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[programa ao vivo]
Paulo Markun: Boa noite. Ele mora em Londres, faz dezenas de concertos mundo afora por ano, mas fala português perfeitamente, e não por acaso. No centro do Roda Viva esta noite, o pianista carioca Arnaldo Cohen.
[inserção de vídeo]
[Narração]: Consagrar-se primeiro na Europa e depois no resto do mundo já é rotina entre os pianistas brasileiros. O carioca Arnaldo Cohen, que chegou a estudar engenharia, também percorreu o mesmo caminho. Em 1972 ele se tornou artista de renome internacional ao vencer, na Itália, o Concurso Internacional Busoni de Piano. De lá para cá, o pianista brasileiro ultrapassou a impressionante marca de duas mil apresentações pelo mundo todo, acompanhado pelas melhores orquestras e regentes. Desde 1980 ele mora na Inglaterra, onde é professor do Royal Northern College of Music, em Manchester. Arnaldo Cohen também ganhou aplausos de público e crítica com gravações premiadas e elogiadas pelas publicações mais respeitadas do mercado fonográfico de música clássica. Este ano ele começou a realizar um sonho antigo: registrar em disco várias composições de autores brasileiros, alguns injustamente esquecidos e outros até desconhecidos, mesmo do público mais bem informado. Uma série de quatro CDs vai dar vida a esse projeto. Entre as peças que devem surpreender os apreciadores da boa música está “Prelúdio”, de Eduardo Dutra, que o pianista apresentou recentemente no programa Metrópolis da TV Cultura. Para Cohen, a beleza e elegância desta peça explicam em boa parte por que o cantor e pianista Dick Farney [1921-1987] sempre foi tão respeitado. Eduardo Dutra, o autor de “Prelúdio”, era pai dele. Boas surpresas como essa fazem parte do ofício de divulgar música. O próprio Cohen reconhece que compartilhar essas descobertas com o público ouvinte só faz renovar a emoção e o prazer de fazer música.
Paulo Markun: Para entrevistar o pianista Arnaldo Cohen, nós convidamos o crítico de música Irineu Franco Perpétuo, do jornal Folha de S.Paulo; o editorialista José Nêumanne, do Jornal da Tarde; o crítico de música João Marcos Coelho, do Caderno2 do jornal O Estado de S. Paulo e colaborador da revista Bravo; o maestro Júlio Medaglia, da Rádio Cultura AM, da Fundação Padre Anchieta, e diretor artístico do Teatro Municipal de São Paulo; o articulista Arthur Nestrovski, do jornal Folha de S.Paulo e professor de pós-graduação na PUC de São Paulo; a empresária Sabine Lovatelli, presidente do Mozarteum Brasileiro, Associação Cultural; e Nelson Kunze, diretor e editor da revista Concerto. O Roda Viva, você sabe, é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília. Boa noite, Arnaldo.
Arnaldo Cohen: Boa noite.
Paulo Markun: Neste exato momento em que nós estamos fazendo aqui o Roda Viva, com certeza o meu filho que tem 14 anos está ligado na internet, fazendo a mesma coisa que milhares e milhares de jovens no mundo todo fazem: baixando música pela chamada MP3. É curioso, porque isso faz com que essa garotada muitas vezes ouça músicas que não são da época deles. Ele, por exemplo, e os amigos adoram o rock dos anos 50, mas eu não tenho notícia de que entre essa garotada circule a música clássica. Como no último Roda Viva de que você participou, há seis anos [ver: http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/233/entrevistados/arnaldo_cohen_1994.htm], uma das questões discutidas foi justamente essa questão de como divulgar mais a música clássica, e você insistiu muito na tese já consagrada de que é importante que as pessoas se aproximem disso, eu queria saber se você considera esse caminho da popularização via internet um caminho viável para que as novas gerações se aproximem desse tipo de música.
Arnaldo Cohen: Eu não diria que é só viável, mas eu diria até que é o único caminho. Acho também que a presença hoje em dia da internet na vida de todos nós, da juventude, essa MP3, que está gerando grande discussão sobre o problema de direitos autorais, enfim, se você deve ou não [fazer] o download, pegar um disco ou uma música sem pagar direitos autorais, no caso da música clássica eu acredito que as próprias companhias de gravação – eu acho que estão fadadas a um fim, acho que elas estão agonizando –, eu tenho a impressão, a minha aposta seria exatamente na internet. Em um futuro próximo, eu acho que qualquer pessoa vai poder entrar na internet e pegar uma sinfonia de Beethoven [Ludwig van Beethoven] gratuitamente. Eu acho que o formato, eu diria, da venda do produto música clássica, dentro de muito pouco tempo, acho que vai se transformar.
Paulo Markun: Melhora a coisa?
Arnaldo Cohen: Eu tenho a impressão de que vai melhorar, exatamente porque o fato de você dar acesso gratuito... eu sou pelo acesso gratuito, e está provado mesmo pela MP3 que as músicas que são oferecidas gratuitamente vendem mais, porque de uma certa maneira a internet é um ponto de publicidade muito forte para essas músicas. Se você coloca uma música, o sujeito compra o disco inteiro.
José Nêumanne: Hoje eu passei o dia ouvindo o seu disco tocando [Franz] Liszt [(1811-1886) compositor teuto-húngaro], que eu...
Arnaldo Cohen: Coitado [ri].
José Nêumanne: ...recebi aqui da produção do programa, e evidentemente o meu dia melhorou muito. Dizem que o Liszt foi um grande relações públicas, um grande marqueteiro no seu tempo, que se vendia magnificamente. Você até contou que o Liszt mandava flores para ele mesmo. Que tipo de marketing nós estamos precisando hoje para tirar a música clássica desse limbo, digamos assim?
Arnaldo Cohen: Eu acho que, na realidade, não é marketing. Marketing às vezes para mim tem uma conotação... pode ter uma conotação negativa no sentido de você "vender gato por lebre", entende? Você quer fazer as pessoas comprarem um cigarro X, você coloca uma mulher bonita perto de um iate, o que induz uma pessoa a fazer isso. Eu diria que não é o marketing que eu acho necessário, eu acho que é uma atitude, que é totalmente diferente, é uma atitude genuína, uma atitude que não seja demagógica. Eu acho que o artista clássico não é diferente do artista popular, [mas] a linguagem dele é diferente, nós somos seres humanos, de carne e osso; as pessoas às vezes vêem os artistas como se eles estivessem em um altar, como se nós fôssemos diferentes, completamente diferentes do pessoal popular. Eu já tenho tido ultimamente aqui no Brasil, e curiosamente em uma cidade como Santo André, aqui no ABC, um público nos meus concertos, uma garotada de 15, 16 anos que, depois do concerto, eu fico duas horas tirando fotografia com os meninos, como se fosse um artista pop em que você tem um canal de abertura, de comunicação com eles, e eu acho que isso está faltando. Está faltando uma quebra dessa pseudo-reverência que existe, e eu acho que não é uma questão de marketing, é uma questão de atitude.
Irineu Franco Perpétuo: Arnaldo, quando você veio aqui no Roda Viva da outra vez, há seis anos, você ainda estava naquela militância quase xiita contra o disco, soltava diatribes contra a indústria fonográfica, e é no mínimo irônico que, no momento em que a gente diagnostica toda uma crise do mercado fonográfico dos clássicos, anterior à explosão do MP3 na internet, você esteja deslanchando a sua carreira de disco. O que é que aconteceu, você passou a gostar do disco, achou que gravar é legal?
Arnaldo Cohen: Vai ver que é por isso que eu estou deslanchando, não é? Vai ver que é por isso que eu escolhi gravar, porque sei que não vai haver mais [...] de gravação. Mas, na realidade, o tempo passa, e eu não sei, o processo que cada um desenvolve dentro de si com o tempo... eu tenho 52 anos, aquela coisa de não se levar a sério, seriamente falando, eu diria que eu acho que o ser humano tem uma capacidade de teorizar sobre as suas verdadeiras vontades. Ou seja, primeiro você escolhe do que você gosta, do que você não gosta, elege a sua vontade e, depois, você cria uma teoria para justificar aquilo que você quer ou não quer. Eu confesso que eu fiz muito isso, e hoje em dia tenho mais consciência. Acho que, para mim, o microfone... eu tinha uma certa coisa que eu herdei, curiosamente, do [compositor e pianista brasileiro] Jacques Klein [1930-1982], que foi meu professor, que odiava microfones, quase como se o microfone, para mim, representasse a gravação só das coisas ruins e não das coisas boas. Tem um pouco aquela coisa do dedo, da severidade que, evidentemente, estava dentro de mim, porque eu sempre fui muito severo comigo mesmo. Eu ainda sou severo, mas o conceito também da gravação, eu descobri, enfim, através dessas minhas procuras para justificar o que eu não queria, comecei a entender um pouco mais. Agora, ao mesmo tempo, eu não concordo com você no sentido de dizer que eu... por exemplo, eu não diria que hoje em dia eu gosto de gravar, hoje em dia eu gravo, tenho dificuldades de gravar, mas gravo. Antes eu não gostava e não gravava, mas agora também não vai haver muito problema, porque as companhias estão acabando [ri].
Nelson Kunze: Nós estamos falando de gravação de CDs, estamos falando da internet, mas tem o intérprete nisso fazendo a música no teatro, nas salas de concertos. Você não acha que também essa relação desse concerto deveria mudar para a gente ter as salas de concertos mais cheias, ou para o artista poder divulgar mais a música erudita? Como você vê isso no futuro?
Arnaldo Cohen: Eu acho que você tem toda razão. Contrariamente ao que o pianista canadense Glenn Gould [1932-1982] dizia – ele dizia que o concertismo estava fadado ao fim –, eu acho que até mesmo porque ele morria de nervoso e tinha pavor de tocar em público, o caso dele é exatamente contrário do meu, e ele escolheu a gravação dizendo exatamente que a gravação era o futuro. Eu acho que você tem toda razão; eu acho que o futuro será o concerto. A partir daquilo que eu disse ao Nêumanne, eu acho que, particularmente, existem duas coisas: a minha posição em relação a isso, pessoal, que eu confesso a você que, nos últimos dez anos, a minha subida, em termos de público neste país, foi terrível, e eu fiquei...
[...]: Por quê, Arnaldo?
Arnaldo Cohen: Terrível no sentido de negativo, e eu me perguntei por quê. Não sei, até um determinado momento; eu acho que talvez uma certa exposição na mídia, talvez em termos de televisão – eu gosto de televisão –; talvez o fato de escrever e o fato talvez de eu não ser um pianista com formação ortodoxa, aquele que desde os seis anos de idade foi, enfim, preparado para ser pianista; tenho muitos interesses na vida e, às vezes, até acho que o fato de eu estudar piano, ter que ficar cinco, seis horas no piano é uma coisa que às vezes me chateia, porque o estudo do piano às vezes pode ser exclusivamente atlético, mas é como um jogador de futebol: se ele não tiver a parte física resolvida, ele vai correr [apenas] 15 minutos.
João Marcos Coelho: Mas será que não é porque você é um pianista que pensa, que acaba incomodando alguns esquemas estabelecidos como, por exemplo, a discussão que você colocou em tempos atrás, escrevendo sobre a perversidade dos mecanismos de incentivo à cultura? Quando há renúncia fiscal, esse dinheiro que é aplicado em cultura seria imposto, e depois se cobram 200, 250 reais de ingresso. Você colocou isso de uma maneira bem clara e isso começou a trazer alguns dos problemas que você está... [refere-se ao artigo “Preços desafinados”: http://www.arnaldocohen.com/articles/index.php?article=16]
Irineu Franco Perpétuo: Complementando a sua pergunta, João Marcos, porque aquilo deu muita polêmica e já vieram até me perguntar se você tinha pessoalmente alguma coisa contra a Sociedade de Cultura Artística [em São Paulo], por exemplo.
Arnaldo Cohen: Não, absolutamente nada; se alguém tem alguma coisa contra isso, age contra mim, porque eu não toco para a Sociedade de Cultura Artística desde os anos 80, então... mas eu não tenho problema nenhum com isso, do fato de eu não tocar para eles, eu acho que isso aqui é uma... Mas isso não é problema nenhum, eu os respeito, eu acho que é uma sociedade que traz ótimos artistas, eu os respeito profundamente. O problema, absolutamente, nunca foi diretamente contra a Sociedade de Cultura Artística, muito pelo contrário, e outra coisa, o fato de eu não tocar para uma determinada sociedade não quer dizer que... de repente eles até tenham razão de não me convidar, não tem problema. Com essa matéria que gerou muita polêmica, eu quis dizer simplesmente uma coisa, eu quis defender... eu, quando escrevo, pelo menos eu tento defender o público, porque como artista, do meu lado, eu acho que sem o público nós não existimos. Nós vivemos em um país com um incentivo fiscal, que para mim significa dinheiro público, significa dinheiro de impostos neste país, e eu acho que a classe média é a que mais paga impostos no país, e eu acho injusto que essa mesma classe média que já paga impostos, e esse imposto deve ser traduzido em beneficio a essa mesma sociedade, ela ainda tem que pagar mais e beneficiar certamente as pessoas, eu acho, de uma classe financeiramente mais abastada. Agora, acho também que, tratando-se de dinheiro público, dinheiro de impostos, acho que a prestação de contas deve ser clara e limpa, e o meu ponto é defender exatamente essa transparência, por razões óbvias. E, muitas vezes, eu não sei se as pessoas não querem, talvez até, não por desonestidade, mas porque as pessoas se sentem donas, como se fossem proprietárias, como se esse dinheiro fosse um dinheiro arrecadado, como dizem os ingleses, “the own right”.
João Marcos Coelho: Ao seu ver, esse mecanismo é o mecanismo mais adequado para [...] música clássica?
Arnaldo Cohen: Eu não diria que seria... talvez seja um pouco como democracia, que é [um regime] muito complicado, mas talvez seja o melhor que encontraram até hoje. Talvez não seja muito bom, mas não tem outro melhor, e eu acredito que até hoje o incentivo fiscal é certamente o que dá mais possibilidade ao desenvolvimento da cultura e das artes no país.
Nelson Kunze: O problema acabou sendo que você atacou uma das poucas iniciativas realmente profissionais na área de música erudita, quer dizer, a gente tem uma série de tentativas de se fazer música, do poder público, absolutamente fracassadas, e a gente tem alguns modelos que talvez não sejam os melhores, mas que funcionam e que são profissionais, que são paradigmáticos mesmo na esfera da música clássica. Eu acho que houve um pouco de reação a isso.
Arnaldo Cohen: Eu não quero esquecer de uma coisa que você disse. Eu acho que se o meu ataque foi a uma sociedade que é respeitada, se ela foi atacada porque ela não é límpida e clara na prestação de contas dela, ela não é respeitada, ela não deve ser respeitada. Eu acho que uma cultura, só porque você faz boa música ou traz bons artistas, não é suficiente; acho que a condição necessária, mas não suficiente para ser respeitada... eu acho que ela é respeitada, eu acredito que a clareza é fundamental, especialmente se ela quiser ser respeitada. O meu ponto é só isso, eu não ataquei a parte musical, [não disse que] os artistas não são bons. Eu falei simplesmente sobre o problema do incentivo fiscal, que é coisa pública, e isso é sério.
Arthur Nestrovski: Esse é um assunto que já saiu da pauta, mas eu não quero deixar de fazer uma pergunta, depois eu mesmo vou voltar a esse assunto que você estava falando agora. Há alguns anos aqui, nós falamos em Glenn Gould, mas falamos também de um outro pianista que eu sei que era da sua predileção, como da minha, que era o pianista italiano Arturo Benedetti Michelangeli [1920-1995], e você contou aqui uma história engraçada, que perguntaram ao Benedetti Michelangeli quem eram os pianistas favoritos dele e ele disse: “Sono tutti morti” – estão todos mortos [risos]. Eu não vou botar você em uma situação constrangedora de perguntar quem são seus pianistas prediletos...
Paulo Markun: Que, aliás, já perguntara no Roda Viva anterior e ele saiu...
Arthur Nestrovski: Sono tutti stranieri [São todos estrangeiros].
Paulo Markun: Ele só citou os mortos [risos].
Arnaldo Cohen: Não, o meu pianista preferido, hoje em dia, por coincidência, os dois estão mortos [risos], mas seria uma espécie de um híbrido entre o Michelangeli e o [ucraniano Vladimir] Horowitz [1903-1989]. Acho que os dois representam dentro da música duas correntes totalmente diferentes, uma é a emoção pura e o outro é a estética. Eu acho que não existe nada melhor...
Irineu Franco Perpétuo: [interrompendo] Você tem algum brasileiro, Arnaldo?
Arnaldo Cohen: Algum brasileiro?
Irineu Franco Perpétuo: Ou brasileira?
Arnaldo Cohen: Mortos? [risos] Eu diria Guiomar Novaes; acho que foi a nossa maior pianista brasileira, sem dúvida nenhuma, mas não foi absolutamente a minha pianista favorita, o que não quer dizer que ela não tenha sido uma grande pianista. Foi uma grande pianista, sem dúvida, e eu acho que o maior nome do piano do nosso país.
João Marcos Coelho: Qual foi a maior lição que o [Jacques] Klein lhe passou?
Arnaldo Cohen: Na realidade, a lição que o Klein me passou foi uma atitude em relação à música que eu carrego até hoje, que é o amor à música; não é aquela coisa... existem vários tipos de amor, tem muita gente que tem um amor burocrático. Acho que tudo mundo ama a música, o amor burocrático, o amor acadêmico, o amor de respeito pelo que o compositor escreveu, o amor, enfim, é um tipo de amor de alegria. Eu acho que música é uma coisa boa, a música – continuando aquela sua primeira pergunta –, eu acho que a música, no momento em que o público percebe que música pode tornar a sua vida melhor, a música pode fazer com que ele entre em contato... a música é uma ótima ponte para as pessoas entrarem em contato com elas mesmas, e o que eu acho que falta muito, hoje em dia... na música popular você tem exatamente o contrário, a música faz você esquecer que você existe e te anestesia para que você não corra o risco de se descobrir.
José Nêumanne: Qual é a sua opinião sobre essas tentativas, que têm sido muito freqüentes, de ultrapassagem, assim, desse fosso entre o erudito e o popular? Cito aqui aquele projeto em que, inclusive, o Júlio tocou muito no programa dele, o projeto Lambarena, em que o pessoal lá da África fez [Johann Sebastian] Bach [(1685-1750) organista e prolífico compositor alemão]... Aqui no Brasil, o [músico] Henrique Cazes [1959-] fez um disco em que ele tocava Bach com chorinho...
Arnaldo Cohen: Ótimo disco.
José Nêumanne: O Júlio mesmo vai levar agora ao Teatro Municipal o [compositor e flautista brasileiro] Altamiro Carrilho [1924-] tocando um concerto de [Wolfgang Amadeus] Mozart [(1756-1791) compositor austríaco] na flauta. Como você vê isso? Isso seria um tipo de gênero, uma coisa que revigora os dois lados, como é isso?
Arnaldo Cohen: Eu acho muito importante que isso seja feito, até mesmo porque a música clássica é uma linguagem que, dependendo do que você toca para o público... por exemplo, se você tocar uma obra do [compositor alemão de música contemporânea Karlheinz] Stockhausen [1928-2007], que é uma música moderna, ninguém vai entender, mesmo até determinadas obras dentro de um período clássico ou romântico, o público que não tem o hábito vai ter dificuldade. Então, eu acho que é como uma escola, eu acho que isso pode funcionar como um jardim-de-infância, um primário para que as pessoas...
José Nêumanne: Aproximar as pessoas.
Arnaldo Cohen: ...se aproximem, entende? É como os espetáculos nos parques, em que você toca o chamado semipop, ou aquele tipo de programa que se faz em Viena no dia 31 de dezembro, que são valsas de [Johann] Strauss [(1825-1899) compositor austríaco], enfim, é uma festa.
José Nêumanne: Nesse mesmo nível, você coloca, por exemplo, [a cantora soprano inglesa] Sarah Brightman [1960-] e esse sérvio-italiano, [o tenor Andrea] Bocelli [1958-], pessoas que estão ali entre o canto lírico...
Arnaldo Cohen: Eu não diria que eu colocaria, talvez eu pudesse colocar o repertório. Eu não os colocaria, porque eu acho que é um outro tipo de coisa; acho que até uma das grandes razões do sucesso deles é exatamente o repertório e a exploração do repertório. Agora, tem que se ter muito cuidado do porquê se faz isso, qual é a intenção, se a intenção é puramente artística, ou se ela é puramente pedagógica, ou se ela é comercial, enfim, depende... acho que depende da razão pela qual você está fazendo aquilo.
Irineu Franco Perpétuo: Arnaldo, você faria um disco crossover [com estilos musicais misturados] como o do [maestro argentino Daniel] Barenboim [1942-], de repente, já indo por essa linha?
Arnaldo Cohen: Não, eu não faria, não faria; talvez eu possa fazer um dia, mas não me cobrem. Daqui a seis anos... [risos].
Sabine Lovatelli: Mas aqui [no Brasil] a música não faz ainda parte do ensino básico.
Arnaldo Cohen: Exatamente.
Sabine Lovatelli: Então, aqui nós temos um grande leque antes que a criança pode começar a entender...
Arnaldo Cohen: Exatamente...
Sabine Lovatelli: ...também para depois se formar. Para um músico brasileiro [formar-se], é muito difícil, é muito custoso, eu acho. Esse investimento tem um retorno aqui no Brasil?
Arnaldo Cohen: Eu acho que tem. Eu não acredito que é só você levar... eu acho que o processo não seria tão simples como, de repente, você iniciar aulas de música, por exemplo, no colégio, na escola primária, no primeiro grau. Eu acho que são muitas coisas. Você tem que aliar uma coisa com a possibilidade... porque você aprende música, tudo bem, você aprende música, mas aprender música não significa nada, o que interessa é o contato com a música. Existe essa interação entre o ouvinte e o performer, isso que é preciso. O aprender música pode ser um acompanhamento disso, uma coisa pode ajudar a outra. Eu acho que o fato de você levar [música] a escolas, a concertos, eu acho que a confecção de concertos didáticos, naqueles velhos estilos do [...] style, como se fazia no Rio de Janeiro, no Teatro Municipal... Eu, aos 14 anos de idade, toquei com uma orquestra, a Orquestra de Música Brasileira, aos 14 anos de idade, no Municipal, às dez horas da manhã, [e estava] lotado, eu me lembro, foi a primeira vez que eu toquei com uma orquestra, enfim, [havia] garotada. Existia um movimento talvez muito mais favorável a essa interação, e hoje em dia, a cada dia está mais difícil.
Júlio Medaglia: Coincidência ou não, mas no tempo em que havia ensino musical nas escolas, em que Villa-Lobos praticamente diminuiu a intensidade da carreira internacional dele para se dedicar ao projeto, o canto orfeônico, como ele chamou, e havia ensino musical nas escolas... Foi implantado primeiro aqui em São Paulo, no estado de São Paulo, e depois através de Anísio Teixeira foi levado ao currículo nacional. Nesse período havia, inclusive, nos veículos de comunicação uma música de grande qualidade, nas rádios tinha orquestras, músicos como Altamiro Carrilho, Pixinguinha, Guilhermano Reis, grandes artistas que estão no nível de vocês, instrumentistas clássicos, esse pessoal estava na cultura popular, quer dizer, era uma coisa que já aconteceu neste Brasil e que hoje em dia parece uma coisa absolutamente inacreditável, inimaginável e tão distante...
Arnaldo Cohen: Eu não entendo por que... eu acho que o quê mudou muito no país foi o seguinte, foi a forma da administração cultural. Hoje em dia, a administração cultural do país, desde o Ministério da Cultura aos governos estaduais, municipais, cada dia mais, eu não digo só do Brasil, mas no mundo, cada vez mais o governo, cada vez mais o Estado participa menos desse processo. No nosso país, o que está acontecendo? Os incentivos fiscais de que nós estávamos conversando, e eu acho que foi dada e está sendo dada à iniciativa privada o ônus do nosso desenvolvimento cultural, e eu acho que seria muito importante que houvesse regras, isso ainda por conta daquela história do artigo que eu fiz. Eu não sou contra, eu acho que nós precisamos construir regras.
Júlio Medaglia: Mas isso aconteceu nos Estados Unidos no início do século. Esses incentivos fiscais eram grandes, não tão generosos como os brasileiros – aqui o sujeito investe e desconta 100% do imposto de renda. Naquele tempo, no início do século, nos Estados Unidos, era bastante grande esse incentivo fiscal, e com o passar do tempo o norte-americano começou a descobrir a importância desse retorno institucional que essa verba trazia para a imagem da empresa dele e, com o tempo, foi diminuindo. E hoje em dia, até sem incentivo fiscal, o empresário americano se relaciona com a sociedade imediatamente, e financiando projetos culturais, educativos etc.
Arnaldo Cohen: Mas eu acho bom que a gente tenha começado. Se durar cem anos, eu já acho que nós estamos no lucro [risos].
Júlio Medaglia: Talvez, talvez.
José Nêumanne: O senhor acha que houve uma involução? Porque, aqui, Villa-Lobos conseguiu o projeto do canto orfeônico e, de repente, esse projeto foi assassinado e não se ensina mais música na escola. Como diz o Júlio, a música popular brasileira vive em franca decadência em termos de qualidade, e eu diria que, pela música... se fala muito que a música popular brasileira é a melhor do mundo, mas, pelo que se ouve normalmente no rádio, deve estar entre as piores, se não for a pior, não é? Qual é a causa dessa involução?
Arnaldo Cohen: Bom, eu diria o seguinte: eu posso criar uma teoria, aliás, outro dia no avião, que é onde eu passo horas e horas sem ter o que fazer, e leio e depois começo a pensar... eu acredito...
Júlio Medaglia: Mas [...] estava em um piano de madeira, não é?
Arnaldo Cohen: Mas é muito pesado, muito complicado. A sua pergunta é muito interessante no sentido de que, curiosamente, se você perceber o que tem acontecido na história da música, na história dos intérpretes, o que aconteceu até mesmo na história da música, os períodos em que houve opressão, seja religiosa, social, política, foram os períodos em que as artes se desenvolveram e floresceram mais: no século XVII, século XVIII, em que houve os castrati [cantores com timbre de voz especial adquirido através da castração na infância]; no século XIX, a ópera, a ópera italiana, a ópera alemã no século XVIII. Bom, neste século nós temos exemplos vivos perto de nós, que são dentro da música popular, a época da revolução dos anos 60, ou seja, a música brasileira, Chico Buarque, todo aquele... Geraldo Vandré, toda aquela coisa da bossa nova, como é que nasceu... a música do protesto. Você vê, por exemplo, neste século, na União Soviética, devido àquele sistema fechado, foi quando você teve a época áurea do balé, dos pianistas. Não interessa, eu não estou fazendo apologia da opressão, é uma coisa muito curiosa.
Irineu Franco Perpétuo: Você não acha que está faltando um garrote para a gente, não?
Arnaldo Cohen: Não, eu acabei de dizer que não, acabei de dizer que não penso... nós estamos pensando em determinadas coisas que têm muito a ver com o que nós estamos falando antes sobre a função da música. O que sempre aconteceu... de que maneira a música, a arte, ou seja, de que maneira a cultura se manifestava dentro dessa repressão? Ou seja, o músico popular escrevia uma música com uma letra em que ele tentava passar pelo censor e tentava fazer... ou seja, criatividade. O russo talvez estudasse piano loucamente para poder ganhar um concurso internacional para ser mandado para fora e voltar e comprar um videocassete, um par de jeans e um pote de nescafé [café solúvel da Nestlé].
[...]: Ou então para se exilar.
Arnaldo Cohen: Ou então para fugir e nunca mais voltar. Então, nesse processo todo, as moças que liam os seus livros de história e que se projetavam dentro daquilo, ou seja, todas as pessoas, tanto as que cantavam, que participavam, como as que construíam e que criavam, tinham uma razão pessoal e se colocavam dentro daquele processo. Hoje em dia, a sensação que eu tenho é que ninguém precisa da arte ou da música para reclamar, para pedir, ou seja, não existe opressão, e a arte sempre foi usada muito como um meio, uma ponte...
[...]: De liberdade.
Arnaldo Cohen: ...para conseguir a sua liberdade, para entrar em contato com as suas próprias... Por exemplo, a ópera italiana do século XIX, eu diria que seria o programa [humorístico] Sai de Baixo [exibido pela TV Globo entre 1996 e 2002] da época, enfim, aquela coisa da traição, do sexo, enfim, histórias em que as pessoas iam ao teatro-revista [espetáculo teatral com números falados, musicais e coreográficos, humorismo, atrações circenses], a realidade do século XIX. Elas se identificavam. E esse processo de identificação, você pode perceber que as pessoas que gostam de concertos de música clássica são pessoas que, eu acredito, a música faz com que elas procurem dentro delas histórias, lembranças emocionais, sensações, emoções, a música – como eu tinha tido antes –, eu acho que ela é uma ponte para você ter contato com você mesmo.
Sabine Lovatelli: Eu acho que isso existe hoje também. Nós estamos no século da globalização, eu acho que todo mundo está se perdendo, tudo está ficando mais abstrato e estamos soltos assim, e eu acho que a música vai servir, ou a arte vai servir para a gente se identificar e achar a nossa base.
Arnaldo Cohen: Eu acredito... eu tenho um lado engenheiro, que eu acredito muito na forma cíclica. Eu acho que o círculo está presente em tudo, e eu tenho muita esperança de que as coisas funcionem dessa maneira e nós possamos voltar.
Paulo Markun: Arnaldo, uma coisa que você diz, e que foi dito também no outro Roda Viva, é que tem muito espectador que aplaude no fim de um movimento. Nós terminamos um movimento, ninguém precisa aplaudir, mas nós vamos para um intervalo e voltamos daqui a instantes.
Arnaldo Cohen: Depois eu vou lhe contar uma história sobre isso.
Paulo Markun: Está bom.
[intervalo]
Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o pianista Arnaldo Cohen. Você ficou devendo a história do aplauso.
Arnaldo Cohen: Do aplauso. Essa história de que “não, a platéia é mal educada, ninguém deve aplaudir, tocar celular”, não é? [O compositor alemão Johannes] Brahms [1833-1897], na estréia do primeiro concerto para piano e orquestra dele, quando ele tinha 21 anos de idade e foi massacrado pela crítica, ele escreveu de volta para um dos gurus que o ajudaram a compor esse concerto, que era o [húngaro Joseph] Joachim [1831-1907], que era um violinista e compositor, regente também, e ele escreveu para o Joachim o seguinte: “Olha, a estréia do meu primeiro concerto foi um fracasso total. No intervalo, ninguém bateu palma” [risos].
José Nêumanne: Mas a verdade é que é melhor ser aplaudido entre um movimento e outro do que ser vaiado no fim da sinfonia, não é?
Arnaldo Cohen: É, o silêncio, o silêncio...
José Nêumanne: O silêncio é pior ainda.
Arnaldo Cohen: Exatamente, eu acho que essas coisas fazem parte, é a moda, como na interpretação é a moda, são rápidos, entende? É a minissaia, é o cabelo com um determinado tipo de penteado. No século XIX, os programas que se faziam eram verdadeiros happy hours, eram Jam sessions, entrava um cantor, depois entrava um quarteto de cordas, entrava uma orquestra que tocava um primeiro movimento e entrava o violinista, sabe? Hoje a imprensa, certamente, os eruditos iam comparar [isso] ao programa do Chacrinha [(1917-1988) José Abelardo Barbosa de Medeiros, apresentador popular cujos programas foram ao ar pelas TVs Tupi, Globo e Bandeirantes], ao programa de calouros, não é? E era assim.
Júlio Medaglia: Arnaldo, voltando um pouco ao pianismo, já que você foi acusado como um pianista que pensa...
Arnaldo Cohen: Ninguém é perfeito [risos].
Paulo Markun: De duas, uma: ou pensa ou toca piano.
Júlio Medaglia: O [compositor francês Claude-Achille] Debussy [1862-1918] teve uma professora de piano que estudou com Chopin [Frédéric Chopin], e essa professora dizia muito para Debussy que Chopin dizia a ela que o piano não é um instrumento de percussão, apesar de em alemão se chamar Hammerklavier, ou seja, teclado de martelo, não é? Eu queria que você falasse um pouco do seu raciocínio musical, do pianismo seu, porque eu acho que o seu piano chopiniano reflete esse conceito. Diante das obras dos diversos autores românticos, que são os autores da obra mais importante pianística, como você diferencia e como você poderia nos explicar o que seria esse piano não percussivo?
José Nêumanne: Deixe eu pegar uma caroninha aí. Eu fui assistir a um concerto do Arnaldo e, depois de um movimento de um concerto do Brahms, eu pensei: filho da mãe, ele faz o piano cantar.
Arnaldo Cohen: Eu sempre faço uma brincadeira, mas uma brincadeira muito séria, que é a seguinte: eu acho que o piano bem tocado é aquele que não soa como um piano, eu explico. Piano é um instrumento de percussão, ou seja, os martelos batem nos arames, que são aqueles araminhos que são as cordas. Muito bem, o grande piano é aquele que, na minha visão, em termos pianísticos, de instrumental, é uma visão muito mais sinfônica, talvez até mesmo pelo meu passado, que eu estudei violino.
Júlio Medaglia: Aliás, não foi dito aqui que o Cohen tocou violino em uma orquestra sinfônica no Rio de Janeiro, e ele é tão bom violinista quanto pianista.
Arnaldo Cohen: Não, não exagera.
Irineu Franco Perpétuo: [...] regente, não?
Arnaldo Cohen: Isso a gente responde depois [risos]. Então, música é música, e eu vou lhe dar um exemplo para vocês entenderem, talvez, o que eu quero dizer com instrumento cantante ou com a ilusão... eu me considero quase como se eu fosse um mágico com uma cartola de onde saem coelhos quando eu toco piano. Dependendo do que eu toco, eu penso e ouço com o tímpano [...] aquele agudo, aquele grave. Eu ouço uma flauta, eu ouço uma voz humana, eu ouço um violino...
Júlio Medaglia: Você orquestra o piano?
Arnaldo Cohen: Eu orquestro, é uma visão sinfônica, porque o piano é um instrumento sinfônico... a diferença do piano, o piano é auto-suficiente e a prova é... eu me desenvolvi muito nessa linha, minha visão musical, minha percepção musical sempre aconteceu nessa linha, e você veja que os compositores também, porque sonatas de piano, óperas de Beethoven... e eu vou lhe dar um exemplo: você [...] de Liszt. No final da famosa “Sonata em si menor” de Liszt – ou seja, qualquer pessoa que não toca piano, qualquer criança pode entender isso –, Liszt escreveu um acorde, e todo mundo sabe que o piano, quando você toca um acorde, qual é a curva do som? Vai decrescendo; não adianta, você não pode aumentar eletricamente ou o que for, a curva é descendente. Liszt escreveu um acorde com crescendo. Você vai dizer: bom, Liszt era um imbecil, não sabia o que era um piano? Por que Liszt escreveu um crescendo em um acorde no piano?
Júlio Medaglia: Sem tremolo, um acorde sem tremolo.
Arnaldo Cohen: Nada, um acorde com o crescendo, como é que você vai fazer um acorde...?
[...]: Como o [músico alemão Robert] Schumann [1810-1856].
Arnaldo Cohen: O Schumann, da mesma maneira. Isso prova uma única coisa, isso prova a intenção emocional em primeiro lugar. O compositor escrevia aquilo imaginando... eventualmente, até um violino, um acorde, e que [o compositor alemão Richard] Wagner [1813-1883] depois... essa seqüência, por exemplo, dessa sonata, Wagner aproveitou muito esse encadeamento que ele fez nas obras dele. E de que maneira Wagner fazia isso? Com o crescendo dos violinos em tremolo, ou seja, a visão para mim é muito mais... O grande problema em tocar piano...
Júlio Medaglia: O Chopin, você o vê orquestrado também? Porque o Beethoven, é fácil pensar em orquestra, não é?
Arnaldo Cohen: Chopin foi tudo para o piano; os noturnos de Chopin são verdadeiras árias de ópera, enfim, tem um instrumento, mas sempre o canto, a voz humana, você tem o violino, você tem tudo, Chopin não escreveu praticamente nada para outros instrumentos, mas ele concentrou tudo no piano. Então, eu acho que o grande barato de tocar piano é você procurar... e a grande dificuldade seria você passar de um ideal que você tem na sua cabeça, quando você lê uma partitura e você sabe o que você quer, o grande problema é você passar por aqui [gesticula, indicando um caminho da mente para os braços] e usar um instrumento extremamente, eu diria, imperfeito, pelas suas características. É um instrumento de percussão que você tem que fazer cantar e você tem que fazer, enfim...
Arthur Nestrovski: Eu queria voltar para um outro assunto. A gente falou de divulgação da música, aproximar a música clássica do público, e você tem um papel hoje importante, não só como pianista no Brasil, mas também como um comentador e divulgador, como escritor. Você escreve, não só como especialista, mas com fluência e gosto de escritor mesmo. Eu queria fazer duas perguntas, na realidade. Uma é mais genérica: que significado tem tido para você essa atividade de escritor, primeiro na revista Veja, agora na revista Época ? E, depois, enfim, um assunto das últimas semanas, muita boataria, farpas para lá e para cá, a sua saída da revista Veja, a entrada na Época, talvez agora fosse um bom momento de você explicar o que se passou.
Arnaldo Cohen: Tudo bem. Eu vou falar sobre isso. A primeira coisa que eu tenho a dizer é o seguinte: eu sou pianista, eu não sou jornalista.
José Nêumanne: Bom, não deixa de ser um tecladista.
Arnaldo Cohen: É, mas as minhas teclas são diferentes. Eu sou um colaborador e não um repórter que tem a sua carteira assinada, enfim, o meu intuito ao escrever é tentar sempre passar ao público um determinado tipo de informação, nós estamos falando de formação de platéia, nós estamos falando de crianças, nós estamos falando de desenvolvimento cultural, e eu acho que uma das minhas obrigações é tentar acabar exatamente com aquilo que você falou, esse muro. Uma vez eu fiz uma matéria sobre o Rigoletto [ópera do compositor italiano Giuseppe Verdi, com libreto de Francesco Maria Piave], e eu queria contar do que se tratava o Rigoletto, o libreto, qual era a história. E eu transformei o libreto e disse que a história do que acontece com o Rigoletto poderia ter acontecido na Baixada Fluminense. Mudei o nome dos personagens. O Duque de Mantova eu chamei de Dr. Gonzaga, como se fosse uma novela; o assassino, o Sparafucile, eu disse: bom, se alguém ler esse nome, vai virar a página. Aí fiz uma enquete com os meus filhos: qual seria o nome de um assassino? Aí venceu Beiçola [risos]. Então, o Beiçola foi o assassino do meu Rigoletto quando eu contei essa história [refere-se ao seu artigo “Corcunda sangue bom”: http://arnaldocohen.com/articles/index.php?article=22]. Então, eu tento sempre fazer uma coisa de maneira que o público possa ter esse tipo de informação gostosa etc.
Irineu Franco Perpétuo: Mas, Arnaldo, quando você fez aquele artigo que deu tanta polêmica, aquele tinha mais cara de reportagem de denúncia, não? Coisa de jornalista.
Arnaldo Cohen: É uma reportagem de denúncia... eu preciso dizer uma coisa, eu não escrevo de propósito, eu escrevo aquilo que eu acho correto, aquilo que eu acho necessário. Talvez esse artigo tenha sido, de todos, talvez esse tenha sido de denúncia, por quê? Porque eu estou no meio, eu conheço e eu acho que alguém que conhece, se pode, não só deve, mas tem obrigação, eu acho, de passar a informação aos leitores, à comunidade e à população, porque eu acho que a verdade deve ser estabelecida e não escondida. Bom, quanto à minha saída da Veja e à entrada na Época, eu preferia naturalmente tentar falar o menos possível sobre o assunto, porque eu acho que já saiu muita coisa, farpas, eu acho que não é o caso de... o que eu posso dizer é o seguinte: não sendo um repórter da revista, não tendo carteira assinada, eu saí da revista Veja porque eu me recuso, eu me recuso a assinar uma matéria que não tenha o conceito, a espinha dorsal e minhas idéias, por respeito ao público, por respeito a mim e por achar que se eu assinar alguma coisa que não é minha, isso equivaleria a eu assinar um cheque de uma conta que também não é minha. Eu saí, estou na Época, muito feliz, e eu colocaria o assunto como encerrado, de uma certa maneira, porque isso foi o que aconteceu, o resto...
José Nêumanne: Voltando ao piano, então me explique uma coisa: por que nós – o Brasil é um país estranho, tem muito jogador de bola e dois jogadores de tênis [...] –, por que é que nós temos tantos pianistas e nenhum dançarino? O Brasil é o país do negócio do negro, o jeito de corpo, e nós temos [o pianista] Nelson Freire [1944-], nós temos Arnaldo [...]...
[...]: O Grupo Corpo [companhia de dança contemporânea brasileira criada em Belo Horizonte em 1975].
Arnaldo Cohen: O Nelson Freire não é dançarino, é pianista; ah, você falou, desculpe...
José Nêumanne: ...Cristina Ortiz, Toninho Guedes Barbosa, e não temos nenhum dançarino com nome internacional equivalente a um desses pianistas, apesar do belo exemplo que ele citou do Grupo Corpo. Nem o [dançarino e coreógrafo] Rodrigo Pederneiras...
Arnaldo Cohen: É, nós tivemos a [bailarina e coreógrafa] Márcia Haydée [1937-], que foi um [...].
Paulo Markun: Tivemos boas, grandes bailarinas. Bailarinos, é mais difícil, mas aí tem toda a história...
Arnaldo Cohen: Vai ver que você gosta de balé [risos].
José Nêumanne: Adoro o [grupo] Corpo, por exemplo, mas nós não temos... quer dizer, nós temos uma grande tradição folclórica do jeito de corpo, o [músico] Caetano [Veloso] fala da malemolência mestiça, mas não temos dançarinos à altura.
Júlio Medaglia: Mas se você entra em qualquer casa, ele deve saber disso, em qualquer grande casa de dança ou de óperas [...], você encontra dançarinos brasileiros.
José Nêumanne: Você vai a uma gafieira e vê belíssimos dançarinos, mas não tem um grande dançarino como tem... Por que tem tanto pianista? O Brasil tem tanto pianista bom, piloto de Fórmula 1 e...
Arnaldo Cohen: Bom, eu posso responder pelo piano. O piano sempre foi um instrumento mais popular deste país. Você teve sempre... nós fomos o quintal cultural da França cultural durante muito tempo.
Júlio Medaglia: Fazia parte da educação.
Arnaldo Cohen: Fazia parte: tocar piano, costurar, enfim, aprender francês fazia parte do cotidiano das moças...
Júlio Medaglia: A [compositora e pianista brasileira] Chiquinha Gonzaga [1847-1935] não dava aula de piano e matemática, uma coisa assim?
Arnaldo Cohen: Exatamente. Eu fiz a mesma coisa. Então, eu acho que o piano se desenvolveu, acho também que existe uma coisa, que eu sinto, no nosso temperamento, no temperamento do brasileiro, ao contrário, por exemplo, do inglês, o país onde eu moro e que eu adoro, mas que tem a ver com a nossa história emocional, com o nosso passado. Eu vou dar um exemplo: eu não sei se vocês concordam ou não comigo. Se você tem uma forma de educação, um tipo de educação na sua infância, como na Inglaterra, muitas vezes, em que o menino é mandado para uma escola interna onde ele não pode rir, porque rir alto é feio; ele não pode falar isso, ele não pode fazer aquilo; o que acontece? Existe toda essa coisa de uma certa repressão na infância, e um dia ele começa a estudar e dizem para ele: muito bem, agora, meu filho, solte-se, mostre as suas emoções. Eu acho que isso, muitas vezes... Eu ensino, eu tenho contato com jovens e eu sinto muito isso. Eu não quero generalizar, porque há grandes artistas europeus... mas muitos certamente não obedeceram, não seguiram esse modelo. Eu acho que no Brasil nós temos a praia, ou nós temos o sol, ou nós temos essa coisa do nosso clima, e eu acho que isso, aliado apenas com... nós temos grandes pianistas. Este país já produziu e temos ainda grandes pianistas.
Irineu Franco Perpétuo: Mas tem que sair, não é, Arnaldo?
Arnaldo Cohen: Tem que sair. Tem que sair, mas não é só sair porque tem que sair. Eu acho que hoje em dia nós já temos um know-how em termos de professores melhorando a cada dia, porque são pessoas que vão para o estrangeiro, para os Estados Unidos, Europa, depois voltam trazendo o know-how. Nós estamos melhorando, sobretudo nos instrumentos de corda, hoje em dia nós estamos criando, formando violinistas muito melhores do que há 30, 40 anos, que era um desastre, porque nós não tínhamos escolas, os bons iam para fora e, evidentemente, iam se desenvolver no mercado de trabalho lá fora.
Júlio Medaglia: Eu gostaria de fazer mais uma pergunta nessa área pianística, Arnaldo. Você que circula aí, e provavelmente está muito bem informado do que acontece nesse pianismo contemporâneo, [saberia dizer] se houve uma filtragem recente, estilística na interpretação pianística? Você falou em emoção, em razão, em Horowitz e Michelangeli; pode-se falar que, assim como na orquestra, que se reviram as interpretações, se limpou um pouco o romântico tardio de certas interpretações sinfônicas, houve, nos últimos anos, uma releitura da interpretação pianística, mesmo na interpretação mais moderna? Ou as interpretações são tão eternas que...?
Irineu Franco Perpétuo: Eu queria pegar uma carona na pergunta do maestro e perguntar se, hoje, o pianista não tem menos – o intérprete em geral, mas vamos com o pianista, que era sobre quem a gente está falando –liberdade do que no começo do séculos. Hoje não seria possível alguém tocar como o [pianista e compositor polonês Ignacy Jan] Paderewski [1860-1941] fazia.
Arnaldo Cohen: Não, eu digo isso sempre: se o Chopin fosse para o concurso em Varsóvia, ele não passaria na primeira prova, e daí o júri ainda ia dizer para ele que ele não entende nada de Chopin, essa seria a razão. Muito bem, acho que você “limpou-se”, você usou a palavra limpar.
Júlio Medaglia: É, ou filtrar.
Arnaldo Cohen: “Limpar”... quase como se fosse uma coisa que não era boa, e eu acho que a expressão artística é função do momento social, político e econômico, de quando ele é criada, de quando é executada. Eu acho que nós vivemos sob influência constante, seja do computador, da internet, do que for, do sistema econômico, do sistema social, do sistema político, isso tudo – nós estávamos falando de opressão, anteriormente –, eu acho que tudo o que nós passamos, eu acho que leva. Existe um grande paradoxo nisso tudo que nós estamos falando, que é exatamente a grande diferença que existe entre os caminhos seguidos, em termos de liberdade, seguidos pela criação e pela interpretação. Você falou uma coisa muito correta: se eu tocasse Chopin como no início do século, você ia escrever mal de mim [risos].
Irineu Franco Perpétuo: É verdade, iria mesmo.
Arnaldo Cohen: Agora, a liberdade na interpretação... hoje em dia nós tocamos quase que com algemas. Na criação, ou seja, na composição, a partir do século XVI, século XVII, a coisa foi abrindo e nós chegamos ao ponto de, neste século, você fazer assim ó [bate três vezes no copo de água com o dedo] e ter gente a dizer: “Que genial!”, estou certo?
Nelson Kunze: Nessa questão de repertório, eu queria levantar uma questão, Arnaldo. Por mais que toda interpretação seja reflexo do nosso mundo, do mundo que nos cerca, chega uma hora em que a obra do Chopin e a do Liszt se esgotam, de certa maneira. Eu acho que a gente chegou em um momento em que há dezenas de interpretações de referência já para todas as grandes obras.
Arnaldo Cohen: Em disco.
Nelson Kunze: Em disco, certo.
Arnaldo Cohen: Não esqueça que, ao vivo, cada vez é diferente, até com a mesma pessoa.
Nelson Kunze: Está certo.
Arnaldo Cohen: E enquanto houver gente que queira, vai existir, esse é o ponto.
Nelson Kunze: Então, mas a realidade do disco é muito insistente; esse mercado é muito forte...
Paulo Markun: Hoje, [porque] daqui a seis meses pode não existir, do jeito que a internet está.
[sobreposição de vozes]
Nelson Kunze: Eu queria chegar no seguinte: como intérprete, não chega uma hora em que você procura novos horizontes para desbravar? Enfim, nós estamos um pouco cansados de ouvir concertos de [Sergei] Rachmaninoff [(1873-1943) compositor, pianista e maestro russo], não é? Por mais que eu seja...
Arnaldo Cohen: [interrompendo] Posso, posso? Essa... tem que botar dois pontos para mim. Eu toco muito Rachmaninoff. Quem está cansado de Rachmaninoff? Você? Nós, quem? Vamos deixar claro isso aqui: nós, quem?
Nelson Kunze: Eu gostaria de colocar essa questão do novo repertório. Por que...?
Arnaldo Cohen: [interrompendo] Não, você falou que nós estamos... porque eu tenho ouvido muito isso: “Por que Rachmaninoff? Nós estamos cansados”. Eu preciso dizer o seguinte: este ano, no Rio de Janeiro, no Teatro Municipal, que tem 2457 lugares... ano passado, eu toquei no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, toquei o segundo concerto de Rachmaninoff, o terceiro Rachmaninoff, e o teatro esgotou, uma loucura, gente querendo entrar. Nós estamos falando de concertos vazios... eu não estou falando nem do Altamiro Carrilho, estou falando de Rachmaninoff; eu toquei esse concerto, foi uma loucura. Este ano, a Orquestra Sinfônica Brasileira, no Rio de Janeiro, disse assim: “Arnaldo, muitos dos nossos estudantes não puderam ir ao concerto; você tocaria outra vez?”. Eu disse: não, talvez eu não toque o mesmo concerto, [talvez] eu toque o segundo concerto e a rapsódia, eu toquei o terceiro. Bom, caíram de pau em cima de mim, [dizendo]: “Mas outra vez Rachmaninoff? Ninguém agüenta mais Rachmaninoff”. Eu disse: “Ninguém, quem?”. Moral da história: o meu concerto foi em um sábado às quatro horas da tarde; às cinco ou seis horas da tarde do dia anterior não tinha mais uma entrada no teatro. Muito bem, nós podemos chegar a várias conclusões: uma: Rachmaninoff não presta e o público é imbecil, gosta do que não é bom. São hipóteses. Quem sabe, então, [o problema] não é o Rachmaninoff, quem sabe, no caso, não podia ser o pianista? Porque pode, não sei; será que todos os pianistas esgotariam o Teatro Municipal tocando Rachmaninoff? Não sei. Eu acho que nós temos que ver o problema da educação musical. Se Rachmaninoff lota os teatros e traz pessoas, como aconteceu de uma senhora que, à uma hora da tarde, eu estava estudando no teatro e telefonaram, dizendo: tem uma senhora chorando aqui, querendo falar com você. Muito bem, eu fui lá e a senhora estava chorando e disse: “Meu filho, eu peguei três ônibus para ver o seu concerto e não tem mais entrada na galeria”. Eu tinha ainda uma galeria e dei para ela. Ela fez o sinal da cruz, beijou a minha mão... precisa ver se é perigoso, não é?, na nossa profissão... [risos].
[sobreposição de vozes]
Arnaldo Cohen: [...] uma religiãozinha com a música como deus, não é? Enfim, eu achei que é uma coisa tão bonita.
Paulo Markun: Eu só queria acrescentar aqui uma pergunta de Ariosto Jacarandá, de Belém do Pará, que pergunta se você realiza primeiro as audições de obras atuais e de que compositores?
Irineu Franco Perpétuo: E você não tem vontade de encomendar obras para compositores, Arnaldo?
Júlio Medaglia: É, esse projeto de música brasileira que nós...
Arnaldo Cohen: Eu acabei de gravar um disco sobre música brasileira, no mês passado.
João Marcos Coelho: Mas você encomendou uma obra? De quem que é?
Arnaldo Cohen: Não encomendei, a gente não encomenda obra como [quem encomenda um] terno, não. Primeiro de tudo, eu quis fazer um disco que tem um conceito. O conceito do meu disco é o seguinte: aproveitando os nossos 500 anos, eu acho que a melhor forma, em termos de composição do que nós fizemos, [do que] o brasileiro fez, são as obras pequenas, em miniaturas. Eu acho que são o melhor que nós temos em nossa obra, ou seja, as “Cirandas”, de Villa-Lobos, as suítes, as obras pequenas. É muito raro... quais são as grandes peças dos compositores, ou seja, quais são as grandes sonatas do repertório brasileiro? Sonata que eu quero dizer, para o público em geral, é o seguinte: uma obra imensa. Você pode ter obras grandes compostas de pequenas, então eu acho que esse é o grande barato da nossa...
Paulo Markun: Pergunta de Volf Zipman, aqui da capital, médico: “Por que a música erudita contemporânea não chega ao público?” Quer dizer, não conquista o público, principalmente.
Irineu Franco Perpétuo: E por que você não a toca?
Nelson Kunze: A minha pergunta ia um pouco por aí, a abertura do repertório.
Arnaldo Cohen: Depende; primeiro de tudo, não existe “a música”, existe música de um compositor; então, podemos falar sobre compositores específicos... Muito bem, primeiro de tudo, eu tenho uma vida em que eu tenho que tocar em todos os meus concertos, como uma vez eu quis tocar [o compositor austríaco Arnold] Schoenberg [1874-1951] no Concertgebouw de Amsterdam, e eu tive que negociar, porque eles não queriam, porque Schoenberg não vai vender, em outras palavras.
Sabine Lovatelli: Isso me consola, porque aqui é igual.
Arnaldo Cohen: Exatamente, [isso aconteceu] no Concertgebouw de Amsterdam. Então, eu negociei com eles o seguinte: então eu vou tocar uma sonata de Mozart, que todo mundo conhece, Schoenberg e, na segunda parte, eu coloco as quatro baladas, tudo bem? Olha, foi uma loucura para conseguir convencê-los a fazer uma coisa dessa. E eu estou falando de um dos grandes centros, um dos maiores teatros do mundo, está certo? Uma vez perguntaram ao [pianista polonês] Arthur Rubinstein [1887-1982] o seguinte: “O senhor gosta de música moderna?”. Ele disse: “Adoro”. Daí: “Por que o senhor não toca?”. E ele disse: “Eu não tenho talento”. “Mas como o senhor não tem talento?”. “É, não, eu adoro música moderna, e eu acho que todo mundo deve tocar música moderna, mas eu não tenho talento; muitas vezes, é difícil para eu entender, a culpa é minha, não se julguem por mim e não usem o fato de eu não tocar como se isso não fosse uma coisa boa”.
Paulo Markun: Mas isso induz ao raciocínio de que, de alguma forma, nesse meio de caminho, os compositores perderam o contato com o público.
Arnaldo Cohen: É o que nós estávamos falando antes, nós falamos sobre a curva da criação em termos de liberdade, que hoje em dia você pode fazer qualquer coisa e a curva da interpretação... A razão desse paradoxo, qual é? Segundo aquilo que eu acho, eu acredito que isso tenha acontecido por uma razão: porque houve um distanciamento e um descolamento entre as figuras do intérprete e do compositor. Ou seja, antigamente, o Rachmaninoff tocava as obras dele.
[...]: Liszt [também].
Arnaldo Cohen: Brahms, Chopin [também]. [...] tocava suas obras, grande pianista. Muito bem, quais são os compositores hoje que tocam as suas obras? Quais são os grandes... e quando eu digo tocar, vocês me citem quem são os grandes pianistas que tocam suas obras modernas.
Paulo Markun: Ou os grandes pianistas que compõem as suas obras.
Arnaldo Cohen: Ou os grandes compositores que tocam piano, quem são? [roda a cadeira, olhando para os entrevistadores, e espera respostas]
[...]: Tem alguns [...].
Arnaldo Cohen: Pois é, então eu acho que eu estou certo.
Paulo Markun: Nós vamos fazer mais um rápido intervalo e a gente volta já, já.
[intervalo]
Paulo Markun: Nós vamos para o terceiro bloco, com a entrevista do pianista Arnaldo Cohen. O Adalberto, de Santo André, pergunta se o estilo do pianista falecido, Horowitz, contribuiu na sua formação e se ele foi importante.
Arnaldo Cohen: Muito, muito, Horowitz foi um dos meus deuses, e como eu tinha falado antes, depois veio o Michelangeli, que foi o outro deus, mas...
Paulo Markun: Mas, quer dizer, "um pé em cada canoa"?
Arnaldo Cohen: Não, eu acho que, antes de falar, você precisa pensar; você não pode falar sem pensar e não pode falar... enfim, você precisa sempre do quente e do frio, você precisa sempre dos extremos, os extremos é que dão o equilíbrio, os adjetivos são basicamente o que qualificam a vida. Só [com] a emoção, você está arriscado a rolar montanha abaixo; e só [com] a estética, você vai viver em um deserto emocional. Então, você precisa dos dois. Eu acho que o Horowitz, para mim, representava – eu estou falando de representação –, representava o turbilhão...
[...]: A emoção.
Arnaldo Cohen: ...qualquer coisa. E, segundo, até a maneira como ele... ele enlouquecia, e aquela loucura me fascinava, que coragem. As gravações do Horowitz têm “nota errada”, entre aspas, porque hoje em dia as companhias de gravação jamais permitiriam que uma gravação de Horowitz, feita em 1930, 34, quando teve o famoso terceiro concerto de Rachmaninoff, em que ele erra, mas ele se engana, e você não pode... eu não chamo de erro, eu acredito no seguinte: o erro com convicção é muito mais bonito do que a coisa correta.
Irineu Franco Perpétuo: Arnaldo, você toca para não errar ou você toca para acertar? Qual é a sua relação com o erro?
[...]: Toca para o piano cantar, como ele já falou.
Arnaldo Cohen: Eu não toco para nenhum dos dois. Eu não toco, eu digo; eu tento dizer de uma tal maneira, que as pessoas que estão lá possam entender, e esse é o meu grande prêmio, porque do contrário eu não tocaria em público, eu tocaria para a vovó aos domingos na hora do almoço.
Paulo Markun: Mas no programa anterior, aqui, há seis anos, me pareceu que você estava muito incomodado com a longa distância que havia entre o cérebro e a ponta dos dedos.
Arnaldo Cohen: Continua.
Paulo Markun: Pois é, eu queria saber se nesses seis anos encurtou um pouco.
Arnaldo Cohen: Não, piorou.
Paulo Markun: É?
Arnaldo Cohen: Piorou, está cada dia mais longe, cada dia mais longe.
Júlio Medaglia: Agora, falando do Horowitz, sendo genro de [Arturo] Toscanini [(1867-1957) maestro italiano], que era a razão mais exagerada, esquizofrênica que se conhece na história da música, um apaixonado pelo rigor.
Arnaldo Cohen: É, tem histórias incríveis.
Júlio Medaglia: Houve então uma relação?
Arnaldo Cohen: Houve uma coisa maluca entre ele e a filha do Toscanini, a Wanda, e contam-se histórias, não sei se são mitos, que ele gravava, com todos os microfones na casa dele, e a Wanda ficava fazendo gracinhas em umas prateleiras da biblioteca enquanto ele tocava. As histórias que se contam são... mas eu acredito que tenha muito...
Júlio Medaglia: Folclore.
Arnaldo Cohen: ...muito folclore.
João Marcos Coelho: Os seus discos gravados têm muita edição? Em que medida você coordena razão e emoção no disco? No recital, é fácil...
Irineu Franco Perpétuo: Aliás, me parece que com aquele primeiro Liszt que você gravou, você não ficou muito satisfeito e só acertou gravar o Liszt pela segunda vez com a [gravadora] Naxos porque estava na mão do Paul Myers, que era um produtor bárbaro, que fazia edições fantásticas, que trabalhou com [...]. Conte para a gente, principalmente para o público que não está habituado com essa rotina de gravação, como é, porque não é só ir lá tocar e fazer o take, como é que é a importância dessa edição [...]?
Arnaldo Cohen: É meio complicado [explicar] o negócio da edição para o público em geral. Eu acho que eu já falei um pouco [sobre isso]. Para o público poder entender essa história, é como se eu dissesse, em três dias diferentes, a mesma coisa [por exemplo]: “Eu te amo”; só que você diz no primeiro dia: “Eu te amo” [em tom comum]; no segundo dia, você diz: “Eu te amo” [em tom mais alongado]; no terceiro dia, você diz: “Eu te amo” [em tom sussurrante]. O que acontece? O produtor, se você tocar uma peça, ele quer... você acertou uma coisa no primeiro dia, outra no segundo... ele vai pegar o “eu” do primeiro dia, o “te” do segundo e o “amo” do terceiro. O que é que vai dar? Vai dar um “eu te amo” com a sua voz, foi você quem disse, mas com uma expressão que você nunca disse, que você nunca falou, esse é o grande perigo da edição.
[...]: Um clone.
Arnaldo Cohen: Exatamente, você cria quase que uma colagem emocional.
José Nêumanne: Mas se não fizer isso no Brasil, por exemplo, 90% das cantoras não conseguem gravar.
Arnaldo Cohen: Pois é, quem está falando é você [risos].
José Nêumanne: Estou falando de música popular.
Arnaldo Cohen: Música popular... talvez, não sei, talvez você tenha razão. Então, de que maneira você pode resolver esse problema? Você pode resolver esse problema com takes mais longos... você, na hora da edição, o ponto de edição é absolutamente fundamental, por quê? Porque você não vai cortar no meio de uma frase, música é frase, música é uma linguagem, estou dizendo alguma coisa como “de re [interrompe a fala] pente eu continuasse a [interrompe a fala]...“. É isso que você não pode fazer. Então, aí você fala uma outra frase e chega ao final, então você pode fazer cortes...
José Nêumanne: Você não pode exigir um controle? O intérprete não pode exigir um controle da edição?
Arnaldo Cohen: Claro. Mas foi exatamente isso que aconteceu, que eu sempre tive dificuldade de gravação porque ninguém queria me dar esse controle, e eu só gravo quando eles me dão, e é por isso que eu...
José Nêumanne: Eu só queria fazer uma justiça aqui, porque o Nelson Kunze levantou a questão da música moderna e eu li aqui no material que a Cultura me mandou que você queria gravar um integral do Schoenberg, e estou lendo aqui o livro do [escritor tcheco] Milan Kundera [1929-] que acabou de sair no exterior [refere-se ao livro A ignorância] em que o Kundera diz que houve um grande equívoco, porque o Schoenberg pensava que, nos próximos cem anos, a música alemã ia dominar o mundo, graças a sua música, e diz o Milan Kundera que, não por defeito do Schoenberg, mas por defeito do futuro, ninguém hoje está interessado em gravar o Schoenberg. Por que esse seu interesse em gravar o Schoenberg?
Arnaldo Cohen: Porque eu acho uma linguagem... tem muita gente que acha que a linguagem do Schoenberg é uma maluquice. Pode até ser uma maluquice para quem não entende; é como aprender japonês depois dos 50 anos de idade: vai ser muito difícil você entender, por mais que você estude, é meio complicado, é uma linguagem... Eu gostaria de gravar o Schoenberg muito mais como um exercício meu, uma curtição minha, sabendo que a parte comercial é inexistente, você jamais vai vender; você vai dar [a gravação] para a sua família e, mesmo assim, a sua mãe não vai ouvir – a minha, pelo menos, eu tenho certeza que vai dizer: “Que coisa horrorosa, meu filho”. Mas eu entendo a linguagem de Schoenberg, eu entendo, você sabe por quê? Porque eu sou deformado profissionalmente, eu tenho uma deformação profissional por causa da linguagem onde eu circulo; no mundo em que circulo, eu consegui abrir determinadas portas e conhecer determinados mundos que, mesmo para nós, são difíceis, quanto mais para o sujeito que não conseguiu entrar na ante-sala desse mundo inteiro.
Júlio Medaglia: Essa sua ligação com Schoenberg não tem nada a ver com o fato de ele ser judeu...?
Arnaldo Cohen: Não, não, de jeito nenhum, absolutamente.
Nelson Kunze: O Schoenberg, parafraseando o [maestro brasileiro] John Neschling [(1947-) foi regente da Osesp entre 1997-2008], daqui meio ano é um clássico do século passado. Ele tem 80 anos; as obras-chave do Schoenberg tem 80 anos, quer dizer...
Arnaldo Cohen: Ele é um clássico...
Nelson Kunze: ...já fazem parte da história, já foram superadas. Hoje em dia os compositores estão pensando em outras coisas, não é?
Arnaldo Cohen: Mas eu não estou discutindo o ponto de vista formal, eu acho que o Schoenberg não é moderno, Schoenberg, como o [músico russo Igor] Stravinsky [1882-1971], como o [músico austríaco] Anton Webern [1883-1945], são compositores...
Nelson Kunze: Canônicos.
Arnaldo Cohen: Enfim, são tradicionais do início do século. Rachmaninoff veio depois dele, [...] morreu em 43. Depende do que nós vamos considerar; é aquela história: ele vai ser considerado [clássico] por quem e por quantos? [...] Ele é um clássico... será que ele vai ser um clássico considerado por quem? Pela humanidade, pelo mundo ou somente pelos compositores, daqueles que gostam do Schoenberg?
Júlio Medaglia: Você já teve uma investigação da linguagem dele, daquela evolução...?
Arnaldo Cohen: Eu toquei muito Schoenberg, eu toquei, eu toco várias obras do Schoenberg, [como] “Opus 11” [...]
Nelson Kunze: Só uma coisinha, eu acho que a questão não era nem especificamente a música contemporânea, era a questão de uma abertura de repertório. Poderia, por exemplo, ser a música barroca, poderia ser a música historicamente informada, que tem muitos grupos europeus que fazem, instrumentos de época. Então, a minha pergunta, naquela oportunidade, é um pouco mais assim...
Arnaldo Cohen: Mas você tem toda a razão e eu concordo com você. Eu estou fazendo isso, eu faço inclusive quando eu posso, porque meu tempo é muito pequeno. Voltando àquele disco, eu, por exemplo, fui descobrir a peça de Frutuoso Viana [1896-1976], Radamés Gnattali [1906-1988]... teve um compositor brasileiro, Alexandre Levy [1864-1892], cujo irmão, Luiz [Henrique] Levy [1861-1935], ninguém conhece, e parece que tinha até mais talento que ele. Eu fui descobrir um compositor do século XVIII, Luiz Álvares Pinto [1719-1789], ou Luiz Alves Pinto, em que eu descobri umas lições de solfejo de que eu fiz a transcrição, eram de cravo para piano... Como o padre José Maurício Nunes Garcia [(1767-1830) compositor de músicas sacras] e compositores deste século... e a história do Eduardo Dutra, que eu acho que eu já falei algumas vezes, que, para mim, é o exemplo do talento brasileiro, um sujeito que gostava de música, adorava música, de um talento extraordinário, mas que tornou-se um farmacêutico ou dono de laboratório farmacêutico, e eu homenageei o Eduardo Dutra, que, por sinal, é pai do [ator] Cyll Farney [1925-2003] e do Dick Farney. Enfim, se eu pudesse, eu daria preferência aos compositores brasileiros, faria uma pesquisa... esse foi o primeiro, eu fiz esse disco com vinte compositores brasileiros mortos, mesmo porque, se eu colocasse um vivo, eu acho que quem iria morrer seria eu [risos].
Júlio Medaglia: Para começar, não iria achar a partitura.
Arnaldo Cohen: Quem sabe, um dia, eu farei um disco com compositores brasileiros vivos.
Arthur Nestrovski: Eu ia fazer um comentário, você não precisa de ajuda, mas eu vou te ajudar um pouco. Não sei se a militância de vanguarda é uma obrigação de todos os músicos. Eu acho maravilhoso que tenha um pianista que toque Chopin e Brahms com um talento, uma capacidade que nenhum de nós tem, assim como um grande ator da Comédie-Française vai fazer [uma peça do dramaturgo francês Jean] Racine [1639-1699] e ninguém vai pedir a ele que faça autores contemporâneos. Então, isso para mim não é uma... os colegas todos aqui sabem que eu sou um defensor da música contemporânea, mas nem por isso eu acho que cabe a todos os músicos fazer sempre apologia da música contemporânea. A pergunta que eu faria, que é mais...
Arnaldo Cohen: Obrigado, em primeiro lugar [risos].
Arthur Nestrovski: ...mais banal, mas eu acho que é de interesse, provavelmente de interesse amplo, é como é que você escolhe, afinal de contas, o seu repertório do próximo ano? Como é que você sai procurando? No dia-a-dia, o que é que te faz escolher uma peça ou outra e, talvez, se você pudesse falar um pouquinho, porque acho que é uma curiosidade geral, também da sua rotina estudando piano. Você, que viaja tanto, dá concertos em tantos [lugares], [quando] você chega em uma cidade, você estuda doze horas por dia, você tem tempo para estudar piano, como é que funciona?
Arnaldo Cohen: Eu vario de zero a 12 [horas], entende? Quando eu posso, às vezes eu não posso estudar. Quanto ao repertório, é curioso você dizer, porque as coisas vêm por acaso. Eu estava dando aulas, fui ao College no ano passado, e teve um menino que veio tocar para mim os 24 prelúdios de Chopin, que eu nunca toquei, nunca toquei em público... enfim, estudei um pouquinho, mas nunca toquei a peça. E eu me apaixonei pelos 24 prelúdios de Chopin no ano passado. Você pode dizer: “Isso é uma maluquice”. Eu me apaixonei pelos 24 prelúdios. Existem dois tipos de paixão pela música, que talvez, do lado de vocês, vocês não tocando, não sendo intérpretes, vocês talvez não possam entender. Não é a paixão que eu sempre… é a paixão de ouvir, mas de repente eu me apaixonei para tocar, que é outra coisa completamente diferente. Eu adoro determinadas...
Paulo Markun: [interrompendo] Isso tem a ver com a dificuldade, com o desafio? Não digo a dificuldade necessariamente técnica, mas com o desafio que a música te propõe?
Arnaldo Cohen: Tem, tem a ver com a linguagem...
Irineu Franco Perpétuo: E com o desafio de ter que apresentar em alto nível? Quando você vai tocar uma peça que nunca esteve no seu repertório, não é simplesmente que você vai tocar; o que o público espera é o que vai vir de Arnaldo Cohen sobre essa peça, não é?
João Marcos Coelho: Já aconteceu de você escolher uma peça e não ter nada de novo para dizer, e descobriu isso no meio caminho?
Arnaldo Cohen: Você sempre tem uma coisa de novo para dizer, basta você estar lá sendo honesto, porque se você for honesto, você será novo, porque ninguém é igual a você, então você será sempre alguma coisa diferente. Eu acredito que a linguagem, aquilo a que você se propõe, por exemplo, um concerto, tem concertos que eu adoro ouvir, mas se eu disser: não, eu não acho que eu estou preparado ainda para tocar – não é tecnicamente, porque tecnicamente eu posso tocar qualquer coisa; se você é pianista, enfim, você tem uma técnica suficiente para tocar o repertório.
Paulo Markun: Só para detalhar mais, isso você sente tocando? Você pega, experimenta e diz [gesticula, como se estivesse tocando piano]: “Não, isso aqui não é bem isso”?
Arnaldo Cohen: Não, não, eu já sei. Eu já sei que para mim vai ser difícil entrar dentro daquele mundo. É como se a peça... [como se] houvesse uma simbiose entre a música e toda a minha parte emocional, técnica, e tudo isso tem que sair com um resultado químico único.
Nelson Kunze: É por isso que você não toca o segundo de Brahms, por exemplo, Arnaldo?
Arnaldo Cohen: Até hoje, foi [por isso]. Eu sei o segundo de Brahms, eu posso tocar o segundo de Brahms para você a qualquer hora, com uma orquestra, sem problema nenhum, [mas] eu cancelei cinco vezes já [risos]. Não tem problema nenhum, eu posso tocar o segundo de Brahms a qualquer hora, não tenho problema técnico nenhum, não tenho problema da oitava, não é isso, é aquele mundo todo que eu acho que, de repente… E outra coisa, eu acho que a honestidade é o mais importante. É aquela coisa, você tem o amor técnico, o amor isso, eu acho que você tem que dizer alguma coisa, sabe por quê? Porque quem bota a cabeça no travesseiro à noite sou eu, é o próprio pianista, e eu sou o meu próprio patrão, eu não posso me enganar, e o público, se você se engana, ele é o primeiro a perceber.
Paulo Markun: Os artistas de teatro, que fazem teatro e às vezes fazem peças durante anos e anos e anos, têm sempre... a gente que os entrevista regularmente, eles têm sempre uma explicação bacana para justificar como é que eles fazem aquela mesma coisa todo dia, anos a fio, e a explicação é muito simples. Eles dizem: não, cada dia é diferente, o público é diferente, você está diferente. É a mesma coisa em relação ao piano?
Arnaldo Cohen: É diferente. O ator, quando ele desempenha um papel, ele desempenha um papel que não é ele; eu não, a minha grande dificuldade é desempenhar o meu papel, essa é a grande dificuldade.
[...]: Ser o mais você possível.
Arnaldo Cohen: E essa é a grande dificuldade, você fazer esse strip tease emocional em público, dizendo “eu sou assim” [abre o paletó]. E a coragem? A diferença entre mim... e agora, nesta época de eleições, dos políticos, eu diria que, ao contrário dos políticos que dizem aquilo que eles acham que o público quer ouvir, porque senão não vão votar nele, evidentemente, o meu caso é exatamente ao contrário: eu tenho que dizer para o público não necessariamente o que ele quer ouvir, porque senão eu vou estar sendo político, e eles estão ali para saber [colocando-se no papel do público] “quem é esse camarada, como é que ele é?”
José Nêumanne: “O que ele me traz?”
Arnaldo Cohen: “O que ele me traz? Qual é a mensagem dele, qual é a maluquice dele, qual é a coisa?”
José Nêumanne: Mas entre você e o público, tem o piano, e eu queria lhe fazer uma pergunta. A sua colega Cristina Ortiz, há muito tempo – eu era um jovem repórter, eu ainda tinha cabelo preto – me deu uma entrevista em que ela dizia... o título [da matéria] foi “Eu acuso”, em que ela dizia que não havia no Brasil um piano que prestasse para ser tocado. Deu um bode danado essa coisa...
Arnaldo Cohen: [interrompendo] Eu não tinha nascido nessa época, mas hoje... [risos].
José Nêumanne: Já tem um ou dois pianos que dá para ser tocado?
Arnaldo Cohen: Já tem uns pianos... [ri] estou brincando...
Irineu Franco Perpétuo: São os que você escolheu, Arnaldo?
Arnaldo Cohen: Não, o piano de Santo André é uma maravilha.
José Nêumanne: Mas só tem o piano de Santo André no Brasil inteiro?
Arnaldo Cohen: Não, não...
Irineu Franco Perpétuo: Falando dos pianos, eu acho interessante a gente emendar com as orquestras, porque o Nelson falou aqui do Neschling, que há três anos fez uma reformulação na Osesp [Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo], de que todo mundo está falando maravilhas. Nesses três anos, tocaram com a Osesp, que a gente lembre, Nelson Freire, Jean Steuerman, Cristina Ortiz, Gilberto Tinetti, José Feghali, Ricardo Castro, e se quiser lembrar de outro pianista brasileiro, vai ter tocado lá, mas você não foi convidado pelo Neschling para tocar com essa orquestra. Você tem algum tipo de tristeza, mágoa, briga?
Arnaldo Cohen: Absolutamente. Eu sempre digo o seguinte: minha mãe sempre me ensinou – mamãe deve estar me ouvindo hoje –, ela me ensinou o seguinte: que eu, primeiro, não devo ir a casa de alguém que não me convide. Ela sempre dizia: “Se você for, meu filho, não coma muito, porque podem achar que lá em casa não tem o suficiente”. Então, a minha atitude é muito tranqüila e eu não tenho problema nenhum, eu acho que ele tem todo o direito, as pessoas não têm obrigação nenhuma de convidar. Eu só espero que o Neschling ou a Osesp não me convidem por incompetência, pela minha incompetência, é a única desculpa, ou razão, ou explicação que eu posso aceitar, por quê? Porque a Osesp é uma coisa pública, correto? Ela paga o seu Neschling e os seus músicos com a coisa pública, aquilo não é o quintal da casa de ninguém, é dinheiro de imposto. Eu sou brasileiro e eu pago impostos. Então, eu só espero que eu não seja convidado porque o Neschling acha que o meu nariz não é bonito, por exemplo... que poderia, se fosse a orquestra dele, como o [compositor alemão Felix] Mendelssohn tinha a sua, [seria] seu direito. Agora, realmente, a minha única explicação, porque eu espero que seja a única verdadeira, é a minha incompetência, aí eu aceito com um sorriso.
Paulo Markun: Nair Carolina, de Vila Carrão, pergunta qual é a possibilidade de uma pessoa, aos 40 anos, iniciar-se nos estudos da música erudita e absorver toda a sua profundidade com qualidade? Eu imagino que ela quer dizer mais como ouvinte do que como [instrumentista]...
Arnaldo Cohen: Eu acho que é sempre bom, porque a música sempre fará parte da sua vida; ninguém pode tirar a música de você. Eu acho que você pode desenvolver mais e mais e mais um amor que você tenha, e eu dou a maior força sempre para essas pessoas. Agora, ninguém [aos 40 anos] tem o sonho de se transformar em um concertista internacional...
Paulo Markun: Não, mas eu digo mesmo de se aproximar do mundo da música.
Arnaldo Cohen: Mas é claro que você pode se aprofundar, e muito e muito, e quanto mais amor, mais o caminho se abre.
Paulo Markun: Existe um caminho? Você acha que existe assim um caminho como: comece pelas obras tais, como em culinária? Quer dizer, quem quiser aprender a cozinhar, certamente não vai começar fazendo... estrogonofe ainda vai, que é sempre aquela comida que a gente faz para...
Arnaldo Cohen: Depende do ponto em que ela está. Ela deve ter uma professora que certamente pode orientá-la em como começar...
Paulo Markun: Sim, mas eu queria posicionar a coisa com relação às pessoas que simplesmente querem ouvir, querem curtir, enfim, se aproximar da música.
Arnaldo Cohen: Existem as peças tradicionais de que a gente estava falando, que são as peças chamadas semipop. Hoje em dia, todo mundo está chamando a “Quinta sinfonia” de Beethoven de semipop. Daqui a pouco...
Paulo Markun: Tocou muito, vira pop, não importa...?
Arnaldo Cohen: Exatamente, esse é o conceito do pop que... Eu acho que as peças, se ela gosta, ela deve gostar já, eu acho que ela deve seguir a intuição dela, deve começar a comprar discos, deve começar a ouvir as rádios. Existe a Rádio Cultura, que é uma rádio ótima aqui em São Paulo; existe a [rádio] do Ministério da Educação, ou seja, os meios para se atingir estão aí, abra-se...
Paulo Markun: Na internet, as suas obras são encontráveis?
Arnaldo Cohen: São encontráveis, sim. Já me disseram que compraram meus discos no amazon.com.
[...]: Para comprar CDs...
Arnaldo Cohen: Hoje você pode comprar qualquer CD [pela internet].
Paulo Markun: Em MP3 não tem ainda?
Arnaldo Cohen: Não tem, mas não me importaria que tivesse. Alguém me perguntou: “Ah, e os seus direitos?”. Olha, se eu dependesse da venda de disco para comer, eu estaria morto há muito tempo.
João Marcos Coelho: Arnaldo, no começo da sua carreira, você tinha muito medo de palco. Hoje, você se sente absolutamente à vontade, você domina?
Arnaldo Cohen: Que nada, isso é versão do fato.
João Marcos Coelho: Pelo menos é o que a gente percebe, e eu tenho assistido a vários recitais seus.
Arnaldo Cohen: Parece, não é?
João Marcos Coelho: Com orquestras e tal.
Arnaldo Cohen: Parece.
João Marcos Coelho: Parece que você está tão à vontade, que a gente que está ouvindo tem vontade de ver um disco seu gravado ao vivo, sem edição, por isso que eu fiz aquela pergunta sobre edição. O que você acha disso?
Arnaldo Cohen: Com o tempo, talvez eu tenha me acostumado a não mostrar mais o quão ansioso eu posso estar antes do concerto. É verdade o seguinte: quando eu estou sentado ao piano, eu acho que isso tem muito mais a ver com segurança daquilo que eu estou fazendo, daquilo que eu quero, daquilo que eu pretendo, ou seja, esse processo que eu estava falando de passar o que você tem dentro do seu... [passar] a idealização da música para o real em forma de som. A concentração é o nome do jogo, e quando você está concentrado, é muito difícil você ficar nervoso, porque você está absolutamente imerso. É como se, de repente, eu apertasse o [botão do] elevador para o segundo andar, e você vai para uma outra dimensão. Talvez às vezes eu consigo ir para a terceira [dimensão]. Eu já tive concertos em que eu senti coisas que eu não posso descrever, de ficar arrepiado e achar que eu ia explodir; eu senti coisas que eu não posso descrever. Então, são coisas que dependem dos momentos, e eu acho que... Mas a tensão eu acho até que é muito boa. O Barenboim sempre diz que... falando do Barenboim, você perguntou se eu ia fazer o crossover, o repertório. Não, não vou fazer, pode ser que um dia eu faça, mas eu não sei, se eu não sou competente naquilo, o que é que eu vou fazer?
Júlio Medaglia: Arnaldo, como está o mercado de disco internacionalmente, pelas estatísticas que você acompanha?
Arnaldo Cohen: Como eu acabei de dizer, eu acho que o mercado discográfico está agonizando.
Júlio Medaglia: Agonizando?
Arnaldo Cohen: Agonizando, eu acho que ele vai acabar, porque qual é a razão de se gravar...?
Júlio Medaglia: Eu me refiro mais à gravação do que ao disco, pode ser que ela seja feita por outros veículos, não tanto pelos CDs.
Arnaldo Cohen: Talvez, talvez, eu acho que não, porque eu acho que a internet, o computador mudou, ou seja, eu acho que isso mudou completamente o futuro da coisa. Não existe nenhuma razão para você gravar a versão número 438 – entende? – do segundo concerto de Rachmaninoff, porque já tem tantas no mercado, por que você vai gravar mais uma vez? A não ser que o público queira aquela versão pelo artista. Então, nós não vamos falar de repertório, nós vamos falar do artista, entende? Isso eu acredito que possa existir ainda por certo tempo, porque se o público gosta do repertório, o público gosta do artista também, e ele tem os seus artistas preferidos. Se o público é louco pelo pianista X e o pianista X grava a “Sonata ao luar” [de Beethoven] – porque eu acho que a gente não pode falar de obra mais gravada e tocada –, pode ter certeza que o público vai comprar a “Sonata ao luar”.
Paulo Markun: Arnaldo, o nosso tempo está acabando, mas eu queria fazer uma última pergunta. Você toca normalmente de olhos fechados e já disse em uma entrevista que o quê você procura é uma espécie de voz interior que, muitas vezes, você não reconhece nas suas próprias interpretações quando escuta as gravações – pelo menos não reconhecia no passado –, você diz que não imaginava ou não imagina...
Arnaldo Cohen: E continuo não reconhecendo.
Paulo Markun: ...a princesinha passeando no campo. O que é que você imagina quando toca?
Arnaldo Cohen: Eu caminho por um mundo sensorial, eu caminho por um mundo onde as emoções têm uma ligação com o som e o som também tem cor, o som tem temperatura. O som, para mim, é como a voz humana; as notas, em determinadas seqüências, representam palavras, é tudo um código; é como se, de repente, a música fosse uma linguagem em que as pessoas pudessem se comunicar em um planeta estranho. E quando eu toco e fecho os olhos, eu vivo nesse planeta. É uma sensação que os terráqueos não podem entender, é muito difícil explicar, mas eu posso garantir a vocês que é um mundo maravilhoso e é por isso que eu continuo nele.
Paulo Markun: Arnaldo, muito obrigado pela sua entrevista, obrigado a você que está em casa, aos nossos entrevistadores, e a gente volta neste mundo aqui dos terráqueos na próxima segunda-feira, sempre às dez e meia da noite. Uma boa noite, uma boa semana e até lá.