: Não, não faço consultoria pessoal, embora isso já tenha saído na imprensa uma vez. Não é verdade, eu nunca fiz nenhuma consultoria pessoal e nem tenho talento para a política.
Eliane Trindade: Mas o que você acha, por exemplo, do estilo de Michelle Obama [primeira-dama dos Estados Unidos, esposa do presidente Barack Obama, eleito em 2008. É a primeira afrodescendente a ocupar o cargo]?
Glória Kalil: Pois é, acho interessantíssimo. Eu acho que ela representa uma novidade, várias novidades. Primeiro, ela usa estilistas jovens, novos. Ela não vai nos grandes nomes. por exemplo, a Jacqueline [(1929-1994) Jacqueline Kennedy, esposa do presidente norte-americano John Kennedy, assassinado em 1963. Jacqueline era referência em moda e glamour] ia nos grandes nomes franceses. Depois, as outras primeiras-damas iam nos grandes nomes americanos. Ela não, ela vai no pessoal novo do prêt-à-porter, gente que ainda está começando. Segunda coisa: ela usa roupa de loja de departamentos. Eu acho isso ultra-novidade, uma coisa muito interessante! Aliás, faz parte da moda esse negócio do high-low, que é misturar etiquetas melhores e mais caras com coisas mais pessoais, roupinhas mais fáceis de comprar. Isso implica em uma verdade, que é a vida de todo mundo. Então, ela está levando essa mensagem de que você pode estar bem vestida, com roupa de qualquer tipo de procedência, desde que tenha olho para escolher a coisa. E olho é informação, só isso. Ela mostra que é uma pessoa atual, moderna e bem informada. Eu acho uma graça o jeito dela...
Eliane Trindade: E a Dona Marisa [Marisa Letícia Lula da Silva, esposa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva]? Você acha que ela também consegue...
Glória Kalil: Dona Marisa é discretíssima. Eu acho que ela faz um esforço enorme para se apresentar adequadamente. Especialmente, ela é muito adequada à formalidade do cargo. Ela é uma figura que se mantém sempre ao lado do marido, quieta, no canto dela. Se ela falasse, iam achar ruim. Se ela não fala, acham ruim. Então, ela fica quieta no canto dela. Ela faz um esforço para estar sempre bem vestida, está sempre adequadamente vestida. Eu agradeço a ela pelo seu esforço para nos representar dessa maneira.
Heródoto Barbeiro: Lídia, por favor.
Lídia Goldenstein: Glória, uma das coisas que eu gosto no seu trabalho é que você aborda esse tema da etiqueta como civilidade, como boa educação. E, ao contrário de outras abordagens, você tem toda uma preocupação de inclusão, de democratização desse assunto. É o que você acabou de dizer, de certa forma. Não é botar uma roupa que custou 15 mil reais, dólares ou qualquer outra moeda, que vai te fazer uma pessoa elegante, uma pessoa sofisticada, mas é o jeito que você se comporta, é o jeito que você fala, é o jeito que você trata os outros. Eu acho que, especialmente no Brasil, a gente está com um problema de civilidade. Eu acho que nós temos uma...Até por culpa dos nossos políticos, que se preocupam mais com as gravatas do que com a civilidade, e pela diferença entre o público e o privado, o comportamento social - que não é a etiqueta boba, mas a etiqueta de respeito ao outro - tem sido muito abandonado. E eu acho que os seus livros, o fato de você falar em rádio, de você aparecer em um programa tão importante do ponto de vista de público como o Fantástico [programa de variedades dominical da TV Globo], ajudam nessa reflexão. Como você sente a resposta do público a isso? Acho que você fala para muito mais gente do que uma elite que compra roupa. Você fala de coisas muito mais profundas do que a mera roupa, [embora ela] também seja importante.
Glória Kalil: É, Lídia...Meu trabalho é meio nesse sentido. Eu não faço nem livro de moda, nem de etiqueta de comportamento, nada disso para insider [pessoa que tem acesso a informações privilegiadas sobre determinado assunto]. Eu faço para quem quer ampliar um pouco o conhecimento das coisas. Eu sou totalmente a favor da democratização da informação, especialmente na área da moda e da etiqueta, que todo mundo considera um coisa fechada, um núcleo elitista, uma coisa pernóstica etc. Absolutamente! Eu vejo a roupa como uma questão de identidade, e eu vejo a etiqueta como uma coisa de civilidade. Vejo a etiqueta como uma maneira de inclusão e a moda idem, porque nada deixa uma pessoa mais segura do que saber que está com a roupa certa no lugar certo. Fala a verdade, né? As pessoas [ficam] seguras e tranquilas quando têm uma informação de moda. São informações como qualquer outra, são códigos. Moda é uma questão de código, de conhecimento. Etiqueta é uma questão de código. Eu acho que as pessoas têm que saber o código. É como você entrar em um jogo: você tem que saber as regras, até para blefar, para fazer o que quiser. Você tem que conhecer. Então, eu trabalho muito nesse sentido. Eu gosto muito de franquear esse conhecimento o máximo que eu posso. E a resposta é comovente. Você sabe que uma vez eu fiz um pedacinho do Fantástico, me contaram uma história pela qual fiquei muito interessada e comovida. Eles falaram que fizeram vários grupos de pesquisa, com pessoas diferentes, donas de casa, jovens etc, e que tinham convidado um grupo de jovens favelados. Eu falei: "Nossa, imagina, eles devem ter acabado com o meu programa!". Eles falaram: “Ao contrário, eles falaram para por aquela mulher para falar dessas coisas, porque queriam saber o que o bacana acha das coisas, entender como funciona". E eu sei que isso é verdade. Eu sei que isso facilita a vida das pessoas. É uma maneira de se sentir igual, Lídia. Eu advogo a etiqueta da inclusão, porque é a etiqueta que não é da côrte - que era a etiqueta da exclusão, do maneirismo, da teatralidade etc - para invocar uma etiqueta que faça sentido, para que você entenda as regras e faça as suas, sempre não se esquecendo de levar em consideração o outro e o mundo. Eu acho que é aí que todo mundo se sente igual e olhando na mesma altura.
Heródoto Barbeiro: Ok. Cristiane, por favor.
Cristiane Mesquita: Essa idéia de democratização dessa informação acontece, justamente, em um tempo muito paradoxal, que é quando se tem aparentemente mais liberdade para se vestir, mas que todo mundo fica meio perdido. De alguma forma, se procura essa informação que você está contando não só nos seus livros campeões de vendas, mas nessa resposta do público. Como você lida...tendo que formatar de algum jeito as listas, as idéias, para que o público tenha acesso? Como você encara e lida com esse paradoxo entre a liberdade e a liberdade velada, as regras veladas, com as quais a gente convive?
Glória Kalil: Olha, Cristiane, eu tenho a impressão do seguinte: a moda, de fato, está deixando as pessoas um pouco confusas, até porque não há mais tendência de moda como havia antigamente. Até os anos cinquenta, a moda era absolutamente formal e ditatorial. Eu não sei se vocês têm aquela foto do Christian Dior [(1905-1957) estilista francês que revolucionou o vestuário após a Segunda Guerra Mundial e criou o estilo dos anos 50, copiado por mulheres do mundo inteiro. Ainda hoje, a grife é sinônimo de luxo e sofisticação]...É uma foto famosa do Christian Dior com uma fita métrica medindo até o chão e dizendo assim: "Neste ano, a moda é quarenta centímetros do chão". Ficasse bem em você ou não, combinasse ou não com a tua perna, tua altura, teu peso, seja lá o que for, era assim. Ou você estava incluída, fazia parte de uma sociedade, ou estava fora. Nos anos sessenta, isso mudou um pouco, porque junto com essa cultura estabelecida, veio toda a contra-cultura dos jovens. Foi a entrada do jovem como categoria. Não havia esse jovem antes. Vocês se dão conta de que, até os anos sessenta, não havia jovem? Havia criança e adulto. O sonho das crianças era virar logo um adulto, porque o mundo era de formalidade, um mundo adulto. Adolescente era uma época medonha, porque você não era nem criança, nem adulto, então era um desespero. Nos anos sessenta, entrou a contra-cultura, uma grande contestação. A etiqueta anterior, que era a etiqueta da formalidade, foi praticamente [abolida] e entrou a moda jovem, a moda informal. Essa roupa que nós estamos vestindo hoje, como calça comprida, camiseta etc, não havia. Isso é uma roupa dos anos sessenta para cá. Você pega outra foto curiosa, que é uma saída do [Estádio do] Maracanã nos anos cinquenta. Os homens todos de terno e gravata saindo do Maracanã, de chapéu. Pega uma foto hoje: parece uma fuga da Febem [Atual Fundação Casa, Centro de Atendimento Socioeducativo a Adolescentes, instituição do governo estadual de São Paulo voltada para ressocialização de menores infratores]! [risos] Todos os homens de bermudão, camiseta, boné. Isso não existia. E, dos anos noventa para cá, houve outra grande virada. Foi a rua que veio para cima. [gesticula mostrando o formato de uma pirâmide] Em vez de a pirâmide ser alta costura, prêt-à-porter e rua, essa pirâmide finalmente virou e é a rua que manda na moda hoje. E a rua, o que é? É múltipla. Então, a moda hoje é múltipla. Hoje, por exemplo, nós estamos acabando a Semana de Moda. Tanto na São Paulo Fashion Week, quanto no Fashion Rio, havia micro, mini, pelo joelho, abaixo e comprido [mostra o tamanho das saias e vestidos]. E aí, como é a tendência? Não tem mais tendência. Hoje, o que conta é a sua escolha, tem para todo mundo. Agora, é confuso. Não tem tem mais aquilo: "É quarenta centímetros", era mais fácil de entender, mas hoje pode tudo. As pessoas ficam mais confusas. Então, a gente tenta fazer uma lista de tendências. Eu fui fazer uma lista de tendências e deu quarenta itens. Isso é lista? Isso não é lista de tendência, isso é tudo! Mas você dá informação, insiste que a pessoa se entenda consigo própria para criar o seu jeito de se vestir, que a gente chama de estilo. A moda ficou muito mais democrática, mas de mais difícil leitura, é verdade.
Paulo Lins: Bom, deixa eu te fazer uma pergunta, porque nunca fui ligado em moda, não entendo nada disso. Mas há pessoas que são muito ligadas em roupa, em comprá-las, e eu via isso como uma coisa fútil, entende? Há pessoas que vivem para comprar, gastam dinheiro comprando roupa, só pensam nisso...Às vezes, gastam mais do que têm para se vestir bem, para estar bem arrumado, com roupa de grife, por exemplo. Eu sempre liguei as pessoas que são assim a uma certa futilidade. Como você vê isso, essa futilidade em relação ao consumo exagerado de roupas?
Glória Kalil: Paulo, eu concordo completamente com você que o consumo exagerado é uma futilidade. Mas, há uma frase que eu gosto muito, que é a seguinte: "A futilidade é um estado de violência". E é mesmo. Uma pessoa extremamente fútil é uma pessoa de uma ansiedade, de uma fúria impressionante. Eu acho que isso existe sim. Existe um apelo muito grande ao consumo hoje. E não tenha a menor dúvida de que há exageros. Agora, os cuidados com a aparência, com uma certa apropriação de alguns códigos de etiqueta, eu vejo como uma homenagem ao outro também. Eu vejo que você se preocupar em se produzir minimamente para um encontro, para algum lugar, é uma coisa de cerimônia..."Olha lá, ele colocou um paletó!" [risos] É um cuidado, uma espécie de homenagem que você faz para uma pessoa. Por exemplo, hoje em dia, há uma coisa moderna, que é você não se vestir apropriadamente. É moderno você não se vestir de acordo, entendeu? Eu acho que as pessoas que pensam assim perdem uma certa graça, porque eu acho graça em ritual. Ritual tem graça. É como se você tivesse a oportunidade de fazer uns biombos no tempo, fechar uma situação ali, em que você faz uma gracinha e depois você sai. É como se você homenageasse um pouquinho as outras pessoas. Então, eu acho que um mínimo de cuidados com a etiqueta e com roupa é uma informação básica que ajuda muito na [convivência]. Além disso, há um aspecto prático. Eu tenho uma história que aconteceu comigo há pouco. Eu fui em uma indústria, tinha um encontro com o presidente de uma grande indústria de cosméticos aqui de São Paulo. Quando eu cheguei lá, ele estava numa sala conversando com uns trinta jovens. Perguntei quem eram e ele falou: “São os candidatos que sobraram de uma seleção que nós estamos fazendo para três vagas de trainee que nós abrimos aqui dentro”. Eu falei: "e quantos candidatos se apresentaram?". Paulo, sabe quantos candidatos se apresentaram? Sete mil. Isso me deu um mal estar, porque sete mil pessoas para três vagas não é brincadeira. Eu falei: "como se faz para selecionar?", e ele falou: “São empresas especializadas. Ela vai pegando o currículo e começa aquela pauleira. Elimina por escola, escolaridade, curso, se fala ou não inglês, o que fez. Mas, assim mesmo, sobram trinta”.
Carmem Amorim: [interrompendo] Glorinha, tem uma pergunta.
Glória Kalil: Posso só terminar? Eu falei: "E como vocês escolhem esses trinta?". Ele falou: “É no olho a olho: como come, como fala com os outros, como se relaciona, como se veste”. Então, existe um lado prático, atual, importante, que também tem que ser considerado.
Carmem Amorim: Dá para ser pobre e elegante, estar na moda? Essa pergunta é do Luiz Carlos Munhoz, de São Paulo: "Para que serve a moda e o que é ser elegante? É possível ser pobre e elegante ao mesmo tempo?".
Glória Kalil: É lógico que é. Aliás, eu conheço muita gente bem rica e muito mal vestida... [risos]
Lídia Goldenstein: [interrompendo] Aliás, muito dinheiro às vezes atrapalha porque...
Glória Kalil: ...e muito deselegante.
Lídia Goldenstein: ...você pode, com liberdade, usufruir da sua deselegância.
Glória Kalil: Do seu mal gosto.
Lídia Goldenstein: Do seu mal gosto!
Glória Kalil: Você tem toda a razão, é isso mesmo. E não é só isso, ele pergunta também o que é a moda. A moda, hoje em dia, apesar de ser uma coisa fechada - fechada não - de difícil leitura, chegou em todos os níveis de população e de informação que você possa imaginar. Há moda hoje em qualquer canto do Brasil. Você vai viajar, chega lá, as menininhas estão de "lycrinha" [refere-se a tecidos como o elastano, uma fibra sintética de grande elasticidade. Faz referência à principal marca do setor, a Lycra] e sainha baixinha, com a roupa da moda. Moda, hoje em dia, tem de todos os preços. Você encontra moda de altíssimas grifes, carésimas, médias...E, nas lojas populares brasileiras, eles perceberam que moda vende melhor. Então, a moda chega em todos os nichos, em todos os preços, de modo que é perfeitamente possível estar na moda com pouco dinheiro.
Heródoto Barbeiro: Mas a estética é a mesma ou é uma estética de classe social?
Glória Kalil: Não, não tem isso. Isso que é o interessante da moda. A informação é exatamente a mesma. O que varia, às vezes, é qualidade do tecido, o comprimento da roupa. As roupas, às vezes, são mais decotadas ou menos decotadas, mas a informação é a mesma.
Heródoto Barbeiro: Ok, Glorinha. Nós vamos fazer nosso primeiro intervalo no Roda Viva de hoje. Quero lembrar aqui que nós temos também a presença de dois twitteiros, que fazem os seus comentários: a publicitária Marina Santa Helena e a jornalista Verônica Mambrini. Nós fazemos um intervalo e já voltamos com o Roda Viva.
[intervalo]
Heródoto Barbeiro: Bem, nós voltamos aqui com o Roda Viva, que entrevista hoje a jornalista e consultora de moda, Glória Kalil. Ela é considerada a melhor amiga das mulheres por suas dicas e sugestões sobre moda e estilo. Ela acabou também se dirigindo ao público masculino. Mas, eu pergunto: afinal, moda é assunto de homem?
[comentarista]: É assunto de homem, sim senhor. Está logo na abertura do livro Chic homem - manual de moda e estilo [2008]. Glória Kalil lembra ao macho moderno que antigamente as coisas eram mais simples: homem usava calça, rico vestia ternos impecáveis, cabelo pintado era coisa de mulher, e brincos, só para meninas. "Procure sua tribo", ela aconselha. Fala dos clássicos que seguem os tradicionais centros criadores de moda, dos modernos e suas misturas de tendências internacionais com a moda de rua, do passado, dos valores do momento, e étnicos, onde as roupas expressam raízes culturais e ideologias. O livro é um manual na intenção e na forma. Ensina os homens a combinar calças, blazers, camisas, bermudas, gravatas, e como ajustar a aparência e o comportamento em uma festa ou na hora de buscar um novo emprego. Tempos atrás, conselhos de moda e estilo não eram bem assuntos de homem, mas Glória Kalil lembra que o macho mudou. E, no manual, ela se dirige ao público masculino com um desafio: "Seja homem, encare o espelho".
Heródoto Barbeiro: Glória, quem junta mais sapato em casa: o homem ou a mulher?
Glória Kalil: [risos] Em geral, é a mulher.
Heródoto Barbeiro: Mas é muito mais do que o homem?
Glória Kalil: Todo mundo diz que homem tem fetiche com sapato, mas é mulher que tem fetiche com sapato!
Heródoto Barbeiro: Com sapato?
Glória Kalil: Nossa, mulher é louca por sapato! Se você fizer uma enquete aqui, eu tenho certeza que o número de pares vai ser três vezes o número de pares que vocês têm.
[risos]
Glória Kalil: É mulher, viu!
Heródoto Barbeiro: É mesmo?
Glória Kalil: Ah é. Eu conheço alguns homens que têm vários pares de sapatos, mas o negócio é com mulher mesmo.
Heródoto Barbeiro: Sei. Agora, quando se fala em homem na moda, se fala também em negócios ou não? Negócios de moda são para homens e mulheres?
Glória Kalil: Ah, o mundo business da moda...Tem tantos! É um mundo que continua tendo a mesma hierarquia. Há muita mulher em área de confecção, criação e tal. Mas, quando você vai chegando nas administrações e nas presidências das empresas, aí começa a virar homem...
Heródoto Barbeiro: Aí são os homens?
Glória Kalil: É, ainda isso. E é um grande negócio. Você sabe que a indústria têxtil é uma indústria poderosíssima, né?
Lídia Goldenstein: Eu queria pegar exatamente esse filão, porque eu sei que você também mexe muito com esse assunto de moda como negócio. Você fez, inclusive, alguns seminários interessantíssimos e importantíssimos com participantes internacionais e nacionais para discutir esse assunto. O setor de confecção ainda é o segundo maior empregador na cidade de São Paulo, depois da construção civil. Então, eu comecei respeitar a moda mais ainda, além de gostar de uma roupinha, porque é o que gera emprego...
Glória Kalil: [interrompendo] Especialmente o emprego feminino, né, Lídia?
Lídia Goldenstein: Especialmente o emprego feminino. Mas, se a gente pensar na cadeia têxtil como um todo...
Glória Kalil: Aí é tudo!
Lídia Goldenstein: ...Aí é tudo, porque moda emprega desde o cenógrafo, o iluminador, o maquiador, o cara que faz a música, até o empresário, é a cadeia têxtil como um todo. Mas, em um dos seus seminários, a discussão foi que o Brasil brilha, mas não vende.
Heródoto Barbeiro: Como é, Lídia? Briga, mas não vende?
Lídia Goldenstein: [corringindo] Brilha.
Glória Kalil: Brilha!
Heródoto Barbeiro: Ah, brilha, mas não vende. É isso?
Lídia Goldenstein: A moda brasileira brilha, mas não vende. Primeiro, por que você acha isso? Segundo, o que fazer para mudar essa situação, dada a importância do setor para a preservação do emprego em cidades tão importantes do ponto de vista de pessoal desempregado, como São Paulo?
Glória Kalil: É, eu fiz três seminários, que se chamavam Fashion Marketing, em 2006, 2007 e 2008. Eu achei que estava na hora de a gente pensar um pouco na moda e encarar determinadas premissas que o mundo da moda tende a esquecer, que o jornalismo de moda tende a esquecer. Todo meio [de comunicação] tende a fazer da moda uma coisa só glamorosa etc. O tema do primeiro seminário era altamente provocador, porque foi esse: "A moda brasileira brilha, mas não vende". Não vende porque nós não temos um mercado interno enorme, porque não temos marcas conhecidas lá fora, e agora, ainda por cima, temos uma Índia e uma China prontas para produzir tudo o que o país e o mundo precisam, a preços que nós jamais vamos conseguir praticar. Então, esse foi o primeiro seminário e foi um escândalo: “Como não vende?!". Outra coisa que eu digo, e que todo mundo fica espantadíssimo, é: "Moda é muito mais um produto de entertainment do que um produto industrial". Isso porque se a centimetragem de cobertura correspondesse ao faturamento, era a indústria mais rica do mundo. O que a moda tem de cobertura, de imprensa, o que ela agita o mundo do entertainment é uma loucura. Agora, isso não corresponde à venda. Então, esse foi um dos temas que eu propus no seminário. E não vende por quê? Porque nós temos um mercado interno ainda pequeno. Nós temos, por exemplo, um mercado interno que é feito de uma classe AAA riquíssima. Nós temos uma das piores distribuições de renda do mundo, não é verdade? Então, essa classe AAA, que é riquíssima, compra em qualquer lugar do mundo como sempre comprou; a classe média é extremamente comprimida; a classe C, que hoje está melhor, você fala assim: “Bom, então aqui houve um aumento grande para a indústria têxtil”. Só que não se esqueçam de que é uma classe que precisa de preço, então esse aumento todo de consumo não representou aumento de faturamento...
Heródoto Barbeiro: [interrompendo] Esse pessoal que está na base compra preço ou compra moda?
Glória Kalil: É como eu falei para você: é moda com preço baixo. A moda chega, ninguém mais vende roupa. Todo mundo vende moda. A classe C percebeu que vender moda é vender melhor, com bom preço. Só que a classe C, que aumentou seu poder de consumo e passou a consumir mais, não melhorou a indústria têxtil porque tudo o que vinha para as classes C e D era feito na China e na Índia, porque é muito mais barato. Então, a indústria brasileira não se beneficiou desse aumento. A indústria ainda é muito pequena, Lídia.
Paulo Lins: Existe uma região ou estado em que as pessoas se vestem melhor aqui no Brasil? Paulistas, cariocas, gaúchas...existe um local?
Glória Kalil: Você quer briga, né?
[risos]
Paulo Lins: Não, eu não quero briga.
[risos]
Paulo Lins: Existe isso?
Glória Kalil: Não, não.
Paulo Lins: Mas elas se vestem [de forma] diferente em cada região?
Glória Kalil: Diferente sim, sem dúvida.
Paulo Lins: Como é que você vê? Para você, quem se veste melhor aqui no Brasil?
Glória Kalil: Eu não diria melhor, mas eu vejo uma preocupação...Por exemplo, em São Paulo a roupa é mais vestida por uma questão de clima. O Rio de Janeiro é mais pelado. Minas é mais enfeitado, pois há o barroco.
[risos]
Glória Kalil: Uma tem mar, outra tem a influência dos anjos barrocos. Nós somos essa cidade, essa coisa urbana. O Nordeste é um caso à parte, ele se veste de cor, de roupas curtas. Grande parte da população faz a moda dela, do jeito que gosta de vestir. Eles não se importam se estão mais gordos ou mais magros, que é uma preocupação de grupos urbanos, mas não é uma preocupação praiana. Graças a Deus.
Heródoto Barbeiro: Glorinha, a televisão não passou um trator em cima disso e homogeneizou tudo?
Glória Kalil: A televisão é, vamos dizer, uma fonte de informação fantástica, sem dúvida nenhuma, mas eu já cansei...
Heródoto Barbeiro: [interrompendo] Mas aí a gente não vê as pessoas das regiões que você citou muito parecidas em qualquer lugar do Brasil, em qualquer lugar do mundo?
Glória Kalil: Olha, depende. Por exemplo, eu já cansei de ouvir em várias regiões do país: “Deus me livre a Gisele Büdchen! Imagina, aquela mulher daquele tamanho, magra daquele jeito!". Eu já ouvi isso. Então, não há essa padronização. Especialmente em lugares como o Nordeste, isso não é padrão, não é desejado. Ninguém quer ser alta e magra daquele jeito. Já na Bahia, no Rio de Janeiro, na medida em que você vem vindo para o Sul, eles já têm uma idéia...é uma moda mais urbana. Então, é uma coisa regional.
Paulo Lins: E por que o padrão tem que ser magro assim? Essa coisa de...
Glória Kalil: Paulo, você é magro. Você não sabe o que você está falando. Você não faz idéia de como é difícil se vestir quando se está gordo.
[risos]
Glória Kalil: Nada veste direito quando a gente está mais gordo, é verdade.
Paulo Lins: Mas precisa ser tão magro assim? Essas meninas ficam doentes!
Glória Kalil: Modelo é cabide, entendeu? Modelo é cabide. Então, o cabide tem que ser...quanto mais alto e mais magro, melhor você vê a roupa. Modelo para trabalhar, quando é cabide, funciona que é uma beleza. Agora, na vida, é outra coisa. As pessoas ficam preocupadas, às vezes, com essa história da magreza, dizendo que a moda estabelece padrões de magreza, que as meninas ficam todas querendo...não é verdade. O problema do mundo hoje não é a magreza, é a obesidade. É sabido que o problema de saúde do mundo é a obesidade. Agora, vai por mim: mais magro veste melhor.
Cristiane Mesquita: Vou voltar um pouquinho nessa história que o Heródoto pontuou sobre essa rapidez e essa homogeneização da informação, lembrando que as coisas surgem nas passarelas, mas logo estão na mídia, nas vitrines do prêt-à-porter e, logo depois, estão nas lojas de departamentos, no comércio popular e nos camelôs. Isso acontece mais rapidamente do que há dez ou vinte anos. Ou seja, acaba também gerando uma certa equalização do que a gente vê em termos de moda, o que vai afetar também a questão da comercialização e dos empregos. Então, eu queria que você voltasse um pouco para falar disso no Brasil. Você acompanhou isso muito bem, até pela sua trajetória profissional.
Glória Kalil: De fato, a informação de moda hoje, aliás como qualquer informação, chega instantaneamente. E há um fenômeno novo da indústria da moda - ela está "dando um duro" para conseguir se equiparar - que é o fenômeno do fast fashion, ou seja, a moda rápida. Você sabe disso. Os criadores apresentam as coleções. Dois ou três dias depois, essa roupa já está à venda, já foi copiada e, quinze dias depois, está na loja, ou seja, cinco meses antes de aquele criador conseguir comprar o tecido, receber os produtos, fabricar e entregar na loja. Então, há hoje uma velocidade extraordinária. Não há, porém, o fenômeno da homogeneização. A gente tem medo de ficar todo mundo igual por conta dessa rapidez. Mas não é, porque, em compensação, a variedade de ofertas é tão grande, que não há uma padronização tão grande, embora a televisão dê uma informação muito potente, muito forte.
Heródoto Barbeiro: A gente não tem como exemplo agora essa novela da Índia? [refere-se à novela Caminho das Índias, exibida em 2009 pela TV Globo. Escrito por Glória Perez, o folhetim retratava hábitos, cultura e moda indiana]
Glória Kalil: É.
Heródoto Barbeiro: De repente, as lojas que vendem esses produtos estouram as vendas, a gente começa a ver pessoas com adereços...
Lídia Goldenstein: Eu vi uma entrevista de uma confeccionista do Bom Retiro [bairro comercial de São Paulo] dizendo sobre o impacto nos negócios quando ela perdeu um capítulo de uma novela, de qual a roupa estava especialmente sendo copiada. Eu não sei qual era a novela, mas ela disse que ficou gripada e não viu o capítulo. No dia seguinte, todas as confecções do Bom Retiro estavam vendendo. Agora, isso é um fenômeno internacional. Há negócios e importantes lojas nos Estados Unidos que quebraram em função de terem um modelo de logística de entregar em 15 dias...
Glória Kalil: 15 dias.
Lídia Goldenstein: Esse é um dado da realidade. Eu insisto na minha pergunta anterior: o que a gente pode fazer para que a indústria de confecção no Brasil tenha competitividade? A gente não quer reduzir preço de mão-de-obra, nem pode, nem quer. Não é esse o tipo de competitividade que a gente quer fazer. Todo mundo fala que a criatividade brasileira é um grande atrativo. Você acredita nisso, já que o nosso mercado é pequeno, para ampliar esse mercado com exportação, seja para a América Latina ou outros países? É uma possibilidade?
Glória Kalil: Sem dúvida nenhuma. Eu acho que a exportação é uma grande saída. Nós temos vários problemas para serem encarados nessa história. O fato de a informação ser instantânea e ser de novela, é assim em qualquer lugar do mundo. A novela é um grande centro de propagador de comportamento, de moda, de várias situações, de informação etc, assim como a Michelle Obama, nos Estados Unidos. Você vê que ela bota uma roupa e, no dia seguinte, aquela roupa acaba nas lojas. Ela é a estrela, a novela do momento nos Estados Unidos. Agora, para nós, eu acho que nós não temos a capacidade de entrega rápida. Nós não vamos ter uma produção barata, mesmo porque nossa mão-de-obra é a coisa mais barata na formação de um custo. Nós pagamos um preço muito barato pela mão-de-obra. São os impostos, são várias outras coisas que encarecem. É o desperdício, é a má administração que faz com que os custos sejam caros.
Eliane Trindade: Mas por que a roupa no Brasil não pode ser mais barata? Alguns jovens estilistas brasileiros lançam a primeira coleção e já colocam preços absurdos, que a classe média não consegue comprar. Ele não pensa em escala. Também há um pouco de ego aí, de administração do negócio, muito mais por vaidade do que como negócio mesmo.
Glória Kalil: Eliane, deixa eu te falar uma coisa: a moda de grife é nada, tem cinquenta marcas. Há trinta no Rio, quarenta em São Paulo, umas vinte...é muito pouco, entendeu? Quando a gente fala de preço, a gente tem que sair da...Tudo que é grife é mais caro, pois há um investimento em marca, em imagem, é uma coisa de exclusividade de tecido. E quanto menos vende, mais caro fica, porque a mão-de-obra é a mesma, os custos fixos são os mesmos. As pessoas sempre ligam o preço da moda à moda de grife. A moda de grife é cara aqui e no mundo todo. Agora, o que é bom nos outros lugares do mundo, e que nós não temos, é uma faixa grande de oferta na classe média. Isso nós não temos, lá em cima está garantido com grifes brasileiras, importadas, carésimas. Embaixo, há uma boa oferta. É a classe média que ficou prejudicada. Por exemplo, a cadeia espanhola de lojas Zara, que é conhecida no mundo inteiro, veio para o Brasil. Aqui no Brasil, ela é vendida em shopping para a classe média, porque é muito mais cara do que fora. Fora do Brasil, ela é uma marca jovem e popular, baratíssima. Aqui, ela é média por causa do preço, por causa dos impostos, é cara. Então, é essa faixa que é carente de roupa barata. Aí, você tem razão.
Heródoto Barbeiro: Nós vamos fazer nosso segundo intervalo nessa conversa do Roda Viva. Queria lembrar a você o seguinte: todo o nosso arquivo, a memória, está disponível no nosso site. É só você entrar no www.tvcultura.com.br/rodaviva e pesquisar o conteúdo de toda a programação, nosso arquivo, além de mandar e-mails com suas críticas, sugestões, aquilo que você acha relevante para o nosso programa. A gente volta em instantes. Até já.
[intervalo]
Heródoto Barbeiro: Bem, você acompanha hoje, aqui no Roda Viva, a entrevista com Glorinha Kalil, jornalista e consultora de moda. Glorinha, você falou em ditadura da moda agora há pouco. Quando a gente escreve no convite "traje passeio fino", "esporte fino" e outras coisas mais, é uma forma de impor a moda, a maneira como as pessoas devem se vestir naquele evento?
Glória Kalil: Não.
Heródoto Barbeiro: Não?
Glória Kalil: Eu acho um alívio quando eu recebo um convite em que vem escrito o traje. Isso está te dando uma dica do tom da festa, que tipo de festa te espera. E aí você vai do jeito que quer, mas vai sabendo. É aquele negócio que eu falei: sabendo, você pode até desobedecer. O que não pode é não saber. Por exemplo, você recebe um convite dizendo: "traje social completo". Aí você fala: “Ôba, vou estrear meu jeans detonado!”.
[risos]
Glória Kalil: Chega lá e está todo mundo de terno azul marinho, e você com o teu...Se você foi de propósito, você está na tua. Se você não sabia, vai se sentir super mal, Então, aquele negócio é uma maneira de dizer: “Você está sendo convidado para uma festa, o tom é esse, a maior parte das pessoas vai deste jeito". Cabe a você decidir o que quer por.
Carmem Amorim: Glória, tenho uma pergunta da Tatiana Meyer, de São Paulo. Ela gostaria de saber qual a maneira melhor de entregar um presente. Se você revela onde ele foi comprado entregando na sacolinha, ou se você o entrega em um papel de presente neutro.
Glória Kalil: Meu Deus do céu!
[risos]
Glória Kalil: Tatiana, você já está sendo super gentil em dar o presente. Não se preocupe, dê do jeito que você quiser.
[risos]
Glória Kalil: Isso não tem muita importância.
Carmem Amorim: Não está quebrando regra nenhuma...
Glória Kalil: O importante é isso, você está fazendo uma gracinha para uma pessoa que vai adorar receber um presente. Não se preocupe com o pacote, Tatiana, faça do jeito que você quiser.
Carmem Amorim: Está bom.
Cristiane Mesquita: Posso aproveitar isso? Nos seus livros, nas suas falas, sempre há esse tom, às vezes muito sutil, da desmedida, da desobediência. Você sempre diz: “Olha, leiam tudo, mas aprendam a desobedecer”. Eu acho que isso está sempre implícito nos seus manuais. Isso me lembra uma fala de um filósofo, que a mim é muito caro: Deleuze, um filósofo francês. Tenho certeza de que você também compartilha quando ele define, em alguns momentos, em algumas passagens da obra dele, o estilo e o charme. Ele sempre fala que ambos devem ser contaminados pela vida, com uma complexidade que não cabe aqui a gente nomear. E isso, na verdade, já diz respeito a um certo descontrole de tudo isso, de todas as regras.
Glória Kalil: É, não sabia que eu tinha esse tom de "desobedeça o tempo todo". Nunca me dei conta disso, mas é possível. [risos]
Cristiane Mesquita: Você fala, inclusive, que anda meio intolerante com o pretinho básico.
[risos]
Glória Kalil: É. Você sabe que, quando eu escrevi o Chic[érrimo] [2004], meu primeiro livro de moda e etiqueta, percebi que estava entrando um pouco no assunto da etiqueta, porque por trás de toda pergunta de moda, eu vi que tinha embutida uma pergunta de etiqueta. Quando a pessoa me pergunta assim: “Fui convidada para ir a um jantar na casa do chefe do meu marido”, ela não quer só saber que roupa que ela põe, quer saber o que a espera, o que vai ser essa noitada. Ela tem que ir muito chique ou não? Tem que telefonar para a mulher antes? E se ela não gostar da comida? O que ela conversa, o que vai encontrar; onde ela senta, o que ela faz? É isso que ela quer saber. Ela quer o pacote inteiro, né? E, como eu falei, acho que é importante dar segurança e dizer: "o que você vai encontrar é isto, isto, isto, isto. As pessoas, normalmente, vão estar dessa maneira". Sabendo disso, ela fica à vontade. Eu acho que quando você tem segurança, você fica à vontade, o que facilita muito a elegância. É mais elegante você ser à vontade do que aquela pessoa tensa e nervosa com aquilo. Ela não está aproveitando nada. Ela não está se divertindo. A festa está ficando uma porcaria e aquilo não está dando certo. Quando a pessoa sabe o que a espera, ela pode tomar a posição que ela quiser, fica à vontade e segura. Tomar conhecimento de regras de moda e de etiqueta te deixa mais seguro. E é um alívio quando a gente está seguro de alguma coisa.
Eliane Trindade: Glória, quando você tem que ir a um desfile, como o Fashion Week, onde você vai estar na primeira fila, você também tem que se preocupar com seu próprio estilo. As pessoas querem saber o que você está usando. Como é isso? Quando você vai para uma semana de moda, isso vira uma preocupação para você, que vai se apresentar também, que vai ser olhada por isso...
Glória Kalil: Eliane, eu trabalho com moda há trinta anos. Se eu não souber me vestir minimamente para ir ao evento, que é o evento básico da minha atividade, estou frita. E depois, uma das coisas que está no meu livro e que graças a Deus é um fato, é: "repita a roupa quantas vezes você quiser". As pessoas ficam aflitas, elas falam assim: “Mas pode repetir roupa?”. Eu falo: "mas é claro que pode repetir roupa! É a mesma coisa que você comer em um dia um bife com batata frita. Agora não pode nunca mais comer? Você comeu uma vez, agora não pode nunca mais? Que isso, repita a roupa! Então, é isso, tenho determinadas roupas-chave que eu sei que funcionam, que são práticas, que não vão amassar muito, que eu vou conseguir passar o dia inteiro. Não uso salto alto nem morta em uma hora dessas. Faço um guarda-roupinha e mando ver, repito... Inclusive, tem uma parte no meu site que se chama o "Look da Glória", porque é uma pergunta.
Eliane Trindade: As pessoas têm curiosidade.
Glória Kalil: As pessoas querem saber o que eu uso. E, volta e meia, está assim: “Óculos: o de sempre; sapato: o de sempre”.
[risos]
Glória Kalil: Eu ponho na legenda, porque isso se repete. Então, arruma ali umas coisinhas que vão bem em você e sossega.
Eliane Trindade: A Semana de Moda é uma maratona. Você acha que há espaço no Brasil para duas semanas de moda? Ao final, a sensação é de que estão sobrando grifes ali, que o calendário precisaria ser revisto. Você tem essa opinião? Você acha que há um exagero?
Glória Kalil: Você está tocando em um ponto do business bastante complicado, porque é o seguinte: até este ano, as duas semanas de moda são de empresários diferentes. Não se esqueça de que nem a Semana de Moda de São Paulo, nem a do Rio são de uma entidade da classe. São duas empresas privadas que tomam conta, cada uma faz em uma semana e ficam brigando. É a mesma coisa que eu dizer para você: Eliane, porque você não se junta com o pessoal do [jornal] O Estado de S. Paulo e, em vez de ter a Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo, vocês não fazem um jornal só? É a mesma coisa! São duas empresas privadas que vão brigar pelo público.
Heródoto Barbeiro: Havia essa concorrência com o pessoal das editoras. Havia duas feiras de livros, simultaneamente, em São Paulo e no Rio, lembra disso?
Glória Kalil: É.
Heródoto Barbeiro: Aí eles resolveram fazer um ano em São Paulo e outro ano no Rio, porque também são concorrentes. Você acha que isso seria possível na moda?
Glória Kalil: Se isso for bom para o business e implicar em uma possibilidade de lucro maior, sim, senão não. São empresas privadas que estão lá para ganhar dinheiro. Se eles acharem que vai dar mais dinheiro fazer assim, sim.
Paulo Lins: Houve uma discussão sobre negros como modelos. Como você vê isso?
Glória Kalil: Sim, neste ano. Parece que é o seguinte: houve uma sugestão de que as empresas pusessem uma cota mínima de negras na passarela. Bom, para te dizer a verdade, eu não tenho muita clareza do assunto, mas me parece boa idéia. Você sabe que a quantidade de modelos negras é muito pequena. Com a obrigatoriedade, as agências vão procurar mais e vão abrir mais. Haverá mais possibilidade de emprego para as meninas que quiserem trabalhar nisso. Então, se houver demanda, haverá oferta. Acredito que seja nesse sentido, acho que é uma vantagem.
Paulo Lins: Existe uma preocupação de quem produz moda com a questão de raça, moda para negro, moda para branco?
Glória Kalil: Não, não. Aliás, até me falam assim: “Por que você não faz um livro de moda para negro?". Porque negro se veste igual, qual é o problema? É igual. Moda para negro por quê?
Paulo Lins: A roupa está bem para todo mundo, é a mesma roupa?
Glória Kalil: Fica bem ou mal para todo mundo.
Carmem Amorim: Glória, os internautas estão insistindo em uma pergunta sobre anorexia [transtorno alimentar no qual a busca implacável por magreza leva a pessoa a recorrer a estratégias para perda de peso, ocasionando excessivo emagrecimento. As pessoas anoréxicas têm medo de engordar mesmo estando extremamente magras. Geralmente, a doença atinge mulheres adolescentes e adultas jovens e pode levar à morte por desnutrição]. O que fazer no caso desse exagero pela magreza na passarela? Que atitude o Brasil deve tomar? Essa discussão já passou por aqui.
Glória Kalil: Assim como está havendo a coisa da cota de negras, houve uma intervenção no sentido de não se pegar meninas com menos de 16 anos, que tenham um índice de gordura não sei o quê [refere-se ao IMC - Índice de Massa Corporal, medido em uma relação entre peso e altura].
Heródoto Barbeiro: É na Espanha isso? [Em 2009, modelos com IMC abaixo de 18 foram proibidas de participar da semana de moda Pasarela Cibeles, principal evento de moda daquele país]
Glória Kalil: Aqui.
Heródoto Barbeiro: Aqui no Brasil?
Glória Kalil: Começou na Espanha, e depois veio para cá. É um índice de gordura ridículo, péssimo. Se eu fosse fazer esse índice delas, eu seria uma bola deste tamanho! É um índice esquisito. Acho que isso foi um alerta. Houve um acidente muito chato, muito triste, que foi a morte de uma menina, lembra? Ana Carolina [Ana Carolina Macan, que faleceu aos 21 anos, em 2006]. Ela morreu porque não se alimentava. Desde os 13 anos, a família a colocou para ser modelo, porque ela era arrimo de família, ganhava dinheiro, aquelas coisas que a gente conhece. A menina morreu de anorexia. E isso foi um alerta no mundo inteiro. Então, passaram a dar cotas, exigências. A partir daí, as pessoas passaram a falar do assunto, a tentar fazer esse tipo de índice. Agora, como eu digo, o problema do mundo hoje não é ser magro, é ser gordo. A doença hoje é a obesidade. A obesidade mata mais do que a anorexia. Então, não sei porque as pessoas se preocupam tanto com isso, deviam estar preocupadas em dar comida gordurosa para a criança, fazê-la comer biscoitinho, coisas que engordam e que não alimentam.
Lídia Goldenstein: Eu queria voltar ao nosso assunto...
Glória Kalil: Vamos lá, eu ainda não consegui te responder.
Lídia Goldenstein: Tem a ver com a pergunta sobre haver duas semanas de moda ou não. Como você bem falou, são eventos feitos por empresários privados. Não são eventos em que o próprio setor tenha se organizado, nem com [interferência] do setor público. O do Rio teve um pouco mais de [participação] do setor público, mas foi uma coisa de cima para baixo, sem uma organização de algum tipo de associação entre os empresários do setor. Só para lembrar, na França, é uma política pública. Os desfiles de moda são feitos no [Museu do] Louvre. Não existe preconceito, porque se sabe que a França vive disso, que gera emprego, gera renda, gera turismo, gera uma cadeia que vai muito além da cadeia têxtil: é uma questão cultural, de cenografia teatral, etc. Aqui, eu mesma participei de uma tentativa de se montar um centro de referência de moda e design na cidade de São Paulo. Era uma iniciativa feita partir da prefeitura. Durante quase dois anos, tentei organizar os empresários do setor através das diferentes associações. E é muito difícil. Eu acho que há algo que é dramático: o nosso empresário ainda tem uma visão de vinte, trinta anos atrás, de uma economia fechada, onde não existia concorrência e onde o setor público pagava a conta, seja com crédito subsidiado, proteções tarifárias ou outras benesses do setor privado. A gente ainda não conseguiu romper esse círculo vicioso. Então, eu volto à pergunta, porque eu acho que dela depende a sobrevivência de toda a cadeia têxtil no Brasil: como inverter essa equação, que você coloca tão bem, de que [moda] brilha mas não vende? Como brilhar e vender?
Glória Kalil: Eu acho que a Lídia tem razão. Eu já participei, você já participou, nós já participamos, todos os empresários já participaram de comissões, de estudos para ver porque não conseguimos comover o setor público. Os políticos não se interessam pelo setor da indústria têxtil. Por quê? Porque os empresários brasileiros não sabem fazer essa reivindicação, eles não se juntam. Você tentou fazer várias coisas. O que falta é o empresariado brasileiro eleger determinadas coisas que quer fazer, deixar claro qual é o projeto dele e fazer uma reivindicação. Eles só vão lá para chorar porque pagam impostos, porque não têm reserva de mercado, não sei o quê. Agora, não há um projeto que diz: “Queremos atacar, por exemplo, os biquínis, jeans, couro e o setor de calçados. Então, vamos atacar isso, nossas reivindicações são essas!”. Aí entrariam no problema das cotas, da produtividade, do financiamento de maquinário, de botar as pessoas para estudar, de fazer trocas, mandar gente para China, de vir gente de lá, de mandar gente para fora. Nós temos tudo! Nós temos criatividade, somos um país bem visto lá fora. Quando você fala para qualquer pessoa "Sou brasileiro", todo mundo sorri. Já reparou? Agora, fala que você é búlgaro para ver se alguém dá risada! Não dá.
[risos]
Glória Kalil: O Brasil tem uma graça. As pessoas acham graça no Brasil, não é verdade? Então, isso tem que se traduzir em produto. Isso pode ser traduzido em produto. Nós temos uma gracinha, nós temos um charmezinho, e isso tudo deve se traduzir em produto. Por exemplo, nossa música conseguiu o que eu acho que a moda tem que conseguir. É uma música altamente sofisticada, altamente respeitada, que começa a tocar e você vê na hora que é brasileira.
Heródoto Barbeiro: Glorinha, ok. Vamos fazer então mais um intervalo. Nossa entrevistada de hoje é a jornalista e consultora de moda, Glória Kalil. Roda Viva volta em um instante, até já.
[intervalo]
Heródoto Barbeiro: Bem, você acompanha aqui o Roda Viva. Nossa convidada é a Glória Kalil, jornalista e consultora de moda. Glória, gostaria que você falasse um pouquinho sobre moda infantil. A gente percebe o seguinte: há algumas empresas que vendem produtos para as crianças, geralmente guloseimas, brinquedinhos etc. A grande discussão é se essas empresas devem ou não anunciar para a criança. Se vão anunciar brinquedo, guloseimas, por que não discutir também a questão da moda nesse mesmo conjunto? De um lado, há uma legislação, se estuda isso no Congresso [Nacional]; do outro, algumas empresas, por sua competência, por seu compromisso de caráter social, espontaneamente não estão mais fazendo propaganda para a criança. Eu pergunto: você acha que, na moda, as crianças também chegam na barra da saia da mãe ou do pai, e dizem: “Eu quero aquele sapato, aquela bolsa”; como elas querem, por exemplo, uma guloseima?
Glória Kalil: Heródoto, não entendo absolutamente nada de moda infantil, mas sei que tem criancinha que, desde pequenininha, vai até em cabeleireiro etc. Aliás, isso saiu na Folha.
Heródoto Barbeiro: Criança no cabeleireiro?
Glória Kalil: Parece que elas, inclusive, conhecem grifes etc. Isso tudo me parece tão precoce, tão absurdo, é surpreendente. Eu fiquei muito surpresa, mas parece que isso existe. Eu não sei muito bem como é que se faz. Agora, eu acho complicado não anunciar qualquer coisa também, você não acha? Nem sabia disso que você está falando, que há um movimento nesse sentido...
Heródoto Barbeiro: Há uma discussão, um debate. Algumas empresas, espontaneamente, estão deixando de anunciar para criança, outras não. Outras, que vendem bonequinhas, disseram que vão continuar anunciando.
Glória Kalil: É...
Lídia Goldenstein: Eu acho que, quando é questão de saúde, o poder público tem que intervir. No mais, se a mãe tem cabeça ruim, o filho vai ter cabeça ruim de qualquer jeito.
Glória Kalil: Não é? Porque eu acho meio... Se você faz um produto, uma comida que possa ser prejudicial...
Heródoto Barbeiro: É, mas o anúncio é para a criança, não é para o pai. É para a criança convencer o pai ou a mãe a comprar.
Glória Kalil: Criança também é gente.
Heródoto Barbeiro: Você acha ético isso?
Glória Kalil: Não sei, Heródoto. Eu não tenho clareza a esse respeito. Eu não faço idéia de que tipo de apelo possa haver.
Heródoto Barbeiro: Uma criança é uma criança, não tem o poder de discernimento de um adulto, concorda?
Glória Kalil: Que deveria ter o adulto...
Paulo Lins: É vender para a criança, né?
Heródoto Barbeiro: É vender para a criança.
Paulo Lins: Vender um produto que ela não tem defesa para vê-lo na televisão e compreender aquilo.
Glória Kalil: Talvez seja uma coisa que tenha que ser controlada, se é um produto que interfere na saúde, sem dúvida nenhuma.
Heródoto Barbeiro: Existe moda para criança?
Glória Kalil: Sim.
Heródoto Barbeiro: Quem escolhe, a criança ou os pais da criança?
Glória Kalil: Não faço a menor idéia, mas parece que hoje a criança pede roupa pelo nome, não é? Parece que elas interferem com vontade nisso e, evidentemente, são alvo de publicidade para que isso aconteça, ou vêem as mães atrás de grifes e aprendem. Não sei muito bem como é o processo, mas tem moda para criança. Inclusive, quem abre a Semana de Moda do Rio de Janeiro é uma indústria grande e específica para criança. Mas eu não tenho uma opinião formada sobre isso, eu não conheço e nem sabia que havia essa história de regulamentação.
Eliane Trindade: Glória, o que explica o insucesso desse modelo de gestão que se tentou no Brasil, com várias marcas como a Fause Haten [famoso estilista brasileiro]? Várias foram vendidas, os estilistas saem e não ficam no negócio. O que está acontecendo? É desconhecimento do mercado, é ganância, é ego? Esse modelo poderia ser uma saída...
Glória Kalil: É, de fato. Existe esse modelo novo, que são as associações das indústrias têxteis com grupos financeiros, sejam bancos, sejam fundos, ou serem comprados parcialmente ou totalmente por uma dessas... Algumas já não deram certo, algumas deram. É uma novidade, não é? Você tem que lembrar que a maior parte dessas indústrias é familiar...
Eliane Trindade: Baseada no dono.
Glória Kalil: Baseada no dono mesmo. Ele que fundou e está lá até hoje, o próprio.
Eliane Trindade: A marca é ele.
Glória Kalil: A marca é ele, sempre foi. É muito difícil para essa pessoa aceitar uma administração vinda de fora. Ele que resolveu tudo, que criou o nome, que criou a marca, que fez aquilo crescer. Aí ele vende porque está cansado ou porque precisa de um aporte financeiro, ou porque ele quer expandir. Alguém fala: “Então manda embora metade do teu, do teu... você está com isso aqui inchado, tem gente demais, os salários estão muito altos”. É muito difícil dar certo. Então é uma novidade, os nossos empresários não têm ainda a cultura desse funcionamento. Há estilistas "super-egóicos", que não vão aceitar isso. Há empresários "super-egóicos" também, não é? Então, vai ter de tudo, é como um casamento: alguns vão dar certo, alguns não.
Carmem Amorim: Glória, Fernanda Nadal, de Ponta Grossa, no Paraná, pergunta: “Por que há dificuldade de exportar no Brasil? De todos os itens que você já citou, qual seria a maior dificuldade, o que precisa ser feito para exportar nossa moda?”.
Glória Kalil: Olha, Fernanda, o problema não é que nós temos uma dificuldade para exportar. Hoje em dia, o mercado globalizado é um mercado em que o mundo inteiro está vendendo. Como a pessoa escolhe? Precisa de marcas, é evidente. Precisa trabalhar o assunto de marca. Eu acho que, no Brasil, o assunto marca é mal trabalhado ainda, porque nós não tivemos essa necessidade e essa prática ainda não faz parte da nossa cultura. Nós não temos nenhuma marca conhecida lá fora, nenhuma. Para não dizer que não tem nenhuma, tem a Havaianas [marca brasileira de chinelos de borracha, produzidos pela empresa São Paulo Alpargatas], é a única que as pessoas conhecem. Fora isso, é um começo. Nós estamos começando. Há marcas que estão fazendo trabalho fora, que estão se instalando fora, que estão começando. Nós ainda não temos um trabalho onde o assunto marca é fundamental.
Heródoto Barbeiro: Glória, mais uma questão interessante sobre o mundo corporativo e a governança em relação à moda. Falei agora de criança, vamos falar um pouco a respeito da moda ecologicamente correta. Há espaço para a ecologia na moda? As pessoas estão preocupadas, por exemplo, com os tecidos? Outro dia, nessa confusão que houve no Amazonas por causa do boi [na ocasião, após as ilegalidades detectadas na pecuária na região da Amazônia, diversas empresas fizeram boicote à compra de matérias-primas vindas de regiões desmatadas], a Nike disse que não ia comprar mais couro se soubesse que ele viria de boi de área desmatada ilegalmente. Eu pergunto: isso é só uma preocupação da cadeia ou chega no mundo da moda, chega na passarela?
Glória Kalil: Chega sim. É uma evidência hoje, é até um assunto de marketing. Tem gente usando isso até como marketing para venda, existe sim. Existem pessoas preocupadas com extração de fibra, com a limpeza de água, com a poluição dos agentes químicos que fazem os tingimentos e as estamparias, com o controle de mão-de-obra para que não haja menores ou pessoas que não sejam pagas...
Heródoto Barbeiro: [interrompendo] Escravos.
Glória Kalil: ...como também com todos esses agentes químicos que poluem, etc. Então, hoje em dia, já é um ponto de marketing, há marcas cuja etiqueta diz: “Essa fibra foi tingida naturalmente, nós fizemos não sei o quê”. Além do mais, é uma necessidade. Daqui a pouco vai ser uma coisa tão óbvia a gente ter que cuidar de planeta, senão isso vai ficar insustentável...
Heródoto Barbeiro: É possível ver isso nas passarelas, as pessoas identificarem isso nas passarelas?
Glória Kalil: Não, não.
Heródoto Barbeiro: Ainda não?
Glória Kalil: Não. Eu acho até bom, porque não é um produto diferente. Você vai querer vestir exatamente as mesmas coisas que você gosta, só que com produtos feitos de uma maneira que não agrida nada, não é isso? Então, não existe dizer assim: “Ah bom, ele está usando porque o algodão é nitidamente de outra cor ou de outra textura". Não, você vai continuar usando exatamente a mesma coisa, todo mundo vai continuar usando, só que todas elas feitas com essa preocupação interior.
Paulo Lins: [mudando de assunto] Não seria nem em relação à vestimenta, mas em relação ao cabelo, que é uma coisa muito importante no Brasil. Eu não tenho cabelo, eu posso...
[risos]
Paulo Lins: Mas por que as mulheres alisam tanto o cabelo? Eu acho tão feio!
[risos]
Paulo Lins: Eu acho tão feio as pessoas alisando o cabelo...Por que elas alisam tanto o cabelo?
Glória Kalil: A famosa chapinha...
Paulo Lins: É, por que será?
Glória Kalil: Eu tenho impressão, Paulo, de que talvez o cabelo crespo seja rejeitado pelo fato de ser ligado à identidade negra que, até pouco tempo atrás, era discriminada. Não era desejável que você tivesse...Veja que coisa curiosa: os traços que antigamente eram considerados perigosos para a aparência, como o cabelo crespo, os lábios... Antigamente, lábio fino era o contrário de lábio grosso, que era ligado à idéia de características de negro. Hoje, é o contrário: o bonito são lábios grossos. Hoje em dia, as pessoas estão usando cabelo crespo com muito mais liberdade. Negros estão usando seus cabelos crespos, livres, sem o problema de alisar. Estou louca para a Michelle Obama esquecer aquela chapinha, que é a única coisa que ela podia deixar de fazer. Seria um exemplo fantástico.
Paulo Lins: Seria maravilhoso.
Glória Kalil: Seria maravilhoso, né?
Eliane Trindade: Mas você acha elegante essas bocas infladas, esse excesso de silicone, de preenchimento?
Glória Kalil: "Nã nã nã nã não".
[risos]
Glória Kalil: Não confunda lábios grossos com silicone! Silicone é uma desgraça medonha. Eu acho que as mulheres enlouqueceram.
Heródoto Barbeiro: Glória, cabelo e maquiagem também têm moda?
Glória Kalil: Claro que tem.
Heródoto Barbeiro: Tem? Tem moda para cabelo? Até agora, nós estamos falando em tecidos...
Glória Kalil: Nos anos oitenta, Paulo, passei dez anos da minha vida fazendo permanente [método químico para cachear e dar volume aos cabelos] para ficar com o cabelo crespo. Foram todo os anos oitenta fazendo permanente. Eu tenho cada foto que você não acredita!
[risos]
Glória Kalil: Cabelo deste tamanho [gesticula], todo crespo e tal. Então, cabelo tem moda sim, maquiagem também.
Heródoto Barbeiro: Maquiagem também tem?
Glória Kalil: Maquiagem também, traços também. Não sei o que acontece... entra na moda um tipo e depois todo mundo começa a ficar desse jeito, ou todo mundo começa a ficar desse jeito e depois fica na moda. Quando eu era menina, tinha 18 anos... Eu tenho 1,63 metros de altura. Hoje eu sou anã, mas eu era super comercial...
[risos]
Glória Kalil: Hoje em dia, as meninas de 13, 15 anos, têm 1,80 metros. De onde saiu isso? Hoje, as agências de manequim fazem concurso e falam: “Concurso de modelo, estão abrindo vaga para modelo”. Há uma fila na porta de duas mil meninas de 1,80. Não havia isso antigamente. As meninas são todas de 1,80, "bocudas", porque o assunto plástica é uma desgraceira que aconteceu. As mulheres andam pondo silicone, todas "bocudas", ninguém sabe...E é fácil você ver na hora, quase sempre você distingue quando é silicone e quando uma pessoa nasceu daquele jeito.
[risos]
Heródoto Barbeiro: Agora, porque há tão poucos rapazes? A gente vê os desfiles, passa um monte de mulher e, de vez em quando, meia dúzia de homens.
Glória Kalil: Olha, Heródoto, uma vez o Paulo Borges, na São Paulo Fashion Week, resolveu fazer um dia só de moda masculina. Você lembra disso? Era um dia só de moda masculina. No primeiro desfile estava... é chato ver homem!
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Heródoto Barbeiro: Chato?
Glória Kalil: Não tem graça, Heródoto. Os homens mais lindos que você possa imaginar, aqueles meninos maravilhosos no segundo, terceiro desfile... Mas aquilo não muda, é sempre igual, homem não muda, a roupa também não muda muito. Homem não tem muita graça na passarela.
[risos]
Paulo Lins: É verdade que uma mulher se veste para a outra? Isso porque, realmente, a coisa que eu menos reparo em uma mulher é como ela está vestida. Sabe, eu gosto de ver mulher na praia...
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Paulo Lins: É a melhor coisa de se ver!
Glória Kalil: É, dizem que homem não liga nem para celulite. E a gente quase se mata por causa de celulite!
Paulo Lins: É verdade isso?
Glória Kalil: Há uns que falam: “Nem sei o que é celulite”. Ai, que coisa maravilhosa!
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Glória Kalil: Eu acho que mulher se veste para outra mulher sim, porque ela sabe que a outra mulher sabe o que ela está vendo.
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Heródoto Barbeiro: Glorinha, mulher se veste para mulher, nós não temos nenhuma participação, homem é chato. Não sobra nada?
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Glória Kalil: "Nã nã nã nã não", ninguém disse isso. Homem é chato na passarela.
Heródoto Barbeiro: Ah, está certo. Deixa eu aproveitar e fazer uma última pergunta, pois estamos chegando ao fim do nosso programa. Quando a gente falava ou lia alguma coisa sobre moda, a gente sempre imaginava Paris, Milão e Londres, não sei se estou enganado. Esses centros de moda eram os grandes, os tradicionais. Eles também não sofreram essa mesma concorrência que a gente vê hoje em outras partes do mundo?
Glória Kalil: Sem dúvida.
Heródoto Barbeiro: Eles ainda têm aquela força econômica, aquela pujança que tinham no passado ou também perderam?
Glória Kalil: Eles têm uma grande força de lançamento de moda. O que acontece é há outros centros. A partir dos anos oitenta, Nova Iorque e Tóquio, por exemplo, entraram nesse ranking. Aliás, foi por isso que São Paulo também começou a ter uma força na moda, porque era uma moda urbana, ao contrário do que era antes, que era uma moda muito mais de design, onde o Rio de Janeiro teve muito peso. Depois, economicamente, houve uma mudança para os grandes centros urbanos. Então, Milão, Londres e Paris continuam sendo os grandes centros lançadores de moda, junto com outros pólos. Inclusive o Brasil hoje está pleiteando um lugar...
Heródoto Barbeiro: Nós teríamos que ter uma grife desfilando nessas cidades para entrarmos como lançador de moda?
Glória Kalil: Grifes e estilistas. Por exemplo, nós temos vários estilistas [e grifes], como Alexandre Herchcovitch [estilista brasileiro e professor de moda em diversas instituições], Carlos Miele [estilista brasileiro, dono das marcas Carlos Miele e M.Officer], Iódice [grife feminina com expressiva presença no mercado nacional e internacional], Osklen [marca criada em 1989 no Rio de Janeiro, que foca em vestuário e acessórios casuais e esportivos], que estão desfilando em Nova Iorque, já desfilaram em Paris. Eu acho que isso tende a aumentar.
Heródoto Barbeiro: Ok. Glorinha, nós queremos agradecer a gentileza de sua participação aqui conosco. Muito obrigado pela participação.
Glória Kalil: Imagina, obrigada a vocês!
Heródoto Barbeiro: Eu queria aproveitar a oportunidade e agradecer também aos nossos entrevistadores. Muito obrigado pela participação. As perguntas que a Carmem recolheu serão encaminhadas à Glorinha. Uma ótima semana para você e nós te esperamos no próximo programa. Até lá e obrigado.