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Memória Roda Viva

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Gabriela Leite

1/6/2009

As regras e alguns segredos da prostituição feminina são desvendados nesta entrevista com a ex-prostituta, criadora da grife Daspu e diretora da ONG Davida

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Heródoto Barbeiro: Olá, boa noite. Nesta terça-feira, dia 02 de junho, é o Dia Internacional da Prostituta. A data lembra quando 150 mulheres com o apoio da Igreja [Católica] e também da população ocuparam uma igreja na cidade francesa de Lyon, isso foi 1975. Elas protestavam contra a perseguição policial, cobrança de multa, detenções e também assassinatos. O ato terminou com uma violenta repressão da polícia. A coragem em apresentar os problemas fez com que aquelas mulheres rompessem preconceitos e entrassem para a história. No Brasil os problemas são parecidos. Ainda hoje nós vamos falar sobre esse tema. E a entrevistada do Roda Viva desta segunda-feira é Gabriela Leite, prostituta nos anos 70 e 80 e que atualmente trabalha pelo reconhecimento da profissão e também pela defesa dos direitos dessas mulheres. A entrevista começa em trinta segundos.

[intervalo]

Heródoto Barbeiro: E quando o assunto é como ela deve ser apresentada, a Gabriela Leite prefere ser chamada de prostituta apesar de não exercer mais a profissão. Ela critica termos politicamente corretos como "profissionais do sexo", pois considera que eles escondem um preconceito.

[Comentarista Valéria Grillo]: Gabriela Silva Leite tem 58 anos, nasceu no dia 22 de abril de 1951 em São Paulo, é prostituta aposentada. Em seu livro recém lançado Filha, mãe, avó e puta: a história da mulher que decidiu ser prostituta, Gabriela Leite conta sobre sua vida. Logo na primeira página, ela apresenta as suas três paixões: “Adoro homens, gosto de estar com eles, e não conheço homem feio. Outra coisa que adoro é falar o que penso, sem papas na língua. Quem ler este livro vai perceber isso. Existe uma terceira coisa que eu prezo muito, talvez a que mais prezo, aliás, que é a liberdade, liberdade de pensar diferente, de se vestir diferente, de se comportar diferente”. Filha de uma dona de casa conservadora e de um crupiê [empregado que nos cassinos ou outros estabelecimentos de jogos de azar dirige o jogo, paga e recolhe as apostas], ela teve uma vida marcada por acontecimentos marcantes na infância e resolveu enfrentar a falta de liberdade na adolescência. Gabriela Leite também aproveita as páginas do livro para apresentar como deve ser o comportamento das prostitutas e as maneiras de se prevenirem de doenças. No final da década de 60, durante o regime militar, ela cursava faculdade de sociologia na USP, tinha uma emprego em um escritório e freqüentava círculos da boemia intelectual paulistana. Largou tudo menos a noite, para fazer a sua própria revolução ao começar trabalhar como prostituta nos anos 70 e 80 em São Paulo e Belo Horizonte até se radicar no Rio de Janeiro. No Rio trabalhou no bairro boêmio da Vila Mimosa e começou a colocar em prática a defesa dos direitos das prostitutas. Em 1987 ajudou a organizar o Primeiro Encontro Nacional de Prostitutas. Hoje considera-se aposentada e se dedica a defender a categoria e a regulamentação da profissão. A ONG Davida, fundada por ela em 1991, não tem a intenção de tirar as prostitutas da rua. Pretende promover a cidadania das mulheres com ações nas áreas de educação, saúde, comunicação e cultura. A grife Daspu  [inspirada no nome da luxuosa loja de grifes internacionais de São Paulo chamada Daslu] inaugurada em 2005 ajuda nessa missão. Ela surgiu para gerar visibilidade e recursos para os projetos da ONG. Desfiles já foram realizados em várias cidades do país e a moda Daspu despertou também o interesse internacional. Gabriela Leite tem duas filhas, uma neta e ajudou a criar o filho do marido, o jornalista Flávio Lens.

Heródoto Barbeiro: Dentre nossos convidados para entrevistar a prostituta Gabriele Leite, está aqui conosco a jornalista Kátia Mello, editora de comportamento da revista Época. Também a jornalista Carla Gullo, que é redatora-chefe da revista Marie Claire. O jornalista Sérgio Torres, que é repórter da sucursal do Rio de Janeiro, do jornal Folha de S.Paulo. A professora Margareth Rago, professora titular do Departamento de História da Unicamp e autora do livro Os prazeres da noite: prostituição e códigos e sexualidade feminina em São Paulo (1890 e 1930). Conosco também está aqui o Paulo Caruso com as suas charges, retratando os melhores momentos do programa. Também temos ao nosso lado a nossa companheira, a repórter Carmen Amorim, que apresenta aqui as perguntas encaminhadas pelos nossos telespectadores ao nosso endereço eletrônico. Gabriela, boa noite, muito obrigado aqui pela entrevista.

Gabriela Leite: Boa noite, e eu é que agradeço pelo convite de estar aqui.

Heródoto Barbeiro: Gabriela, quando a gente fala aqui em regulamentação da profissão, o que a gente poderia estabelecer? Salário, décimo terceiro, direito à aposentadoria, recolhimento para a previdência social? Como é que a gente pode reduzir ou resumir quais são esses direitos trabalhistas?

Gabriele Leite: Então, a prostituição no Brasil não é crime. Crime é manter casa de prostituição. E como tudo que é proibido e existe cria máfias, existia uma máfia muito grande no meio dos chamados exploradores da prostituição, que não pagam direito nenhum para as prostitutas. Então, a gente está lutando para tirar do Código Penal esses senhores e senhoras, para que eles assumam os seus deveres com as prostitutas. E nada impedindo também que a prostituta consiga, como autônoma, pagar todos os seus impostos e também receber os seus direitos.

Heródoto Barbeiro: Essas pessoas que você citou seriam então os empregadores, é isso?

Gabriela Leite: É, empregadores, isso.

Heródoto Barbeiro: Aí eles recolheriam a previdência social como qualquer outro empregador no país?

Gabriela Leite: Exatamente. Porque da forma que é hoje, as prostitutas são extremamente maltratadas. Existem lugares no Brasil, por exemplo, em que elas ficam em cárcere privado. Eu vi isso lá no Oiapoque. As prostitutas presas numa casa, e o dono da casa dizia que as trancava com cadeado para elas não fugirem. Eles fazem o que querem porque como estão proibidos, pagam um dinheirinho para a polícia, para poder funcionar, e as prostitutas não têm nada.

Margareth Rago: Gabriela, eu queria dizer que é um prazer enorme estar aqui com você, e que a primeira vez que a vi você causou uma surpresa enorme no programa do Jô Soares. Isso faz mais de vinte anos, e acho que de lá para cá você continua nos surpreendendo sempre. Com toda sua experiência de luta pelos direitos das prostitutas, de questionamento na sua própria vida, dos estereótipos lançados sobre as mulheres, seja como vítima, seja como fatais, ameaçadoras para a cultura, com toda essa larga experiência e essa trajetória enorme, eu queria lhe perguntar o seguinte: você acha que a sociedade brasileira mudou em relação à prostituta? Você acha que os pânicos morais estão mais abrandados? Você acha que há um outro olhar em relação à prostituição? Entendendo que você é uma pioneira na construção desse novo olhar.   

Gabriela Leite: O que eu acho é assim: a sociedade sempre, com relação à prostituição, é meio a meio. Quando eu participo de algum programa que tem uma enquete, é sempre assim: 49%, 51%, contra, a favor. E sempre é contra e sempre é muito a favor, não tem meio termo com relação à prostituição. Com relação aos preconceitos, ao pânico moral e essa coisa toda, eu particularmente acho que piorou ultimamente. Eu sou uma pessoa que viveu a juventude na década de 70, quando a gente queria se abrir para tudo. De repente, como a sociedade, na minha opinião, vive em ondas, nós estamos vivendo uma onda muito conservadora. Outro dia eu dei uma entrevista aí para um jornal, para um site de um jornal, depois tinha lá os comentários das pessoas. Nossa! Era terrível! As pessoas me chamavam de vadia [enquanto relata, vai enumerando com os dedos], de sem-vergonha, que precisava de um tanque de roupa para lavar. Eu até mandei um e-mailzinho dizendo: “gente, hoje ninguém precisa lavar roupa no tanque, tem máquina de lavar, né”?. [risos] Então mandei e-mail falando isso. É assim, as pessoas ainda têm muito preconceito. Mas tem também as pessoas que acham que tem que ser por aí, que tem que mudar, que a prostituta tem que sair de debaixo do tapete. E eu continuo falando a mesma coisa há trinta anos: “prostituta é acima de tudo também uma mulher como outra qualquer”.

Margareth Rago: Porque é uma novidade muito grande que você traz, eu realmente não conheço outra pessoa que trouxe dessa maneira – eu conheço pessoas que vieram depois de você – que mudou o patamar de relacionamento com a prostituição. Quer dizer, você abriu um espaço em que não há uma pretensão de salvar a prostituta naquele sentido de retirá-la da prostituição, o que era uma estratégia que nunca deu certo mesmo, não é?

Gabriela Leite: Nunca, nunca deu certo.

Margareth Rago: Então, talvez você pudesse contar um pouco para nós isso, essa nova relação que você estabelece com a coisa, e de dentro.

Gabriela Leite: Eu acho que a princípio é muito boba essa história de querer salvar pessoas, né? É de uma pretensão imensa. E salvar o quê? As pessoas fazem suas opções, às vezes as opções são menores, às vezes são um pouquinho maiores, mas as pessoas fazem. E elas vão para os seus lugares porque elas estão optando por isso. E se ela quiser sair, eu acho que ela, como mulher, sai por si mesma. Ela começa a pensar: “não quero, não me dou bem nessa história, vou fazer outra coisa”. Como todas as pessoas. Então isso sempre me incomodou porque eu nunca quis que ninguém me salvasse, eu sempre tomei as minhas decisões. E quando o pessoal da igreja e tal dizia: “não, você precisa ter uma outra vida, se encontrar com Deus”. Eu dizia: “Não, eu quero ter minha vida do jeito que é”. Por isso que eu acho que não é por aí que a gente deve ver a questão da prostituição. A questão da prostituição deve estar inserida dentro das questões da sexualidade, das políticas da sexualidade, dos direitos sexuais, porque as feministas sempre disseram que estavam trabalhando os direitos sexuais e reprodutivos. Se você ler todos os relatórios das várias conferências internacionais, no Cairo, em Pequim, essa coisa toda, lá só tem os direitos reprodutivos. Os direitos sexuais estão ali juntos, para irem juntos na caixinha. Ninguém nunca mexeu com os direitos sexuais. E a prostituição, na minha opinião, é um direito sexual. E, de mais a mais, as pessoas se esquecem de que as prostitutas estão lá no seu trabalho trabalhando porque tem alguém que vai lá procurar elas. Então existe essa demanda, existe na sociedade. E para mim a grande história é sair de debaixo do tapete, se mostrar e dizer: “olha, eu sou uma delas e estou aqui, sou uma mulher inteirona, como qualquer outra mulher.

Carla Gullo: Existe também o estereótipo da prostituta, não é? O nome, chamar de filho da puta, etc e tal. Para as suas filhas, como é que foi durante a vida toda esse preconceito? Elas sofreram esses preconceitos? Elas sabiam da sua profissão, da sua opção? Como que era isso para elas?

Gabriela Leite: O preconceito é extensivo aos filhos. Eu faço muito questão do nome puta, é o que eu mais gosto, aliás, porque eu acho que a gente não pode esconder esse nome e colocá-lo de um modo que um dia fique bonito. Porque as pessoas não se tocam que os nossos filhos são o maior palavrão da sociedade brasileira, eles são literalmente filhos da puta. Então você imagine que para eles o preconceito também é muito grande. E, às vezes, quando eles têm revolta com a mãe, essa coisa toda, dá até para entender, é triste, mas dá para entender. Na escola eles vivem isso, na vida com os amigos, eles vivem isso. As pessoas comentam: “Nossa, sua mãe é puta, é prostituta”. É muito chato, né? Então eu acho que a luta maior é lutar contra esses estigmas todos, contra o nome, a favor dos nomes que a sociedade nos deu. E estar sempre discutindo com os filhos a respeito e nunca se esconder debaixo de uma segunda identidade, porque isso que eu acho pior.

Carla Gullo: Mas é preciso coragem, acima de tudo, porque você perdeu a guarda das suas filhas.

Gabriela Leite: Perdi. Porque quando você se assume, um monte de coisa pode acontecer. Você pode ter o apoio de muita gente como de fato eu tive na vida, muita gente sempre do lado e tal. E o desapoio, se é que existe essa palavra, o desapoio de um grande número de pessoas, inclusive da família muitas vezes. Então é assumir isso, e quando eu perdi minha filha, uma das filhas eu perdi na Justiça, a outra ficou com a minha mãe. Eu sempre pensei o seguinte: sabe o que acontece? Um dia eu vou ver essas meninas de novo. E pronto. Um dia eu vi de novo, um dia eu convivi de novo, um dia nós voltamos a nos abraçar, a nos beijar, também a brigar, porque assim são as relações.

Kátia Mello: O que a senhora diria para uma mãe que acabou de descobrir que a sua filha é prostituta? 

Gabriela Leite: Olha, eu diria a ela para entender a filha dela e para tomar muito cuidado no lugar em que vai trabalhar, não deixar ser explorada, não se deixar ser explorada. Porque eu acho o seguinte. O meio da prostituição do jeito que está hoje, sem leis e tudo mais, é um ambiente meio ruinzinho para trabalhar, entendeu? Então a gente tem que sempre procurar uma casa melhor, com uma pessoa com visão melhor de mundo e tal. Então, isso que eu acho que uma mãe deveria falar para filha que fosse para a prostituição.

Kátia Mello: A senhora disse, por exemplo, que as prostitutas não entram na profissão por dinheiro. Mas ao mesmo tempo, tem uma passagem do seu livro, que logo que você começou, que se iniciou na profissão, você teve esta sensação: “nossa, eu ganho muito mais aqui do que eu ganharia em um escritório”. Se não é por dinheiro, a senhora acredita que realmente a maior parte das prostitutas estão ali por prazer?

Gabriela Leite: Olha, eu nunca falei que ninguém entra na prostituição por dinheiro, eu digo que é uma opção. Quem gosta de trabalhar, né? Vamos falar sério. Trabalhar é uma chatice. Você trabalha porque precisa de dinheiro, senão ia viver o ócio da vida, essa coisa toda. Todo mundo! Você trabalha por dinheiro, ele trabalha, eu também trabalho por dinheiro. Quando eu falo da história, da vitimização e da opção, a opção necessariamente não é por conta de “não quero dinheiro”, todo mundo precisa de dinheiro. Eu acho a prostituição um lugar onde você ganha dinheiro sim, e dá para viver legal, na minha opinião.

Sérgio Torres: No Rio nós estamos vivendo um momento em que o governo do estado desapropria um prédio onde funciona uma boate conhecida como ponto de prostituição, prostituição de elite, digamos assim, um [...] meio sexual. O que lhe parece isso?

Gabriela Leite: Eu acho que é uma hipocrisia muito grande o que está acontecendo no Rio. Na verdade os novos governantes, quando entram, sempre dizem que vão limpar a cidade, e sempre começam pela parte mais fraca, né? A prostituição. Tanta coisa para fazer naquela cidade que eu amo, as pessoas vão mexer com a boate. Aquela boate no Rio de Janeiro [a boate Help, localizada na Avenida Atlântica, começou a ser demolida em 08/03/2010]... Tem estudos do Tadeu Blanchet, um antropólogo lá do Rio, que falam que é a boate que menos explora as prostitutas. Historicamente, ela inclusive faz parte da visão de Copacabana, com aquela sua logomarca e tal. Mas eles querem fechar e dizem que com isso estão limpando a cidade, dizem que precisam daquele prédio para mais um espaço para o Museu da Imagem e do Som. O Museu da Imagem e do Som já tem dois espaços no Rio de Janeiro e inclusive um dos espaços lá na Lapa está precisando de conserto, o acervo precisa ser melhorado, essa coisa toda e tal. Mas essa é apenas uma história para fechar a boate, e o dinheiro foi imenso, né? Eu já ouvi, já li em algum lugar que estão pagando lá para os donos trinta milhões, é isso?

Sérgio Torres: Olha, eu não sei se chega a isso não, mas é uma quantia alta mesmo.

Gabriela Leite: É, altíssima. Quer dizer, estão pagando um dinheirão para fechar uma boate que estava ali funcionando para as meninas muito bem, mas as pessoas ficam nervosas de ver aquelas meninas ali.

Sérgio Torres: E elas vão para onde? Isso já é discutido entre vocês?

Gabriela Leite: Olha, ali tem o Balcony, um outro lugar a que as meninas vão, e uma série de outras boates. Agora, o melhor lugar para trabalhar era ali mesmo. Era ali.

Heródoto Barbeiro: Gabriela, uma prostituta pode ser confundida com amante? É a mesma coisa?

Gabriela Leite: Jamais.

Heródoto Barbeiro: Jamais?

Gabriela Leite: Jamais.

Heródoto Barbeiro: Qual é a diferença entre uma coisa e outra?

Gabriela Leite: A amante sempre quer ser esposa. Ela se torna amante, “Ah, eu amo esse homem”! Então logo mais ela quer tirar a mulher do cara e tal, essas coisas.

Heródoto Barbeiro: Porque geralmente a esposa xinga a amante de prostituta, não é isso?

Gabriela Leite: É, mas é uma bobagem, porque uma prostituta jamais quer o marido de ninguém. Ela está ali para aqueles momentos em que ela fica com o homem. Muitas vezes os homens vão à zona, nem sempre por sexo, mas para conversar, para falar das coisas, dos medos que eles têm, sobre sexualidade e tal. E dali a dez minutos, se a prostituta encontrar com ele na rua, andando com a mulher dele, ela não conhece. Ela nunca tem telefone de homem, nada disso.

Heródoto Barbeiro: Não tem nenhuma ligação sentimental?

Gabriela Leite: Bom, ligação sentimental é aquele sentimento que você tem por uma pessoa, né? Se a pessoa é legal... Eu tive clientes que se tornaram meus amigos para sempre, entendeu? Que quando a gente fez o Primeiro Encontro de Prostitutas no Rio, vários clientes meus foram lá para dar solidariedade, perguntar se precisava de alguma coisa. Então tem pessoas que ficam amigas, outras não; e você fica ali, toma uma cervejinha, conversa. Eu tenho uma colega lá no Rio de Janeiro, a Maria, que ela tem sessenta anos, com corpinho, ela desfila na Daspu e tudo, inteiríssima, ela tem clientes de 35 anos. Ela já sabe os clientes – ela agora trabalha pouquinho, claro, com sessenta anos – que ela atende hoje, amanhã, depois: “segunda-feira, tenho fulano; terça, sicrano”. Acaba ficando amigo, é isso.

Carmen Amorim: Gabriela, tem uma pergunta aqui do Mario Osmar de Jesus, de São Paulo. Ele quer saber o que você pensa sobre essa rede de prostituição infantil no Brasil. O que deve ser feito para combater? 

Gabriela Leite: Uma das coisas que para mim é importantíssima é separar uma coisa de outra. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, né? A prostituição consentida, que é essa prostituição adulta, essa é uma questão, é por esta que nós lutamos. Mas isso deve ser separado da exploração sexual de crianças e adolescentes, e também deve ser separado do tráfico de seres humanos, porque são agendas diferentes, são coisas diferentes. A questão das crianças, eu particularmente acho, e acho que todo mundo deveria achar, que numa sociedade ideal, criança não trabalharia em nada. Não é só a prostituição. Então as pessoas falam: “Oh, meu Deus, está na prostituição”. Mas aí a criança está trabalhando lá na roça, está cortando cana com sete, oito anos de idade. Para mim é tudo a mesma coisa. Criança deve brincar e estudar. Eu acho que este país deve tomar vergonha na cara com a história das suas crianças, porque se fala muito da tal rede de prostituição infanto-juvenil e tudo mais, mas ninguém faz nada, ninguém faz nada para mudar isso. A gente, por exemplo, nós prostitutas, podemos ajudar muito essa história. Mas quando você vai denunciar, você vai denunciar para quem? Porque já aconteceu um caso, por exemplo, em Belém do Pará, há alguns anos atrás, em que estouraram lá uma casa de prostituição que tinha criança. Aí tiraram as meninas de dentro da casa e não sabiam onde pôr. E botaram num motel no centro da cidade. Aí passou um monte de dia, não sabiam o que fazer com elas, soltaram as meninas, e elas voltaram lá para casa. Nesse meio tempo, o dono da casa também foi solto da cadeia. Então é sempre assim, é sempre uma grande hipocrisia. Tem que ter programas, tinha que ter uma história para se ver a questão do trabalho infanto-juvenil e a exploração sexual.

Margareth Rago: Eu queria lhe fazer uma pergunta, Gabriela. A gente já conversou sobre esse assunto várias vezes, mas eu gostaria de conversar aqui publicamente. Nós somos de uma geração que fez muitas transformações, não é? Sem dúvida alguma, a virgindade era uma questão de honra para as mulheres antes do casamento, e todas essas histórias que todo mundo conhece muito bem. Então, de uma certa maneira, houve uma liberação sexual enorme, sobretudo na sociedade brasileira da década de 70 para cá. E existia um discurso, principalmente da esquerda, de que a prostituição terminaria com essa liberação sexual, com essas transformações, etc e tal. E não aconteceu nada disso, não é? Foi exatamente o contrário: a prostituição proliferou, se sofisticou, atingiu outros setores, inclusive o dos homens, não é? Apareceu essa nova categoria – os prostitutos. Como você explica isso assim um pouco... e certamente não é a questão econômica, não é? Não é a questão econômica porque a coisa ampliou muito. Certamente tem a ver com a sexualidade, e várias vezes você diz isso, que existe um problema muito grande com a sexualidade no nosso mundo, há uma dificuldade muito grande. Então você poderia falar um pouco sobre isso?

Gabriela Leite: Então é isto: eu nunca acreditei que a prostituição ia diminuir ou acabar com a liberação sexual, a famosa liberação sexual que na verdade houve e não houve. Eu acho que a grande liberação sexual para a mulher, concretamente, foi o advento da pílula. Isso fez com que um monte de coisa mudasse, que você pudesse ter a sua vida sexual sem ter filho, que era o grande problema e tal. Mas uma coisa não mudou: as fantasias sexuais, o mundo das fantasias sexuais, o mundo dos desejos que é um baita mundo, que pouca gente mexe com isso. Eu acho que [Gilles] Deleuze [(1925-1995), filósofo francês, cuja maior parte das obras são interpretações de filósofos modernos como Spinoza, Hume, Kant, Nietzsche, Bergson, Foucault e também de obras de artistas como Proust e Kafka. A questão do prazer e das fantasias sexuais, mencionada por Gabriela, talvez seja discutida no livro Sacher-Masoch: O frio e o cruel, lançado em 2009, obra em que Deleuze compara o sadismo com o masoquismo] mexeu com isso, mas muito pouco também, um ou outro cara mexe com essa história de discutir essas questões da sexualidade, das fantasias sexuais, que é um mundo à parte, é um mundo vastíssimo, e isso a liberação não ia resolver. Então a prostituição continuou; a prostituição com a tal da liberação também começou a aumentar o número de mulheres que vão procurar os meninos. Ainda é muito pouquinho [risos], ainda é muito pouquinho isso. E isso mostra alguma coisa sobre a nossa liberação de mulher, porque a mulher tem um certo medo de ir à procura dos seus desejos, né?

Margareth Rago: A prostituição é um espaço masculino, né? 

Gabriela Leite: É, essencialmente masculino.

Margareth Rago: Ele é destinado aos homens, à satisfação dos homens, não das mulheres.

Gabriela Leite: É, mas as mulheres...

Margareth Rago: [interrompendo] E aliás, era um assunto que só homens falavam, até há pouco tempo. Acho que é a primeira vez que eu estou vendo mulheres falando de prostituição publicamente.

Gabriela Leite: Falando e também se quiser frequentar, existem espaços para isso. [risos]

Heródoto Barbeiro: Gabriela, nós vamos fazer aqui o nosso intervalo. Eu digo a vocês que nós vamos voltar daqui a instantes aqui no Roda Viva. Nós estamos aqui acompanhando também duas usuárias do comunicador twitter que estão aqui conosco, colocando na internet os seus comentários sobre o programa que você está acompanhando também. São elas: a Michelle Fortuna, que é publicitária, e a Célia Parva, que é produtora. Nós voltamos em instantes, até já.

[intervalo]   

Heródoto Barbeiro: Nós voltamos aqui no Roda Viva, hoje a nossa convidada é a Gabriela Leite. Ela foi prostituta nos anos 70 e 80 e agora luta pela regulamentação da profissão. Gabriela, entre outras resistências que eu suponho que existam, como é a do ponto de vista religioso? Haja vista que a gente vê que algumas religiões condenam drasticamente a profissão, dizem que é pecado, que vai para o inferno. Outras mandam lapidar, que é jogar pedra na pessoa, está cheio desses episódios. Como é que a gente enfrenta, além do problema social, do preconceito moral, daquilo que falávamos agora há pouco no bloco anterior, como romper a barreira religiosa de algumas religiões?  

Gabriela Leite: Eu acho que a única maneira que existe é sair de debaixo do tapete como eu falei no início.

Heródoto Barbeiro: O que quer dizer sair de debaixo do tapete?

Gabriela Leite: Sair do escuro. Nós, prostitutas, sempre ficamos debaixo do tapete, lá na escuridão, entendeu? Então, a gente nunca aparecia devido ao estigma, ao preconceito, ao medo de levar pedradas, mesmo que simbolicamente, e a gente não aparecia em lugar nenhum. A gente passou toda nossa vida sempre... todo mundo falava o que era melhor para a prostituta, o que era o pior e tal, mas nunca ninguém foi perguntar a nossa opinião. Eu acho que hoje a gente mudou isso. Nesses quase trinta anos de movimento, a gente conseguiu...

Heródoto Barbeiro: As religiões aceitam ou não?

Gabriela Leite: Não, não aceitam, mas é isso. O que eu acho é o seguinte. A gente deve estar falando, falando, falando, porque as religiões demoram um pouquinho, um poucão [reformulando] para acompanhar as mudanças da sociedade. Eu acho que de tanto a gente falar, eles podem vir a mudar. Outro dia uma amiga estava me contando, lá em Genebra, que lá no Cazaquistão, uma mulher do Cazaquistão, uma prostituta de lá, estava conversando com os mulçumanos do Cazaquistão a respeito das prostitutas. E aí os caras falaram: “mas aqui no Alcorão diz que elas são filhas de Deus, essa coisa toda, vamos conversar”. Então as coisas podem ir mudando aos pouquinhos. Existem igrejas que nos consideram vítimas de uma sociedade cruel, pobre e tudo mais, então precisa trazê-las para o mundo do lado de cá. Então o que a gente faz? É conversar, tentar conversar e ir com eles até onde a gente pode ir.

Heródoto Barbeiro: É como é que vocês rompem esses dogmas religiosos, isso que é pecado? 

Gabriela Leite: Bom, é pecado para eles, né? [rindo] Para mim não é. Eu continuo sendo uma pessoa, um ser humano, que acredito nas minhas questões. E se é pecado para eles, tá bom, vou deixar eles acreditarem que eu vou para o inferno e tal. E nós continuamos por aí com a nossa história. [rindo]

Kátia Mello: No livro a senhora diz que um dos mandamentos para as prostitutas é não se apaixonar pelo cliente. Eu queria que a senhora falasse um pouco das suas paixões, como é que a senhora nunca se apaixonou por um cliente ou se é que isso realmente aconteceu. E por que relacionamento entre cliente e prostituta não dá certo?  

Gabriela Leite: Eu nunca me apaixonei por cliente. Eu tenho colegas que já se apaixonaram, mas nunca dá certo, é um horror, porque o sujeito, na primeira briga, diz: “Ah, eu te tirei lá daquela vida horrível”. É sempre assim, que salvou, é o marido maravilhoso e tal. Eu tive muitos amores na vida, eu sou uma mulher que adoro casar, mas nunca [casei com] cara que foi meu cliente. Eu fui mulher de sambista, eu fui mulher de intelectual, meu marido é jornalista, mas sempre fora da prostituição, fora daqueles clientes meus. Porque eu nunca botei a mão no fogo por homens que tive que [eles] não procuravam prostituta. Para mim todos os homens um dia foram procurar prostitutas, mas não foram meus clientes, entendeu? Pode ter sido cliente de outra, mas eu nunca quis me apaixonar, eu nunca tive vontade de me apaixonar por clientes. E acho que isso deve ser uma norma para a prostituta, porque é muito ruim se apaixonar por cliente. Mas isso é minha opinião e de uma parcela das prostitutas, não todas. Algumas se apaixonam, saem da prostituição, são salvas, logo mais estão de volta.

Carla Gullo: Gabriela, o beijo entre a prostituta e o cliente realmente é algo que não deve rolar? Ou isso é mentira?  

Gabriela Leite: Não, não deve existir beijo entre prostituta e cliente. É uma parte... Sabe, a prostituição é milenar, né? Então ela criou regrinhas para si própria, no mundo inteiro é igual. Então se criou, foi se criando, e tudo no oral, foi se criando regras: “não, isso pode, isso não pode, isso pode”. A questão da nossa intimidade está na história do beijo na boca. Nenhuma prostituta beija na boca. 

Carla Gullo: Mas existem muitos fetiches, né? Os homens têm fantasias e coisas assim que eles colocam para vocês e vocês... Existe um código também entre vocês nisso?  

Gabriela Leite: Não. Prostituta é especialista em fantasia sexual.

Carla Gullo: Exatamente.

Gabriela Leite: Então ela tem que trabalhar as fantasias que ela se sente bem. Por exemplo, na Europa, existem mulheres especialistas em sadomasoquismo. E elas fazem cursos. Onde a prostituição já está liberada como na Alemanha, na Holanda, existe curso porque é um negócio meio perigoso inclusive. Então elas são especialistas...

Carla Gullo: Segmentam?

Gabriela Leite: Segmentam a história e tal. E ninguém é obrigado a fazer o que não quer. Então mais ou menos assim, as pessoas  – aqui que não é tão profissionalizado como na Europa – se dividem naquilo que gostam, nas várias fantasias e tal, são muitas, são muitas.  

Carmen Amorim: Gabriela, existe pela nossa enquete aqui a participação das pessoas no bate-papo e elas estão querendo... há muita discussão nesse sentido porque elas querem saber se a questão da prostituição e a ONG em que você participa, que lidera, se ela congrega só mulheres ou se tem homens também. Porque há homens, homossexuais e travestis que também ganham a vida com o sexo. Como é que eles ficam? 

Gabriela Leite: Bem, existe aqui em nosso país, um movimento homossexual fortíssimo, que vem trabalhando muito pelos direitos dos homossexuais e pelo fim do preconceito contra os homossexuais. As travestis têm seu próprio movimento, muitas delas começaram com a gente, com o nosso movimento. Mas depois elas perceberam que têm um monte de diferenças com relação à gente, até porque a história delas, em primeiro lugar, é uma questão de identidade, de gênero. A prostituição vem em segundo lugar, entendeu? E elas têm o seu próprio movimento que hoje vem se desenvolvendo em todo Brasil e tal. Tudo isso começou, teve uma grande força a partir do Programa Nacional de Aids, na prevenção da aids neste país. O movimento de aids e o programa nacional é modelo no mundo inteiro por ter levado todas essas pessoas para trabalhar junto, fazer política junto, e daí as pessoas foram criando o seu movimento. O nosso não. Nosso movimento – o das prostitutas e dos homossexuais – é anterior à aids. Mas as travestis começaram a se organizar bastante a partir da luta contra a aids.  

Heródoto Barbeiro: Gabriela, deixa eu entender então. As prostitutas são só mulheres? Homens não?

Gabriela Leite: Mulheres.

Heródoto Barbeiro: E travestis também não?

Gabriela Leite: Travestis também não.

Heródoto Barbeiro: Ainda que eles vivam da prostituição?

Gabriela Leite: É, mas eles podem ter o movimento deles, entendeu?

Heródoto Barbeiro: Não, não, sim, eu digo, mas teoricamente...

Gabriela Leite: O nosso movimento não tem, por uma questão do jeito que nós começamos. Se um dia aparecerem homens e travestis que aceitem a nossa forma de ver a prostituição, podem participar. Mas quem começou o movimento de prostitutas fomos nós, as mulheres.

Heródoto Barbeiro: Então esse movimento de regulamentação que você lidera é só para mulheres?

Gabriela Leite: Não, é para todo mundo participar.

Heródoto Barbeiro: Não, é para todo mundo?

Gabriela Leite: O Brasil é um só, é uma federação, é para todo mundo. Quando a gente conseguir toda a história, todo mundo vai se beneficiar da questão. Agora, a Rede Brasileira de Prostitutas que hoje tem trinta e poucas associações pelo Brasil, que já fez vários encontros e tal, é o movimento de mulheres, assim como as travestis têm seu próprio movimento, os homossexuais têm seu próprio movimento. São os movimentos alternativos que surgiram, a partir da década de 80 no Brasil.

Margareth Rago: Eu queria fazer umas colocações, Gabriela, em relação à atuação em sua ONG Davida. A ONG Davida foi fundada em 1992, não é? Mas você já tinha tido uma atuação anterior ao longo da década de 80; 1987 foi o primeiro encontro nacional das prostitutas. Quer dizer, há toda uma trajetória de lutas, e é também esse momento de redemocratização, mas ainda com muito autoritarismo. Então eu queria que você contasse um pouco para nós os projetos que a Davida desenvolve, vem desenvolvendo. Eu sei que muitas das prostitutas trabalham como educadoras sexuais também, elas fazem trabalho. Eu não sei se a população sabe dessas coisas, acho que seria interessante trazer um pouco quais são os projetos que a ONG desenvolve e que articulações ela tem. Por exemplo, vocês participaram do Fórum Social Mundial, não é?

Gabriela Leite: Foi.  

Margareth Rago: Acho que seria interessante falar isso. E toda essa movimentação a levou para Nova Iorque, para Alemanha. Aliás, eu gostaria de contar para todos aqui que existe um livro escrito sobre a ONG Davida, mas eu não consegui ler até agora porque ele está em alemão, foi escrito em alemão pela Fried, né? Como que ela chama?

Gabriela Leite: Friederike Strack [socióloga alemã].

Margareth Rago: Pois é, o livro está em alemão, então não dá ainda para a gente ler, quem sabe ele será traduzido. Mas você poderia contar um pouco para nós a história da Davida. 

Gabriela Leite: Eu trabalhava numa outra ONG lá do Rio de Janeiro, eu fui convidada, quando comecei a falar em público. Eu trabalhava e morava na Vila Mimosa e aí eu fui convidada para ir para uma ONG para sistematizar o meu trabalho. E eu tinha um sonho de fazer um encontro nacional. Eu já conhecia várias meninas aí pelo Brasil, porque eu viajava muito. Aí lá dentro dessa ONG, eu consegui fazer o primeiro encontro, com sete mil dólares, que eu nunca vou esquecer. O Zwinglio Mota Dias, um cara muito legal, que trabalhava na ONG, correu atrás desse dinheiro; com sete mil dólares nós fizemos o primeiro encontro. E foi muito difícil fazer o encontro. Os hotéis não queriam hospedar as meninas, a gente não tinha sala para fazer. Era um horror porque o preconceito era imenso, muito grandão mesmo. Mas fizemos. E a partir desse encontro, a gente sistematizou mais tudo o que queríamos fazer para nós mesmos, como por exemplo, criar uma rede de contatos entre nós no Brasil todo. Nós criamos um jornal porque era uma época em que a gente só era notícia nas páginas policiais dos jornais. Quando existiam as páginas policiais, a gente era só notícia na página policial. Então nós criamos nosso jornal, Beijo da Rua, em 1988, é um jornal alternativo, antiguíssimo, desde o princípio editado pelo meu companheiro Flávio, porque ele é jornalista. E o Beijo da Rua faz muito sucesso, ele é mandado para todas as meninas das associações do Brasil e está na internet. E aí foram passando os anos, nós resolvemos que iríamos criar uma ONG própria para trabalhar as nossas questões, ter uma missão clara, as prostitutas, organizadas, juntas e tal. E aí criamos o Davida, que vem de "mulher da vida", mas é "Davida" tudo junto, né? E a gente tem vários trabalhos aqui na região Sudeste, mas principalmente no Rio de Janeiro. Eu não acredito em movimento social sisudo, sabe? “Prostitutas unidas jamais serão vencidas”. Eu acho um horror isso, com palavras de ordem e tal. Eu acredito num movimento com uma arte, com cultura. Então, por exemplo, a gente tem um bloco de carnaval lá no Rio de Janeiro, na Praça Tiradentes, que já entrou para o calendário oficial da cidade do Rio nos blocos.   

Margareth Rago: Como ele chama?

Gabriela Leite: Chama-se “Prazeres Davida”. A gente tem uma seresta que acontece toda última quinta-feira do mês, ela é itinerante nas áreas de prostituição. E aí o que eu fiz? Contratei uma professora de canto porque as meninas estavam cantando muito desafinado, e o povo da seresta dizia assim: “Ah, essas mulheres cantam muito desafiado”. Aí eu contratei a Denise, uma professora de canto, então tem aula de canto para as meninas. A gente também tem todo o trabalho de saúde da mulher, da prevenção de aids. As meninas são educadoras, a gente faz oficinas, tal, e as meninas vão para as áreas de prostituição delas mesmas para levar informações, preservativos, fazer reuniões e tudo mais. Esse é um trabalho, que foi considerado agora pela ONU, num relatório que eles fizeram, um trabalho modelo para o mundo, que a gente começou lá pela década de 80. A nossa prevalência de aids no meio da prostituição é uma das menores do mundo; o uso de preservativo tem um índice muito alto, não só no Rio de Janeiro, como no Brasil, através das nossas associações. E a gente tem parceria com o Ministério da Saúde e também com o Ministério da Cultura.

Sérgio Torres: Gabriela. voltando um pouco no tempo, trinta anos, um pouco mais talvez, você era uma universitária, uma socióloga que, em determinado momento, tomou a decisão de virar prostituta. Por que você tomou essa decisão? Hesitou em algum momento?

Gabriela Leite: É, no começo foi difícil, mas acontece que eu andava meio cansada da vida que eu levava, sabe? Era assim: eu trabalhava num escritório em São Caetano, estudava na Cidade Universitária e morava no Jabaquara. Eu andava o tempo todo de ônibus, a minha vida era acordar às cinco horas da manhã – porque eu detesto acordar cedo, detesto. A minha vida começa tarde e eu não podia ficar no meu divertimento predileto, por exemplo, que era ficar à noite no botequim, quando eu saía da faculdade, conversando sobre teatro, arte, aquela coisa. E aí eu sentava ali no antigo bar Redondo, aqui na Praça Roosevelt, com pessoas do teatro, o pessoal do [Teatro] Oficina, Plínio Marcos, que foi meu grande amigo [ver entrevista com Plínio Marcos no Roda Viva]. Tinha o hotel Hilton e embaixo tinha uma boate muito famosa na época, aqui em São Paulo, a boate Laricórnio. E eu via as meninas chegarem para trabalhar, aquela coisa, tarde da noite, eu já tinha saído da faculdade, tinha acordado cedão, e elas chegando assim perfumadíssimas para trabalhar. Claro, era uma visão mais romântica para mim, mas eu falei: “porra, eu podia fazer um negócio desse, né?”. [risos] Aí um dia eu tomei a decisão, estava de saco cheio de tudo, minha mãe me prendia muito dentro de casa, apesar de eu trabalhar, estudar, essa coisa toda. Eu não podia ter uma vida de boemia e tal. Falei: “ah, vamos ver esse negócio”. Daí eu entrei numa boate na [rua] Major Sertório, a boate Michel, e eu me vestia de hippie, nessa época era moda. Eu tinha um cabelão assim [coloca as mãos paralelas à cabeça], uma saia toda cheia de rendas. Imagina, eu entrei na boate assim, foi muito engraçado, com uma blusa cheio de babadinho. Todo mundo ficou me olhando assim, estranhérrimo, mas aí eu me senti envergonhada, entrei e saí. Mas também eu não gostei, até hoje eu não gosto de boate, eu não gosto da barulheira de boate, essas coisas todas, eu nunca gostei de trabalhar em boate. E aí eu estava subindo a Major Sertório, eu parei num botequim desses bem “pé sujo”, para tomar uma cerveja, sozinha. E aí tinha uns homens lá bebendo e tal, e eu contei a minha triste história para eles, e um deles era marido de uma cafetina na [rua Visconde do] Rio Branco, no 623, que era um prédio de prostituição aqui de São Paulo. Ele me deu um endereço: “olha, se você quiser ir lá”. E eu fui no dia seguinte. E era assim uma visão de filme de [Luis] Buñuel [(1900-1983) diretor cinematográfico espanhol vinculado ao movimento surrealista e com obra de forte crítica à burguesia], entendeu? Aquelas escadas, aquele prédio de dez andares, mulheres em todas as escadas, assim e tal, chamando os homens. Eu fiquei com um certo medo, com preconceito também, porque eu sou filha dessa sociedade. Mas aí eu procurei lá a cafetina e falei: “eu quero trabalhar. Eu nunca trabalhei na prostituição”. Ela disse: “Todas que chegam aqui falam isso”. [rindo] Mas eu falei a verdade. Daí eu fui, com medo, foi muito difícil também, mas eu assumi o risco do meu medo, do meu preconceito, e depois eu comecei a conhecer o mundo, as meninas, as minhas amigas. Tenho amigas daquela época ainda.

Sérgio Torres: Eu acho que deve ser raro uma pessoa com o seu perfil aderir à prostituição. Você conhece outras pessoas com mais ou menos a mesma história de vida que a sua?

Gabriela Leite: Não, poucas, mas eu conheço. Hoje em dia, por exemplo, se você for nessas boates chiquérrimas aqui em São Paulo, mesmo lá no Rio, você encontra meninas universitárias. Está até na moda menina universitária na prostituição. Na minha época era mais difícil. Teve uma, mas não foi prostituta, uma cafetina famosa lá de uma cidade do interior, que até fizeram um livro sobre ela [Eny e o grande bordel brasileiro, do jornalista Lucius de Mello]...

[...]: Bauru.   

Gabriela Leite: Bauru. A Eny, de Bauru, foi uma mulher que estudou, fez universidade e tal, e criou uma das casas de prostituição mais chiques do Brasil.

Sérgio Torres: Quando você fala que está na moda, você se refere a esses blogs, aos livros dessas jovens, a Bruna Surfistinha  [ex-prostituta,  ficou famosa a partir de 2005, quando escreveu um livro autobiográfico, O doce veneno do escorpião] que se destacou há dois, três anos? O que você acha disso? Acha válido elas contarem as histórias e tudo?

Gabriela Leite: Olha, eu conheço a Bruna pessoalmente, eu conhecia a Bruna antes de ela escrever esse livro. São duas questões primeiramente: a Bruna é muito jovenzinha. E a princípio – eu falo isso porque já conversamos sobre essas questões – ela tinha uma visão muito contraditória sobre a prostituição. Ela estava mostrando as histórias da sexualidade, das fantasias sexuais, mas ela dizia que isso era um mundo horrível e tal, que ela queria sair de tudo isso. No passar de um certo tempo, a Bruna, se você ver o blog da Bruna, ela mudou, ela está mudando. Ela está tendo mais consciência política da história da prostituição. E assim outras meninas também; elas começam falando de uma história assim mais para curiosidade e depois elas começam a ver que dá para pensar a prostituição de outra forma.     

Heródoto Barbeiro: Ok. Gabriela, nós vamos fazer mais um intervalo aqui nesta nossa entrevista no Roda Viva. Eu queria lembrar você também que a memória aqui do programa Roda Viva está disponível no nosso site que é o tvcultura.com.br/rodaviva, e você pode então pesquisar o conteúdo do nosso arquivo e também mandar aqui os seus e-mails com suas críticas, sugestões, enfim, aquele processo que é pertinente no nosso programa. A gente vai voltar em instantes. Até já.  

[intervalo]

Heródoto Barbeiro: Bem, hoje nós estamos aqui com a nossa convidada, você acompanha no Roda Viva a entrevista com a Gabriela Leite, fundadora da ONG Davida e também criadora da grife Daspu. Gabriela, nessa luta que você explicou aqui para os nossos telespectadores, da regulamentação dessa profissão, eu suponho até que regulamentação deve passar por um projeto no Congresso Nacional.   

Gabriela Leite: Exato. É

Heródoto Barbeiro: Então eu pergunto a você o seguinte: tem alguma prostituta eleita no Congresso Nacional?

Gabriela Leite: Não, no momento não.

Heródoto Barbeiro: Não tem nenhuma prostituta deputada federal, prostituta senadora?

Gabriela Leite: Não, ainda não, mas nós vamos ter uma hora dessas, e não serei eu, com certeza, [risos] porque isso não é minha onda não, né? Mas existem colegas que têm o desejo de se candidatar. Uma minha amiga de Belém do Pará, Maria de Lourdes Barreto, já se candidatou a vereadora, sem dinheiro nenhum, lá em Belém, ela teve três mil votos.

Heródoto Barbeiro: Se elegeu ou não?

Gabriela Leite: Não, não se elegeu porque lá a quantidade, a proporcionalidade é muito maior que aqui. Mas a gente está se preparando para isso em termos de movimento. A gente está com um projeto de lei no Congresso Nacional, de autoria do deputado Fernando Gabeira, que já teve um voto a favor e um voto contrário na Comissão de Constituição e Justiça. A favor foi o do Chico Alencar, e o contrário foi do ACM [Antonio Carlos Magalhães] Neto [neto de um dos mais influentes políticos brasileiros no cenário nacional, mais conhecido pelo acrônimo ACM, e que governou a Bahia por três mandatos]. E não vai para votação nesta legislatura, o deputado Gabeira acha que não é legal porque vai perder, o Congresso está extremamente conservador, e a gente não tem voto suficiente.    

Heródoto Barbeiro: Você acha que assim como em outros segmentos da sociedade brasileira, as pessoas se organizam para tentar pressionar o Congresso Nacional, para tentar montar movimentos de cidadania, é possível também as prostitutas fazerem a mesma coisa para pressionar o Congresso, pressionar a Câmara?

Gabriela Leite: Ah, é possível! Advoga-se um nome mais bonito para lobby, e ficar fazendo tudo isso, ver quais são os deputados com quem se pode conversar, os senadores. Nós temos mais ou menos hoje em dia no Congresso Nacional, uns cinco deputados a nosso favor – são quinhentos e tanto, né? – pelo menos na Comissão de Constituição e Justiça. Então a gente precisa estar conversando sempre, e precisa ter um dinheiro específico, um projeto específico para fazer isso. Você imagine que a Igreja Católica, por exemplo, tem pessoas de plantão lá todo dia.  

Heródoto Barbeiro: A bancada religiosa lá faz pressão contra ou não?

Gabriela Leite: Faz, a bancada religiosa faz muita pressão contra. E alguns deputados... Eu, por exemplo, fui obrigada – eu não sei se posso falar isso aqui – a ouvir, meus ouvidos foram obrigados a ouvir o deputado [Paulo] Maluf falando que regulamentar a prostituição era uma imoralidade. Eu fui obrigada a ouvir isso. Agora a hipocrisia com relação à moral sexual é muito séria, e não é tão cedo que nós vamos conseguir, disso eu tenho certeza. Nós vamos ter que trabalhar muito lá no Congresso. Existe, por exemplo, uma ONG de mulheres em Brasília que se chama Cemina, e elas estão ali somente para fazer esse trabalho de advogar, nos vários projetos de leis sobre mulheres. E a gente está pretendendo inclusive trabalhar com elas. É difícil, é muito difícil.   

Carmen Amorim: Tem uma pergunta aqui do Roberto Carlos dos Santos, de Patos de Minas. Ele quer saber o que o governo federal tem feito com relação à prostituição, e se existe aqui no Brasil algum órgão que contabiliza sobre essa violência contra as prostitutas. Quer dizer, tem algum entidade que está vendo isso de perto, está contabilizando, o que o governo tem feito em relação a isso? 

Gabriela Leite: Nós, no Davida, começamos agora com alguns acadêmicos, pesquisadores, no nosso departamento de pesquisa, um trabalho de levantamento das relações de direitos humanos de prostitutas em 11 capitais do país, porque a gente quer fazer esse levantamento muito bem feito, para mostrar para a sociedade, está aqui, é isso que existe contra a prostituta na sociedade. Agora, com relação ao governo, como eu disse anteriormente, nós temos parceria com o Programa Nacional de Aids do Ministério da Saúde, desde 1989, trabalhando sistematicamente a prevenção de aids; no programa Saúde da Mulher, nós trabalhamos juntas também, sistematicamente.  

Heródoto Barbeiro: Gabriela, você acha que a sociedade teme que a regulamentação da profissão possa atrapalhar o desenvolvimento da família? [Gabriela ri neste ponto da pergunta] Possa ser um elemento desagregador da família?    

Gabriela Leite: É, eu acho que tem gente que pensa isso, pessoas religiosas pensam isso. 

Carla Gullo: Ou estimular a profissão?

Gabriela Leite: Estimular a profissão, também pensam isso. Eu acho que isso não estimula a profissão; não estimula e nem desestimula, sabe? É apenas uma luta para se melhorar as condições e essa coisa. Mas a história da família, muita gente fala disso, as pessoas religiosas, tal, pá. E aí torna-se difícil toda a história. Mas a gente vem trabalhando, porque a prostituição existe, não adianta dizer que não existe. Há quase trinta anos eu falo isso, desde que eu comecei a aparecer em público, eu digo para as pessoas: “está vendo euzinha aqui? Eu. Eu sou uma prostituta, eu existo, as minhas colegas existem e nós somos mulheres”. Outro dia eu estava numa reunião em Washington, eu fui ao Movimento Feminista Nacional do Estados Unidos, e aquelas senhoras antiguinhas - sabe, Margareth? –, aquelas que começaram a queimar sutiã e tal. Eu juro que fiquei emocionada de vê-las, aquelas mulheres históricas, né? Aí quando eu fui me apresentar para as pessoas, eu disse: “Meu nome é Gabriela Leite, eu sou prostituta lá do Brasil, eu sou uma prostituta feminista”. Aí as feministas velhinhas falaram assim para mim: “Não, você não é feminista”. Eu falei: “como assim?” “Não, você não pode ser feminista, você não é. Prostituta e feminismo são duas coisas completamente diferentes”. Eu falei: “não, minha amiga, eu sou mulher, e como mulher, eu sou uma mulher feminista”. “Não, não pode”. E começou uma briga: pode, não pode, pode, não pode... [risos] Então é para você imaginar como é toda essa história. E depois o pessoal lá de Washington dizia: “Pô, você fez de propósito, né?” Eu digo: “Não, eu não fiz de propósito, é verdade. Eu sou uma mulher prostituta feminista, e daí”? Quem pode falar contra isso? Não é verdade?    

Kátia Mello: Eu queria saber como é que está a violência policial contra as prostitutas, se melhorou ou piorou. E que tipo de atitudes vocês têm para combater isso?

Carmen Amorim: Deixe eu fazer uma complementação a sua pergunta, porque tem aqui também uma pergunta do Márcio Medeiros de Souza, de Queimados, no Rio de Janeiro. Ele quer saber se existe mesmo essa participação de policiais na exploração das mulheres na prostituição, ele gostaria que você falasse sobre isso.  

Gabriela Leite: Opa se existe! A qualquer área de prostituição que você vai no Brasil, você encontra policial dono de casa, ex-policial às vezes, você encontra toda a história da corrupção policial na área de prostituição. Tem o nome, né? Todo mundo sabe o que é PP em prostituição. PP é o nome popular para pagamento à polícia. É verdade! Chega final de semana, quando tem mais dinheiro na zona, em qualquer cidade deste país, tem carro de polícia de delegacia de outra cidade para ir buscar dinheiro, em nome da proteção e tudo mais. Então a polícia, quer dizer, não toda polícia, certo? Mas existe uma parcela da polícia que está envolvida com isso. Agora, com relação à violência, na maioria das capitais brasileiras, a gente já conseguiu melhorar essa história, porque a gente denuncia, temos advogados nas associações para ir à luta com relação a isso. Então, em alguns casos como em Porto Alegre, as meninas foram convidadas pelo comandante da PM de lá – lá tem outro nome, não é PM, não importa, Brigada, né?

Kátia Mello: Brigada.

Gabriela Leite: Brigada Militar. Foram convidadas pelo comandante para dar umas aulas do que é prostituição para os caras lá dentro da polícia e tal, os meninos e tal. E ficou famoso isso, inclusive para eles saberem como tratar uma prostituta, o que é uma prostituta, essa coisa toda. Mas quando você chega lá pelo interiorzão do Brasil, o negócio é feio. Eu já andei aí por esse Brasil afora, às vezes a pedido do Ministério da Saúde para fazer levantamento sobre a prostituição, fiz no Amapá isso, fiz em algumas cidades do Nordeste. É terrível, é terrível, porque a violência é grande, e as mulheres apanham, são presas, têm que entregar dinheiro para a polícia, tem que fazer sexo com polícia. É assim: é um mundo cão total da hipocrisia sobre a sexualidade e daquilo que eles consideram mulher que não presta e que, portanto, com elas se pode fazer o que bem entender.

Heródoto Barbeiro: Gabriela, aqui na oportunidade do tema, é fato também que você liderou na década de 70 um movimento, uma manifestação, acho que foi até na Praça da Sé, é isso?

Gabriela Leite: Foi na Praça da Sé, isso.

Heródoto Barbeiro: Na década de 70, na época da barra pesada?

Gabriela Leite: É, foi em 1979.

Heródoto Barbeiro: Contra violência e tal, e na época você recebeu apoio da Ruth Escobar [atriz e produtora cultural, é umas das figuras mais notáveis do teatro brasileiro], no movimento. Como é que foi isso aí?

Gabriela Leite: Isso foi o seguinte: aqui na Boca do Lixo [região da cidade de São Paulo, reduto da malandragem e prostituição e pólo de produção de cinema popular e de baixo custo, na década de 1960] em São Paulo e na Boca do Luxo também, que tinham as boates da Boca do Luxo e os prédios da Boca do Lixo. Havia um delegado, o nome dele era Wilson Richetti, que coordenava a 3ª Delegacia do centro da cidade, ele era a cara do Sérgio Fleury  [delegado do Dops de São Paulo durante a ditadura militar no Brasil, ganhou notoriedade por seu combate violento à prostituição na Boca do Lixo e por outras ações violentas e ilegais] e essas coisas todas. Ele era meio maluco, ele resolveu que as prostitutas, as travestis, todo mundo, não podia mais andar pelas ruas ali no centro, não podia. Então elas ficaram presas dentro dos prédios, dentro das boates e tal, e quem saía, era preso, era torturado, toda casa de prostituição tinha um carro de polícia na porta e tal. Duas colegas desapareceram, uma inclusive estava grávida, nunca foram encontradas. Isso estava acontecendo, mas ninguém sabia; na sociedade paulistana, ninguém sabia o que estava acontecendo. Aí um dia eu e outras colegas pensamos assim: “Temos que fazer alguma coisa, porque não dá para continuar desse jeito”. E aí, bom, quando o negócio está feio, as pessoas perdem o medo de aparecer e tudo mais. Então nós começamos a andar pelos vários prédios de prostituição durante o dia, para chamar o povo, as travestis ali na [rua] Amaral Gurgel, e eu tive a idéia: “vamos fazer uma passeata, uma manifestação na Praça da Sé”. E fomos para a Praça da Sé ,e  foi um rebu [abreviação de rebuliço], uma história imensa, e desde o princípio...

Heródoto Barbeiro: Deu polícia ou não?

Gabriela Leite: Deu polícia, mas aí teve uma história danada de muitos populares, pessoas, nos ajudarem, entendeu? Diziam: “As meninas não estão fazendo nada demais”. Olha, eu estou falando da década de 70. E desde então até hoje, os nossos primeiros e grandes aliados foram os artistas, que assim que aconteceu aquilo, de repente apareceu a [jornal] Folha de S.Paulo e tudo mais, os artistas foram nos procurar para dar apoio. E nessas histórias veio a Ruth Escobar, oferecendo o teatro dela da Rua dos Ingleses para a gente fazer uma baita coletiva de imprensa e tal. E nós fomos para lá, e com essa atitude a gente conseguiu afastar esse delegado. A vida voltou ao normal, e as meninas não quiseram mais aparecer. Mas então eu pensei, a sementinha já estava em mim, eu pensei: “bom, se a gente conseguiu fazer isso, a gente vai conseguir um movimento”.  

Heródoto Barbeiro: Gabriela, o Paulo Caruso pôs ali Boca do Lixo e Boca do Luxo [desenho em que Gabriela Leite aparece caminhando por um rua ou beco, em cuja parede à direita está escrito “Boca do Luxo”, e à esquerda, “Boca do Lixo”], que foi a última charge, essa daí. Então eu pergunto o seguinte: a polícia persegue o pessoal da Boca do Lixo, mas não persegue da Boca do Luxo? Tem alguns lugares famosos aí que acabam virando até ponto de turismo, ponto de passeio. Isso é uma verdade para casas de prostituição de luxo. Com essas tudo bem?

Gabriela Leite: Porque a Boca do Luxo original era ali pertinho da Boca do Lixo, eram as boates. Hoje em dia tem casas... 

Heródoto Barbeiro: Hoje em dia, por exemplo, tem várias [boates de luxo] famosas em São Paulo, no Rio, em outras cidades, e aí a polícia não...?

Gabriela Leite: Recebe um dinheiro, né, meu amigo? [risos] Porque sempre, sempre, sempre tem um dinheirinho lá para os caras, para as casas poderem funcionar. Há pouco tempo atrás prenderam o dono de uma casa chique aqui de São Paulo. Porque quando eles ficam nervosos, eles prendem o cara dono da casa ou a mulher. Mas o dinheiro sempre está ali, não tem jeito, é a história daquilo que eu disse no princípio. Se você tem uma coisa que é proibida, uma atividade que é proibida, mas que ela existe de fato, existem máfias, e máfia é terrível.

Carla Gullo: E a sociedade, Gabriela, persegue mais a da Boca do Lixo do que a da Boca do Luxo? Você acha que, a gente estava falando dessas prostitutas universitárias e tal, que estão na moda, elas são mais bem vistas do que as da Boca do Lixo? Ainda existe tanto preconceito, você acha?

Gabriela Leite: Eu acho que elas têm uma vida um pouquinho melhor, mas o preconceito existe, porque o estigma é muito forte. Quando ela fala o que ela é, o negócio fica feio para ela. Eu me lembro de uma cidade do interior de Minas, que tinha uma casa muito chique de prostitutas, tinha as prostitutas pobrinhas também, como toda cidade, e uma casa chiquérrima de prostitutas lá. E as meninas saíam uma vez por semana para fazer compras na cidade, era uma chácara muito chique, com piscina e não sei mais o quê, sauna para os caras e tal. E elas saíam uma vez por semana para fazer compras para a semana, para elas, pasta de dente, perfume, essas coisas. Quando elas chegavam na cidade, as lojas baixavam as portas. E elas eram ricas, assim, para o meio da prostituição. Isso é uma história fantástica que todo mundo conta a respeito. E daí as meninas começaram a brigar para que as lojas abrissem para elas poderem fazer compras. Terça-feira, classicamente, é o dia de folga de prostituta, em todo o mundo. Terça-feira era o único dia que elas tinham para fazer sua comprinha e dar também lucros para os donos dos outros estabelecimentos que não da prostituição, porque prostituta também compra.     

Heródoto Barbeiro: Claro. Gabriela, vamos fazer então mais um intervalo aqui, a gente volta daqui a pouquinho no nosso Roda Viva de hoje, até já.

[intervalo]

Heródoto Barbeiro: Bem, nós voltamos aqui no Roda Viva desta segunda, estamos conversando hoje com a nossa convidada, que é a Gabriela Leite. A Gabriela é fundadora da ONG Davida e também criadora da grife Daspu. Gabriela, uma outra questão, olhando para o nosso país de novo, existe ainda aquilo que no passado era chamado de zona [local delimitado onde funcionam casas de prostituição]?  

Gabriela Leite: Zona?

Heródoto Barbeiro: É, zona.

Gabriela Leite: Ah, existe, zona existe.

Heródoto Barbeiro: Zona, aquelas casas com luz vermelha na porta, segregadas num canto de uma determinada cidade, tem isso?

Gabriela Leite: Existe. Nós somos contrárias à existência de zona confinada, porque é exatamente...

Heródoto Barbeiro: Mas isso só em pequenas cidades, em grandes cidades não existe mais?

Gabriela Leite: Não. A única exceção é o Rio de Janeiro, que ainda tem uma zona, a Vila Mimosa II, famosa e tal. Como cidade grande, eu acho que é a única cidade que hoje tem uma zona. Mesmo Belo Horizonte tem lá a zona boêmia, mas está ali junto com tudo, com o comércio ali, no centro da cidade, é outra história. Mas as casas da luz vermelha existem em tudo quanto é cidade pequena. Nós somos contrárias, porque quanto mais confinada for a prostituição, mais vai ter abuso contra as mulheres, mais vai ter corrupção, mais... porque aí está escondido, entendeu? Então a gente é extremamente contrária à existência de zona confinada.

Margareth Rago: Mas há uma diferença, não há? Entre a prostituta do seu tempo ainda – acho que você ainda pegou uma época, né – e a atual? Pelo menos foi essa a impressão que eu tive conhecendo um pouco mais de perto o meio. A prostituta da sua geração é uma mulher, vamos dizer, ela tinha mais tempo, tem um lado de boêmia nessa vida que não tem mais.

Gabriela Leite: Não, acabou tudo. Eu acho triste. Eu vejo as minhas colegas assim, de hoje, a gente faz alguma atividade, eu falo: “gente, vamos tomar uma cerveja?”

Margareth Rago: Ninguém tem tempo.

Gabriela Leite: Não, ninguém tem tempo, todo mundo fica pensando na garrafa de cerveja que ela vai pagar, quantos tijolos ela vai comprar para fazer a casa dela. Ela sempre pensa em ter a casa própria e sempre longe. Tem uma música dos [grupo musical] Raimundos que, olha, é a pura verdade! Eles dizem assim: “Toda puta mora longe”. É a pura verdade. [risos] Elas compram terreno, e cada cerveja que ela tomar são alguns tijolos que ela deixa de comprar, entendeu? Então ela não tem mais esse romantismo, essa história de ficar num botequim, como eu fico até hoje, né, Margareth? Você sabe disso.  

Margareth Rago: E a música, a boemia...

Gabriela Leite: A música, a boemia... Você precisa puxar as meninas para a boemia que a prostituição lhe traz.

Kátia Mello: Gabriela, eu queria mudar um pouquinho de tema. Existem casos famosos de prostitutas com políticos. Quando uma prostituta deve revelar algo que ela sabe, que pode ser um escândalo e pode prejudicar a sociedade? Ela deve revelar ou como é que vocês lidam com o sigilo?   

Gabriela Leite: Nunca pode revelar, eu sou contrária. Eu acho que ela está ali está trabalhando. Se ela ficar revelando as histórias, a profissão acaba. Porque daí todo mundo vai ficar com medo, e é feio fazer isso. Se o cara está ali solitário e está querendo desabafar, como que a mulher pode sair para a rua e denunciar qualquer coisa? Isso não é papel dela, na minha opinião. A Casa da Eny, por exemplo, dizem que o Juscelino [Kubitschek, governou o Brasil de  1956 a 1961] frequentou, um monte de político. Nada saiu da Casa da Eny para fora, entendeu? E isso não modificou a sociedade de jeito nenhum. É um espaço, é um espaço de intimidade.     

Kátia Mello: Mesmo que tenha um escândalo de corrupção, alguma coisa que possa assim ser: “não podemos comentar sobre isso”.

Gabriela Leite: Bom, você, como jornalista, divulga a sua fonte?

Kátia Mello: Nós não costumamos divulgar. [risos]

Margareth Rago: Códigos éticos.

Gabriela Leite: Cada profissão com as suas regras, a sua ética, é uma questão de ética. Porque se alguém me entrevistar sobre qualquer coisa e depois ficar citando o meu nome em outra [ocasião], eu vou ficar puta da vida, mais puta do que eu já sou! [risos]

Sérgio Torres: Gabriela, a gente teve no Rio, há três anos, um episódio de muita repercussão. Alguns jovens, quatro ou cinco universitários de classe média agrediram, num ponto de ônibus, uma moça, porque julgavam que ela era uma prostituta. Ela era uma doméstica, uma faxineira. E a repercussão foi enorme, os caras foram presos e até condenados. Você acha que se ela fosse uma prostituta mesmo, a repercussão seria do tamanho do que foi? 

Gabriela Leite: Eu acho que nós iríamos fazer grande. A grande história – você deve se lembrar – que o pai dos meninos contou foi a seguinte: “Ah, ele pensou que era prostituta”. Quer dizer, em puta pode bater, né?

Sérgio Torres: Ele falou isso para mim, eu ouvi ele falando.

Gabriela Leite: É mesmo, é? Você vê que coisa absurda! A mulher está no ponto de ônibus indo para o médico, para ir ao SUS, tem que acordar muito cedo, de madrugada, está no ponto de ônibus. Passam os rapazinhos riquinhos, se acham no direito de bater na mulher, e ainda disseram: “Ah, a gente bateu porque a gente achou que era prostituta”. Na época nós pensamos em processar esses rapazes por danos morais às prostitutas, mas a gente só anunciou isso e não processou não. Mas isso é uma coisa impressionante. Aí que se vê o estigma a que ponto chega: prostituta é um saco de pancada.  

Sérgio Torres: A minha dúvida era esta. Se fosse realmente uma prostituta, se o caso tomaria o vulto que tomou. Porque a gente teve ali o princípio, o meio e o fim, os caras foram condenados, foram presos.  

Gabriela Leite: Foram condenados, mas a gente ia fazer tudo para isso. Por exemplo, agora mesmo nós ganhamos um processo lá na Justiça sobre aquela história daquele secretário [da Secretaria Municipal de Ordem Pública], filho daquela atriz [Maria Zilda], secretário de Segurança Pública, sei lá o quê, lá do Rio, Bethlem.  

Sérgio Torres: Rodrigo Bethlem.

Gabriela Leite: Rodrigo Bethlem. Ele pegava as meninas lá em Copa[cabana], botava dentro de um ônibus, levava para a delegacia, a intimidade delas era devastada e tudo mais. E a justificativa era de que estava levando para a delegacia para averiguação, para ver se elas deviam alguma coisa ou não. Então a gente, junto com outro projeto do Rio de Janeiro, com o Trama, ganhou na Justiça a causa de que eles não podem fazer isso, não podem. Isso é contra o direito de ir e vir das pessoas, é contra a Constituição. E ninguém pode botar um monte de prostituta, ou qualquer mulher, dentro de um ônibus para levar para a delegacia para averiguação.    

Carla Gullo: E você já sofreu algum tipo de violência, Gabriela? De baterem em você, de levarem você para algum lugar assim?  

Gabriela Leite: Não, porque eu nunca trabalhei na rua. Eu sempre trabalhei em casas de prostituição, tendo que pagar para trabalhar, mas para mim era melhor, porque eu morro de medo. E eu não sofri não. Só uma vez um cara, um porteiro de um prédio aqui em São Paulo é que me deu um tapa assim, mas eu fiquei muito brava. 

Heródoto Barbeiro: Gabriela, uma prostituta pode formar família?

Gabriela Leite: Claro.

Heródoto Barbeiro: Ela pode casar?

Gabriela Leite: Pode. Eu conheço muitas prostitutas, amigas minhas, casadas.

Margareth Rago: Você tem uma família, né?

Gabriela Leite: Eu tenho uma família, minhas amigas todas têm família, todo mundo tem família, e normalmente famílias grandes, né? Não é o meu caso, tenho uma família pequena, mas as prostitutas têm família grande, muitos filhos e tal, evidentemente. São muito boas mães e às vezes até conservadoras. Eu tenho colegas que têm o maior sonho que a filha case virgem. [risos]  

Margareth Rago: Você tem dois livros, dois livros de autobiografia. No primeiro, você conta que o seu nome é Otília, e que num determinado dia, você, inspirada no Jorge Amado, mudou o seu nome para Gabriela. Esse livro é muito bonito, é poético, porque você introduz o livro dizendo que ele é um presente amoroso de Gabriela para Otília. Então é um livro em que você faz uma reconciliação dessas duas dimensões da sua subjetividade. E este segundo livro aqui, Filha, mãe, avó e puta, também é uma reconciliação, só que agora com a outra rede das mulheres da família. Conta um pouco isso. E, ao mesmo tempo, eu estou chamado a atenção, porque eu acho que você é uma pessoa muito reconciliada consigo mesma; eu acho você uma pessoa bem e feliz. Você tem uma relação maravilhosa com o Flávio, assim, do que eu te conheço, me impressiona muito também. Você é uma puta que deu certo, né? [risos] Inclusive na constituição da família, da maternidade e tudo mais. Conte um pouco disso, dessas suas autobiografias. Eu estou chamando a atenção porque é muito diferente da moda atual a disposição do quarto, do que acontece no interior do quarto como... Não é? É diferente, é uma reflexão. Você sempre foi uma pessoa política, você pode não falar nisso, mas a política está sempre aí atravessando as suas práticas. E os seus livros têm uma dimensão política, subjetiva, que eu acho importantíssimo, e acho que valeria a pena conversar um pouco sobre isso.     

Gabriela Leite: O meu primeiro livro foi uma história dessa minha personalidade que parecia partida, mas que não era partida, daquela menina de classe média com a puta da zona e tal. Agora esse segundo, por exemplo, eu dei um trabalho para a editora, eu fiquei três anos escrevendo o livro. Deixei a Isa de cabelo branco, uma grande pessoa, Isa Pessoa. Mas por quê? Porque foi dolorido para mim muitas vezes. Falar de prostituição para mim é como comer arroz e feijão. Eu falo de prostituição há tanto tempo e tal. Agora, recuperar a história, minha história com a minha família, com a minha mãe, com essa mulher que foi tão controvertida com a minha vida e está tão forte, isso foi muito difícil. Mas eu terminei o livro reconhecendo a grande mãe que eu tenho, e isso foi tão importante para mim, sabe? E por isso que também... E a história do meu pai, tudo isso que eu não escrevia a respeito, eu não falava a respeito com as pessoas. E eu sou tão militante assim da prostituição, que também ninguém me pergunta nada da família. Então eu escrevi, fiquei feliz de poder fazer essa reconciliação.  

Margareth Rago: E ela foi ao seu lançamento, elas foram, né?  

Gabriela Leite: No lançamento, Guarulhos invadiu Jardins [bairro de classe alta de São Paulo]. Porque eles moram todos em Guarulhos, e só a minha família encheu a livraria. Tinha assim umas trinta pessoas, desde a minha mãe matriarca – você viu, né? – um monte de gente, a família inteira. Eu falei: “Guarulhos invadiu Jardins” [risos]

Carmen Amorim: Gabriela, tem uma discussão aqui também das pessoas que estão participando, fazendo comentário a respeito dessa ética da profissão de prostituta. Quer dizer, quando se fala de ética, o que mais faz parte desse código de ética da profissão?    

Gabriela Leite: Você nunca revelar as fantasias dos seus clientes, você jamais reconhecer um cliente na rua, isso é fundamental. Você tratar bem as pessoas, nunca tratar mal um cliente, e aí pela frente. É você ter aquela pessoa como alguém que está ali porque está precisando de você, e a quem você não pode tratar mal.

Heródoto Barbeiro: Gabriela, o que deu aquele processo, aquela briga da sua ONG Daspu com a Daslu [a famosa loja paulistana de artigos luxuosos de grifes internacionais processou a ONG por julgarem que esta denegriu o nome Daslu]? Acabou o processo ou não?

Gabriela Leite: Acabou.

Heródoto Barbeiro: Teve indenização, alguma coisa?

Gabriela Leite: Não, eles desistiram de processar. Foi uma notificação extrajudicial, mas aí deu tanto sucesso para a gente, né? Olha, nos meus melhores sonhos, quando a gente criou a Daspu, eu não imaginei que fosse assim, e que tivesse essa mídia espontânea que teve, que ficasse conhecida no mundo todo como está agora, nunca imaginei isso. Era uma coisinha pequena que eu combinei com as minhas amigas. E eles desistiram. E você sabe que São Paulo é o nosso maior cliente, é impressionante como São Paulo gosta de nós, por conta, eu acho, dessa história. E a gente vai voltar aqui dia 13 de julho na [escola de samba] Vai-Vai, a gente fez uma parceria com a Vai-Vai.  

Heródoto Barbeiro: Está certo. Gabriela, muito obrigado pela sua participação conosco aqui no Roda Viva.

Gabriela Leite: Muito Obrigada. Eu é que agradeço.

Heródoto Barbeiro: Queremos agradecer também os nossos entrevistadores, aqui a nossa bancada participando conosco. Eu gostaria também de lembrar aqui que as perguntas dos telespectadores, recebidas pela Carmen, serão encaminhadas diretamente para nossa entrevistada de hoje. Mais uma vez, obrigado pela sua atenção e pela sua audiência, até mais.

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