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[programa ao vivo, permitindo a participação dos telespectadores]
Paulo Markun: Boa noite. Há quase quatro décadas ele vem reescrevendo a história do Brasil e procurando desvendar que país é este em que vivemos hoje e que futuro podemos esperar com o passado que tivemos. O Roda Viva entrevista esta noite um dos mais importantes historiadores brasileiros, o professor Carlos Guilherme Mota.
[Comentarista]: Formado em história em 1963 pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, o paulistano Carlos Guilherme Mota fez carreira completa na USP. É mestre, doutor, livre-docente e professor titular de história contemporânea e de pós-graduação. Já escreveu 14 livros, com destaque para Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). O livro, com prêmio APCA [Associação Paulista de Críticos de Arte], foi escrito como ponto de partida para uma revisão histórica. Causou polêmica ao colocar em discussão as formas de pensamento no Brasil, contrariando a idéia de que somos um país manso, de língua única e que não tem contradições. Seu mais recente trabalho mostra o fôlego do historiador que, em seus artigos e estudos, analisa e defende a formação de uma nova sociedade civil. Carlos Guilherme Mota coordenou a obra coletiva Viagem incompleta - A experiência brasileira (1500-2000), dois volumes publicados pela editora Senac São Paulo e Sesc-São Paulo. O livro reúne estudos e ensaios de vários historiadores convidados e de orientações intelectuais diferentes. O primeiro [volume], que é o Formação: histórias, procura enxergar o Brasil em uma visão que vai da Pré-História da América tropical à passagem da monarquia para a república. O segundo volume, A grande transação, se dedica ao Brasil do século XX. Os estudos dos dois volumes mesclam interpretações clássicas e inéditas sobre as identidades ambíguas do Brasil após quinhentos anos de história e oferecem novas reflexões sobre nossa cidadania, sobre passados não muito bem resolvidos, sobre experiências coletivas que deram origem ao Brasil e que podem ajudar na procura de caminhos para o futuro da sociedade brasileira.
Paulo Markun: Para entrevistar o professor Carlos Guilherme Mota, nós convidamos: o museólogo Fábio Magalhães, diretor-presidente do Memorial da América Latina; o sociólogo Gabriel Cohn, professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo; Eni Orlandi, professora de análise de discurso do Departamento de Lingüística e coordenadora do Laboratório de Estudos Urbanos [Labeurb] da Universidade [Estadual] de Campinas; a pedagoga Carlota Boto, diretora da Faculdade de Filosofia, Letras e Educação da Universidade Presbiteriana Mackenzie e professora de história da educação da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp [Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho] de Araraquara; Luiz Weis, articulista do jornal O Estado de S. Paulo; o historiador e cientista político Marco Aurélio Garcia, que é secretário de relações internacionais do Partido dos Trabalhadores [PT] e professor da Universidade [Estadual] de Campinas. O Roda Viva é transmitido para todos os estados brasileiros e também para Brasília. Professor Carlos Guilherme, boa noite.
Carlos Guilherme Mota: Boa noite.
Paulo Markun: O segundo volume da obra que o senhor organizou tem como subtítulo A grande transação. Nos dias de hoje, falar em "grande transação" é sempre assustador. Eu queria saber efetivamente se esse elo, se a grande transação é o que permanece no período histórico analisado, ou seja, se em todos esses ensaios, com toda a variação de pontos de vista e de orientação dos seus autores, existe algo que diz “isso aqui é o traço de união que desenha o Brasil contemporâneo".
Carlos Guilherme Mota: A história do Brasil vem sendo reelaborada de maneira vigorosa por muitos autores. Nós passamos pelo menos metade das nossas vidas discutindo grandes transições: a transição para a democracia, a transição do feudal para o capitalismo, a transição...E, de repente, nos damos conta de que parecemos um pouco como aquela história de Alice no País das Maravilhas [obra clássica inglesa de Lewis Carol, publicada em 1865. Do gênero surrealismo, conta a história de uma menina que vai para um mundo fantástico, repleto de sátiras, absurdos e sonhos], onde andamos, andamos e estamos mais ou menos no mesmo lugar. Ou, como diria um [líder político] da República Velha [período político brasileiro entre 1889, quando a República foi proclamada, até 1930, com a Revolução Tenentista], “É preciso fazermos a reforma para não fazermos a revolução”. Ou ainda, como diria o grande [Giuseppe di] Lampedusa [(1896-1957) escritor italiano]: "É preciso mudarmos bastante para ficarmos no mesmo lugar" [A citação está na obra O leopardo que fala da decadência da aristocracia siciliana]. A história do Brasil dá um pouco essa sensação para o historiador. Mas, de fato, preferi dar esse título para criar perguntas como essa sua, para sair do tema sobre para onde estamos caminhando. Parece que há sempre uma grande negociação em torno do nosso presente e também é uma negociação, é uma transação freqüente sobre o nosso passado. História também é objeto de negociação, há versões e versões. Quanto à idéia de transação, essa é antiga, é do século XIX pelo menos, de Justiniano José da Rocha...
Paulo Markun: [interrompendo] Ação, reação, transação... [Justiniano José da Rocha (1812-1869) professor e um dos primeiros jornalistas brasileiros a direcionar seus textos para a análise política. A referência diz respeito à obra Ação, reação, transação: duas palavras sobre atualidade política no Brasil (1865), uma das principais do escritor]
Carlos Guilherme Mota: Exatamente! Ainda estamos, como diria o nosso professor, mestre e saudoso Michel Debrun [(1921-1997) escritor francês. No Brasil desde 1956, lecionou sociologia e ciência política em diversas universidades como a Universidade de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas e Universidade Estadual de Campinas], no tema da grande conciliação, que é um dos grandes livros dele [refere-se à obra A conciliação e outras estratégias, editada em 1983, que reitera que a política brasileira não mudou desde 1822, com a independência, e que o país tem dificuldades em constituir sua identidade nacional]. Nós estamos sempre conciliando um pouco e organizando, costurando pelo alto, costurando por cima. Eu acho que é esse o sentido desse título.
Paulo Markun: O senhor acha que há esse traço efetivo? Quer dizer, essa transação que foi explicitada justamente por esse... Essa pena de aluguel, que era o Justiniano José da Rocha, começou ali no Império e não parou mais?
Carlos Guilherme Mota: Bom, ela continua desde a negociação...Vamos tomar um momento mais presente, mais recente: Tancredo Neves. A transição, na verdade, foi uma transação. Eu acho que a transição, como estamos habituados a ver nos grandes modelos, nas grandes histórias, na independência das colônias inglesas como nos Estados Unidos, no caso da França, há conflitos... Claro que há também negociações, há recuos, há retornos, mas há rupturas decisivas marcantes. Enfim, há uma sensação de que essa história do Brasil ainda está por se fazer.
Gabriel Cohn: Professor, está faltando sangue na história do Brasil?
Carlos Guilherme Mota: Essa pergunta é interessante porque.... não está faltando sangue, essa é uma história cruenta [com sangue]. É uma tradição que se opõe um pouco à transação... Há historiadores que vêem, pelo menos... Capistrano de Abreu [(1853-1927) historiador brasileiro. Foi inovador quanto aos métodos de investigação e interpretação de fatos históricos. Analisava a história a partir das definições geográficas, raciais e psicológicas], que felizmente está sendo revalorizado - agora podemos até comprá-lo em bancas de jornais, o que é uma coisa fantástica - mostra que a história do Brasil é uma história cruenta. Há teorias de história que mostram que as nossas transições foram todas brandas, suavizadas, com mecanismos de amortecimento, mostrando a “cordialidade”. Creio que José Honório Rodrigues [(1913-1987) historiador brasileiro, focou seus estudos em historiografia brasileira] retomou a tradição de Capistrano de Abreu mostrando esse lado cruento do Brasil, do povo "sangrado, capado e ressangrado". São expressões fortes. E temos exemplos de movimentos da descolonização do século XIX como a Balaiada, Sabinada, Praieira [revoltas que marcaram o período regencial no Brasil]. Elas são uma farta manifestação de conflitos sociais. A própria independência foi marcada por isso.
Luiz Weis: O senhor falou em Capistrano, um autor que está sendo redescoberto. Ocorreu-me um autor que está caindo em desuso, que é um certo filósofo alemão do século XIX que o senhor deve conhecer muito bem, que costumava dizer aquela frase "Os homens fazem história, mas não a fazem como querem, fazem sob o peso das tradições passadas e....nesse sentido, os mortos governam os vivos”. Era Marx que dizia isso. Quais são os mortos que nos governam, professor?
Carlos Guilherme Mota: Que saudades daqueles tempos em que nós discutíamos com tanto rigor, com uma certa sofisticação o Marx! Foi o filósofo alemão citado, suponho que seja ele...
Luiz Weis: Sim, eu o mencionei.
Carlos Guilherme Mota: O fato é que eu gosto muito da leitura de que a história se faz na primeira vez como tragédia e na segunda como farsa. Mas, eu gosto mais ainda do Hobsbawn lendo esse mesmo esquema: às vezes a história aparece como tragédia em certos países - como o nosso - às vezes nem como farsa. Não há o segundo tempo dada a brutalidade do processo. Quais são os mortos que nos governam?
Luiz Weis: É, quais são? O que há no peso da nossa história que condiciona o nosso presente e talvez o nosso futuro? Esse presente deixa as pessoas perplexas...
Carlos Guilherme Mota: Quando nós falamos da nossa história, aí é o majestático, que é difícil, é sempre aquela velha questão: qual é a nossa história de fato, a nossa formação? Para o Joaquim Nabuco [(1849-1910) político, jurista e historiador brasileiro do século XIX. Era defensor da emancipação dos escravos e da liberdade religiosa], quando ele falava em "minha formação", na verdade ele estava falando de um estamento, de um grupo social grande. Eu creio que há formações tão distintas hoje...
Luiz Weis: Mas o escravagismo é um dos mortos que nos governam.
Carlos Guilherme Mota: Seguramente as persistências...
Luiz Weis: [interrompendo] O patrimonialismo, a indistinção entre o público e o privado...
Carlos Guilherme Mota: A ideologia escravista, essa indistinção entre o público e o privado, com certeza! Acho que há também um componente meio vago, meio abstrato, que eu queria qualificar um pouco com esses textos, com essas leituras dos livros dessa coleção Viagem incompleta. Na verdade, é uma idéia de Brasil. Todos falamos de Brasil como se estivéssemos nos entendendo, é uma história fundamental. Mas, de fato, há uma idéia vaga de Brasil. E todos falamos de Brasil como se estivéssemos falando do mesmo Brasil. Nossa história é marcada por certos temas... O legado desse período longo em que foi utilizada mão-de-obra escrava está presente ainda. Nós temos... Bom, voltando ao Marx, fazia tempo que eu não ouvia falar dele, é curioso isso... é claro que em uma TV do Estado!
Luiz Weis: Ele caiu em desuso.
Carlos Guilherme Mota: É interessante. Nós passamos a falar tanto de Marx aqui! Eu não vejo tanto debate em outras redes de televisão, assim como [o debate] sobre público e privado...
Paulo Markun: Não falam de Marx e de muitas outras coisas...
Carlos Guilherme Mota: Não falam de muitas outras coisas. Eu queria discutir Marx na TV Globo, por exemplo, ia ser uma experiência. Mas eu queria completar só o seguinte: o Marx tem uma frase que eu gosto muito para a história do Brasil. Estudando o norte da Holanda, ele diz: “Há certos momentos históricos, precisamente de transição, em que convivem estamentos pretéritos com classes futuras”. Eu acho que o Brasil é um pouco... - sobretudo o Brasil de 1930 para cá, vamos dar uma data para situar os nossos ouvintes, para não ficar muito no jargão - há configurações sociais, partes de uma sociedade oligárquica, estamental, escravista em larga medida, convivendo com setores novos, anarquistas, sindicalistas. Há toda uma vanguarda de trabalhadores urbanos, rurais, com uma burguesia mais avançada. Quando nós temos dentro de um mesmo partido, como é o Partido dos Trabalhadores - vamos dar um exemplo, eu não sou do PT, sou historiador e observo genericamente e de fora - um Sérgio Buarque de Hollanda [(1902-1982) consagrado historiador brasileiro, jornalista e crítico. É autor de Raízes do Brasil, de 1936] que é nitidamente filho da sociedade aristocrática... A música de Chico Buarque não me deixa mentir: “Meu pai era paulista, minha mãe pernambucana” [refere-se à canção Paratodos], toda a música é uma canção estamental, não é? ...convivendo com o Lula, por exemplo. Eu acho que é fantástico isso! Ou o Caio Prado no mesmo presídio, na mesma prisão, no início dos anos setenta. O Caio tinha aquela postura estamental dele, senhorial, é um Prado! [família da aristocracia paulista] Mas é um Prado que fez um suicídio de classe, um suicídio de estamento. Ele convivia ali com presos políticos operários, trabalhadores, burgueses. Então, eu gosto de ler os teóricos tentando ver essa convivência. Acho que isso está muito presente ainda, Luiz. Não sei se respondi, mas a mentalidade escravista, essas relações, que são meio estamental-escravistas, ainda estão presentes.
Gabriel Cohn: Carlos, a pergunta do Luiz Weis pega as tuas preocupações pelos dois lados. Você falou um pouco dos mortos que governam os vivos, mas sua preocupação sempre esteve voltada para quem são os vivos.
Paulo Markun: E os muito vivos!
Gabriel Cohn: Os muito vivos ou os que sobrevivem nesse tipo de sociedade. O que impressiona um pouco - e a tua resposta mostra isso - é essa herança que você traz de um pensamento radical, talvez um pensamento republicano radical. Aliás, eu ia até lhe perguntar se você não se sente um pouco fora do tempo nisso. É um homem da escola pública, da USP, tem contatos com o republicanismo radical francês. Você está vivo como intelectual? Quem sobreviverá a esses tempos, quem escapará das garras dos que nos governam de longe? Como você vê não apenas a intervenção mas também a questão da formação do intelectual radical, que vai à raiz? Se você quiser pegar um ângulo específico, são cem anos de Gilberto Freyre, são cem anos de Anísio Teixeira [(1900-1971) jurista, intelectual e educador brasileiro. Foi uma das personalidades mais importantes da educação no Brasil nos anos vinte e trinta. Fez reformas educacionais na Bahia, lutava a favor do desenvolvimento do intelecto e da experiência do aluno, além de defender o ensino público, laico e obrigatório]. Você mesmo tem lembrado do segundo com alguma freqüência... Quem você comemora e como?
Carlos Guilherme Mota: E são cem anos de Mário Pedrosa [(1901-1981) militante político comunista e iniciador da crítica de arte moderna no Brasil] também! Mas eu diria o seguinte: em primeiro lugar, nós somos filhos de uma época. Não se trata de eu me sentir presente ou não presente, isso é relativo. O fato é que nós vivemos em um momento privilegiado. Nossos gurus estão desaparecendo, como Sartre, Marcuse [(1898-1979) Herbert Marcuse, influente sociólogo e filósofo alemão naturalizado norte-americano], Florestan [ver entrevista do professor Florestan Fernandes no Roda Viva]. Já é um momento, fim de século, fim de milênio sem Florestan, sem Paulo Freire, sem Darcy Ribeiro [escritor, antropólogo, pedagogo e político, um dos mais importantes intelectuais brasileiros. Ver entrevistas com Darcy Ribeiro no Roda Viva]. Nesse momento, eles desapareceram. Isso é fantástico, é ótimo em certo sentido... A pergunta é sobre os vivos e os mortos, não é?
Fábio Magalhães: Eu gostaria que você falasse sobre sua origem. Logo moço, você foi trabalhar com o Sérgio Milliet [(1898-1966) poeta, pintor e sociólogo]. Na juventude, você encontra o Sérgio Buarque de Holanda, o Mário Pedrosa, o Oscar Pedroso Horta [(1908-1975) advogado e político brasileiro], o Arnaldo Pedroso D'Horta [(1914-1973) advogado e crítico de arte] e tantos outros. Como isso tem significado na sua formação e no livro em que você vai tratar desses intelectuais, a Ideologia da cultura brasileira?
Carlos Guilherme Mota: Nós somos todos, de certa maneira, ligados a um certo tipo de pensamento radical de classe média. A definição é do Antônio Cândido [de Mello e Souza (1918-), poeta, ensaísta, professor da USP e um dos principais críticos literários brasileiros], naquela revista Transformação, da Unesp de Assis. Havia todo um esforço para buscarmos nossas raízes, nossa interpretação de mundo a partir da nossa localização. Eu acho que nós somos todos filhos de um contexto, mas também, em larga medida, de uma faculdade que se perguntava muito sobre sua própria identidade, às vezes até contra ela própria. Eu acho que fomos criados um pouco nessa perspectiva já no colegial, para não dizer no ginásio. Então, eu diria que minha trajetória é a trajetória de muitos colegas. Vou lembrando tantos que passaram pelos mesmos colégios como Dalmo Dallari, Marilena Chauí, José Serra, Alberto Conte, tantos outros colegas. É uma geração que se formou, que teve o privilégio de ser trabalhada em uma perspectiva inter, multi, transdisciplinar, que hoje está em moda. Isso era normal na nossa vida, nas nossas vidas. Estudar antropologia com a história, e ali pelo meio a literatura... Quer dizer, hoje temos preocupações com a retomada desse espírito universitário, dessas figuras que estavam nos nossos horizontes. Tínhamos uns vinte e poucos anos e esses senhores tinham uns cinqüenta e poucos. Eles eram marcantes e associavam a política à atividade. A vida intelectual nunca era só a vida intelectual. Eles já foram os grandes dessacralizadores. O Mário Pedrosa é um homem essencialmente político, o Fábio Magalhães também. Se é que existe ou existia um trotskismo no Brasil, um homem fundamental foi Mário Pedrosa, ele era uma figura notável. O Sérgio Buarque também teve um certo tipo de atividade política. Raízes do Brasil precisa ser lido como uma resposta a um tipo de discurso integralista, ao fascismo. O próprio Gilberto Freyre, que citava o […] Depois ele aderiu, houve usos e abusos de suas teorias, da democracia racial, uma "bobajada" toda, para a montagem do modelo autocrático burguês. Mas, de fato, eles são figuras que tiveram um trabalho político. Agora, eu queria completar algo que é importantíssimo porque os nossos professores, dos anos cinquenta para sessenta, já tinham uma coisa que o Gabriel evoca - não sei como chamar, é difícil definir, mas talvez alguma coisa parecida com a tradição republicana, algo até jacobino [jacobinismo]. Nós somos os filhos da Revolução Francesa, sim. Eu gosto muito de um artigo de Michel Vovelle [historiador francês da Universidade de Sorbonne, em Paris, sendo um dos especialistas em Revolução Francesa], "Por que devemos continuar a ser robespierristas" [referência a Robespierre, um dos personagens mais radicais da Revolução Francesa, tido como o "incorruptível", que condenou à morte na guilhotina milhares de opositores enquanto foi chefe do Comitê de Salvação Pública, em 1793-1794, no que ficou conhecido como Regime do Terror], quer dizer, é uma coisa fora do lugar, parece uma idéia descabida os jacobinos... Mas o Antônio Cândido também mostrou que os jacobinos tiveram muita importância, por exemplo, para haver revoluções ou avanços sociais foi preciso uma camada, um grupo, uma constelação de intelectuais, reformistas, progressistas, e assim por diante.
Marco Aurélio Garcia: Eu queria fazer uma pergunta para que você me elucidasse uma inquietação. O seu livro mais recente, A viagem incompleta, é publicado em um momento particular em que havia o pretexto dos quinhentos anos [de Brasil]. Mas, particularmente, eu não gostaria de amesquinhá-lo simplesmente situando-o no quinto centenário, até porque eu imagino que sua opinião sobre o quinto centenário não deva ser celebrativa. No entanto, algo me inquieta: nos anos trinta - e eu estou aqui pensando um pouco no prefácio do Antônio Cândido em Raízes do Brasil - ele detecta a existência de um sopro renovador, de um pensamento radical que teria se traduzido completamente no Raízes do Brasil, no Casa Grande & Senzala [1933], de Gilberto Freyre, e em Formação do Brasil contemporâneo [escrito por Caio Prado, publicado em 1942]. Era um período bafejado fortemente pelo impacto da Revolução de 1930 e sufocado depois em 1937. Se nós formos ver o final do governo Juscelino, período que vai até 1964 - eu diria que de certa maneira até 1968 - também houve um sentimento muito grande de efervescência neste país [JK governou o país até 1961, mas nesse caso o entrevistador se refere ao período pré-ditatorial, com crescimento econômico, artístico e intelectual]. E, coincidentemente, nesse momento, nós temos em 1959 a publicação do livro de Celso Furtado, Formação econômica do Brasil; em 1958, Os donos do poder, do Raimundo Faoro [(1925-2003) jurista e historiador brasileiro. Foi membro da Academia Brasileira de Letras]; em 1964, Caio Prado "gestou" A revolução brasileira; nessa época também já havia a introdução da história brasileira, do Florestan Fernandes. Era um período de efervescência política que suscitou completamente esse tipo de publicação. Nós temos o próprio Brasil em perspectiva, que você coordenou no fim de 1968. Pois bem, no período de 1980, ainda que não tenha havido grandes textos de referência como esses, houve um tipo de efervescência historiográfica muito grande no Brasil. Isso contribuiu para se revalorizar estudos sobre trabalhadores e uma série de outros domínios historiográficos até então pouco tratados. Como você diagnostica a conjuntura que nós estamos vivendo? Ela tem algum potencial particular que esteja nos escapando e que nos permita dizer que o seu livro e outros que estão aparecendo no momento atual prefiguram uma mudança? Quero concluir fazendo talvez uma pequena correção: a frase sobre “o governo dos vivos pelos mortos” não é do Marx, é do Comte [Auguste Comte (1798-1857) Filósofo francês, um dos fundadores da sociologia e do positivismo]. Mas há uma mais interessante, que é do Barão de Itararé [(1895-1971) Aparício Torelly, jornalista e humorista brasileiro]: “Os vivos são governados pelos mais vivos”. No Brasil, parece que é uma frase que se adapta muito hoje, pois os mais vivos estão nos governando. Será que estamos vivendo o fim do governo dos mais vivos, um tempo um pouco anunciado pelo seu livro?
Carlos Guilherme Mota: São várias questões, são pelo menos três questões. Em primeiro lugar, aquele momento pós-trinta é realmente de abalo de oligarquias, alguns pilares da ordem estabelecida são abalados. Um livro, de que eu gosto mais do que todos, teve pouca repercussão. Foi Evolução política no Brasil e outros estudos, do Caio Prado, em que ele sugere um método de dizer relativamente novo e faz aquilo que hoje seus colegas diriam ser uma revolução semiótica: aquilo que era nota de rodapé de página vira um texto de página... Traduzindo: os governadores gerais, que eram os grandes personagens, os presidentes de província, vão para o rodapé da página e sobem alguns movimentos como Balaiada, Sabinada, Praieira... Quer dizer, o Caio Prado foi um impacto. Como diz bem o meu querido amigo e historiador Edgar Canudo, é bom lembrar que esse livro não teve repercussão quase nenhuma, é verdade. Repercussão teve, em 1933, o Casa Grande & Senzala. E, de fato, ele [Gilberto Freyre] polemiza com a esquerda e com a direita, criando essa noção completamente ideológica de cultura brasileira. Ele inventa, é preciso criar formas de harmonização, suavização, um tipo humano, o brasileiro, até meio mulato, fruto dessa coisa. Bom, esse é o primeiro momento. No segundo momento, de cinquenta para sessenta, você tem a descoberta de um Brasil mais real, as ligas camponesas estão aí. 1959 é também o período de Cuba [refere-se à Revolução Cubana, liderada por Fidel Castro, que implantou o regime comunista no país] e, em seguida, o chamado Terceiro Mundo em movimento, os processos de descolonização, sugerem que o Brasil tem que se libertar de outro modo do passado colonial. No momento atual, essa é a pergunta mais difícil: e hoje, alguma coisa está sendo gestada? Eu diria que depois dos anos setenta e oitenta, há a revolução do Florestan, a revolução burguesa no Brasil [refere-se ao livro A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica, de F. Fernandes, publicado em 1975] em que ele lança um grande personagem, que é o modelo autocrático burguês vigente. Quando eu penso em um personagem histórico - ainda estou pensando na pergunta do Luiz Weis sobre quais são os personagens - estou pensando no modelo autocrático burguês que está em vigência. Quantas medidas provisórias foram tomadas até hoje com esse presidente [refere-se ao então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, que governou o Brasil entre 1995 e 2002]? Cento e poucas, quantas foram?
Marco Aurélio Garcia: Não, mais do que isso, mais do que em todos os governos militares.
Carlos Guilherme Mota: Bom, em suma, o fato é o seguinte: você tem um modelo, tem um mecanismo de governo que está em funcionamento e que também é o modelo de exclusão social. Não posso responder cabalmente porque não se sabe...Quem sabe, neste momento, alguém esteja escrevendo uma teoria? Em 1932, ninguém sabia que estava sendo gestado o Casa Grande & Senzala. Em 1935, não se sabia que Raízes do Brasil, do Sérgio Buarque, estava saindo. Quer dizer, o historiador é bom para "prever" o passado, não para prever o... Ele é um profeta do passado. Então, acho que é uma "meia" resposta...
Paulo Markun: Professor, nós vamos fazer um "meio" intervalo e voltamos em instantes. Até já! [risos]
[intervalo]
Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, entrevistando o historiador Carlos Guilherme Mota. Professor Carlos Guilherme, esse raciocínio que foi feito aqui sobre o papel e a força dos historiadores, os resultados da ação ou do pensamento dos historiadores, faz sentido. Mas, o senhor não tem, às vezes, a sensação de que hoje em dia aquela frase um pouco fantástica de que “a história acabou”, do Fukuyama, seja verdade, ou seja, de que realmente exista uma tendência única no planeta diante da qual todos tenham que se curvar definitivamente?
Carlos Guilherme Mota: Eu tenho a impressão que esse Fukuyama é um pouco fracasso-maníaco da história, ele tem um problema qualquer. Eu prefiro a linha historiográfica que está em plena efervescência. Há um livro, O fim do fim da história [Robert Kagan] criticando e até sorrindo um pouco dessas visões finalistas. Você tem uma historiografia nova, emergente em vários lugares, em escala planetária. Tenho a impressão que há historiadores e historiadores, há histórias e histórias. Agora, creio que há um problema, sobretudo no nosso país e em nossas formações político-culturais, que é... Nós falamos tanto dos sem-terra, dos sem-teto, dos sem isso ou aquilo. Eu gostaria de falar dos “sem-história” também! Voltando às questões anteriores, lembro de um colégio em que eu estudei, do ginásio em que eu estudei, onde nós tínhamos professores de história, de geografia, de filosofia, que eram notáveis, eram figuras da escola pública. Nós tivemos o privilégio... Eu me lembro de ter ouvido falar pela primeira vez o nome de Anísio Teixeira no Colégio [Estadual Presidente] Roosevelt, na rua São Joaquim. Ali, o professor João Villa Lobos, um filósofo notável, nos falava em um sábado de manhã - nós tínhamos aulas até aos sábados também - era um magnífico dia azul: “Vocês não sabem que estão morando na mesma cidade de Florestan Fernandes”. Era 1958, portanto nós já estávamos entrando em contato com o... Hoje eu fico pensando nesses jovens que estão, de certa maneira, "aplastados" [reduzidos] por um sistema complexo de mídia. Quais são os conceitos de história que estão sendo veiculados de fato? Eu falo isso aqui muito à vontade na TV Cultura e em outras televisões públicas com maior liberdade do que em outras situações que, aliás, não provocam esse tipo de reflexão. Eu fico preocupado neste momento com esses jovens que são “sem-história”. De fato, você chega à pós-graduação e nós estamos dando os textos que nós tivemos na graduação ou mesmo no colegial. É algo que assusta. Há também o lado positivo, pois alguns setores dessa mídia ou algumas iniciativas começam a colocar em bancas de jornais alguns desses clássicos a preço acessível. Hoje, por exemplo, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado, Euclides da Cunha, Capistrano são relativamente acessíveis. Agora, preciso saber que tipo de leitura se faz, como estão sendo tratados os professores, qual é o conceito de professor e de escola que está sendo veiculado...
Gabriel Cohn: É exatamente isso. Até vou dar minha contribuição com frases. É uma frase que sintetiza, no meu entender, o século XX: “Deus está morto, Marx está morto, e eu também não me sinto nada bem” [citação do filósofo francês Alain Finkielkraut]. Eu vou retomar a minha pergunta: você se sente bem, Carlos Guilherme? Você levantou a possibilidade de que algo esteja sendo gestado em algum canto e nos ajude a perceber melhor quem são os vivos e os mortos, quem são os sobreviventes e o futuro. Mas de onde poderia sair isso? Qual é o substrato intelectual que se encontra por aí? Só para te provocar... Foram lembrados o Gilberto Freyre e Anísio Teixeira, que são, curiosamente, duas figuras que buscaram inspiração no liberalismo americano. Em outras gerações, como a sua, você vira um discípulo - aqui e fora - do que seria um radicalismo republicano. E agora? O que ainda dá oxigênio a esse pensar, que tipo de universidade, que tipo de escola? Enfim, eu gostaria que você reprisasse isso porque esse é um dos seus temas e a sua contribuição nisso tem sido fundamental.
Carlos Guilherme Mota: Eu acho que é republicanismo mesmo, nossa formação foi fortemente republicanista reformista e isso foi acentuado. Em primeiro lugar, você lembrou Toulouse, um Jacques Godechot [(1907-1989) historiador francês]. Toulouse não é uma cidade desprezada, desprezível, é a cidade vermelha de um socialismo republicanista, é a cidade do Jean Jaurès [(1859-1914) político socialista francês], há uma tradição de social-democracia, mas com certo rigor. O próprio Jacques Godechot, esse grande historiador, esteve aqui em São Paulo e foi um estudioso profundo da Revolução Francesa e das suas difusões e repercussões. Ele também era meio jacobino na sua formação, na sua seriedade. O que fica de todos eles é uma forte postura republicanista. E essa postura nós encontrávamos nos nossos professores desses colegiais todos, em escolas públicas ou não-públicas. Eu me lembro de alguns amigos do Colégio Bandeirantes, que tinha uma formação talvez um pouco mais girondina [os girondinos eram um grupo mais moderado, oposto aos jacobinos], nós éramos mais jacobinos. Mas todos éramos republicanistas! É muito interessante isso, creio que encontro também amigos no Rio Grande do Sul, em Pernambuco, da mesma geração, formados na mesma época, com os mesmos traços. Agora, o problema que está embutido na sua questão é o que é possível ver hoje que me mantenha vivo. Bom, em primeiro lugar, debates como esse e também algo que eu uso de maneira imprecisa: falo muito em uma nova sociedade civil. Eu falo dessa nova sociedade civil, que é um conceito complicadíssimo. Eu tenho ouvido falar muito, sobretudo de alguns colegas e sociólogos - eu cito muito o querido interlocutor Boaventura de Souza e Santos, nosso teórico de Coimbra, que conhece o Brasil de maneira fantástica - falo dos novos paradigmas para se pensar a ciência social. Gabriel, fico me perguntando se esses novos paradigmas... Alguns conceitos clássicos estão sendo estourados, como a sociedade civil. Eu não consigo falar em sociedade civil - eu me lembro dos anos cinquenta, da época de Juscelino, então eu tenho que falar uma coisa neste país em que a palavra “novo” ou “nova” está muito comprometida, pois há a "nova República", nova isso, nova aquilo... Eu não gosto de “nova sociedade civil”, mas é uma maneira de dizer que os novos paradigmas são esses índios, aqueles pataxós impertinentes que aprisionaram alguns turistas... De repente você começa a ver outras formas de... a questão dos idosos! Os velhos já não são velhos, são idosos, agora já temos a terceira idade, a quarta idade. As crianças já não são mais só as crianças, há outra reflexão. Há os tais novos objetos da história - que é uma expressão até um pouco detestável - mas a mulher é um novo objeto, idosos, negros, homossexuais e assim por diante.
Gabriel Cohn: Os invasores de supermercados, de shopping centers, que hoje são expressivos...
Carlos Guilherme Mota: Fico pensando que existe uma nova sociedade civil e também já existem, felizmente, alguns setores da burguesia que são abertos a essa discussão. Há uma outra palavra que eu não gosto de usar, que é a noção de elite. "Essas elites nossas são muito tacanhas", dizia José Honório Rodrigues. Estava lembrando da época da abertura [política, após a ditadura] e estava em um debate, recentemente, com um dos nossos professores. Eles diziam: “Não se esqueçam que a Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo] hoje está tão ativa, aberta!". Na verdade, ela foi muito dura contra a abertura. O empresariado não estava [a favor] da abertura. Então, também temos que pensar que quando nós detectamos frações de burguesias que estão abertas a reconsiderar essa história da negociação, da questão da sociedade do contrato, eu acho que já existe uma nova sociedade civil.
Luiz Weis: Mas, professor, é a história. Pode-se fazer com o passado o que se bem entender. Quando a gente começou esse programa, falávamos dos mortos governando os vivos, quer dizer, a presença do passado, esse passado subentendido, que também não ficou tão subentendido assim, ficou explícito, que é o passado que nos condena. Eram todas as chagas da nossa formação. Falamos do escravagismo, do patrimonialismo, da indistinção entre público e privado, por aí vai. Mas, o passado também pode ser evocado de ponta-cabeça. E me chamou muito a atenção, como jornalista, que semanas atrás a revista Veja, na seção de política, ao lado da matéria sobre a questão da suposta participação do ex-secretário geral da Presidência da República, Eduardo Jorge [Caldas Pereira], no caso da obra superfaturada do TRT [Tribunal Regional do Trabalho] de São Paulo, havia uma matéria ao lado, e não era na seção de cultura ou arte, sobre o conteúdo redentor da mostra dos quinhentos anos. O que a revista estava dizendo claramente era o seguinte: "Sim, tem batedor de carteira, tem isso, tem aquilo, mas também tem esse país maravilhoso, o índio, o preto, que estão nessa mostra que é extraordinária". Aí o passado é usado para nos absolver.
Carlos Guilherme Mota: O seu comentário já tem uma resposta. Parece que ainda estamos no espírito de Gilberto Freyre, há cem anos. De fato, temos isso, o passado nos condena etc, mas, de repente, ele também nos legitima. Eu queria sair do tema de Eduardo Jorge e da revista Veja. Eu queria evocar que a história nem tudo condena. Vamos dizer que, em algum momento, nós condenávamos até em nome de um republicanismo, de um progressismo, de reformas de base, alguns dos nossos heróis, como José Bonifácio de Andrade e Silva. Ele foi uma figura oficial, oficiosa, aquela coisa toda, nós passávamos a negá-lo. Nós estamos relendo hoje um José Bonifácio de Andrade e Silva, quer dizer, redescobrimos a altitude desses discursos...
Luiz Weis: [interrompendo] "Nós quem, cara pálida?" [faz uma analogia com a frase do índio Tonto ao personagem Zorro. A frase é comumente utilizada de forma irônica sempre que alguém quer mostrar não pertencimento a um problema apresentado]. Os jovens sem-história e sem-língua? Quem? Nós, que envelhecemos...
Carlos Guilherme Mota: Ah, você está me devolvendo aquela nossa história, nossa formação!
Luiz Weis: O luxo do desespero e de rever...
Paulo Markun: [interrompendo] Eu só queria pedir espaço para a Carlota...
Luiz Weis: Deixa ele terminar...
Carlos Guilherme Mota: Bom, eu preciso dizer que não é só o passado nos condena. Uma mostra como essa do redescobrimento é fantástica. O investimento que se faz nessa natureza é notável. Eu gostaria que esse tipo de investimento fosse feito pelo empresariado de maneira um pouco mais sistemática, contínua e discutida. Eu fico imaginando...
Marco Aurélio Garcia: [interrompendo] Museu permanente, como se fosse um museu permanente.
Carlos Guilherme Mota: Exatamente.
Luiz Weis: O problema não é o investimento, é o conteúdo do que está ali, que seria uma coisa...O que a matéria dizia é: "Extraordinário esse povo brasileiro que é capaz de fazer, apesar de tudo, isso que está lá". Essa é a idéia do contraponto. Agora, até que ponto...
Carlos Guilherme Mota: [interrompendo] Sim, mas quem faz o contraponto é a revista Veja, não estou preocupado com ela.
Luiz Weis: Na verdade, é isso que eu queria ouvir: sua presença crítica sobre isso. Esse contraponto é forçado, é artificial?
Carlos Guilherme Mota: Esse contraponto é absolutamente artificial. Aliás, raramente leio a Veja, mas dessa vez eu li e vi que até a cor é diferente...
Luiz Weis: Por que é artificial?
Carlos Guilherme Mota: Por que naquele lugar, onde se está mostrando uma série de mazelas deste país, de repente você mostra... então vale tudo? Agora, o problema que eu queria colocar é de uma frase, de um comentário anterior sobre qual é a nossa história. De fato, a imagem de José Bonifácio... não estou falando de um José Bonifácio... Nosso grupo de geração era mais Frei Caneca [Joaquim do Amor Divino Rabelo Caneca, nascido em 1779, religioso carmelita, foi líder popular, jornalista e um dos mais destacados opositores à monarquia, tendo participado da Revolução Pernambucana de 1817, sendo morto por fuzilamento em 1825], tudo o que o Frei Caneca fazia era fantástico e o que o José Bonifácio fazia era péssimo. Eu estou falando dos anos sessenta... O que eu gostaria de mostrar é que nós estamos reelaborando esses discursos fundadores sobre o que é nação, o que é Estado, o que é cultura. Nós esquecemos de dizer para os nossos alunos e para nós mesmos que José Bonifácio foi exilado já maduro. Não contamos do exílio do José Bonifácio e como ele era marginalizado. Da mesma forma, nos nossos livros temos dificuldade de enxergar a imagem, o rosto, a cara de Cipriano Barata [(1763-1738) médico, jornalista e político brasileiro que lutou pela independência do Brasil, participando de movimentos como Conjuração Baiana e Revolução Pernambucana. Fundou em Pernambuco um veículo de comunicação chamado Sentinela da Liberdade, onde apresentava seus ideais republicanos]
Paulo Markun: [interrompendo] O sentinela da liberdade!
Carlos Guilherme Mota: O sentinela da liberdade. De repente, nós temos uma grande personagem como [Anita] Garibaldi [(1821-1849) ao lado de Giuseppe Garibaldi, lutou na Guerra dos Farrapos no sul do Brasil] estudada pelo Paulo Markun [Markun publicou, em 2000, a biografia Anita Garibaldi: um heroína brasileira], mas o Cipriano não tem um biógrafo. Eu acho notável isso. E Gervásio Pires Ferreira [(1765-1835) político brasileiro, foi governador geral de Pernambuco] por exemplo, que ninguém mal sabe quem era? Domingos José Martins [(1781-1817) um dos lutadores na Revolução Pernambucana, em que foi preso e fuzilado] foi o primeiro grande revolucionário... Eu acho que existe uma historiografia. Essa hipótese de nós podermos recontar a história, não só a partir de Tiradentes, não só de centro-sul, não só a partir de nossas bibliografias, muito paulistanas em certa época... Eu vou lembrar que Raimundo Faoro, por exemplo, esse notável gaúcho, é possivelmente a figura viva mais notável do pensamento social, histórico, jurídico e contemporâneo. Eu tenho a impressão que ele deve ser o único consenso aqui hoje, é uma coisa fantástica. Ele era desconhecido! Quantos de nós conhecíamos...
Gabriel Cohn: [interrompendo] Desculpe, professor, eu agora vou interrompê-lo para cometer uma inconfidência. Talvez nem todos se lembrem que você participou fortemente do meu esforço para trazer novamente o Faoro ao debate naquela época.
Carlos Guilherme Mota: O fato é que nós éramos chamados de weberianos [referência a Max Weber], nós não éramos completamente marxistas. Depois, nós não éramos completamente isso...quer dizer, faz parte do debate. E nós estávamos em busca da nossa história, que é múltipla. Eu creio que hoje a questão maior talvez seja de recompor um pouco... Não há consenso histórico, isso está bem marcado, há negociações de sentido, há discursos concorrentes. O que nós temos é a possibilidade de estabelecer alguns eixos, algumas teses, mas elas estão comprometidas. Um historiador girondino é um historiador girondino, um historiador jacobino é um historiador jacobino. Essa é a história, quer dizer, há na história do Brasil aqueles que fazem história pelo alto, há manuais e manuais que são de conciliação. A história surge e termina sempre com o último presidente, é uma história finalista estranha.
Carlota Boto: Professor Carlos Guilherme, eu queria voltar um pouquinho para sua história de vida. O senhor se notabilizou como um grande historiador, citado entre os maiores por Evaldo Cabral de Melo [(1936-) historiador brasileiro cujo foco de estudos é a dominação holandesa no estado de Pernambuco], por Raimundo Faoro. Sua produção, como crítico da cultura, tem vindo à tona durante todos esses anos. Na verdade, seu lado intelectual se coloca como completo. Além disso, o senhor é um grande professor, que formou 15 doutores, 19 mestres, que tem formado gerações de pesquisadores na USP e na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Seu estímulo de trabalho, tanto como professor quanto como orientador, sempre foi da liberdade em relação ao pensamento do outro. Muitos dos seus orientandos ou ex-orientandos pensam até de uma forma diferente. Isso sempre me causou, como pedagoga, uma certa curiosidade. O senhor sempre foi estudante de escolas públicas e de uma família de professores. Seu pai foi professor da USP, o senhor foi professor muito cedo no Departamento de História, seu avô era professor primário. Como a memória de uma trajetória de magistério se colocou na sua opção profissional? Como o Carlos Guilherme Mota adolescente se transformou no professor e no historiador Carlos Guilherme? Como aconteceu essa opção?
Carlos Guilherme Mota: A adolescência sempre permaneceu um pouco. Apesar dos comentários do Gabriel, essa adolescência é cultivada de certa maneira. O fato é o seguinte: meu avô, Máximo de Moura Santos, foi professor primário e foi exilado, desterrado em Ubatuba pelo Washington Luiz. Era um homem que colaborou com o [jornal] Estadão, era um homem da escola pública... Ele fez algumas leis, como a da união de cônjuges, porque acontecia essa coisa: você punia uma professora, a mandava para uma cidade e o marido para outra. Essa lei foi muito importante. Mas era um homem modesto, um técnico de educação. Eu ouvi falar de Anísio Teixeira por ele. Meu pai, Deusdá Magalhães Mota, era um professor secundário, foi professor do [Colégio] Roosevelt, Colégio da Penha, Escola Normal Alexandre de Gusmão. Nós líamos em francês. Isso é preciso ser dito, nós estudávamos em francês e espanhol. Nosso francês dava para uso mínimo e espanhol, com certeza. Nós tínhamos espanhol. Depois, pelas mãos do meu pai e do meu avô, chegavam professores muito marcados pela Revolução Francesa, depois entra Aloísio Teixeira com a Revista brasileira de estudos pedagógicos, que é notável. O jovem Darcy Ribeiro era secretário da revista. Tive o privilégio de trabalhar, fui "secretarinho" do Sérgio Milliet. Foi uma experiência fantástica porque todos eram republicanistas com matizes variados. O Sérgio Milliet tinha esse componente existencial, existencialista, que é preciso relevar, aprendi isso com ele. Nós também tivemos professores na Faculdade de Filosofia, mas os nossos professores...eu também atravessei a rua e agora estou atravessando ao contrário, fazendo essa... Foi o CCC [Comando de Caça aos Comunistas, organização de direita que denunciava estudantes e intelectuais que lutavam contra a ditadura militar] que nos separou muito há trinta e um anos. Houve um conflito. E eu me lembro de Paulino Mendes da Rocha, Rubens Paiva, Fernando Gasparian, são todos do Mackenzie. Na rua Maria Antônia, em pleno conflito, desciam os colegas mais progressistas ou mais liberais para perguntar quais eram nossos esquemas de luta. Essas pessoas têm nome: Samir Meserani, Zé Resende, o escultor, e assim por diante. Quer dizer, havia um mundo que está sendo recomposto ali com a rua Maranhão [onde fica parte da USP], com o Teatro Leopoldo Fróes, com a [Fundação] Escola de Sociologia e Política [de São Paulo], era um mundo extremamente vivo, com seus bares... Eu aprendia um pouco como ser orientador. Eu matava aula de história freqüentemente e assistia às aulas do Florestan, do [Heitor] Villa-Lobos, do [jornalista, historiador e cientista social] Oliveiros [Ferreira], do Octavio Ianni [ver entrevista de Octavio Ianni no Roda Viva], do próprio João Cruz Costa [(1904-1978) filósofo brasileiro]. Fomos descobrindo que alguns deles, como Antônio Cândido e Alfredo Bosi [(1936-) professor, historiador, membro da Academia Brasileira de Letras], davam aulas nos dois lugares durante um certo tempo de vida.
Eni Orlandi: Bom, vou voltar um pouquinho ao que o Luiz tinha dito quando perguntou a você quem lia José Bonifácio. Eu diria que eu leio também e várias outras pessoas... Mas, fundamentalmente, muitos alunos podem não ler e aí entra uma questão que é fundamental quando se fala de história, pensando em linguagens, sentidos e tal. É o fato de que os sentidos estão disponíveis dentro da sociedade na história, ou seja, temos tido um José Bonifácio que disse, em um certo momento, que o projeto civilizatório não é religioso ou étnico, é social. Isso faz sentido dentro da nossa história indefinidamente. Não é que se use o termo lido particularmente, mas isso foi dito dentro dessa sua sociedade e fez percursos dentro dela. Eu diria que nossa memória é social e histórica. Digo isso para sairmos um pouco de um certo pessimismo de que mortos que governam os vivos etc. São idéias, são idéias vivas!
Luiz Weis: [interrompendo] Os mortos podem ser ótimos!
Eni Orlandi: Mas não só os mortos nem os muito vivos, mas os vivos, mesmo esses que são considerados excluídos mas que fazem parte dessa história e que estão significando nela. Eu acho que isso não pode ser esquecido, é muito forte. A conversa muda um pouco, afinal o livro se chama Viagem incompleta e ser incompleta é fundamental. Do ponto de vista da linguagem, o incompleto é o lugar do possível, já há uma possibilidade. É uma armadilha pensar que o incompleto é o mal acabado ou o não acabado, ou o impossível. Acho que aí existe gancho para uma discussão que eu gostaria que viesse à tona, que eu estou querendo ver na sua fala, Carlos Guilherme, quando você fala desse incompleto e das demandas por novas interpretações e possibilidades nessa forma heterogênea de sentidos. Bom, falando em nova sociedade civil, também não gosto da palavra "nova", sei exatamente qual, ideologicamente, o peso disso na história. A própria noção de cidadania é uma coisa pesada, como se nós tivéssemos que adquiri-la no momento, o que eu acho também muito complicado. Gostaria que você falasse um pouco nesse possível, nessa coisa da cidadania...
Paulo Markun: Isso é possível depois do intervalo. Não gosto de fazer isso, mas a gente tem um horário a cumprir. Voltamos já, já.
[intervalo]
Paulo Markun: Bem, esta noite nós estamos entrevistando o historiador Carlos Guilherme Mota. Ele coordenou o livro Viagem incompleta - experiência brasileira. Justamente o bloco anterior ficou incompleto porque a questão colocada pela professora Eni não foi respondida. Afinal, o espaço do possível existe? Qual é ele? Eu acrescentaria o seguinte: se a viagem é incompleta, onde vamos parar?
Carlos Guilherme Mota: Professora Eni e Markun, acho que toda a história é incompleta. Tivemos dificuldades em achar um título para a organização de 25 autores, pois cada um tem sua idéia de Brasil. Na verdade, o objetivo do livro e dos trabalhos era [apresentar] idéias de Brasil. Isso talvez fosse um título ideal...Viagem incompleta parece que nos dá um pouco a sensação que estamos vivendo não a finitude, mas o impasse. O João Alexandre Barbosa tem um livro que eu gosto muito, sobretudo do título: A tradição do impasse [1974]. Parece que estamos na tradição do impasse ainda... E por que incompleta? Porque essa República ainda não se montou, não se articulou completamente. Pode-se dizer que, idealmente, nenhuma república se completou. A república dos Estados Unidos da América ainda tem dificuldades em desbloquear guetos, em assumir certas frações da sociedade... a questão das línguas, há várias questões. Mas, a República se fez de alguma maneira, a emenda constitucional funciona, a Constituição é para valer. No caso da república francesa também, na própria monarquia inglesa também existem regras, há uma certa completude aí. Não há absoluto para o historiador, mas alguma coisa acontece, pois existem começo, meio e algum fim. Agora, a professora Eni sabe bem que há formas de apagamento da história e o José Bonifácio foi um grande... Na verdade, há um momento em que ele tem todas as praças, ruas em todas as pequenas cidades, eu acho que até no Rio Grande do Sul deve ter José Bonifácio... Eu até tenho a impressão que esse apagamento existiu durante um certo momento. Ele está sendo retomado e aí entram os sentidos exatamente. Pelo menos duas figuras notáveis do século XX são bonifacianas, andradinas, como o tenente-coronel Rondon. O Serviço de Proteção ao Índio, de 1910, é todo montado a partir do texto de José Bonifácio, da Constituinte de 1823. Então, ele marcou Rondon com a questão da integração do elemento indígena. Gilberto Freyre também usa a formulação das relações étnicas. Lendo os textos do José Bonifácio hoje e, sobretudo no centenário de Gilberto Freyre, há essa continuidade, é uma releitura, o esforço de um novo sentido. Eu estou apenas apontando essas duas vertentes de um Bonifácio que desapareceu das nossas... Agora, há um detalhe curioso: em nossas salas de aula, gostamos muito da filosofia da ilustração, trabalhamos muito o Ernest Cassirer [(1874-1945) filósofo de origem alemã, neokantiano, conhecido por seus trabalhos em filosofia da cultura], trabalhamos teorias da história, teorias da cultura, teorias da ideologia, mas não lemos o grande ilustrado, José Bonifácio! Temos uma dificuldade de entender esse personagem, que era divertido, que bebia, que era casado e não era casado com aquela irlandesa, era uma figura que estava muito além do seu tempo. Se havia alguma idéia fora do lugar, era do José Bonifácio, o grande ilustrado e que depois perde o bonde da história.
Eni Orlandi: Quando você diz justamente que fazer uma história é também poder falar dela - e é o que nós estamos fazendo agora - eu acho isso muito importante porque traz para a interpretação novos gestos. Então... não são só esses homens, mas são essas idéias e como elas estão nessa memória social. Como elas vão produzir efeitos?
Carlos Guilherme Mota: Onde nós trabalhamos? Nós trabalhamos na universidade - é um tema que precisamos colocar em foco aqui - informando historiadores, educadores, pesquisadores, professores. E é interessante que, por exemplo, o tema da formação... Às vezes a pessoa vai buscar um tema longínquo, do século XIX e não sei o quê, e não se preocupa em contar a própria história de sua escola ou de sua região. Aquilo não parece tema histórico o suficiente. Eu acho que nesse reencontro com os sentidos, as pessoas começam a escrever memórias... As pessoas deixaram de escrever memórias, as moças deixaram de escrever diários, os rapazes menos ainda. Nós carregávamos Atlas, apesar de tudo.
Paulo Markun: Colecionaremos e-mails e ICQs [programa de comunicação instantânea via internet]...
Carlos Guilherme Mota: Pois é, todos os lixos correspondentes, uns 70%, 80%.
Eni Orlandi: É nesse sentido que faltam aos homens esses gestos de interpretação.
Carlos Guilherme Mota: Veja, professora, o apagamento, o discurso fundador, que é um dos temas de um livro seu... Anísio Teixeira tem um discurso fundador. Ele tem um discurso sobre a escola, assim como Fernando de Azevedo. Lourenço Filho também foi um apagado da história e era uma figura notável, não é? E seria possível pensar em Antônio Cândido como crítico sem Sérgio Milliet antes? Quer dizer, todos nós temos nossos antecessores, eu acho que retomar essas linhagens... Seria possível imaginar Raimundo Faoro em São Paulo sem, por exemplo, ter vindo para cá Maurício Tragtenberg [(1929-1998) sociólogo brasileiro e professor universitário]? Veja, os caminhos também se... Por que essa reconsideração da história do Brasil hoje se não lembrarmos da obra de Evaldo Cabral de Melo, que dá um relevo para a região e mostra a historicidade daqueles Brasis, daquele outro Brasil?
Marco Aurélio Garcia: Carlos, falando de apagamento, lembro da introdução do seu primeiro volume, onde vi dois apagados. Queria que você nos explicasse esses apagamentos.
Carlos Guilherme Mota: Um é o Jacob Gorender [ver entrevista de Jacob Gorender no Roda Viva]...
Marco Aurélio Garcia: Não, não. O Jacob Gorender está vivo.
Carlos Guilherme Mota: É que eu esqueci de citá-lo...
Marco Aurélio Garcia: Um deles me surpreendeu um pouco, sinceramente, que é o Joaquim Nabuco, do abolicionismo. Uma boa parte do Gilberto Freyre é um pouco originária das idéias que ele desenvolve no abolicionismo. Mas o outro apagado, que está vivo, é o sociólogo...que teve uma carreira, aliás, não só como sociólogo, mas na política, chegou à Presidência da República, e você não o cita. Por que o sociólogo Fernando Henrique Cardoso foi apagado da sua introdução? E por que o Joaquim Nabuco também foi?
Carlos Guilherme Mota: É uma provocação, naturalmente, mas estou gostando dela. Eu não queria fazer parte do movimento de apagamento, porque depois eu viro um objeto de estudo da professora Eni Orlandi.
[risos]
Marco Aurélio Garcia: Apagado não, deletado!
Carlos Guilherme Mota: Deletado. Eu gostaria de dizer o seguinte: não citei o sociólogo, mas também não citei outro sociólogo, Octavio Ianni, que nos marcou tanto...
Marco Aurélio Garcia: O Ianni é citado sim.
Carlos Guilherme Mota: Na introdução, não.
Marco Aurélio Garcia: Foi você quem escreveu? Você esqueceu o que escreveu? [referência irônica à frase atribuída, mas por ele não reconhecida, a Fernando Henrique quando de sua chegada à Presidência: “Esqueçam o que escrevi”]
Carlos Guilherme Mota: Você está falando do Viagem incompleta? Não, não sei. Eu pensei que você fosse falar de [Manuel de] Oliveira Lima [(1867-1928) escritor, embaixador do Brasil e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras], que é o grande pai fundador de uma historiografia realmente importante, quer dizer, eu estou pensando em termos mais de historiografia, não estou pensando em grandes personagens históricos. Se eu tivesse que falar algo para me justificar, eu diria que o professor Sérgio Buarque dizia: “O Joaquim Nabuco é interessante?”... Antes eu não entendia muito bem o professor Sérgio falar, porque ele falava com uma locução mais complicada. Mas o Joaquim Nabuco era meio estranho e difícil, fazia umas propagandas para o abolicionismo mas não abraçava de perto os negros, ficava um pouco distante. Talvez haja alguma coisa lá no fundo que eu não tenha... Mas, de outro lado, também houve uma retomada tão forte de um lado conservador do Nabuco, do Gilberto Freyre, do Sérgio Buarque de Holanda. Não sei se a universidade está olhando pelo lado mais agudo e crítico do combate relativo que essas pessoas tinham. Talvez seja o tal pensamento radical e republicano que me...
Marco Aurélio Garcia: Eu estou preferindo o Nabuco do abolicionismo.
Carlos Guilherme Mota: Sim, entendo. Eu pensei que você fosse mencionar talvez o Jacob Gorender, porque eu esqueci dele, foi uma omissão.
Marco Aurélio Garcia: Mas aí não seria provocador...
Carlos Guilherme Mota: Pois é, mas ele tem livros importantíssimos e polêmicos também. Agora, eu gostaria de dizer também que essa questão da região...Ideologia da cultura brasileira foi considerado um livro muito regionalista, sofri muitas críticas porque eu era considerado alguém de São Paulo, alguém da USP... Freqüentemente, leio em matérias que “o grupo da USP reage ao Gilberto Freyre”. Fui a um debate agora e [me perguntaram]: "Você que é o inimigo de Gilberto Freyre?”. É engraçado isso, ficou essa coisa das regiões ainda, há um regionalismo que precisaria ser discutido.
Paulo Markun: Para ainda ficar na provocação, Sérgio Fonseca, de Vila Velha, no Espírito Santo, diz o seguinte: "Gostaria de perguntar ao historiador Carlos Guilherme Mota se o presidente Fernando Henrique é uma conseqüência lógica do sociólogo. Qual é a relação entre o intelectual Fernando Henrique e sua prática como governante?".
Carlos Guilherme Mota: Olha, aí precisaríamos de um debate mais longo... No nosso livro Viagem incompleta, recomendo o artigo do João José Reis, um historiador notável da nova geração, em que ele retoma algumas reflexões do professor Fernando Henrique Cardoso em Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. Ele fala sobre o movimento negro, que não havia muita consciência, usa até mesmo a palavra folclore, fala de manifestações folclóricas. O João José Reis é bastante duro quanto àquele texto de 1961...
Paulo Markun: [interrompendo] E qual é a sua opinião? O senhor acha que há uma vinculação entre o pensamento do sociólogo Fernando Henrique e o governo Fernando Henrique?
Carlos Guilherme Mota: Olha, eu acho que já naquela altura a tese dele sobre o empresariado já sugere algum namoro com uma transição harmoniosa ou a busca de alguns setores da sociedade que pudessem...
Paulo Markun: Uma transação como a que propunha o Justiniano José da Rocha...
Carlos Guilherme Mota: Não, vamos fazer justiça ao professor Fernando Henrique dos anos sessenta. Entretanto, não posso deixar de evocar que nos anos setenta, já na abertura política, naqueles debates fantásticos do Teatro Ruth Escobar, que eram momentos difíceis... Jornalistas, universitários, nós estávamos tentando esboçar uma crítica a essa ideologia harmoniosa da cultura brasileira. Então, o professor Fernando Henrique, para finalizar o debate, disse: “Afinal, todos pertencemos à sociedade brasileira. Também gostamos de futebol, não sei o quê”. Quer dizer, se arredondou... Ele também fazia parte do movimento, houve formas de arredondamento. Agora, tenho a impressão que existe o modelo autocrático - a resposta mais cabível está no último capítulo do Florestan Fernandes - o modelo autocrático burguês. A revolução burguesa no Brasil tem essa limitação, não se trata de um modelo democrático burguês, é um modelo autocrático burguês, dado o peso dessa história e desses fantasmas que são focalizados pelo Florestan e pelo Raimundo Faoro. Por isso, talvez, sejam os nossos grandes explicadores de hoje. Eu preferiria dizer que o presidente atual, assim como o anterior e o futuro, correrá o risco de ser absorvido por esse modelo, que é poderoso. A história é perversa. Veja bem, o tema central é a questão da cultura brasileira. Existe uma cultura brasileira? Eu não sei responder porque um dos teóricos do Partido dos Trabalhadores se transforma em ministro da Cultura em um salto fantástico que realmente desfigura a própria idéia de um intelectual de esquerda...
Luiz Weis: Eu não entendi... foi porque ele virou ministro?
Carlos Guilherme Mota: Não é porque ele virou ministro, ele, a secretaria geral do Partido dos Trabalhadores... Eu estou falando do professor Francisco Weffort [ministro da Cultura no governo FHC], meu amigo. O fato é o seguinte: essa passagem foi extremamente abrupta. Acho que temos que resguardar que as pessoas mudem de posições e de partidos, mas acho que há formas e formas...
Marco Aurélio Garcia: Mas ele mudou de posição? Faz seis anos que não escuto uma palavra dele.
Carlos Guilherme Mota: O problema é este: é possível ser ministro de uma cultura desse tipo?
Marco Aurélio Garcia: Desse tipo não, mas temos outros paradigmas de ministro da Cultura, de amplo debate nacional. Há o Jack Lang, na França, o André Malraux, [...], aqui temos o Celso Furtado. O que me espanta no Weffort não é tanto que ele tenha ido para o governo - claro que isso também - o que me espanta é que ele foi para o governo para ser um funcionário cinzento. Nós não temos uma política cultural no país, não temos reflexão sobre a cultura. Isso aí é consenso mesmo entre aqueles que apóiam o governo...
Carlos Guilherme Mota: Minha questão é mais profunda no seguinte sentido: o que é um intelectual no Brasil neste final de século? Eu queria relançar o tema da universidade. Eu tenho lido em várias matérias: “Os professores estão no poder, os professores ganharam, os professores fazem a cultura”, mas acho que não é isso. Acho que esse debate tem a importância de revalorizar o papel do professor, o papel dos teóricos, o papel do herói civilizador. Nós tivemos em nossa época, nas nossas faculdades, nos nossos colégios, nos nossos ginásios, [personalidades como] Anísio Teixeira, Florestan Fernandes, Raimundo Faoro, Sérgio Milliet. Estamos precisamente colocando em cena um certo paradigma.
Marco Aurélio Garcia: O Anísio foi um homem de governo, nem por isso deixou de dar uma inestimável contribuição para a renovação da educação neste país, do ponto de vista intelectual.
Carlos Guilherme Mota: Eu acho que o modelo é muito forte ou a capacidade de absorção do estamento burocrático é muito forte. Por exemplo, o que este governo do estado de São Paulo está fazendo pela universidade? Bom, agora vão dizer que temos a autonomia, mas esquecemos que essa autonomia universitária das escolas públicas foi dada no governo [Orestes] Quércia [político brasileiro, governou São Paulo entre 1987 e 1990]. As universidades estavam em pé de guerra, foi um ato habilíssimo do então governador: “Solta! Toma a autonomia para vocês!".
Luiz Weis: E a universidade sabe o que fazer com essa autonomia?
Carlos Guilherme Mota: Essa é a questão que se coloca! Gostaria que ela fosse dirigida aos três reitores das universidades principais.
Fábio Magalhães: Ou à comunidade universitária como um todo. Não é só o reitor que tem que responder...
Luiz Weis: E, por falar nisso, o senhor defendeu tempos atrás a idéia de eleições diretas para reitor nas universidades, que está sendo abandonada rapidamente pelas universidades federais. O senhor mantém essa idéia?
Carlos Guilherme Mota: Veja bem, há uma distinção entre universidade pública e a universidade particular e/ou confessional.
Luiz Weis: Eu estou falando das universidades públicas...
Carlos Guilherme Mota: Nas universidades públicas, eu mantenho. Tenho dúvida sobre a eleição para certos postos menores. Para reitor, acho que em uma universidade do tipo verticalista, como é a nossa, o reitor precisa ter uma larga cobertura da universidade.
Luiz Weis: Nas universidades do exterior onde o senhor estudou, o reitor é eleito?
Carlos Guilherme Mota: Que eu me lembre, não. Acho que poderia ser uma invenção... Mas quando houve participação para eleição direta neste estado, os nomes que apareciam nas listas sêxtuplas eram notáveis: William Saad Hossne, Aziz Ab'Saber e assim por diante. A comunidade sabe, os alunos sabem intuitivamente quem são as grandes figuras. Acho que esse modelo que aí está quebrou a espinha da universidade brasileira.
Paulo Markun: O estudante está preparado para votar?
Carlos Guilherme Mota: Eu acho que esse tipo de questão, Markun, desqualifica a questão do voto como um todo. Todos estamos preparados para escolher, para discutir. O que nós ouvimos quando a prefeita de São Paulo escolhida foi a Luiza Erundina [prefeita do município de São Paulo entre 1989 e 1993, eleita pelo Partido dos Trabalhadores], que é mulher, nordestina etc? Estávamos preparados para termos uma Luiza Erundina? Podemos inverter essa questão, ela precisa ser repensada. Eu me lembro que eu estava na USP dando aula à noite e chegaram alguns alunos com livros sobre a Revolução Francesa. De repente, os alunos tinham lido e eu falei: “Mas isso não chegou na biblioteca ainda!”. E eles: “Mas chegou na biblioteca do meu bairro, lá na Vila Jardim Pirajuçara". Eu ficava perplexo. Então, quando a gestão é boa, eles sabem. E quando é má, também sabem. Veja a situação que nós estamos vivendo... Nós estamos em um momento de resistência ao Pitta [(1946-2009) Celso Pitta, prefeito da cidade de São Paulo entre 1997 e 2000, quando teve seu mandato cassado pela Justiça por acusações de corrupção], a esses vereadores. Não estamos discutindo aqui sobre essas universidades que eu andei freqüentando, nós estamos em São Paulo, em busca de outras formas de combate.
Fábio Magalhães: Como você o papel do historiador nisso hoje? Na conjuntura contemporânea, que papel você daria ao historiador, não apenas na sua reflexão científica, mas na própria militância do historiador em relação...
Paulo Markun: [interrompendo] Eu só queria acrescentar um outro dado, pois nosso debate ficou um pouco do lado de quem pensa a história. Sérgio Lima, de Salvador, faz uma questão que é linkada com essa e fecha o nosso programa, pois estamos chegando ao final: por que estudar e entender a história?
Carlos Guilherme Mota: Em primeiro lugar, a figura do historiador hoje está dessacralizada. Todos nós temos história, algum tipo de percepção, algum tipo de escuta. Precisamente em Salvador, eu e minha companheira e mulher, Adriana Lopes, debatemos nossos livros com professores do primeiro e do segundo grau. Pelo meio, havia alguns setores de...e também rastafáris. E eu falei: "De que história eu venho falar?". E percebi que havia inúmeras coisas a dizer e também a ouvir. Quer dizer, essa é a mudança. A imagem do historiador, assim como a do professor da USP, da Unicamp, da Unesp ou do Mackenzie, está sendo dessacralizada. Então, todos nós temos história. O papel do historiador hoje, respondendo mais diretamente às duas questões, é de buscar historicidade ou as historicidades. Esse é um conceito do nosso tempo, das nossas vivências. Eu estou evocando as formações de alguns médicos, advogados, engenheiros de outras épocas. Eles tinham uma formação histórica. Eu me lembro daqueles médicos de família que tinham uma percepção, tinham formação, sempre vinham me perguntar... O Prestes Maia [(1896-1965) engenheiro, e político brasileiro, considerado um importante urbanista em São Paulo] sabia muito de história. Eu acho que é um problema da formação. Eu estou falando das grandes figuras, mas também daquele professor de história que dá aula às sextas-feiras à noite nos colégios, ele tem um conceito de história, tem uma escuta também. Essa é a novidade para o próximo século. Não vamos ficar nos próximos programas lembrando do Joaquim Nabuco - vamos recolocá-lo na perspectiva - mas perceber que os sentidos e os usos da história são muito mais amplos. Quem sabe possamos entender melhor os temas de Gilberto Freyre? Todos eles estão em pauta, como a nova história, a velha história, a história da sexualidade, das minorias, Gilberto Freyre já contou todas. Ou Anísio Teixeira com as suas concepções, ou a história de um Raimundo Faoro, na sua distante Vacaria [cidade do estado do Rio Grande do Sul], na sua infância, nas violências rurais a que ele assistiu e o quanto isso marcou seu imaginário. Eu acho que é por aí. Então, há uma dessacralização. Essa talvez seja a possibilidade de se reconstituir ou, como diria Anísio Teixeira, se reconstruir a história.
Paulo Markun: Professor Carlos Guilherme Mota, muito obrigado pela sua entrevista, muito obrigado aos nossos entrevistadores e a você que está em casa. O Roda Viva volta na próxima segunda-feira, sempre às dez e meia da noite. Boa noite, boa semana e até lá!