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Memória Roda Viva

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Nilcéia Freire

21/3/2005

A secretária especial de Políticas Públicas para Mulheres debate a descriminalização do aborto no país e é questionada sobre a posição do governo sobre o assunto

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[programa ao vivo, permitindo a participação dos telespectadores]

Paulo Markun: Boa noite. Um dos assuntos mais polêmicos da sociedade brasileira volta ao debate envolvido por novas opiniões, mas também por antigos conflitos de idéias. É a questão do aborto, que ganhou destaque recente com a discussão sobre a exigência ou não de Boletim de Ocorrência [B.O.] para a interrupção legal da gravidez provocada por estupro. A discussão deve aumentar ainda mais com o início dos trabalhos da comissão criada pelo governo para rever a legislação do aborto no país. O Roda Viva já abre este debate agora com a médica Nilcéa Freire, ex-reitora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e [ministra da] Secretaria Especial de Políticas Públicas para as Mulheres, que é a nossa convidada desta noite.

[Comentarista]: Médica com mestrado em zoologia, Nilcéa Freire era reitora da Universidade [Estadual] do Rio de Janeiro quando foi indicada para a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, órgão que tem status de ministério e é vinculado à Presidência da República. Assumiu com a missão de implantar a política do governo Lula de combate à violência contra a mulher, igualdade nas relações de trabalho e outras ações, especialmente na área da saúde. Essas ações, debatidas em encontros regionais, deram origem ao Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, com ênfase ao combate à violência doméstica contra a mulher, a legalização do aborto e a garantia do atendimento desses casos nos postos de saúde. Pelo Código Penal Brasileiro, o aborto só é permitido em caso de gravidez provocada por estupro ou quando há risco de morte para a gestante. Cerca de cinquenta hospitais públicos no Brasil oferecem gratuitamente esse serviço médico. Quem descumpre a lei e  se envolve com o aborto ilegal, pode ser condenado a uma pena de um a três anos de prisão. Raramente alguém é denunciado ou punido e, segundo algumas projeções, possivelmente um milhão de mulheres por ano no Brasil praticam o aborto de forma clandestina, em condições precárias e com riscos à saúde. A questão foi retomada recentemente com a discussão da exigência ou não de Boletim de Ocorrência para o aborto decorrente de estupro. O Código Penal não faz a exigência, mas uma decisão do governo federal, em 1998, passou a exigir o boletim para incentivar que as vítimas de estupro fossem à polícia denunciar a agressão. Por constrangimento ou medo de represálias, muitas mulheres não fazem a denúncia, o que restringe o socorro médico. Neste mês, uma norma do Ministério da Saúde suspendeu a exigência, liberando o aborto na rede pública à mulher que simplesmente alegar ter engravidado após estupro e informando que os médicos não precisariam temer conseqüências jurídicas. Mas a norma foi contestada pelo Supremo Tribunal Federal e a discussão provocou nova reação entre os movimentos que agem a favor e contra a legalização do aborto no país. Essa polêmica deve aumentar ainda mais com o início dos trabalhos da comissão criada pelo governo para discutir e modificar a legislação do aborto.

Paulo Markun: Para entrevistar a ministra Nilcéa Freire, nós convidamos: Flávia Oliveira, repórter especial da editoria de economia do jornal O Globo; Luiz Weis, articulista do jornal O Estado de S. Paulo e do site Observatório da Imprensa; Cláudia Collucci, repórter da editoria de cotidiano do jornal Folha de S.Paulo; Carlos Aurélio Mota de Souza, jurista integrante do Tribunal de Ética [Profissional] da Ordem dos Advogados do Brasil [OAB] de São Paulo; o bispo Adriel de Souza Maia, presidente da Igreja Metodista em São Paulo e do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil [Conic]; Reinaldo Azevedo, diretor de redação da revista e do site Primeira Leitura. Na nossa platéia, aqui no estúdio, acompanham a entrevista os seguintes convidados: Maria Luisa Eluf, diretora do Semina [Farmacêutica Indústria e Comércio] e da ONG [organização não-governamental] Centro Vergueiro de Atenção à Mulher [Cevam]; Jefferson Drezett, médico ginecologista e coordenador do Serviço de Violência Sexual do Hospital Pérola Byington; Regina Figueiredo, articuladora da Rede Brasileira de Contracepção de Emergência; Ana Lúcia Cavalcante, médica ginecologista da Coordenadoria da Mulher, da prefeitura de São Paulo; Maria José Rosado, socióloga e coordenadora da ONG Católicas pelo Direito de Decidir; Amelinha Teles, coordenadora do projeto Promotoras Legais Populares da União de Mulheres de São Paulo; Mário Tadeu de Barros Filho, diretor da Associação Bê-a-Bá do Cidadão; Tamara Amoroso Gonçalves, estagiária do Ilanud [Instituto Latino-americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente], Genivalda Santos, cientista social e ativista da Soweto Organização Negra; Reinaldo Antônio Gonçalves, professor de economia da PUC-SP [Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]; Adriana Rezende Farias, estudante de ciências sociais da USP [Universidade de São Paulo] e Edinalva Tavares, professora de saúde pública da USP e militante da União de Mulheres de São Paulo. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para Brasília e todos os estados brasileiros. Pode ser acompanhado também pelo próprio site do programa, que é www.tvcultura.com.br/rodaviva ou por intermédio da rádio Cultura AM. Para você participar do programa, nosso telefone está à disposição, é o (11) 3252-6525 ou pelo fax (11) 3874-3454. Há ainda o endereço eletrônico do programa, que é rodaviva@tvcultura.com.br. Boa noite, ministra.

Nilcéa Freire: Boa noite.

Paulo Markun: Nós temos a suspensão da exigência do Boletim de Ocorrência para a execução de aborto na rede pública, a exigência de que haja um médico que não tenha ou não alegue dever de consciência para que esse tipo de intervenção seja feita, uma comissão tripartite [a comissão foi montada pelo governo federal para discutir a revisão da legislação punitiva do aborto] para discutir o assunto. Estamos a caminho da legalização do aborto?

Nilcéa Freire: Estamos no caminho ou pelo menos respondendo a uma necessidade da sociedade brasileira, que é debater essa questão. Nós estamos trabalhando com base em indicadores, números que não podem ser colocados embaixo do tapete. Temos 260 mil atendimentos por ano de mulheres que dão entrada no serviço público de saúde tendo manifestações ou complicações após o [aborto] clandestino. Nós temos projeções, número de mortes...O aborto no Brasil é a quarta causa de morte materna. Enfim, a sociedade precisa estar diante desses números, precisa discutir essa questão, estar bem informada. É isso que, do ponto de vista do governo federal, nós estamos fazendo.

Paulo Markun: O governo tem uma posição? Todas as entrevistas da senhora que eu li são extremamente cautelosas. Eu diria que a senhora nasceu em Minas Gerais [referência ao "jeitinho mineiro" de nunca colocar claramente a opinião sobre um assunto polêmico]. Tudo bem, a senhora tem sua posição, mas não é sua posição que está em jogo. Eu quero saber o seguinte: o governo brasileiro tem uma disposição de facilitar esse tipo de procedimento, que ele seja feito nos hospitais, que reduza o número de mortes, que haja mais facilidade para que as pessoas com gravidez indesejada possam se livrar dela?

Nilcéa Freire: A gente não pode fazer uma pergunta em um pacote tão geral, porque há situações absolutamente diferenciadas dentro dessa temática. Eu acho que a primeira coisa que precisa ser dita, do ponto de vista da posição do governo, é que o governo leva a sério as coisas que ele faz. No ano passado, que foi o "Ano da Mulher" [instituído por lei federal] no Brasil, o presidente Lula convocou, juntamente com o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, por meio da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres, a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres. Dessa conferência participaram cerca de 120 mil mulheres no país inteiro, mais de dois mil municípios fizeram plenárias municipais, todos os estados e o Distrito Federal fizeram conferências estaduais. E nós tivemos uma conferência em julho com cerca de duas mil delegadas representando essas 120 mil [mulheres], que discutiram temas variados que incluíam desde a política econômica até seus direitos sexuais e reprodutivos. Essa conferência teve deliberações que seriam subsídios para elaboração do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, que nós lançamos em dezembro. Entre essas deliberações, uma delas dizia respeito a essa pauta que nós estamos discutindo hoje e afirmava que [seria necessária] a revisão da legislação punitiva que trata do aborto no nosso país. Portanto, a posição do governo é clara, nós estamos cumprindo um compromisso com uma conferência convocada por nós e que deliberou uma revisão da legislação. É isso que nós vamos fazer. Por outro lado, há situações que impactam a saúde pública no nosso país e que já são legalmente previstas, como a situações de risco de vida para mãe e decorrentes da violência sexual [em ambos os casos, a legilação brasileira autoriza o aborto].

Reinaldo Azevedo: Ministra, por favor. Eu diria que na sua resposta a senhora continua mais mineira do que nunca, é muito bem articulada...Se eu for grifar as palavras que dizem se o governo tem uma posição, eu não vou encontrá-las. Eu pergunto a senhora se isso não decorre do fato de o governo ser um pouco contra algumas forças que o apóiam claramente no país. Se nós formos pegar a posição da Igreja Católica, que é aliada incondicional do PT [Partido dos Trabalhadores] e do presidente Lula na questão da terra e da invasão de terras, por outro lado, na questão do aborto, em uma geografia ideológica tradicional, a Igreja estaria entre aqueles que os setores do PT chamariam de direita, porque ela é contra o aborto. Já na questão da terra, a Igreja é, às vezes, mais esquerda do que os esquerdistas do próprio PT. Parece que o governo Lula não quer comprar uma briga com a Igreja Católica e, portanto, tenta fazer com que a questão da descriminalização do aborto seja um reclamo [reivindicação] da sociedade. Essa ambigüidade de apoios não está na base dessa falta de clareza do governo? Eu emendaria uma outra questão...Segundo o relato inicial, há um milhão de abortos no país. Pergunto se todos esses abortos foram feitos pela rede pública e se nós teremos tantos médicos que façam esses abortos. Haverá recursos para que esses abortos sejam feitos com dinheiro público?

Nilcéa Freire: Bom, primeiro eu queria dizer que a gente não tem falta de clareza alguma. Pelo contrário, a discussão tem que ser travada de maneira cautelosa...

Reinaldo Azevedo: [interrompendo] A senhora é favorável?

Nilcéa Freire: Eu, pessoalmente, não tenho posição...Tenho uma posição de governo, vou repetir isso...

Reinaldo Azevedo: [interrompendo] A senhora, como governo, é favorável?

Nilcéa Freire: ...quantas vezes me for perguntado.

Reinaldo Azevedo: Como governo, a senhora é favorável?

Nilcéa Freire: Como governo, eu já expressei a minha opinião. Nós temos que atender de maneira humanizada e digna a mulher que busca socorro médico na rede pública de saúde e criar condições para que essas mulheres sejam bem atendidas. Como governo, nós temos a responsabilidade de colocar a sociedade diante dessa questão para que ela possa discutir. Nós não estamos querendo transformar isso em um reclamo da sociedade. Foi uma deliberação de uma conferência composta [pela] sociedade. Não é um artifício por meio do qual o governo tenta se esconder. Por outro lado, nós temos a clareza de que essa discussão, para que possa ter um resultado que corresponda àquilo que os diferentes segmentos da sociedade apontam como ideal e para que seja mudada a norma jurídica do país, deve ser desapaixonada. É preciso se fazer uma discussão informada. É isso que eu estou...não "mineiramente", não tenho nada contra os mineiros, eu sou carioca...Costumo ser muito franca e clara nas minhas posições, sou médica, portanto...

[sobreposição de vozes]

[...]: E haveria dinheiro?

Nilcéa Freire: Quanto aos recursos, nós vamos...Primeiro, a rede pública tem que se preparar e é isso que nós estamos fazendo para atender ao que nós temos previsto na legislação hoje. Se, por ventura, o Congresso Nacional, que é a arena onde finalmente haverá a decisão por uma revisão maior ou menor da legislação que trata do aborto no nosso país, deliberar por isso, certamente o poder público, o Sistema Único de Saúde [SUS] terá que se preparar. Agora, há um dado importante: se imagina que se houvesse a liberação ou aumento das permissões legais para o aborto no país, haveria uma explosão no número de abortos. A realidade no panorama internacional é rigorosamente outra. Em todos os países onde o aborto foi descriminalizado, o número de abortos tendeu a cair ao longo do tempo. Isso porque também falam disso como se essa questão não tivesse regras, não tivesse normas, não tivesse balizamentos a serem discutidos.

Paulo Markun: Luiz Weis.

Luiz Weis: Ministra, a senhora disse em uma entrevista recente que a discussão não será fácil. Acho que isso é o mínimo que se poderia dizer, eu diria até que é o eufemismo [figura de linguagem utilizada para suavizar uma expressão] do ano. Com base em tudo que a senhora nos relatou, sua secretaria definiu como uma de suas prioridades revisar a legislação punitiva sobre a interrupção voluntária de gravidez. Essa revisão não é para torná-la mais punitiva, mas é para torná-la menos punitiva. Mas, além da oposição institucionalizada da Igreja Católica e outras, parece que a sociedade, pelos números disponíveis, não está muito sintonizada com essa perspectiva. A partir de pesquisas, eu consegui três números, sendo dois do Datafolha [instituto de pesquisas do Grupo Folha], de 1994 e 1997, e um de fevereiro último, da valorosa entidade Católicas pelo Direito de Decidir [criada em 1993, é uma entidade feminista, de caráter inter-religioso, que busca justiça social e mudança de padrões culturais e religiosos vigentes na sociedade]. O que se nota é que a clara maioria da população, inclusive de mulheres, quer que a lei continue como está. Tanto que na pesquisa de Católicas pelo Direito de Decidir, as únicas alternativas oferecidas eram: deve-se permitir o aborto apenas em alguns casos ou proibi-lo em todos? Não perguntaram se ele deveria ser liberado para todos os casos. Ou seja, além da resistência pública e notória da CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] e de outros órgãos, a sociedade está aparentemente distante da linha que sua secretaria quer imprimir. Não sei qual é essa distância, mas é uma preocupação que torna mais grave a afirmação de que a discussão não será fácil.

Nilcéa Freire: Vamos dizer que minha secretaria não quer imprimir...Primeiro, é preciso que se saiba que no Plano Nacional de Política para as Mulheres, nós propusemos 195 ações distribuídas em cinco eixos temáticos. Elas são bastante concretas e dizem respeito a diferentes dimensões da vida das mulheres. Parte dessas ações é dirigida à saúde integral das mulheres. Portanto, essa discussão sobre o aborto se insere dentro de um conjunto de ações a serem promovidas no âmbito da saúde da mulher.

Luiz Weis: [interrompendo] Sim, mas agora nós estamos recortando essa questão desse conjunto.

Nilcéa Freire: É importante que a gente saiba que não é uma imposição. Não é a secretaria que quer imprimir essa discussão. Eu disse que esse tema é delicado, polêmico, sensível na sociedade, até porque talvez ele jamais tenha sido tratado com franqueza, clareza, de maneira informada .Se você me perguntar - e eu tenho dito isso com muita freqüência - nenhuma mulher faz aborto sorrindo. Nenhuma mulher toma essa decisão sem que haja muita dor, muito sofrimento. No entanto, muitas vezes, ela toma essa decisão, isso é uma realidade. A interrupção voluntária da gravidez jamais deve ser vista como um método de controle ou contraceptivo. Ao contrário, qualquer discussão que trabalhe a revisão da legislação punitiva às mulheres com relação ao aborto deve estar inserida dentro de uma política geral que tenha como conceito a prevenção dessas situações.

Luiz Weis: Sem dúvidas, mas voltando ao núcleo da minha pergunta, a senhora não considera que é um obstáculo a mais o fato de todas as pesquisas, pelo menos as que conheço, indicarem que a maioria da população acha que está bom do jeito que está?

Nilcéa Freire: Veja bem, eu não considero isso um obstáculo, porque nós não colocamos de maneira autoritária uma meta que deve ser cumprida a todo custo. Nós vamos instalar uma comissão...

Luiz Weis: [interrompendo] Mas há uma meta definida de reduzir a punibilidade...

Nilcéa Freire: Nós vamos instalar uma comissão que terá representação do executivo, da sociedade civil e do Congresso Nacional. Essa comissão trabalhará não só com seus membros, mas fará audiências públicas. Portanto, se a sociedade brasileira se manifestar contrária a qualquer mudança na legislação, depois de um processo de discussão e tendo a oportunidade de se expressar, isso é o que vai acontecer.

Luiz Weis: A senhora acha que isso poderia ser objeto, a seu juízo, de um plebiscito ou referendo?

Nilcéa Freire: Olha, o que vai determinar que seja plebiscito ou referendo é o caminhar da discussão. Eu não posso prever que...

Luiz Weis: Qual é sua opinião?

Nilcéa Freire: Na minha opinião, poderia ser objeto, porque qualquer temática de interesse da sociedade pode ser objeto de uma consulta  à sociedade sob a forma de referendo ou plebiscito. Mas, antes de chegarmos a isso, temos a comissão, temos a discussão no âmbito do Congresso, temos muitos passos. A sociedade terá a oportunidade de opinar sobre isso.

Flávia Oliveira: Ministra, eu gostaria de continuar nessa discussão relacionada ao aborto e, especificamente, na abordagem do [Luiz] Weis, que tratou de pesquisas que mostrariam um desinteresse da sociedade brasileira em discutir, mudar, mexer na lei. O fato de haver um milhão de abortos no país anualmente e com conseqüências dramáticas, já que há 260 mil atendimentos de complicações pós-aborto, não indica que ou essa lei não "pegou" - as pessoas estão praticando aborto de forma aparentemente intensa, é o que mostra essa estatística... [não termina a frase] Minha pergunta é: se estão praticando isso com danos à saúde pública, com efeitos na saúde pública, em que medida o governo deve interferir nisso, dado que existem mulheres morrendo, pessoas ganhando dinheiro de uma forma irresponsável? Queria tirar um pouquinho essa discussão da questão moral e transferi-la para a questão da saúde pública.

Nilcéa Freire: Flávia, você tocou em um assunto extremamente importante, porque essa discussão tem sido muito pautada em cima da questão da mudança da legislação e acaba sendo pautada, evidentemente, por aspectos morais. Hoje, o governo brasileiro tem uma decisão de interferir nessa questão. Ela vai em duas linhas. A primeira é a de que nós tenhamos, finalmente, uma política de planejamento familiar, uma política de garantia à saúde integral da mulher, de garantia a seus direitos sexuais  e reprodutivos, respeitando o que está dito na nossa Constituição: cada cidadão e cidadã tem o direito de determinar o tamanho, o espaçamento da sua prole. Trata-se de uma política, portanto, que garanta informação e acessibilidade aos métodos contraceptivos reversíveis, os mais modernos que existem hoje. Isso interfere em uma realidade onde mulheres jovens e adultas engravidam pela ausência de políticas públicas que possam evitar que um evento que não é simples na vida de uma mulher ocorra. Por outro lado, o governo interfere sim na saúde pública. No ano passado, o Ministério da Saúde lançou, no dia 8 de março [Dia Internacional da Mulher], o Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna, que corresponde a uma necessidade brasileira de reduzir a morte materna no Brasil aos níveis previstos pela Organização Mundial de Saúde [OMS]. No pacto, existem vários pontos a serem observados pelo serviço de saúde. Um deles é a atenção humanizada às mulheres em processo de aborto ou com complicações pós-aborto que chegam aos hospitais, sem mexermos em nenhum aspecto da legislação [vigente]. Então, esse é um caminho de intervenção, assim como o acesso à informação por parte dos jovens, para que eles possam ter uma vida plena, saudável, informada e que nós não tenhamos um número crescente de jovens engravidando precocemente.

Cláudia Collucci: Agora, ministra, o governo enfrenta uma grande resistência, inclusive dos médicos. Há um desconhecimento até mesmo da legislação sobre o aborto legal, e hoje os serviços de aborto legal estão restritos às capitais. As mulheres do interior, além de não terem esse serviço, quando chegam ao hospital com complicações, encontram preconceito. Como o governo pretende intervir aí?

Nilcéa Freire: É preciso trabalhar isso, é preciso trabalhar com a delicadeza que o assunto merece, mas é preciso que se saiba que nós, médicos, não podemos nos recusar a fazer um atendimento no hospital, não podemos fazer julgamento moral a quem chega nos hospitais precisando de ajuda. Diferentemente, estar em um serviço de abortamento legal, como existe em outros países, é uma opção. Se eu tenho problemas de conflito de consciência, não vou trabalhar em um serviço de aborto legal, nada me obriga a trabalhar nisso. Vou trabalhar em outros serviços, em outras especialidades. Agora, se eu estiver em uma emergência de um hospital e chegar uma mulher com hemorragia ou em um processo de infecção pós-abortamento inseguro, como médica, tenho o dever, a obrigação de atendê-la sem fazer qualquer juízo moral a respeito da sua prática.

Cláudia Collucci: Ministra, só para terminar, a senhora disse que, enquanto integrante do governo, não tem posição. Agora, como médica, a senhora é a favor ou contra a descriminalização do aborto?

Nilcéa Freire: Olha só, há alguns anos - e a Flávia acompanhou um pouco isso - eu passei por uma discussão sobre cotas raciais na universidade. Minha universidade foi a primeira a implantar as cotas raciais. Em todas as entrevistas, as pessoas queriam sempre saber se eu era contra ou a favor, como se essas temáticas pudessem ser decupadas dessa maneira. Não, essas temáticas têm aspectos multidimensionais...Eu acho que pouco importa para a sociedade brasileira se a ministra é contra ou a favor do aborto....

Reinaldo Azevedo: [interrompendo] Ministra, desculpe, mas a senhora vai tentar convencer a população.

Nilcéa Freire: O que a população precisa saber é que existe um governo, é que existe uma ministra que está trabalhando para que as mulheres tenham uma vida plena e digna, está tomando a iniciativa de maneira absolutamente responsável, e sem querer impor sua posição a ninguém, de abrir essa discussão na sociedade. Portanto, eu vou coordenar um processo de discussão e acho que essa é a posição que eu tenho que assumir: não determinar se minha posição é contra ou a favor. Agora, essa questão é da sociedade brasileira, está sendo colocada de frente para ela, não pode ser varrida para debaixo do tapete.

Reinaldo Azevedo: Agora, como a senhora convence as pessoas de que esta ou aquela política pública é boa, se a face do governo, que é a senhora, não deixa claro qual é essa posição? Sim, porque a senhora está lá como indivíduo também, como cidadã, não é? Ainda bem que o governo Lula não vai ganhar ou perder a eleição dependendo dessa questão! O John Kerry deu, rigorosamente, essa sua resposta no debate com Bush [em 2004, os políticos George W. Bush e John Kerry disputaram as eleições presidenciais dos Estados Unidos. Bush foi reeleito] e ali ele começou a naufragar, porque naquela sociedade há que ser contra ou a favor, para o bem ou para o mal...é a sociedade americana. A senhora, ministra, médica e cidadã Nilcéa Freire, tem que dizer... Nós estamos aqui em uma questão de fundo filosófico interessante. Diz-se que temos que deixar a questão moral de lado, "Não vamos fazer um juízo moral". Eu enrosco com isso, porque acho que se é imoral, não dá para "por o nariz fora da porta", seja lá o que for a questão moral. A questão moral pesa sim. Se não pesasse, por que estamos aqui discutindo o aborto? A senhora diz que um médico não pode negar o atendimento. Concordo, mas ele não pode ser obrigado a fazer o aborto. Ora, não pode por quê? Eu sei o porquê! Todos nós sabemos. Até agora nós não discutimos um elemento fundamental do aborto, que é o abortado. Há um abortado que até agora não foi discutido. Não é por isso que essa é uma questão grave e sobre a qual ninguém quer dizer com clareza se é contra ou a favor? E, quando se discute o aborto, ele sempre é ligado à questão social, à questão da violência sexual, porque aí sim se empresta uma questão de moral externa ao problema, quando há uma questão intrínseca ao problema: o aborto supõe um abortado. Não é essa a questão que nos impede de dizer com clareza "sim, sou favorável ao aborto" ou "não, sou contrário ao aborto"?

Nilcéa Freire: Não, o que nos impede de dizer isso, pelo menos a mim, são as razões que eu acabei de mencionar. E mais ainda, o que me impede de dizer isso é que quando se diz se é contra ou a favor ao aborto, você tem que perguntar em que condições. Contra ou a favor ao aborto até que fase da gestação? São tantas perguntas que devem ser feitas que não dá para eu responder se você me perguntar se eu sou contra ou a favor ao aborto em qualquer circunstância.

Luiz Weis: A senhora talvez pudesse...

[sobreposição de vozes]

Nilcéa Freire: Há muitas dimensões que precisam ser observadas. Não se está tirando e nem se pretende tirar da discussão os aspectos éticos e morais. Agora, há questões que dizem respeito a convicções de natureza pessoal que, portanto, devem corresponder às convicções de cada um. Sobre elas, nem o governo nem qualquer outra instituição pode interferir. Estamos falando do espaço onde se inserem as convicções, por exemplo, de um médico que é contrário à interrupção da gravidez em qualquer situação e que, portanto, não vai lá fazer. No entanto, ele não teria direito de impedir que outro fizesse. Essa é que é a questão. Qual é o papel de um Estado, que é laico, de interferir na decisão e na convicção baseadas em preceitos morais, éticos, religiosos de cada um?

Paulo Markun: Bispo Ariel.

Ariel de Souza: Ministra, é um privilégio ser mineiro, eu sou mineiro...

[risos]

Ariel de Souza: Nessa roda, eu tenho o privilégio de representar Minas Gerais, esse grande estado, e agora, estou aqui na cidade de São Paulo, amando esta cidade tão significativa e importante no cenário nacional. Eu estou aqui enquanto Conic, representando as igrejas cristãs do Brasil. Na verdade, a definição do representantes da comissão foi um momento muito difícil por parte do governo. Nós recebemos o convite para participar da comissão que vai trabalhar a questão da legislação. Estamos trabalhando dois pontos com as diversas igrejas componentes do Conic: a participação na comissão e a posição das igrejas cristãs sobre a questão do aborto. E a questão fundante foi exatamente esta: nós não devemos ter religiosos na comissão, já que o Estado é laico. Como a senhora analisa a importância das igrejas nessa discussão?

Nilcéa Freire: Bom, a proposta foi minha, portanto eu vou explicar. Nós trabalhamos na formação da comissão, que é tripartite. A sociedade civil é representada pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Nosso trabalho tem sido de maneira muito coerente. Eu encaminhei ao conselho a proposta de que dos seis nomes da sociedade civil, quatro fossem entidades representadas no conselho e dois fossem entidades que não estivessem representadas. No meu entendimento e no entendimento do governo, deveríamos ter uma comissão ampla, em que todas as dimensões pudessem ser analisadas. Minha proposta foi que houvesse uma entidade médica na comissão e uma entidade que pudesse representar a dimensão religiosa da sociedade. O Conic, por ser uma entidade que congrega diferentes igrejas cristãs, seria uma entidade que traria esse caráter amplo para que houvesse a dimensão da religiosidade na discussão. Portanto, nós pretendemos que a comissão tenha um caráter amplo, um caráter de ouvir todos os segmentos e todas as dimensões existentes nessa discussão. Estamos no aguardo da resposta do Conic, enviamos o convite formalmente. Essa discussão foi feita no conselho com muita maturidade, como deve ser feita, governo e sociedade civil dialogando...Em alguns momentos há tensões, mas elas devem ser produtivas, como foi nesse caso. Algumas entidades da sociedade civil manifestaram publicamente sua posição, o governo manifestou sua posição, fizemos uma votação. As duas entidades mais votadas pra completar os seis nomes foram a Febrasgo, que é a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, representando a área médica, e o Conic. E estamos aguardando...

Ariel de Souza: A senhora acha que o Conic pode dar uma contribuição relevante na discussão desse assunto com a sociedade civil?

Nilcéa Freire: Juntamente com a representação do legislativo e do executivo na comissão.

Cláudia Collucci: Nilcéa, qual é o compromisso do governo com o produto resultante da comissão tripartite?

Nilcéa Freire: O compromisso do governo com o resultado da comissão é o mesmo que teve com o resultado da nossa conferência. A gente não está brincando. Para nós, essa questão é muito séria. Esse governo promoveu, ao longo dos seus dois primeiros anos, o maior processo - foi criticado por alguns, as pessoas acham que o governo do PT discute muito, consulta muito, mas é assim mesmo, acho que viemos para fazer essa diferença - mas foi o maior processo de consultas setoriais que já houve neste país, por meio das conferências. Isso não é para fazer constar, isso é para se fazer de maneira séria, deve ser considerado. Então, após a deliberação da conferência, estamos formando a comissão. O resultado tem que ter conseqüências. O compromisso do governo é com o resultado dessa comissão.

Cláudia Collucci: Mas vai ser elaborado um projeto de lei para ser encaminhado ao Congresso?

Nilcéa Freire: Essa é uma possibilidade dos resultados da comissão. Eu não tenho bola de cristal...Essa comissão tem diferentes atores participantes. Quando se fala em revisão da legislação, se aponta primariamente a elaboração de um projeto de lei, mas pode ser o apoio a um projeto de lei já existente no Congresso Nacional. Essa discussão não começa hoje, ninguém está inventando essa discussão. Aliás, a Argentina também está fazendo uma discussão séria sobre os direitos sexuais e reprodutivos, o que mostra que essa discussão não se faz exclusivamente no Brasil e decorre, inclusive, dos compromissos internacionais. O Brasil se comprometeu nas convenções, conferências e tratados sobre os direitos da mulher no plano internacional.

Paulo Markun: O doutor Carlos tem uma questão.

Carlos Aurélio: Doutora Nilcéa, eu também sou mineiro, mas vou procurar ser bem objetivo. [risos] Não tratamos ainda do problema do enfrentamento legal, do ordenamento jurídico brasileiro que já está instituído. Nós temos uma Constituição que protege a inviolabilidade do direito à vida, nós temos o próprio Novo Código Civil, que garante a vida desde a concepção do feto, nós temos o Pacto de San José da Costa Rica [Convenção Americana dos Direitos Humanos, que ocorreu em 1969] que também declara que a concepção do feto se dá com a fecundação. Ora, isso não foi abordado em nenhum momento. E, quando se fala em aborto, se fala em todos os aspectos, inclusive sobre proteção legal. Qualquer que seja o trabalho do governo como, por exemplo, essa norma técnica que extingue o Boletim de Ocorrência para que as mulheres possam ser atendidas nos atendimentos de emergência, fere o ordenamento jurídico. Há até uma notícia que constitui uma espécie de engano à sociedade: "o direito penal não exige o Boletim de Ocorrência". Na verdade, quem exige o Boletim de Ocorrência é o direito processual penal, nenhum inquérito policial se instaura sem um boletim. Ora, [isso serve] para que a sociedade saiba que existe um criminoso solto atacando as mulheres, com exceção daqueles casos da violência em família, doméstica, em que muitas vezes é necessário até proteger a personalidade da mulher. São casos excepcionais, a grande maioria dos casos ocorre em público, nos jardins. Como o resultado das suas comissões vai enfrentar esse problema legislativo? No entanto, nós vimos que a sociedade jurídica está preocupada com esses avanços do executivo, através de medidas provisórias em questões tributárias e em outros campos, mas nesse campo especificamente...Essa norma técnica do Ministério da Saúde não poderia abolir a exigência do Boletim de Ocorrência, porque ela é necessária não só para a defesa da mulher, mas para a defesa da sociedade. Ela é uma exigência de ordem pública e não pode ser abolida por um ato administrativo. Esse é o primeiro ponto. Em segundo lugar, temos duas leis já publicadas. A Lei 10.778 [de 24 de novembro de 2003] exige a notificação compulsória dos casos de violência contra a mulher que for atendida em serviço de saúde pública. Ela diz exatamente o contrário: se ela declarar que sofreu um estupro e que tem que ser atendida porque está em situação de abortamento, essa lei exige que as entidades e policiais tomem conhecimento do fato. A Lei 10.886 [17 de junho de 2004] tipifica como crime a violência doméstica, ou seja, até mesmo dentro da sociedade civil doméstica, é necessário que haja uma comunicação do fato. Pode ser que não haja conseqüências jurídicas para o ofensor, mas...Até o ministro Nelson Jobim [político brasileiro, então presidente do Supremo Tribunal Federal], que é a palavra máxima do judiciário, foi imediatamente contra a abolição do Boletim de Ocorrência. Então, o que nós vemos...

Luiz Weis: [interrompendo] Embora ele se declare favorável ao aborto...

Carlos Aurélio: Sim, desde que os onze ministros concordem com ele.

Luiz Weis: Não, mas ele pessoalmente é a favor!

Carlos Aurélio: Sim. Então, nós temos uma evolução de todos esses atos administrativos no sentido de permitir o aborto irrestritamente. Isso está preocupando a sociedade civil e, principalmente, a jurídica. Essa questão do sim ou não é absolutamente necessária porque não podemos cair no relativismo moral, ético ou jurídico. Ou é ou não é! Esse é um princípio velho como a antigüidade grega, a filosofia grega. Ou seja, é necessário que se tome uma posição para melhorar a saúde da mulher, para atender às políticas sociais e sanitárias de defesa da mulher. Por exemplo, no caso do anencéfalo [feto com má formação rara do tubo neural, caracterizada pela ausência total ou parcial do encéfalo], na décima segunda semana, portanto, no terceiro mês, já se detecta a existência do problema. Então, nós temos mais seis meses para se tentar reverter essa situação através da ministração de ácido fólico, porque o cérebro não se desenvolve por falta dessa vitamina, desse elemento químico. Portanto, ao invés de facilitarmos o aborto, que é contra a vida, ou seja, uma política toda a favor da morte, nós devemos jogar as verbas enormes que os ministérios - sobretudo, o Ministério da Saúde - detêm para a proteção da saúde efetiva da mulher. A senhora falou sobre acompanhamento, pré-natal, evitar a gravidez indesejada e eu concordo....Mas, uma vez grávida, que seja dado todo o acompanhamento e não a facilitação do aborto.

Nilcéa Freire: Doutor Carlos, vou discordar do senhor em vários pontos que o senhor mencionou. O primeiro deles, infelizmente e lamentavelmente, é que as mulheres são mais agredidas dentro das suas casas...

Carlos Aurélio: [interrompendo] Concordo com a senhora.

Nilcéa Freire: ...pelas pessoas com as quais elas desenvolvem relações afetivas.

Carlos Aurélio: Concordo.

Nilcéa Freire: Portanto, é no espaço privado que as mulheres são mais agredidas e não no espaço público. Por isso, a violência contra a mulher se reveste de uma complexidade enorme, o silêncio e a vergonha são imensos. Nem passa de perto de nossas políticas amenizar a vida dos agressores. Foi por isso que instituímos a notificação compulsória. Não é a notificação compulsória policial, é a notificação compulsória médica dentro do mesmo sistema de notificação compulsória onde estão as doenças infecto-contagiosas, onde estão vários agravos médicos que precisam ser controlados e acompanhados. É o sistema de notificação compulsória dentro do sistema de vigilância sanitária. Não tem nada a ver com segurança pública, não tem nada a ver com polícia. Está em curso no Congresso Nacional a tramitação de uma nova legislação para prevenir, coibir e dar proteção à mulher vítima de violência doméstica. Aí, nós queremos criar condições de acompanhamento para que toda mulher vítima de violência possa ter coragem de ir à delegacia fazer o Boletim de Ocorrência e não correr o risco de voltar para casa e, no dia seguinte, o que foi um espancamento virar um assassinato.

Luiz Weis: O ideal seria que ela não precisasse ter coragem.

Nilcéa Freire: Portanto, é preciso haver instrumentos legais que não existem no país até hoje e que determinem, por exemplo, o afastamento do agressor da casa. Nós estamos trabalhando tudo isso, estamos plenamente de acordo que toda mulher que chega ao serviço de saúde, vítima de violência sexual, deve ser orientada a fazer o Boletim de Ocorrência, a denúncia pública da situação que viveu. No entanto, a tendência de uma mulher que sofreu violência sexual, que sofreu um estupro, é que ela primeiro procure um serviço médico antes de procurar, muitas vezes, a polícia. Ela quer ser atendida, precisa ser acolhida. A presunção de veracidade do seu relato deve ser tanto do policial quanto do médico. Eu, pelo menos, não consigo entender porque o policial pode atestar mais a veracidade de um estupro do que o médico que vai atendê-la. Além do mais, uma mulher que chega a um serviço médico dizendo que sofreu esse tipo de violência vai ser atendida e deve ser atendida, segundo a norma técnica, por um psicólogo, por um assistente social, que vão avaliar a real situação e as condições em que aquela mulher se encontra. A primeira coisa que ela faz é ir para casa tomar um banho para se livrar da vergonha, do medo que sente a partir de uma situação vivida.

Carlos Aurélio: Isso acaba de ocorrer em São Paulo com duas professoras na Febem [atual Fundação Casa, Centro de Atendimento Socioeducativo a Adolescentes, é uma instituição do governo estadual de São Paulo voltada para ressocialização de menores infratores], estupradas pelos menores. Elas relataram isso, deram um testemunho extraordinário no [jornal] O Estado de S. Paulo, sem denominar a nominação delas, mas demonstrando isso. Mas, a sociedade exige uma comprovação, uma realidade. A senhora declarou que a palavra da mulher vale mais do que qualquer B.O., então a palavra de qualquer brasileiro que comete um deslize qualquer [também] vale mais do que um B.O.! A sociedade exige isso.

Nilcéa Freire: Eu não disse isso, doutor Carlos Mota!

Carlos Aurélio: Está nos jornais.

Nilcéa Freire: Não, o que eu disse foi que o testemunho de uma mulher dado a um policial ou a um médico no serviço de saúde...Se o policial faz um registro burocrático atestando a veracidade da palavra daquela mulher, o médico também pode fazer.

Carlos Aurélio: Mas ele tem um objetivo, esse B.O. permite o aborto legal. Sem o B.O., há um abuso.

Nilcéa Freire: Toda mulher que chegar a um serviço médico certamente será orientada a fazer o Boletim de Ocorrência. Agora, o que não se pode fazer é exigir que ela estando ali, naquela situação, tendo vivido o drama que viveu, seja obrigada a sair dali e ir a uma delegacia policial.

Carlos Aurélio: Mas para fazer o estupro, ela precisa, excelência! Para fazer o estupro, ela precisa.

Paulo Markun: Ministra, duas perguntas aqui. Rui Fulgêncio, de Belo Horizonte, que é autônomo, pergunta: “Por que, ao invés do aborto, o governo não investe na distribuição da pílula do dia seguinte [anticoncepcional de emergência que pode ser ingerido pela mulher logo após uma relação sexual desprotegida. A pílula, se tomada em 24 horas, falha apenas em 5% dos casos, sendo portanto um método eficiente contra a gravidez nessas condições]?”. Larissa Lacerda, da Barra Funda, em São Paulo, quer saber o que impede a mulher de ter acesso aos métodos contraceptivos normais e de emergência. Também pergunta por que as mulheres ainda engravidam e praticam o aborto.

Nilcéa Freire: Antes de responder, eu queria dizer que foi cometido aqui um equívoco, mas eu ia responder ao doutor Carlos Mota. Nos casos de anencefalia, a administração de ácido fólico é para prevenir, é uma terapêutica preventiva. Depois que o feto, no seu processo de desenvolvimento, não tem cérebro, ele é um anencéfalo, essa é uma circunstância irreversível. Não há reversibilidade nesse caso. Bom, a pílula do dia seguinte é uma contracepção de emergência. Amanhã, aliás, às nove e meia da manhã, no Ministério da Saúde, nós vamos lançar a Política de Planejamento Familiar, um documento de direitos sexuais reprodutivos que prevê a distribuição do anticoncepcional de emergência. [A pílula do dia seguinte] tem sido usada no protocolo de atendimento a mulheres que sofrem violência sexual, é efetivamente um recurso terapêutico extremamente importante que foi colocado à disposição da sociedade. Em função disso, certamente o número de abortos diminuirá nos casos de violência sexual. Hoje, nós temos clareza e estamos lançando essa política. É necessário que o governo federal assuma a provisão de métodos contraceptivos reversíveis para todo o país. O Ministério da Saúde já tem aumentado o número de contraceptivos à disposição da população, através do Sistema Único de Saúde, mas é preciso aumentar mais. É preciso também que as pessoas sejam informadas sobre os métodos contraceptivos, pois para cada mulher há um método adequado. Não existe um método contraceptivo que seja igualmente adequado a todas as mulheres.

Paulo Markun: Menos a abstinência!

Nilcéa Freire: [sorri] É, digamos que esse...eu, pelo menos, não o incluo entre os métodos contraceptivos...

[...]: Ministra, por favor.

Paulo Markun: Não, a Igreja o inclui.

Nilcéa Freire: Isso depende da vida de cada um.

Luiz Weis: Ministra, eu queria lhe fazer uma pergunta, por favor. Não para a ministra, mas para a doutora, a médica.

Nilcéa Freire: Sim.

Luiz Weis: No bloco anterior, o Reinaldo introduziu aqui, pela primeira vez, o conceito do abortado. O fundamento das objeções ao aborto é de que o aborto é um homicídio, é a destruição de uma vida humana. Esse pressuposto decorre da convicção, da noção, do conceito, de que a vida começa no momento da fecundação do óvulo. Há alguma base científica para isso?

Nilcéa Freire: Olha, base científica para determinar o que é a vida e quando ela começa...

Luiz Weis: [interrompendo] Isso é o pilar do edifício de oposições ao aborto...

Nilcéa Freire: É por isso que...

Luiz Weis: [interrompendo] Há quem diga outra coisa: já que então...

Nilcéa Freire: Luiz, você fez uma pergunta. Deixa eu responder!

[risos]

Luiz Weis: Sim, mas há quem diga outra coisa: já que a vida humana termina quando cessa a atividade cerebral, o mesmo não se aplicaria ao início da vida humana, ou seja, quando começa a atividade cerebral e não quando se dá a fecundação?

Nilcéa Freire: Olha, existem fatos científicos, quer dizer, um óvulo é fecundado por um espermatozóide e aí começa um processo de definição embrionária. O princípio da vida, os conceitos éticos e religiosos em cima desse processo e quando ele se inicia, isso é outra discussão.

Luiz Weis: Outra?

Nilcéa Freire: É, porque...

Luiz Weis: Porque se eu parto da premissa absolutamente convicta de que isso é vida, eu tenho que ser contra.

Nilcéa Freire: Não, é por isso que eu, como médica e como governo, não vou discutir nem com a CNBB, nem com qualquer outra comissão religiosa, sobre qual é o princípio da vida. Essa é uma questão para ser tratada no âmbito da religião...

Luiz Weis: [interrompendo] Não da ciência?

Nilcéa Freire: Ela não é para ser tratada no âmbito do Estado. O Estado tem que garantir aos cidadãos que...

Luiz Weis: É que essa minha pergunta foi dirigida à médica e não à ministra.

Nilcéa Freire: Eu, como médica, quero lhe dizer que não tenho essa questão resolvida para mim...

Reinaldo Azevedo: Então eu queria fazer uma pergunta, por favor.

Nilcéa Freire: Certamente, tenho posições que dizem respeito ao que eu entendo do ponto do desenvolvimento embrionário. Agora, o senhor não vai querer me obrigar a fazer uma discussão religiosa porque eu não faço uma discussão religiosa.

Reinaldo Azevedo: Religiosa, não. Olha, ministra, palavra de honra, não quero que a pergunta soe agressiva. Não é essa a intenção, absolutamente.

Nilcéa Freire: Não, eu sei.

Reinaldo Azevedo: Tenho que fazer esta pergunta agora. A senhora, como médica, faria um aborto legal?

Nilcéa Freire: [pausa] Olha...na minha prática médica, se eu fosse ginecologista, trabalharia certamente em um serviço de abortamento legal, porque, segundo o que eu acredito e o que está no Código Penal brasileiro, estaria fazendo aquilo que é para ser feito.

Flávia Oliveira: Ministra, desculpe, eu queria mudar um pouquinho de assunto porque o tempo está acabando e eu queria tratar da questão da mulher no mercado de trabalho. Esse é um drama feminino. O nível de instrução é médio ou superior ao dos homens e, no entanto, os salários e cargos são geralmente inferiores. Então, eu queria saber de que maneira sua secretaria pretende trabalhar no combate a essas desigualdades no mercado de trabalho. Completando, este ano é o de promoção da igualdade racial por parte [do governo] e nós sabemos que nós, mulheres negras - estou aqui representando minha categoria - somos as mais discriminadas entre as discriminadas. Eu gostaria de saber um pouco de que forma a senhora pretende atuar junto a outros ministérios, como Ministério do Trabalho e Ministério da Educação, ao setor privado e à sociedade civil, para tentar iniciar um processo de correção dessas distorções e desigualdades no mercado.

Nilcéa Freire: Flávia, há um dado do último boletim de indicadores sociais do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] que confirma o que você está dizendo. Nós temos o dobro de mulheres negras ganhando até um salário mínimo em relação às mulheres brancas, só para a gente trabalhar a questão da associação dessas duas variáveis produtoras de exclusão na sociedade. A gente tem um plano [Plano Nacional de Políticas para as Mulheres] que tem 195 ações. Todo mundo só quer saber de um, que se refere à comissão que vai rever a legislação punitiva em relação ao aborto. Mas eu queria tanto ter a oportunidade de, um dia, em um programa como esse falar das outras 194 [ações]!

Paulo Markun: Ministra, só para deixar claro, a senhora propôs isso ao falar da comissão tripartite e declarar que tinha o maior interesse em debater essa questão.

Nilcéa Freire: Não, eu estou brincando...

Paulo Markun: Nós poderíamos fazer um programa com as outras 198 questões.

Nilcéa Freire: 194. [corrigindo]

Paulo Markun: 194, mas não chegaríamos a nada.

Nilcéa Freire: É....bom, eu estou respondendo à Flávia.

Paulo Markun: Claro, por favor.

Nilcéa Freire: O primeiro eixo do Plano trata justamente da questão da autonomia econômica das mulheres,  do acesso ao trabalho, da igualdade de oportunidades no mercado e no trabalho. Temos que trabalhar em duas direções dentro do plano. A primeira direção é o aprofundamento do processo de fiscalização sobre a legislação já existente no país. Nós temos uma legislação que diz que homens e mulheres devem receber salários iguais pela mesma função e trabalho executados, que deve haver creches nas empresas. Há um conjunto de questões ligadas à legislação e é preciso que nós trabalhemos no sentido de tornar mais rigorosa a fiscalização. Por outro lado, é preciso trabalhar no sentido da promoção e do incentivo. Nós estamos agora, possivelmente no final de maio, fazendo um seminário onde convidaremos empresas, instituições públicas e privadas para discutirem a formação de um grande pacto nacional pela igualdade e oportunidade no mundo do trabalho. Desse pacto, poderemos ter uma certificação de empresas praticantes da eqüidade de gênero no seu interior.

Flávia Oliveira: Vocês vão estimular ações afirmativas?

Nilcéa Freire: Exatamente. Entendemos que o curso natural da história não dará conta - assim como não dá conta na questão racial - de interromper um processo de desigualdade que, em alguns casos, fica claramente denunciado. Se nós tomarmos as mulheres com mais de onze anos de estudo, vamos verificar que justamente nesse universo é que há a maior discrepância salarial entre homens e mulheres. Isso não se justifica por nenhuma razão. É aí que se evidencia que essa discrepância se dá pela construção histórica de desigualdade e desequilíbrio de poder entre homens e mulheres.

Paulo Markun: Ministra, em relação a essa questão escandalosa da desigualdade salarial entre homens e mulheres, penso que não exista nenhuma questão religiosa ou ética envolvida, certo? Ao contrário, toda ética justificaria que pessoas com condições de trabalho e qualificação iguais - às vezes, essa qualificação é muito superior entre as mulheres - deveriam ter salários iguais. Isso está no plano que vocês apresentaram, mas há uma série de resoluções, inclusive internacionais, das quais o Brasil é signatário. Não é só cumprir a lei?

Nilcéa Freire: Olha, não é só cumprir a lei. Foi por isso que eu disse que a gente tem que trabalhar tanto na direção do cumprimento da legislação existente quanto no sentido da promoção. Por quê? Porque existem inúmeros artifícios que acabam sendo praticados em prol da desigualdade, ou seja...

Paulo Markun: [interrompendo] Há maneiras de burlar a lei.

Nilcéa Freire: ...denominar cargos diferenciadamente. Essa desigualdade acontece, sobretudo, nos cargos de livre escolha ou quando entram os critérios de promoção pouco objetivos.

Paulo Markun: Isso aconteceu com a senhora?

Nilcéa Freire: Olha, minha trajetória foi uma trajetória de mulher branca, de classe média, que teve todas as oportunidades na vida para estudar, viver fora do país, estudar idiomas, enfim, sou uma pessoa privilegiada. Mesmo assim, não foi fácil, por exemplo...

Paulo Markun: Ser reitora da universidade?

Nilcéa Freire: ...ser reitora da universidade. Ainda hoje somos muito poucas mulheres que atingimos esse posto. Fui reitora em uma circunstância política muito especial, por uma eleição da comunidade. Fui eleita com 63% dos votos da comunidade acadêmica, fui estudante daquela universidade...

Paulo Markun: [interrompendo] Já tinha sido rainha dos calouros também, né?

[risos]

Nilcéa Freire: Eu tinha uma história muito forte com aquela universidade. Mesmo assim, no dia seguinte da minha posse - e eu conto isso porque me divertia e ao mesmo tempo me preocupava muito - meus colegas de vida inteira, acadêmicos, entravam no meu gabinete e já não sabiam mais como me tratar, se atrapalhavam, não sabiam lidar com uma mulher reitora.

Reinaldo Azevedo: Mas não era porque a senhora era uma autoridade intelectual naquele momento?

Nilcéa Freire: Depois acabaram se acostumando com o fato de que havia uma autoridade que era mulher. As pessoas estão acostumadas a lidar com autoridades masculinas.

Reinaldo Azevedo: Vou identificar aqui, talvez, as culpas do governo nesse negócio, porque os governos, de maneira geral, não só esse do presidente Lula, têm mania de jogar a culpa na sociedade. Só porque vieram depois de 503 anos de Brasil, a gente só vai poder cobrar resultados daqui a 503 anos. Eu não estarei vivo até lá, infelizmente. Antes de vir para cá, peguei os dados do Siafi [Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal] da sua secretaria. Se estiver errado - eu estou aqui com a cópia - a culpa é do Siafi. Se o telespectador não sabe, trata-se de um sistema integrado em que a gente pega os números do orçamento do governo que é dado para cada ministério, para cada pasta. Sua secretaria em 2004, depois dos cortes todos, ficou com 26.192 milhões [de reais]. A senhora gastou, de fato, 14.815 milhões, 59,58%, nem a 60% chegou. Em 2005, depois da "tesoura" que o Palocci [Antônio Palocci Filho foi ministro da Fazenda de 2003 a 2006] aplicou ao orçamento geral de quase 16 bilhões [de reais], sua secretaria ficou com 24 milhões. Até agora, a senhora gastou 626 mil. Eu tenho alguns dados comparativos aqui. Um único funcionário que tem direito a cartão de crédito especial do Palácio do Planalto já gastou 641 mil, mais do que sua secretaria toda até agora. O que a senhora gastou no ano passado é pouco mais do que os quase 10 [milhões] que o Palácio do Planalto gastou com material de escritório. Com isso, quero dizer o seguinte: é mesmo prioridade? São os números que falam...Eu estou achando sua exposição muito boa, estou achando a senhora inteligente, simpática, articulada. Agora, acho que a gente não conhece as 194 prioridades ou decisões porque a Secretaria da Mulher [Secretaria Especial de Políticas Públicas para as Mulheres] não existe ainda como política pública, como decisão. O Brasil tem 35 ministros. Como mulheres, temos a senhora, que está ligada à questão da mulher, a ministra Matilde [Ribeiro], ligada à questão da igualdade racial [foi ministra da Secretaria Especial de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial entre 2003 e 2008], a ministra-chefe [da Casa Civil] Dilma Rousseff [ver entrevista com Dilma Rousseff no Roda Viva], que tem um posto considerado estratégico por eles - não por mim - e a ministra [do Meio Ambiente] Marina Silva. Dos 35, quatro são mulheres. Só faltava escolher um homem para ser o ministro das mulheres! Não que não pudesse em tese, mas me parece bastante bom que seja a senhora. Na verdade, parece que os números indicam que não existe secretaria.

Nilcéa Freire: Olha, eu vou começar pelo orçamento...

Reinaldo Azevedo: Por que a senhora não gastou 100% do dinheiro que a senhora tinha, só gastou 60%?

Nilcéa Freire: Em primeiro lugar, você esqueceu de ver o contingenciamento...

Reinaldo Azevedo: Não, eu sei! Eu lamento pela senhora. Precisa falar para o Palocci parar de...

Nilcéa Freire: [interrompendo] Nós executamos 90% do orçamento da secretaria.

Reinaldo Azevedo: Bom, então o Siafi precisa corrigir lá. Eu até trouxe uma cópia porque sei que nessa hora começa aquele negócio de "Não é bem isso"!

Nilcéa Freire: É, estou te afirmando. Não executei os 100%...

Reinaldo Azevedo: Por favor, senão parece que eu vim aqui fazer proselitismo [empenho em converter as pessoas para uma determinada causa]. Você tem que pedir para o Siafi corrigir, pois ele está dizendo 59%.

Nilcéa Freire: Não, sabe o que acontece? Você não olhou o contingenciamento...

Paulo Markun: Do ano de 2004.

Nilcéa Freire: Do ano de 2004.

Reinaldo Azevedo: Sim, mas são 14 milhões?

Nilcéa Freire: 14 milhões foi o autorizado para o gasto.

Reinaldo Azevedo: Sim.

Nilcéa Freire: Disso, nós executamos 90%.

Reinaldo Azevedo: Sim.

Nilcéa Freire: Não executamos 100% porque há prefeituras com problemas no Cadin [Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal. É um banco de dados onde se encontram registrados os nomes de pessoas físicas e jurídicas em débito para com órgãos e entidades federais. As informações contidas no Cadin permitem à administração pública uniformizar os procedimentos relativos à concessão de crédito, garantias, incentivos fiscais e financeiros, convênios, acordos, ajustes ou contratos], há uma legislação que impede, muitas vezes, que as coisas aconteçam. Mas eu não estou reclamando disso. Você diz que a secretaria não existe, mas eu digo que existe! Existe pelo reconhecimento de tratar as desigualdades de gênero e raça. O orçamento da secretaria dá conta de um programa de execução direta por parte da secretaria, que é o Programa de Combate à Violência Contra a Mulher, em parceria com a Secretaria Nacional de Segurança Pública. Então, por exemplo, todo o recurso que  utilizamos no ano passado para reaparelhar cinquenta delegacias especializadas em atendimento à mulher vem do orçamento do Ministério da Justiça, da Secretaria Nacional de Segurança Pública.

Reinaldo Azevedo: [interrompendo] Eu sou solidário à senhora, eu acho pouco.

Nilcéa Freire: Eu também não quero 503 anos para corrigir a desigualdade de gênero no Brasil. Esse plano de que eu estou falando conta com o orçamento de 17 ministérios e secretarias especiais. Não será com o orçamento da Secretaria  Especial de Políticas para as Mulheres que nós vamos aumentar em 30% a oferta de mamografias no país, como não será com o orçamento da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres que nós vamos aumentar em 12% a oferta de matrículas na pré-escola no país. A gente precisa da aprovação do Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação]. E mais, nosso grande desafio não está dentro do governo federal, Reinaldo, nosso grande desafio é fazer com que os estados e municípios assumam esse plano como deles. Isso porque é preciso que, quando o recurso do Fundeb for transferido ao município, este tenha como prioridade a educação pré-escolar, a educação infantil. Então, é preciso criar uma institucionalidade na vertical entre as esferas federal, estadual e municipal, permitindo que as políticas previstas nesse plano possam acontecer onde elas têm que acontecer, que é onde as pessoas vivem, onde as mulheres sofrem, amam, vivem o seu cotidiano. Eu diria o seguinte: eu cheguei há um ano na secretaria, no ano passado, depois de uma experiência rigorosamente diferente, que foi trabalhar doze anos na administração de uma universidade, como diretora de planejamento, de orçamento - eu gosto desses números do Siafi, entendo bem disso apesar de não ser economista  - depois vice-reitora e reitora. Quando eu cheguei na secretaria, tive a dimensão de algumas questões que eu não tinha antes. Agora, uma em especial é que essa secretaria, assim como a Secretaria da Matilde [Ribeiro], trabalha dentro de uma temática subjetiva e, portanto, mais do que inaugurar chafarizes, temos que construir encanamentos. O encanamento que eu pretendo construir - parte dele está materializado neste plano - é que sejam incorporadas, definitivamente, às políticas de Estado, as perspectivas da igualdade entre homens e mulheres, perspectivas de que a formulação das políticas públicas, ao não incorporarem essa perspectiva, tenha sua eficácia comprometida. Quando a gente pensa em um sistema de iluminação pública, de transporte público, quando a gente pensa em cada uma dessas políticas, nós temos que saber que a política não é neutra, seu impacto é diferenciado na vida de homens e mulheres, não só na sua formulação como na sua avaliação. Por exemplo, agora, o Ministério do Planejamento está introduzindo como indicador no processo de avaliação das políticas públicas o impacto que as políticas têm sobre homens e mulheres.

Paulo Markun: O Roda Viva não consegue construir encanamento nenhum...[risos] O que a gente consegue é chamar a atenção para a opinião pública de que cano é mais importante que chafariz.

[risos]

Nilcéa Freire: Isso.

Paulo Markun: Espero que a gente tenha feito isso e desejo boa sorte para a senhora nessa tarefa também.

Nilcéa Freire: Muito obrigada pela oportunidade de estar aqui neste debate.

Paulo Markun: A gente volta na próxima segunda-feira, às dez e meia da noite, com mais um Roda Viva. Uma ótima semana e até lá!

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