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Memória Roda Viva

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Dom Luciano Mendes de Almeida

23/12/1991

A visita de João Paulo II ao Brasil em 1991, a Teologia da Libertação, os carismáticos católicos e o papel da Igreja são alguns dos temas comentados pelo presidente da CNBB nesta entrevista

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[programa ao vivo]

Jorge Escosteguy : Boa Noite. Hoje, antevéspera do Natal, nós vamos discutir um pouco, aqui no Roda Viva, pela TV Cultura, os caminhos da Igreja Católica: a crise das chamadas vocações sacerdotais e o objetivo de boa parte do clero de se aproximar cada vez mais dos mais pobres e dos despossuídos. No centro do Roda Viva esta noite, está Dom Luciano Mendes de Almeida, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil [CNBB]. Lembramos que o Roda Viva também é transmitido ao vivo pela TV Minas Cultural e Educativa; TVE do Ceará; TV Cultura do Pará; TVE do Piauí; TVE da Bahia; TVE de Porto Alegre e TVE do Mato Grosso do Sul. Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida tem 61 anos. Ele nasceu no Rio de Janeiro; foi o primeiro jesuíta brasileiro a ser sagrado bispo e a trabalhar numa diocese; foi nomeado bispo auxiliar de São Paulo em 1976; eleito secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil em 1979; foi nomeado pelo Papa arcebispo de Mariana (MG) em 1988; eleito presidente da CNBB um ano antes. Em fevereiro de 1990, sofreu um grave acidente entre Mariana e Belo Horizonte. Foi reeleito, em abril de 1991, presidente da CNBB. Para entrevistar Dom Luciano esta noite no Roda Viva nós convidamos Walter Falceta Jr., repórter do jornal O Estado de S. Paulo; Dermi Azevedo, jornalista; padre Antônio Aparecido Pereira, editor-chefe do jornal O São Paulo; Lina de Albuquerque, subeditora de sociedade da revista IstoÉ Senhor; Oliviero Pluviano, correspondente da agência italiana de notícias ANSA, no Brasil; Carlos Tramontina, editor-chefe e apresentador do telejornal Bom Dia São Paulo, da TV Globo; e Pedro Del Picchia, jornalista e colaborador da Folha de S.Paulo . Boa noite, Dom Luciano.

Dom Luciano Mendes de Almeida: Boa noite.

Jorge Escosteguy: Eu tenho aqui em mãos a [revista] Veja desta semana, que sai com a capa falando sobre “A decadência do catolicismo no Brasil” [aparece a capa da revista]. Diz ela que, depois de se distanciar dos pobres, a Igreja Católica está perdendo a classe média. Gostaria que o senhor nos dissesse, nesta antevéspera do Natal, o que está acontecendo com a Igreja Católica.

Dom Luciano Mendes de Almeida: A Igreja Católica está a serviço de uma população hoje sofrida, e a Igreja sofre com esse povo. Se há perdas ou ganhos, é muito difícil de avaliar. No momento, o que se requer é a solidariedade, ficar perto, ficar junto, procurar caminhos de solução e anunciar a esperança. Todos aqueles que aceitarem essa verdadeira, assim, palavra de afeto e de esperança, eu creio que de algum modo estão relacionados com a Igreja Católica, porque a grande palavra do Cristo é a vida. E essa vida, nós gostaríamos que ela de novo acontecesse nesse povo que nós amamos. Agora, quantos praticam, não praticam, é muito difícil eu saber. Mas como eu lhes digo, o importante para a Igreja é servir, e nós estamos aí com essa grande vontade de servir.

Jorge Escosteguy: Agora, quanto às vocações sacerdotais, Dom Luciano, o próprio Papa, inclusive, quando esteve no Brasil, se não me engano, em uma de suas intervenções públicas, ele reclamou, se queixou um pouco da falta de padres na Igreja.

Dom Luciano Mendes de Almeida: Sim, veja, é claro, há uma falta enquanto que, sendo numerosos os fiéis, para que eles sejam melhor atendidos, é claro que seria muito bom que nós tivéssemos o maior número de padres. Mas há dois elementos que não podem deixar de estar presentes nessa reflexão. O primeiro é que uma comunidade se constitui viva, forte, atuante, também com outros membros, que não são apenas os padres e os sacerdotes, mas são aqueles que nós chamamos de servidores, ministros, que estão aí atuando, por exemplo, a serviço dos doentes, das crianças, dos casais. E todos eles formam esse grupo de serviço pastoral, de modo que o padre é importante, mas não é só ele que atua na comunidade. Por outro lado, eu estou chegando justamente de Roma. Estive com o Papa ao meio-dia de sexta-feira, e um dos assuntos de que nós tratamos foi esse do aumento das vocações sacerdotais no Brasil, aumento que, ainda hoje, nós podemos perceber. Mesmo agora em Mariana, temos dez ordenações, que é um número bastante elevado para uma diocese que, afinal, é modesta. Mas são muitas que estão pedindo para entrar no seminário. Agora, estamos com três seminários em uma só diocese, de modo que acredito que é importante percebermos que existe uma falta, mas o que vem acontecendo é um conceito de Igreja servidora com muitos tipos de serviços e de ministérios, entre os quais, é claro, o ministério ordenado, que nós chamamos de sacerdote. Mas esse também vai melhorando, tanto que, em relação ao mundo, creio que o Brasil hoje tem uma palavra a dizer em nível de serviço, e serviço missionário. Há poucos dias, três ou quatro dias, foram enviados para a África, para a Ásia, 31 brasileiros e brasileiras que querem servir, em nome do Brasil, a populações mais necessitadas.

Jorge Escosteguy: O senhor disse que esteve com o Papa. O que o senhor conversou com o Papa? [Com bom humor] Conversar com o Papa é uma coisa muito importante. Quais são as preocupações do Papa?

Dom Luciano Mendes de Almeida: A razão dessa visita ao Papa foi, eu diria, antes do Natal, em nome do nosso povo, representando também a presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, ir agradecer ao Papa e dizer: “Santidade, muito obrigado pela visita apostólica que fez ao Brasil”. Nós já tínhamos escrito, inclusive em nome de todos os bispos que se reuniram no final do mês de novembro; o Santo Padre nos respondeu, mas cabia um agradecimento pessoal, e eu fui levar isso, essa palavra de gratidão, justamente ao meio-dia de sexta-feira, portanto há poucos dias. O Santo Padre me recebeu com grande alegria, dizendo assim: “Acabo de estar com o presidente do Brasil, e agora o senhor vem aqui agradecer. E disse-me o presidente do Brasil – o Santo Padre me afirmava – que há necessidade e vontade de reformas para que o Brasil possa responder à expectativa de um povo que é muito bom”. Aí, tomando a palavra, eu disse: “Esse povo é muito bom”. Eu disse: “Santidade, o senhor ficou satisfeito com a visita ao Brasil?”. Ele disse: “Fiquei muito contente, porque esse povo é muito bom!”. E eu fiquei feliz, porque ele falava em português, as expressões ele que as escolhias, e ele trazia do Brasil essa impressão de um povo que estava aí sedento da palavra de Deus, acolhendo a pessoa do Papa com grande afeto. E pelo que ele percebeu também, desejosa essa multidão de caminhar em demanda de um nível de vida que responda aos filhos de Deus. Quer dizer, que esteja impregnado desses valores do Evangelho.

Pedro Del Picchia: A propósito da visita do Papa, Dom Luciano, eu tive a oportunidade de acompanhar as duas viagens pela Folha de S.Paulo, e todo mundo viu pela televisão o impacto e os efeitos das duas viagens. E [houve] uma diferença muito grande: em 1980, foi uma mobilização gigantesca em todos os lugares por onde o Papa passou, e dessa vez, em todas as manifestações, os cultos, os atos religiosos, as intervenções com movimentos sociais etc, sempre se ficou aquém da expectativa, desde o Congresso Eucarístico em Natal, a missa em Brasília e assim por diante. A que fato o senhor atribui, não digamos esse fracasso, mas essa falta do mesmo impacto da visita anterior, nessa visita de João Paulo II ao Brasil?

Dom Luciano Mendes de Almeida: Quem sabe exatamente... porque o senhor teve a oportunidade de acompanhar as duas, valia a pena escolhermos alguns elementos de comparação. Em primeiro lugar, o Santo Padre não veio a São Paulo, não foi ao Rio, não esteve em Belo Horizonte, que são justamente cidades que acolheram o Papa com uma grande presença de povo. Não só porque era a primeira vez, mas eram cidades com uma população muito mais compacta e de fácil mobilidade. Já o que aconteceu dessa vez, é que o Santo Padre foi convidado a visitar capitais onde a população é menor, por exemplo, Cuiabá, Campo Grande, mesmo São Luís, Natal, Florianópolis, Vitória, Maceió, todas cidades importantes, mas de menor porte. E aconteceu também, nessas cidades, o senhor terá percebido, quando o carro passava havia muita gente ao lado das ruas, mas nem todos podiam se deslocar para os locais de celebração. E até alguém ponderava, em Salvador, onde havia aquele grande terreno preparado, que faltaram ônibus e faltou dinheiro para pagar o ônibus, porque havia a idéia de que seria até gratuita a condução, o que não aconteceu, de modo que o povo desejava se transladar. Mas, mesmo assim, a minha impressão – não sei se aqui vai muito de observação de um e de outro –, eu creio que houve uma notável presença, um grande comparecimento, e também esse fenômeno nosso da televisão, o povo que acompanhava, e graças a certas transmissões, eu creio que houve muita participação. A alegria do povo era evidente. O senhor terá visto o povo que se levantava, aplaudia, se comovia, saudava, gente nos edifícios, de modo que essa parte do comparecimento, a meu ver, foi realmente muito forte até. Alguns jornais ponderaram que ela foi menor do que a outra vez. É claro, porque, como víamos, a população que recebia o Papa era menor. Mas eu não creio que...

Pedro Del Picchia: [interrompendo] Não [digo] menor quantitativamente, mas em termos proporcionais mesmo.

Dom Luciano Mendes de Almeida: Pois é, eu queria respeitar muito o seu ponto de vista. Agora, de minha parte, eu não tive essa impressão. Por exemplo, aquele povo na rua em São Luís. Nunca, numa cidade como essa, capital do Maranhão, segundo a observação dos moradores, nunca houve nenhuma convocação que trouxesse à rua tanta gente. Agora, é claro que nós teríamos que ver um pouquinho agora, numa análise mais adequada, com os bispos do lugar, com as pessoas que moram lá, se houve ou não essa menor presença. Pelo que eu estive conversando com os bispos, porque tivemos uma reunião – foi agora no final [do mês], 27 a 29 de novembro, com bispos representantes de cada uma dessas áreas – e a impressão que nós tínhamos... primeiro é que a preparação foi bem feita em nível de profundidade, então, reunião nas igrejas, orações, explicação, quem é o Papa, o que ele vem trazer aqui como mensagem, quais são os assuntos que serão tratados em cada área, isso foi muito maior do que na outra vez. E o número então de folhetos distribuídos pelo Brasil, para a reflexão das comunidades, foi grande, porque aqui existe hoje, nas comunidades católicas, um novo costume, que é o de reunir as comunidades e refletir sobre um tema, e o tema justamente era a vinda do Papa. Eu sei porque, a partir da CNBB, nós tivemos a elaboração de fascículos, e desapareceram assim como, não sei, antigamente a gente dizia que era [como] manteiga em chapa quente. Hoje não tem mais manteiga, não sei, mas a comparação fica...

Pedro Del Picchia: Margarina.

Dom Luciano Mendes de Almeida: ...Pois então, o fato é que a distribuição foi muito grande. Eu não creio que nós devamos ter uma impressão menor, não. Eu acho que valeu a pena. E o Santo Padre, ele mesmo, teve também essa alegria de ver que o povo estava ali. E o senhor, não sei em que momento, achou de maior entusiasmo; eu acho que a entrada em Florianópolis, a entrada em São Luís, o povo em Goiânia, muita gente, e até mesmo na praça final de Brasília havia muita gente.

Carlos Tramontina: É a primeira vez que eu estou vendo alguém assim tão otimista em relação a esses resultados, pelo menos de maneira pública. Mas eu queria perguntar ao senhor: existia uma expectativa muito grande em relação ao posicionamento que o Papa poderia assumir em relação a uma ala mais conservadora, a uma missão pastoral da Igreja, ou então a um comportamento mais voltado para as necessidades do dia-a-dia da população. E o que a gente notou é que quando o Papa, num daqueles textos que ele apresentava, falava de salário, de trabalho, de moradia, os padres, os bispos mais próximos da Teologia da Libertação [a Teologia da Libertação é] davam declarações demonstrando contentamento: “Olha aí, o Papa está defendendo a Teologia da Libertação”. Só que, em seguida, o Papa falava da necessidade de a Igreja se voltar para a sua missão pastoral, evangelizadora. Afinal, qual posição ficou? Qual é a posição oficial dele, hoje, em relação ao comportamento da Igreja Católica?

Jorge Escosteguy: O senhor diria que ele "deu uma no cravo e outra na ferradura", Dom Luciano? [risos]

Dom Luciano Mendes de Almeida: O senhor dizia que talvez não tinha estado com ninguém que publicamente se referisse à visita do Papa em tom otimista. Não sei se nossos ambientes são muitos diferentes, mas a impressão que eu tive, em termos de Igreja, como eu dizia...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] O Tramontina trabalha de madrugada, Dom Luciano [risos].

Dom Luciano Mendes de Almeida: Mas isso não tira nada, digamos, do fato que eu gostaria agora de comentar. Acredito que vale a pena fazer uma reflexão mais ampla. Mas lhe dou um pormenor: um dos correspondentes estrangeiros, concretamente ligado ao público francês, divulgou que a visita do Santo Padre não estava correspondendo a essa expectativa. E um membro da comitiva, que telefonou para a França, ficou sabendo disso e disse: “Meu Deus! Mas que coisa! Eu estou aqui, presenciando e vendo, e não aceito essa notícia que foi divulgada”. Então veja que, já na época, havia assim uma espécie de surpresa com certas notícias propaladas. Em todo caso, eu me incluo sim na lista dos otimistas. Em relação ao temário, à proposta, digamos, da palavra do Papa, é preciso talvez esclarecer. Quando o Santo Padre vai a um lugar, ele pergunta quais são os assuntos mais importantes. Depois ele trabalha esses textos, e trabalha pessoalmente. Porque eu estive com o Santo Padre quatro meses antes da visita, e ele já estava escrevendo o texto de Salvador, e me disse: “Estou escrevendo nesta noite o texto de Salvador”, e eram quatro meses antes, de modo que, vejam, ele trabalha os textos com grande personalidade, e são numerosos. Quando ele esteve na Polônia, foram 75 pronunciamentos. Na primeira viagem ao Brasil, mais de 50, e nessa, 31. Então, é claro que esses pronunciamentos não podem ser tomados isoladamente. Por exemplo, alguém diz: “O Papa falou sobre moradia. Vamos ver o que ele disse”. Atenção, se você quer saber o que o Papa falou sobre moradia, vamos abrir um livro, porque não é apenas uma declaração. E ele sabe que as pessoas interessadas em conhecer o seu pensamento dispõem de índices analíticos com facilidades de recuperar totalidades de seu pensamento. E quando ele passa pela América Latina, muitas vezes ele se refere de uma das suas tomadas de posição a outra, de modo que é importante isso para que nós façamos avaliações de nível teológico. Agora, é claro que o povo que está ouvindo ouve aquele pronunciamento [isoladamente]. Então aí as perspectivas são diferentes. Uma é mais ampla e outra é mais situada naquela oportunidade. Por outro lado, o senhor dizia: “Como é isso? Por um lado, o Santo Padre fala de moradia, de desemprego, ou então de distribuição equitativa da renda, ou do uso da terra e é aplaudido; por outro lado, ele fala da missão da Igreja, da evangelização e é aplaudido por outros. Afinal, onde está a palavra oficial do Papa? Nessa primeira ou naquela segunda?”. Eu diria que o próprio Papa, tantas vezes ele mesmo disse que a missão da Igreja, embora ela seja sempre religiosa, e por isso ela tem a sua força maior naquilo que nós chamamos de anúncios desses valores religiosos, a evangelização, por outro lado, essa evangelização se dirige a um homem concreto, a grupos de pessoas concretas, a um país concreto. Então, é evidente que deve descer a todas as dimensões da vida humana: dimensão econômica, social, política, cultural. Então, também aí, para termos uma visão da pregação da Igreja, não só do Papa, mas dos bispos ou do seu pároco, da paróquia que o senhor freqüenta ou outro ambiente de sua vida, é claro que tem que ser essa mensagem considerada na sua totalidade. Eu acho que é o mesmo Papa que dirá que a terra tem que ser melhor distribuída – e agora, nessa última audiência de sexta-feira, ele ainda me dizia isso: “Vamos ver se, afinal, nasce essa reforma agrária para que o povo tenha acesso a terra” –, mas é o mesmo Papa que dirá: “Nós não podemos nos esquecer da importância da oração, que dá a fé, que ilumina todas as dimensões da vida humana”. É o mesmo homem, só [que] as situações são diferentes e exigem essa complementaridade da sua pregação.

Padre Antônio Aparecido Pereira : Dom Luciano, já se pode falar assim em frutos a médio, curto prazo, longo prazo, dessa visita [do Papa ao Brasil]? E uma segunda questão que eu coloco é a seguinte: como o senhor vê ou viu a tentativa de o governo Collor  de Mello instrumentalizar a visita do Papa para beatificar o CIAC [Centro Integrado de Atendimento à Criança, criado no governo Collor]?

Dom Luciano Mendes de Almeida: Veja, são temas que necessariamente se tornam assuntos da nossa reflexão, da nossa conversa. Veja, então, frutos, quais são esses frutos? Eu diria que são variados. Em primeiro lugar, é preciso considerar o fruto pessoal. Então, aí cada um tem a sua história, tem a sua expectativa e tenho quase, eu diria, a sua graça. Nós sabemos que a passagem do Papa é um elemento de evangelização, [mas] não é tudo. Nosso Senhor já dizia a São Pedro: “Confirma os teus irmãos na fé”. Mas é claro que há outros aspectos também que já pertenciam à vida apostólica. Então, o Santo Padre vem com uma mensagem muito forte, muito assim penetrante de confirmação na fé. Mas é preciso que a pessoa tenha disposições para captar essa mensagem. Talvez alguns tenham dito assim: “Olha que celebração tão bem apresentada, quanta gente veio”. Ou então, como nós ouvimos: “Não são tantos quanto eu esperava”. Pode haver repercussões pessoais muito externas, e pode haver também, digamos, frutos muito internos. Por exemplo, que uma palavra que atinja a vida da pessoa no sofrimento e traga o valor desse sofrimento à luz da fé, ou uma mensagem para a juventude que estava ali tão entusiasmada quando o Papa a ela se dirigia. Então, é preciso ver o aspecto pessoal. Deixando esse, que é difícil de avaliar [...], vamos ver os aspectos maiores para o nosso povo na sua totalidade. Em primeiro lugar, acho que foi um fruto de esperança. Porque nós todos aqui no Brasil estamos precisando de sinais de esperança, e vem um homem com 70 anos, acostumado aos sofrimentos, com todas as situações do mundo dentro de sua mente e do seu coração, e nos lança uma mensagem de esperança, é claro que nós captamos isso como uma graça, e isso se torna para todos nós um fruto. O Brasil de novo foi para a rua, não só para ver, mas para cantar – como cantava esse nosso povo –, para aplaudir. Isso é e continua sendo um fruto, que na época já se verificou como uma reação muito positiva. É claro que os pontos concretos que foram tratados pelo Santo Padre, em relação a temas como a terra, os índios, a moradia, esses, para que dêem todo o seu fruto, precisam também não só da acolhida pessoal, como no nível da fé, mas da acolhida, digamos assim, em nível nacional. Se nós quisermos melhorar a questão da moradia, precisamos nos reorganizar nacionalmente para isso. Se nós quisermos realmente atender à demarcação das terras, precisamos – como, aliás, aconteceu – que toda a iniciativa do executivo, legislativo e judiciário seja de novo acionada para chegar a esses resultados, de modo que houve propostas, mas elas agora são um pouco lentas na sua operacionalização. E o Santo Padre ainda nos falava nessa sexta-feira sobre a questão da demarcação das terras e a importância de dar aos nossos índios brasileiros, às populações indígenas, aquilo de que eles ainda necessitam para viver, não só com liberdade, mas com dignidade dentro da própria cultura. Em relação à questão do presidente Fernando Collor, que apresentou ao Santo Padre a maquete do CIAC, eu gostaria de lhes dizer que eu sou o primeiro a aplaudir quando a iniciativa é em bem da criança. O Brasil está acordando para a criança, graças a Deus, prioridade absoluta na Constituição de 5 de outubro de 1988, um ganho de proporções que só o futuro poderá revelar. Agora, como levar à frente a prioridade da criança? Acho que aí, abre-se uma conversa muito ampla. Há aqueles que acham que o CIAC é o caminho, outros acham que o CIAC não é o caminho. Eu, modestamente, acho que o CIAC é um caminho, mas que outros também deveriam ser abertos e talvez operacionalizados mais rapidamente. Por exemplo, onde há uma obra já funcionando para crianças? Aí no interior. Por que não dar um pouquinho de dinheiro para construir mais uma sala de aula com instalações sanitárias, enquanto se espera o dia do CIACs? Mas não determinar para todo o território nacional, imediatamente, uma fase assim quase da solene instalação dessas obras, quando nós podemos ir progressivamente. Mas eu não falo contra os CIACs porque eu quero que fique bem claro o meu aplauso a toda iniciativa governamental que tiver a criança em primeiro lugar.

Jorge Escosteguy: Dom Luciano, só uma questão: e quanto ao uso político disso? Por exemplo, o Papa abençoando o primeiro CIAC de Brasília foi colocado no programa eleitoral do PRN [Partido da Reconstrução Nacional, pelo qual Collor de Mello foi eleito presidente] na semana passada. E quando o governo inaugurou esse primeiro CIAC, colocou também a propaganda na televisão, e uma das cenas mais importantes era o Papa abençoando o CIAC.

Dom Luciano Mendes de Almeida: É verdade. Creio que nós podemos conceder, como o padre Antônio também, que está havendo o uso dessa imagem. Por exemplo, a própria publicação do discurso do Papa traz essa fotografia na contracapa. Mas aí há um ponto que a mim impressiona: levar adiante a criança como, digamos, prioridade absoluta para o Brasil, isso sim. Por outro lado, essa espécie de uso político do CIAC, eu diria que não me agrada. Eu prefiro ficar naquelas insistências maiores: saúde, educação e uma riqueza muito grande de meios, que não precisam ser esses meios. Mas quero também reconhecer que, pela primeira vez, está havendo em nível de executivo nacional uma insistência tão forte sobre a criança. A própria criação do Ministério da Criança foi elogiada pelo Papa, naquela locução às crianças em Salvador durante a sua visita, como um ganho em bem das crianças. Mas o segundo ganho não é o CIAC, é o Estatuto da Criança e do Adolescente, que decorre daquela famosa reunião de cúpula de todas as nações, em 1990, que consagraram esse pacto de levar à frente políticas muito vigorosas em defesa da saúde, da educação, da não-violência, da moradia da criança. Por isso, parece que nós não deveríamos aqui ter como posição uma espécie de crítica aos CIACs, mas muito mais de somarmos e encontrar caminhos alternativos para conservar a prioridade da criança. Agora, que algum partido se aproveite do CIACs, eu creio que isso não convém, porque hoje não é de partido, é uma das grandes propostas governamentais, portanto acima dos partidos. Agora, se estão interessados realmente no CIAC, eu aproveito este programa para dizer também que eu estou interessado na criança, mas faço a proposta de, ao lado dessas grandes iniciativas, fazermos um cadastramento de todas as obras já existentes em bem da criança hoje no país e de dotá-las do que elas necessitam para melhorar imediatamente os seus serviços e seu rendimento, enquanto aguardamos aquela outra fase mais importante.

Walter Falceta Júnior: Dom Luciano, me parece que a visita do Papa trouxe um problema agrícola para a Igreja brasileira. Eu explico depois por quê. Alguns meses antes da chegada do Papa, alguns bispos se manifestaram contra essa visita, principalmente em razão dos altos custos, não é? Isso se verificou na prática. Uma cidade como Natal gastou perto de 10 bilhões de cruzeiros, se imagina, com essa viagem. Agora, o mais curioso de tudo é que alguns bispos da chamada ala progressista, como Dom Pedro Casaldáliga [ver entrevista no Roda Viva] e o Dom Mauro Morelli, esperavam que essa visita pudesse se traduzir numa reconciliação da Santa Sé com a Teologia da Libertação. Isso evidentemente não se caracterizou, isso não ocorreu. Nos discursos aos bispos e, depois, aos padres em Natal, o Papa, pelo contrário, passou vários pitos na platéia. No caso dos bispos, especificamente, ele disse que a carência de conhecimento religioso e de doutrina fazia com que parte dos fiéis migrassem para seitas. Falando aos padres, ele de certa forma desabonou todas as tentativas de se lutar pelo celibato opcional, condenou o ativismo político dos padres e pediu a volta de uma coisa que se imaginava já sepultada, a confissão auricular [liturgia católica segundo a qual, pelo menos uma vez por ano, o fiel deve confessar seus pecados a um sacerdote a fim de que sejam perdoados]. Daí eu volto ao início da minha pergunta: para muita gente, será que essa "semeadura da uva não acabou numa colheita de abacaxis"?

Dom Luciano Mendes de Almeida: Pois então, eu só vou lhe pedir, Walter, para me ajudar para não perder nenhum elemento da sua pergunta, que foi muito ampla. Eu vou começar então pela primeira...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Desculpe interrompê-lo, é que o Marcos José, de Campinas, levanta a mesma questão sobre os gastos da viagem do Papa, se não teriam sido excessivos. E Vander Kazaki, aqui de São Paulo, também pergunta sobre a questão da Teologia da Libertação.

Dom Luciano Mendes de Almeida: Perfeito. Então, Walter, vamos em ordem, você vai me ajudando aí como um alpinista, levando pela corda. Em primeiro lugar, os gastos. É claro que todos nós hoje estamos de acordo que não se deve gastar dinheiro de um modo que não seja conveniente. Isso não precisa nenhum bispo falar, eu acho que é realmente a expressão da boa vontade. Agora, o que nesse momento nós percebemos, com objetividade, é que ninguém gastou dinheiro com o Papa, o dinheiro foi gasto com o povo. Se você recebe o Papa na sua casa e basta, você não gasta dinheiro nenhum. Agora, se você quer acolher 100 mil pessoas, você precisa preparar um lugar. E nós todos sabemos como é isso. Seja futebol, seja rock, seja o que quiser, é questão de respeito ao povo. Ninguém deu ao Papa nenhum presente suntuoso, nem uma veste, nem nada de lembrança. O que se preparou foi uma praça, e essa praça fica. E, às vezes, até o altar não era altar, era uma espécie de lugar onde aí pode se representar futuramente alguma coisa, como foi o caso de São Luís, em que o cimento fica para lá. Então, nós temos que ter assim, eu acho, muita objetividade, porque as cidades, no fundo, se adaptaram para movimentos de massa. Onde não havia praça, foi feita a praça; onde havia, não foi feita, por exemplo, em Florianópolis não se construiu praça nenhuma, de modo que aqui é uma questão, digamos, de organização urbana para acolher muita gente. Em grande parte, esses benefícios foram pensados com inteligência. Por exemplo, caminhos, recuperação de espaços, construção de sanitários, provisão de água. Eu pude verificar isso em várias cidades, e aqui eu creio que os telespectadores das várias cidades vão me dar razão. Por exemplo, visitando o governador do Espírito Santo, eu perguntei: ”Senhor governador, o senhor gastou muito?”. Ele disse: “Não. Tudo foi oferecido gratuitamente”. E o que foi dado para o Papa já foi aplicado, e será, para a construção dos pobres, de modo que se alguém quiser valorizar a oferta, fará um ato, digamos assim, de muita consciência fixando esses pontos, mas se não vir as intenções e não vir as generosidades assim quase que espontâneas, vai perder o critério de aferição, de modo que realmente não houve gastos suntuosos. Foram muito menores do que em outros lugares, e os bispos se esforçaram tenazmente para que não houvesse nenhum gasto extraordinário. E eu posso dizer que da parte do Papa, então, isso para ele é quase um escrúpulo. Ele não quer nada de excessivo. E quando havia alguma refeição mais cuidada, eu via quando eu ficava ao lado dele, ele tomava quatro ou cinco colheres de sopa e ia para o quarto. Ele não aceitava nada que tivesse, digamos assim, um aspecto suntuoso. É natural dele, é um homem simples, de modo que, se alguém fez essas ponderações, eu creio que se esqueceu que, realmente, aqui se tratava de acolher não só o Papa, mas aqueles que vinham ver o Papa. Em relação, depois, às observações feitas particularmente sobre a Teologia da Libertação, eu gostaria de aproveitar este programa para trazer aqui elementos importantes. Primeiro que, em todas as alocuções que o Papa fez nas quais se referiu à Teologia da Libertação, embora elas parecessem, como o texto diz, sempre portadoras de uma atenção especial para que não houvesse exageros na Teologia da Libertação, elas são trazidas também, considerando a Teologia da Libertação como fato adquirido, como a doutrina que entrou já na reflexão da Igreja. E ele chama a atenção para que fique fiel, como qualquer outra doutrina da Igreja, a tradição fiel, digamos, a essa que é a integração de qualquer grande descoberta teológica do caudal das reflexões que precederam essa teologia. Mas então eu perguntava ao Santo Padre nessas conversas que a viagem permitia: “Santidade, alguns jornais estão dizendo que Vossa Santidade falou contra a Teologia da Libertação”. Ele disse: “Eu?”. Eu tenho a fita gravada desse fato, em que ele diz: “Veja, uma coisa é certa, agora que muitos que eram da Teologia da Libertação se encontram sem saber como se enraizar – porque para alguns havia fundamentos que estavam em conexão com teologias marxistas –, agora eu posso dizer que pelo menos eu sou da Teologia da Libertação, porque os meus fundamentos não eram marxistas”. De modo que é uma resposta que mostra também a sabedoria do Papa e tão longe dessas críticas que alguns trouxeram. E por outro lado também, esse outro aspecto de que, afinal, o Santo Padre falando aos bispos, segundo a sua expressão, teria passado alguns pitos, ou falando aos padres teria voltado a teorias um pouco antigas, é importante fazer o exame – não é, Walter? – de cada ponto desses. Primeiro, o Santo Padre tem todo o direito de dizer ao bispo e aos bispos o que ele acha. Nós não consideramos que fossem pitos. Nós consideramos que fossem, realmente, orientações que nós inclusive escolhemos agora como tema da próxima assembléia dos bispos. Nós vamos, com o livro que já apareceu das 31 alocuções do Papa, fazer um exame daquilo que ele traz para nós como contribuição para a vida pastoral na Igreja no Brasil, com todo o carinho e com todo o respeito. E isso eu fui dizer inclusive ao Santo Padre: “Santidade, acabamos de escolher como tema da nossa assembléia, além do tema da educação, que já vinha proposto, o tema de prepararmo-nos para a grande reflexão de 1992, em outubro, sobre, afinal, a situação da América Latina, os 500 anos da América Latina, mas à luz dessas contribuições do Santo Padre”. E quando ele falou aos padres, o fato de ele lembrar que o celibato não é opcional, isso é doutrina comum da Igreja, não é só do Santo Padre. Eu me considero também, digamos assim, detentor, ou promotor da mesma posição, enquanto que não é apenas uma imposição histórica, é uma descoberta progressiva da Igreja, que quer que as pessoas que hoje exercem o ministério sejam totalmente liberadas para isso. Nós podemos imaginar outras situações, e são também válidas, mas nada impede que possa se querer o melhor de dedicação, de totalidade de entrega. Quanto à confissão auricular, posso também lhe dizer com toda a paz, e os telespectadores sabem, nunca se deixou de valorizar a confissão auricular. O que acontece num país como o Brasil é que há menos facilidade, porque vimos já que o número de padres não é tão grande. Mas o apreço à confissão é muito alto. Inclusive, onde eu moro hoje, na Arquidiocese de Mariana, posso lhe dizer que onde a gente chega tenho logo que atender as pessoas em confissão, não porque o Papa lembrou, mas porque o povo nunca se esqueceu, de modo que eu preciso ver quem esqueceu e por que esqueceu. Mas a lembrança dele, eu acho que foi oportuna.

Lina de Albuquerque: Dom Luciano, quando o Papa veio ao Brasil, durante a cerimônia da beatificação da madre Paulina [Santa Paulina], no Sul, ele disse uma coisa como: “O Brasil precisa de santos, de muitos santos”, não é? O senhor acha que a reabilitação do ministério de cura, dos milagres, vai trazer de volta os fiéis perdidos do catolicismo?

Dom Luciano Mendes de Almeida: É verdade, e creio que a sua análise é assim muito adequada, que o Santo Padre se referiu, não só em Florianópolis, por ocasião daquela proclamação da vida santa da madre Paulina, mas em muitos outros lugares ele usou essa palavra: “santidade”. Se nós quisermos traduzir isso no dia-a-dia da nossa vida, eu diria que é uma vida fiel a Deus e aberta aos outros, dedicada aos outros, em que nós deixamos de parte qualquer egoísmo, qualquer inveja, qualquer ciúme, para realmente buscarmos o bem das pessoas, querermos e fazermos o bem. Isso, no fundo, é a santidade, é responder àquele anseio de Deus de nos ver fazendo o bem e alegres com esse bem que é feito gratuitamente. Agora, por outro lado, isso graças a Deus já existe. Eu estou certo hoje – eu não sei se você, Lina, concorda comigo –, mas tem muita gente boa. Só que não aparece. Muita gente que está aí vivendo a sua fé no sofrimento, na angústia, na dificuldade, no trabalho, mas isso não aparece muito. E é um pouco a marca da própria santidade, que ela é escondida. E vejam que, também, o tipo de notícia que nós publicamos valoriza sempre o aspecto um pouco extraordinário. Por exemplo, todas as casas estão aí, se uma queima, é fotografia. Todos os carros estão circulando, se um bate, vai todo mundo para lá. A mesma coisa acontece um pouco na vida. Se alguém erra, estamos todos lá vendo, coitado, aquele erro, e estão criticando e querendo até imediato castigo. Mas aqueles que estão todo dia acordando, fazendo o bem, se cansando e terminando na gratidão e na consciência da solidariedade, esses nunca serão notícia. Então, quero lhes dizer que a minha impressão é que já há muita santidade por aí. Se as curas aumentam ou diminuem, isso é um fato à parte. É verdade que o nosso povo – isso também vale aqui para o Walter, que lembrava essa questão das seitas –, o nosso povo é diferenciado na sua cultura religiosa. Nós temos pessoas que dizem: “Eu pertenço a tal religião”. Vamos supor o nosso caso, a religião é católica. Mas o que ele significa dizendo isso? Que foi batizado. Ele não freqüenta a Igreja, ele não se aplica à leitura da Escritura, então ele é, mas não é assim como outros são. Então, ele se diz [católico] porque foi batizado, mas ele não tem a prática da vida cristã, a ligação com a comunidade, aquela vivência mais, digamos assim, comprometida com a sua fé. Então, é claro que esses que têm boa vontade, mas não têm essa consciência, não podem dar razão da sua fé. Se vem alguém e faz uma pregação justa, talvez incompleta, mas sincera, isso pode valer para a pessoa. Então, é melhor isso do que nada. Ele só tinha um nome, agora ele vai ter uma pratica também, embora incompleta, isso é uma coisa muito compreensiva. O que acontece, no entanto, é que o nosso povo está, como vínhamos no início, sofrendo muito. Sofre porque não tem comida, é desnutrido, porque está enfermo e precisa seja dessa alimentação, seja da sua saúde. Então, se vem alguém e diz: “Olha, eu vou dar a você uma grande alegria: você vai ficar curado”. Quem não quer isso? Eu acho que todos nós queremos. A questão é que, às vezes, não é bem como eles dizem. É isso que é pena; se fosse, seria tão bom.

Jorge Escosteguy: Dom Luciano, nós voltaremos em seguida a esse assunto. Primeiro, vamos fazer um rápido intervalo. O Roda Viva volta daqui a pouco, entrevistando hoje o presidente da CNBB, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Dom Luciano Mendes de Almeida. Até já.

[intervalo]

Jorge Escosteguy: Voltamos com o Roda Viva, que hoje está entrevistando o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Dom Luciano Mendes de Almeida. Dom Luciano, o senhor nasceu no Rio, mas os ares de Mariana, os ares mineiros de Mariana parece que já fizeram o senhor captar um certo espírito mineiro. Por umas duas ou três vezes, fizeram perguntas aqui sobre a questão da crise da Igreja, sobre as vocações sacerdotais etc. O senhor aparentemente passou um pouco por cima, e há vários telespectadores preocupados, inclusive, com a questão do crescimento das seitas e de outras religiões, capturando ali os fiéis da Igreja Católica. O Wagner Bortoleto, de São Caetano, [pergunta] “Como o senhor vê as outras religiões, principalmente através dos canais de televisão?”. O Lázaro, de Jundiaí, acha que, de repente, a Igreja pode ter se elitizado em demasia e, com isso, ter perdido terreno para os protestantes, por exemplo, nas camadas mais pobres. Gildo dos Santos, de Franco da Rocha, [pergunta] “O que o senhor acha dos crentes que estão ganhando campo da Igreja Católica?”. Humberto Ângelo, aqui de São Paulo: “O que o senhor acha da Igreja Universal, que está crescendo no Brasil? O bispo [Edir] Macedo [líder da Igreja Universal] não merece estar na cadeia?”, pergunta ele. O Rodolfo de Jesus Angueira, aqui de São Paulo, diz que “No bairro da Casa Verde está crescendo muito o número de igrejas protestantes e de fiéis de igrejas protestantes e a Igreja Católica está perdendo terreno”. Ainda nesse tema, o Pedro Valtiere, de Perdizes, aqui de São Paulo, pede para o senhor esclarecer um pouco sobre o momento carismático do renascimento da Igreja, que é também a pergunta do Fernando Costa, de Araçatuba, que pede: “O que o senhor tem a dizer sobre esse grupo novos chamado ‘os carismáticos'?” [O movimento da Renovação Carismática Católica surgiu nos Estados Unidos em meados dos anos de 1960; anos depois, foi ganhando força entre os católicos brasileiros]

Dom Luciano Mendes de Almeida: Em primeiro lugar, eu queria agradecer a essa participação de todos os que se dirigiram a este programa com apresentação de uma questão que volta a recuperar o que dois dos argüentes já trouxeram, embora de minha parte não tenha havido uma resposta completa. Eu creio que nós deveríamos ter um quadro de referência. Esse quadro pode ser obtido através da pesquisa feita em Belo Horizonte, ou em cidades como Nova Hamburgo. Concretamente, qual é a religião do nosso povo? Feita a pesquisa, em grandes números, temos o seguinte: 75% aproximadamente responderam que somos católicos, 25% não são católicos. Desses 75%, alguns praticam, quer dizer, freqüentam um lugar de culto, de reunião, tem certo ritmo de encontro e também aprofundam a sua fé. Quantos são? Aproximadamente 28%, 29%, conforme os lugares de pesquisa. E os demais? Os demais, como nós vimos, são batizados, têm algum vínculo, por exemplo, participam de um culto, na ocasião de um batismo de um parente, ou de um casamento, ou de uma missa celebrada após a morte da pessoa. Então, essas pessoas, quantas são? São numerosas, são praticamente – nós já vimos – dois terços dos católicos, porque só um terço pratica intensamente a sua fé. Então, é claro que esses que são batizados e que não têm aprofundamento da fé, diante de nenhuma pregação, eles continuam como são. Gente de novas pregações, eles podem ouvir e podem se sentir atraídos. Então, o importante aqui não é saber se alguém está pregando. Isso é um direito que todos têm, mas se nós católicos estamos pregando suficientemente para aqueles que se dizem católicos. Então, o problema não é tanto se as seitas crescem, o problema é se os católicos estão aprofundando a sua fé. Faço uma comparação. Se alguém tem uma criança que está desnutrida, e ela dissesse: “Tenho medo que [a criança] vá ficar doente”. O problema não é o medo da doença, o problema é a desnutrição da criança. Então, a comparação, se me permitem, é claro, tem analogia apenas, mas a minha questão é: como católicos no Brasil podem aprofundar a sua fé com alegria, com, digamos assim, consciência do valor da sua fé, de tal forma que cheguemos àquela posição de que falava São Pedro: aqueles que são capazes de dar razão da própria esperança. Então, aqui para nós acontece um fato novo. É como a Igreja do Brasil, toda ela, pode, tomando consciência da desnutrição espiritual, oferecer novos elementos para que as pessoas conheçam a palavra de Deus, a doutrina da Igreja, a doutrina social da Igreja, e possam viver plenamente a sua fé. Enquanto isso não acontecer, acontece o contrário, quer dizer, outras pessoas vão fazendo as suas pregações e vão também, é claro, chamando aos seus grupos aqueles que não têm a raiz profunda da sua fé.

Jorge Escosteguy: Dom Luciano, só para completar a roda, o Dermi e o Oliveira depois, por favor.

Dermi Azevedo: Dom Luciano, o senhor, inúmeras vezes, certamente o senhor não sabe quantas vezes o senhor assistiu a pessoas naquela hora definitiva, talvez a única hora definitiva da condição humana, a hora da morte. E o senhor, há pouco menos de dois anos, em fevereiro de 1990, o senhor viveu aquela experiência do acidente que quase representou a morte para o senhor. Eu lhe pergunto: o que o senhor refletiu naquele momento, o que significou para o senhor? Embora sabendo que o senhor é uma pessoa de profunda espiritualidade, o senhor terá passado por alguma espécie de reconversão? O que lhe passou naquele momento?

Dom Luciano Mendes de Almeida: Dermi, eu lhe agradeço a sua pergunta e tenho prazer em falar com você. Sei que você foi um dos que se interessou por minha vida. Eu quero lhe dizer que fico muito grato; há tanta gente que teve esse mesmo interesse que o seu. Inclusive, quando eu vou a uma paróquia e vem alguém [e diz]: “Rezei pelo senhor”, fico assim devendo a minha gratidão. No entanto, na época, eu estava realmente muito enfraquecido; não perdi a consciência, mas [estava] muito enfraquecido. Eu tive muitas fraturas, tive a ruptura da aorta, aprofundamento do crânio e todas essas coisas que os jornais divulgaram, até mais do que eu mesmo fiquei sabendo na época. No entanto, isso me ajudou muito. Há duas conseqüências que ainda trago na minha vida. A primeira é de compreender melhor os que estão passando por isso, porque quando a gente está com saúde, corre, trabalha, a gente quer fazer o bem, mas não percebe muito como é difícil a vida para os outros que não podem andar, estão na cama, estão tristes, estão diminuídos. E isso, então, deu uma comunhão especial muito grande, que para mim fez bem e ainda faz. Quando eu vejo uma pessoa caminhar com dificuldade, eu entendo. E fico com vontade de ajudar, porque eu sei como é. Mas a segunda coisa muito importante para mim, talvez difícil de dizer em um programa como este, mas a você, eu gostaria de lembrar, eu sentia dores muito fortes, e é claro [que] eu me abandonava em Deus e confiava em Deus e ficava assim um pouco na dependência total de Deus. Eu não podia falar, porque minha boca estava toda costurada com metal, não podia fazer muitos sinais, a não ser com a mão esquerda, porque esta [a mão direita] estava completamente inutilizada. Então, a comunicação era mínima, eu tinha que muito mais rezar do que falar. E aí eu pensei em duas coisas: nas populações indígenas do Brasil, que foram pouco a pouco exterminadas, e no sofrimento daqueles que vieram da África para o Brasil, e que viviam numa situação de total, assim, subjugação, opressão, sofrimento. Eu tinha vergonha de ser tão bem tratado. E aquele pensamento justamente naqueles lugares onde eu tinha sido acidentado, lugares de muita escravidão, e lembrar do pelourinho e dos instrumentos de suplícios. E eu [pensava]: “Meu Deus, eu estou sofrendo nada em comparação com esses que sofreram”. E aquilo dava também uma comunhão existencial muito profunda e me tirava o sofrimento. É curioso. Eu ficava pensando mais nos outros do que em mim. Eu não sei se o senhor acredita nisso. Tanto que eu não precisei muito de anestesias, analgésicos. Eu estava pensando: “Os outros sofrem mais do que eu”, crianças, mulheres, idosos, e eu ainda estou forte aqui, bem tratado, acompanhado por tanta gente boa, inclusive por você.

Oliviero Pluviano: Dom Luciano, o senhor falou que está chegando agora, que está voltando da Itália, que é a minha terra. Na Itália, a Igreja brasileira é geralmente sinônimo de luta social, de engajamento social. O senhor viveu também na Itália, então sabe que o meu país é um pouco particular. Por um lado, hospeda a sede da Igreja Católica, e por outro lado tem o partido comunista que é o maior partido comunista da Europa Ocidental, pelo menos tinha, agora no momento [não sei se continua]. Eu me interesso por tudo o que é mistura de religião e social, [que] é grande na Itália. E agora aconteceu o seguinte: pessoas como o padre Leonardo Boff, da Teologia da Libertação, o povo italiano conhece, se fala nos jornais, sempre se falou, sobretudo na década passada. Agora, quando eu vou para a Itália, eu me pergunto: “Cadê a Igreja brasileira? Por que se fala menos da Igreja brasileira? Ainda continua num rumo progressista?”. Eu passo a pergunta...

Dom Luciano Mendes de Almeida: É uma pergunta que ressuscita aqui muito apreço à Itália. De fato, essa viagem foi rápida, quatro dias, apenas por aquilo que eu acabei de descrever. Mas eu conservo um enorme amor pela Itália, onde eu vivi por quase dez anos. É como uma segunda pátria para mim, e esse povo fica muito impresso dentro de mim. O que eu posso lhe dizer é que a Teologia da Libertação, na minha pobre análise, ela ainda vai dar todos os seus frutos. Mas ela é mais conhecida por aqueles que podem ler, que podem refletir, não é algo que entrou assim em todos os níveis da pregação cristã no Brasil. Sobretudo para os mais simples, talvez alguns aspectos da Teologia da Libertação, mas ela é ainda algo que é mais acolhido pelos estudiosos, mais pelo menos como tema de reflexão. Podem aceitar que parcialmente, ou integralmente, mas não creio que tenha descido muito ao povo. Então, o que acontece é que nessa última fase houve menos publicações, e essas publicações é que são traduzidas na Itália, que são então depois difundidas. Então, como houve uma menor faixa assim de intensidade de publicação, é claro que eles estavam perguntando: “O que aconteceu?”. Eu creio que é como uma semente, ela está na terra, ela vai penetrando, ela vai dando o seu fruto, ela vai, digamos assim, escolhendo o como crescer retamente. E dentro dessa fase, nós temos que aguardar um pouco o tempo da maturidade. Isso virá, mas não creio que tenha sido simplesmente o deixar de acontecer. Eu acho que é o contrário, é o poder crescer dentro daquilo que é a necessidade do amadurecimento no tempo. Isso é muito importante.

Padre Antônio Aparecido Pereira: Dom Luciano, agora há pouco o senhor falou que nós precisamos de sinais de esperança. E a própria situação de sofrimento vivida pelo senhor prova que realmente a esperança é alguma coisa de muito sério. Mas como falar de esperança ao nosso povo que já está cansado mesmo de ver as suas esperanças sempre atropeladas, para usar um termo com o qual o senhor está meio assustado?

Carlos Tramontina: Deixe-me esticar um pouquinho essa pergunta para perguntar ao senhor a sua opinião sobre o governo Collor.

Dom Luciano Mendes de Almeida: Veja, são perguntas tão importantes, e que fazem refletir não só a nós, mas quem está acompanhando este programa e outros dias também, porque, afinal, a esperança é o que fica. É a grande luz no fim do túnel. A gente vê, caminha, porque acredita nisso, e para nós a esperança não é só uma questão de otimismo sadio, que afinal tudo vai dar certo. Mas é a compreensão de que Deus está presente na história, Deus quer o bem de todos nós, e vai dando ocasião, meios para que nós possamos construir esse bem. Então, essa é realmente a nossa esperança. Por outro lado, é importante perceber que o nosso povo tem muitas razões para não ter esperança, porque o preço da vida hoje, o custo da vida está muito alto. Basta ver que o nosso salário mínimo está com 34,5% de poder aquisitivo em relação a 1940. A distribuição da renda é tão irregular, que nós estamos com 10% da população mais pobre vivendo com 0,8% da renda. Quer dizer, se nós tivermos 100 pãezinhos e 100 brasileiros, o primeiro sozinho come 17, depois os dez primeiros comem praticamente 51 pãezinhos. E os 10 últimos vão com uma faquinha cortar um pedacinho de 0,8 do último pão. Quer dizer, isso é realmente desastroso e faz com que a população fique entristecida. No entanto, onde é que nós vamos encontrar forças para retomar o caminho da esperança? Eu faço um apelo àqueles que trabalham em pequenos municípios. Hoje, na diocese de Mariana, eu tenho contato com 70 prefeitos. É diferente do tempo de São Paulo, que tem, afinal, uma grande prefeitura. Mas com pequenos tipos, assim, de iniciativas municipais, nós vimos muita coisa boa. O Brasil tem hoje alguns ótimos prefeitos, que pensam na moradia, na escola, na saúde. Isso está acontecendo no nosso interior. Então, o que acontece em pequeno nesses municípios... Estou vindo ontem de Ouro Branco. O prefeito construiu lá mais de mil casas, escolas, o povo está satisfeito. E ajuda, e se sente em comunhão com o próprio [poder] executivo, de modo que uma coisa que nós não podemos perder de vista é a rede que nós temos de municípios, e procurar que esses que estão à frente sejam escolhidos realmente com competência, com adesão às necessidades do povo e começar por aí. Eu até aconselharia que houvesse uma espécie de plebiscito para saber quais são as prioridades de cada município. E depois, com conselhos municipais feitos pelo povo para apoiar, para levar isso à frente, para cobrar, de modo que haveria um renascimento nesses quase cinco mil municípios que nós temos, quatro mil e alguma coisa. Por outro lado, a avaliação do governo, eu creio que nós devemos ser muito objetivos, nós que estamos aqui, porque nós vivemos outros governos e conhecemos os anteriores até bem para trás. Então, não podemos querer que um determinado governo seja a explicação de tudo o que é bom e tudo que é mau. Ele está numa seqüência, e a herança que o governo Collor recebeu é muito pesada. Fosse mesmo outro presidente, ele teria a mesma herança, que não é fácil [...], eu creio, avaliar com exatidão. Agora, é verdade que a expectativa era muito grande. E ela não tem sido respondida na mesma força da expectativa. Então, eu creio que nós deveríamos agora, dentro do regime democrático, procurar que a democracia não fosse só uma liberdade de escolha dos representantes, mas um direito de participação nas iniciativas, na formação de programas municipais, intermunicipais. Por exemplo, uma estrada às vezes beneficia sete, oito municípios. Por que não se reúnem e fazem acontecer essa estrada? É o caso de um dos lugares que eu estou vendo diante de mim. Assim, a avaliação do governo, eu creio que ela deveria ser feita não só do governo em nível nacional, mas do governo em nível estadual, em nível municipal. Então, a avaliação desse período, que é mais importante para mim, não é assim tão negativa, não. Tem havido algumas coisas boas.

Padre Antônio Aparecido Pereira: Dom Luciano.

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Só um pouquinho, padre. A mesma pergunta sobre o presidente Collor é feita pelo Nelson Carvalho, de Ourinhos, e pelo Antônio Carlos Mancuso, aqui de São Paulo. O Antônio Carlos, inclusive, quer saber como está o relacionamento da Igreja com o governo Collor, e lembra o senhor, lembra muito bem, aliás, porque me passou despercebido também: o senhor não respondeu sobre o movimento carismático.

Dom Luciano Mendes de Almeida: Está ótimo. Então vamos voltar rápido ao carismático para não ficar só no político. Vejam, em primeiro lugar, o movimento carismático já existe há alguns anos. A novidade é que ele cresceu. E o importante é perceber o que ele traz dentro de si. Ele traz uma proposta de fé, de oração, uma redescoberta da importância teológica do Espírito Santo [segundo a doutrina católica, Deus é um ser uno, mas ao mesmo tempo trino, constituído por três pessoas eternas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, a chamada Santíssima Trindade], e depois uma capacidade de as pessoas estarem juntas na grande fraternidade, se apoiando umas às outras, e até mesmo buscando, como nós vimos antes, algumas graças especiais, até mesmo de cura da saúde. Mas não só, mas de recuperação, digamos assim, da pessoa, na sua capacidade de enfrentar as dificuldades, de capacidade também da pessoa se reinserir no seu lar, de ser atuante no ambiente em que vive. E também existe hoje, no movimento carismático, onde ele se realiza, um grande compromisso com a transformação social, que antes não era tão evidente. Então, quero dizer que a renovação carismática cristã é uma porção do povo de Deus. Existem outros grupos que têm, digamos assim, inspirações com outras tônicas mais importantes. Mas é válido, está em muitos lugares dando frutos positivos. Agora, como tudo o que é bom, tem sempre que ter um certo cuidado para não insistir demais em elementos secundários, por exemplo, uma certa exaltação que pode às vezes acontecer, e que não é aquela que está na intenção prioritária do próprio movimento. Mas eu quero saudar aqueles que estão na renovação carismática e pedir que continuem a sua ação, muito inseridos no conjunto do povo de Deus, e evitando aquelas coisas que às vezes são mais de um ou outro caso exagerado do que do próprio movimento em si. Mas voltando ao governo Collor, nós estávamos procurando sinais de esperanças, como diz o padre Antônio. Então, vamos procurar sinais de esperança no governo Collor, que assim fundimos as coisas. Eu creio que a aprovação da demarcação da terra Yanomami foi um ponto alto. Obrigado a todos que ajudaram, e que o presidente fique firme, porque essa terra é dos Yanomami, está assim na Constituição. O dia em que ela for demasiada, os próprios índios saberão depois como fazer para que outros possam dela também usufruir. Mas, no momento, o importante é salvar o princípio constitucional e dar a todas as populações indígenas, em símbolo, a certeza de que elas serão respeitadas no Brasil. E qualquer megalomania de cobiça, que procure outras áreas e respeite as populações indígenas. Então, voto positivo ao governo Collor. Segunda coisa: a promoção da criança. O Ministério da Criança, depois o Estatuto da Criança [e do Adolescente], palavra do presidente em nível internacional, acho um ponto positivo. Nós não podemos esquecer, está aí sendo promovido e nós devemos até fazer acontecer mais e mais no Brasil. Mas há também pontos negativos, é claro. Há sinais, eu digo, mais de esperança, mas [também] de um pouco de decepção. Por exemplo, nós gostaríamos de ver um tipo novo de distribuição e uso da terra. O Brasil é grande, então essa terra está mal distribuída, há população sem terra. E por que não então fazer um programa inteligente, talvez regionalizado, com a contribuição de tanta gente que pensa esse problema no país e dar uma resposta de esperança a essas populações sem terra? Eu acho que é um direito.

Carlos Tramontina: E a corrupção, Dom Luciano? Como é que fica a esperança, vendo o dinheiro público sendo jogado pelo bueiro? Pelo bueiro não, a gente sabe muito bem onde é que guardam o dinheiro.

Dom Luciano Mendes de Almeida: Infelizmente, a gente sabe que a corrupção não é qualidade para o governo. O que é triste é que nós temos corrupção até no peso do açougue. É o comportamento que tem que mudar. Vejam os preços dos brinquedos de Natal. Não digo que seja corrupção, mas é uma [...] demasiada que está muito pertinho da corrupção, porque é desejar usufruir de coisas que têm o seu preço normal para a população a muito mais do que o permitido. Então, isso vai gerando uma cobiça e há dois outros fatos que influenciam muito. Um é o horizonte de vida da população brasileira. Antigamente, a pessoa queria estudar, trabalhar, ter uma vida honesta e, não sei, ter aquelas facilidades que a vida oferece. Mas hoje o que a pessoa quer? Quer ganhar na loteria, quer ganhar a Sena sozinho.

Jorge Escosteguy: Aliás, como é que o senhor vê? No Brasil, não existe o jogo legalizado, mas tem loteria de tudo que é tipo. Como é que o senhor vê essa...?

Dom Luciano Mendes de Almeida: Mas o importante, é isso que eu estava dizendo, se me permitem fazer a insistência nesse ponto. É o horizonte de vida, quer dizer, o que é valor para o brasileiro hoje? Não é trabalhar, é ganhar dinheiro. E ganhar dinheiro depressa. E ganhar dinheiro mesmo à custa dos outros. Então, isso está tudo errado. E o jogo, ajuda ou atrapalha? O jogo aumenta isso. Porque se fosse só uma distração, não tem problema nenhum. O problema é que perverte a cabeça.

Pedro Del Picchia: [interrompendo] Mas a Igreja é tradicional por fazer seus bingos beneficentes nas paróquias.

Dom Luciano Mendes de Almeida: Eu acho que deve ser corrigido isso aí. Lá, eu sou contra isso aí. Nada de bingo, não. Eu acho que o pessoal deve saber obedecer à lei também dentro da Igreja. O senhor tem razão.

Dermi Azevedo: Dom Luciano, nesse contexto aí, como o senhor vê essa adesão no Brasil, uma adesão incondicional às normas do Fundo Monetário Internacional? Dessa maneira, o Brasil não pode ir ao fundo mais rapidamente, no sentido...?

Dom Luciano Mendes de Almeida: Então, aí, Dermi, você sabe, nós vimos antes que a Teologia da Libertação é muito mais questão dos grandes teólogos. E, infelizmente, a questão do Fundo Monetário não é do brasileiro comum, que nem sabe o que é isso. Então, é preciso que aqueles que nos representam tenham sensibilidade de perceber o que o povo, nesse momento, gostaria que fosse feito, não tomar decisões por cima da cabeça do povo, porque amanhã vão pesar muitíssimo sobre a vida da nossa população. Vejam, hoje, a Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância], na sua grande proposta para o mundo inteiro, no balanço do ano passado, na virada para este ano, diz: “Vamos perdoar a dívida externa da África”. Eu digo: palmas à Unicef. Mas e a nossa [dívida externa]? Vamos também caminhar por aí. Eu creio que há coisas que o mundo tem que perceber. A nossa dívida, embora tenha sido contraída dentro de aspectos de normalidade, ela é excessiva. E ela está hoje causando muito sofrimento para a nossa população. Se nós dispuséssemos daquele capital para fazer moradias, melhorar os hospitais, oferecer mais recursos para a melhoria da situação do campo, nosso povo estaria melhor. Então aqui, acho que voltamos ao ponto. Qual é o critério? O bem do povo. O critério é bem comum. Então, seja o Fundo Monetário, seja, digamos, qualquer outra ação dentro do país, ela deve vir [obedecendo este critério] nisso o povo tem que benefício? E não colocar aqui, não é? [coloca a mão no pescoço] Afogamento da respiração do povo.

Jorge Escosteguy: Dom Luciano, o senhor falou da distribuição de terras. E quando uma autoridade da Igreja fala de distribuição de terras, algumas pessoas sempre lembram de uma outra questão. Dois telespectadores telefonaram: Sérgio Almeida, de Boqueirão, em Santos, e Nelson Paim, aqui de São Paulo: “Por que a Igreja Católica não começa a reforma agrária nas suas terras?”

Dom Luciano Mendes de Almeida: Ótimo, ótimo, venham nos ajudar. Veja, eu vou contar um fato. Eu tenho um pedacinho de terra lá, digo eu, a Igreja [tem]. Eu estou querendo dar essa terra. Não quero nada [em troca]. Mas sabe o que há? Há pessoas que querem se apoderar dessa terra e que não são os pobres. E eu disse: façamos... eu chamei o Incra para fazer a distribuição. Isso tem três anos, e a terra não foi distribuída até hoje. Está dada, assinada, e não se chega ao projeto de distribuição. Por quê? Os que pretendem a terra não são os mais pobres. E são pessoas que até já têm terra perto e querem um pouquinho mais. E não se chega a um critério de distribuição por causa da violência que se gerou entre essas pessoas. Então, eu quero lhes dizer que as pessoas que estão aqui sugerindo isso venham nos ajudar para chegarmos a um critério que satisfaça as verdadeiras necessidades dos mais pobres. Por outro lado, eu posso lhes dizer que, primeiro, a Igreja tem terra, mas é pouca. E essa pouca está à disposição da população. Pode estar certo. E nesse sentido, vejam, se alguém dos telespectadores tem aqui o conhecimento de uma terra de igreja que possa ser bem utilizada e ainda não foi, comunique, porque o interesse nosso é dar exemplo realmente nesse campo. E aí está a palavra do Papa. Mas que esses todos sigam o bom exemplo, não é verdade? Aquele pouquinho de terra da Igreja se distribui, e o resto?

Carlos Tramontina: Deixe-me aproveitar essa deixa da terra da Igreja para pedir ao senhor um esclarecimento em relação ao dinheiro da Igreja. Quando a gente fala em Igreja Católica, muita gente, imediatamente, já fala: “[...] a Igreja é rica. Por que a Igreja não começa dando o dinheiro que ela tem?”. E tudo mais. Então, eu gostaria que o senhor desse esse esclarecimento. A Igreja no Brasil é rica, não é rica?

Dom Luciano Mendes de Almeida: É rica. Nossa riqueza é o povo. É a melhor riqueza que tem. E essa está a serviço da população.

Carlos Tramontina: Financeiramente, como ela está no Brasil hoje?

Dom Luciano Mendes de Almeida: Olha, quebrada não está, mas quase. Porque não tem recursos disponíveis. O que acontece é que há propriedades, por exemplo, uma igreja. Mas de quem é a igreja? É do padre? É do bispo? É do povo. E como é que vai fazer? Vai deixar de colocar a Igreja a serviço da população? De modo que eu creio que os recursos que a Igreja tem devem ser realmente aplicados para o serviço concreto dos mais necessitados. Onde isso não é feito, há uma falta. Se há uma falta, isso deve ser corrigido. Mas não pensemos que a Igreja dispõe hoje de muitos recursos, que não é verdade, não. Pelo menos a meu conhecimento, não é verdade.

Walter Falceta Jr.: Dom Luciano, eu me lembro de algumas noites de garoa lá no Largo São José do Belém, quando o senhor ainda era o bispo do setor Belém, em que várias pessoas, uma legião, que foram chamadas de descamisadas, esperavam a sua chegada à noite para pedir conselho, para pedir um dinheirinho para voltar para a casa, para receber um afago e receber uma palavra de conforto. Então, eu trago aqui três perguntas hipotéticas, três aconselhamentos que alguns desses descamisados, despossuídos fariam para o senhor nesse momento. A primeira é a seguinte: é uma mulher que vive na periferia, ganha muito mal, o marido também, e gostaria de tomar um anticoncepcional para evitar o aumento dessa prole. Ela toma ou não toma? Segunda: tem um casal de pessoas, um homem e uma mulher que se conheceram há pouco tempo. Ambos são casados, já foram casados, tiveram os seus cônjuges. Não deu certo, pelos descaminhos da vida, e hoje querem se unir novamente. Eles vão estar incorrendo numa falta, segundo as leis da Igreja. O que eles fazem? Vão morar juntos, juntam os trapinhos ou não? E o terceiro caso é uma pessoa, é uma mulher também, sofreu uma violência sexual e está grávida. Ela não quer esse filho e não tem como cuidar. O que ela faz?

Jorge Escosteguy: Dom Luciano, essas questões são levantadas também pelos telespectadores Carlos Teixeira, de São Paulo, sobre o controle da natalidade; José Joaquim Araújo, de Itu, levanta mais uma questão: “Por que a Igreja é contra a distribuição de preservativos e seringas para o combate à aids?”. E José Pereira de Souza, de São Paulo também, sobre o divórcio.

Dom Luciano Mendes de Almeida: Muito bem. Então, Walter, você conheceu essa população, e acredito que os casos mais urgentes eram de fome, de doenças, de falta de moradia, de falta de solidariedade da população envolvente. Não eram assim casos como você propõe. Em todo caso, é muito importante você tratar desses casos, é muito importante. E hoje mesmo eu fui à Praça do Belém rever alguns daqueles meus amigos lá. Em primeiro lugar, a pessoa, a mulher que sente que na sua vida não é possível ter mais filhos, ela tem seus critérios, ela tem todo o direito de tomar, digamos assim, as iniciativas para isso. Mas desde que sejam de acordo com a sua consciência. E o que a Igreja procura é ajudar a formar a consciência para que esse benefício, que é do espaçamento dos nascimentos, ou do afastamento de uma maternidade sejam totalmente adequados ao valor da pessoa humana, aos critérios que decorrem desse valor da pessoa humana. E não que ela entre numa farmácia e tome um anticonceptivo e acabou. Isso não leva a pessoa a nenhuma realização pessoal. Então, o que a Igreja faz é ajudar a pessoa a caminhar segundo a própria consciência.

Walter Falceta Jr.: Mas caso ela decida por esse método, ela incorre em um pecado?

Dom Luciano Mendes de Almeida: Veja, a questão de pecado depende muito da formação da pessoa. E há tantas coisas que as pessoas fazem erradas sem perceber, às vezes, a gravidade que elas têm. Se ela vier perguntar sobre a importância do que ela está fazendo, é claro que eu vou procurar conversar com ela, dentro de toda a liberdade, para mostrar o que é mais importante, o que não é importante, o que é possível, o que não é possível. Mas com pleno respeito à pessoa humana. Se duas pessoas estão, aí também como você dizia, sem condição de constituir os seus lares como antes, e querem viver agora uma nova relação. Então, é claro que aí vai também muito da consciência da pessoa. Primeiro, é preciso examinar o que houve antes. Foi um verdadeiro casamento ou não foi? Porque a gente também, às vezes, se esquece desse aspecto. Às vezes, há casamentos que geram aparência de casamento e que não foram. Então, há todo um trabalho que a Igreja pode prestar para identificar os casos, para formar as consciências. Agora, se a pessoa, diante de um empecilho da própria consciência, insiste em fazer alguma coisa que ela vê que não deve, a gente respeita, porque ninguém pode forçar o outro a fazer o bem, não é? E nem vai deixar de estimar a pessoa porque ela tem uma decisão que não é exata. E quanto à questão do aborto, se a pessoa viesse a mim e falasse disso, como outras vezes já falou, eu procuraria dizer o que eu posso fazer para ajudar você a ter o seu filho. Porque, muitas vezes, a pessoa quer ter a criança, só não tem quem a ajude, não tem quem se solidarize. E isso, nas [...] pesquisas que nós pudermos fazer na sociedade, teremos como resultados isso. O aborto não é porque a pessoa quer. Mas, muitas vezes, é o fruto de uma grande angústia que a pessoa tem por falta de quem se interesse pela situação em que ela está vivendo. Hoje, ainda, eu estive com uma dessas moças, que estava com esse impasse e que passou por essa necessidade, e que aceitou a gravidez e teve o filho. E que se tivesse, digamos assim, sido abandonada na época, não sei o que ela teria feito. De modo que o que a pessoa, muitas vezes, pede não é saber o que ela deve fazer, mas saber se alguém quer ajudar para ela fazer o certo que ela sabe que quer fazer.

Jorge Escosteguy: E o combate à aids, Dom Luciano, preservativos e seringas?

Dom Luciano Mendes de Almeida: É importantíssimo o combate à aids, é importantíssimo. Agora, nós estamos ainda muito pobres. Nós não temos as grandes soluções e todos nós aqui estamos sofrendo isso. Veja, hoje ainda foi inaugurada uma casa para combate à aids, aqui na arquidiocese, pelo seu cardeal. Nós temos essa casa que combate a aids para crianças que nascem já precisando desse tratamento, é um trabalho maravilhoso, que é fruto da generosidade. Agora, colocar só a questão do preservativo sim, preservativo não, acho que empobrece muito. Inclusive estigmatiza o aidético, porque mostra só esse aspecto, mas o importante não é isso.

Jorge Escosteguy: Desculpe-me em insistir com o senhor, mas as pessoas que estão lhe assistindo, os católicos que estão lhe assistindo, de repente, eles não terão a resposta objetiva às três questões que o Walter colocou e que os telespectadores colocaram. Porque, no fundo, às vezes as pessoas querem saber: devo ou não usar preservativo? Devo ou não ser a favor da distribuição de seringas para combater a aids? Devo ou não me divorciar? Como serei visto pela Igreja Católica?

Dom Luciano Mendes de Almeida: A resposta é que a minha resposta pode ajudar, e eu não tenho dificuldade nenhuma de dá-la. Mas o mais importante é que a pessoa forme a sua consciência para atingir essa resposta certa, e é justamente esse o nosso serviço. Ajudar a pessoa, no primeiro caso, a compreender que a vida é importante, e que por isso deve haver aquela conformidade com a dignidade da vida humana. Em casos concretos, existem métodos que a pessoa pode escolher, de acordo com a sua consciência, e que são perfeitamente válidos tecnicamente. Por exemplo, o método do espaçamento da natalidade através dos métodos naturais, que no Brasil se conhece tão pouco, e hoje estão divulgados no mundo inteiro com grau muito, digamos assim, maior do que outros preservativos. Segundo lugar: a questão do casamento, é claro que se a pessoa está casada, o outro está casado, não há nada, digamos assim, que mostre que esse vínculo foi estabelecido sem plenitude. Então, o segundo casamento para Igreja não existe. Agora, isso não quer dizer que não possa existir a caridade, o apoio, a vontade de ajudar as pessoas, principalmente se eles estão lá abandonados de noite numa praça. Eu ajudo qualquer um, seja o que for. Em terceiro lugar: a questão do aborto, como eu lhe disse, é muito mais grave, porque aí é uma vida que está em questão. E não se pode agora...

[...] : [interrompendo] Duas [vidas], não é?

Dom Luciano Mendes de Almeida: Sim, meu caro, mas duas vidas têm iguais direitos. Não se pode optar por tirar uma vida. Nunca. Esse é um erro da nossa sociedade que está gerando aí, digamos assim, situações terríveis. Depois, quando se apreende o aborto, é capaz de se exterminar uma criança de noite com um tiro na cabeça, ou se partir para a eutanásia. Porque, colocado esse principio de que é possível, para salvar uma vida, matar outra, chega-se a um absurdo qualquer.

Padre Antônio Aparecido Pereira: Dom Luciano, a respeito da Casa Vida, que acolhe as crianças aidéticas, essa casa passou por um momento de sofrimento muito grande, enfrentando preconceito até da vizinhança. Certamente são pessoas boas, até católicas e tudo, mas cujo preconceito, o medo, a falta de informação levaram a essa atitude, não é? Como a Igreja poderia trabalhar nessa linha de diminuir esse preconceito, fazer as pessoas entenderem, se, de repente, em relação a certas campanhas do governo, parece que a Igreja está sempre com o pé atrás, não é?

Dom Luciano Mendes de Almeida: É verdade, padre Antônio. Eu creio que esse assunto merece também uma grande reflexão. E nós não devemos acusar essas pessoas, não. Porque a nossa reação seria muito parecida, por duas razões. Primeiro, porque nós teríamos medo de que a situação que os outros estão vivendo passe para nós, para a nossa família, para os que estão conosco, eles vão pegar aids etc. Em segundo lugar, porque aquele lugar parece que perde o valor, que você não vai vender a sua casa tão bem se está ao lado, digamos, de um hospital, de uma coisa do gênero. A gente entende. Mas há valores maiores. E o valor maior é a solidariedade, é a vontade de ajudar. Vejam, além da pessoa que mora ao lado, há outra que voluntariamente entra lá e cuida da criança no berço e dá alimento para essa criança, e lava essa criança com muito mais proximidade. Então, nós vemos que é uma educação para a solidariedade. Não podemos abandonar aqueles que nesse momento precisam da presença e da contribuição da sociedade. Então, esses gestos de grande voluntariado, eu acho que induzem na sociedade um comportamento que vai fazer silenciar essas reações no entorno, por exemplo, na Casa Vida, você tem razão.

Dermi Azevedo: Dom Luciano, eu gostaria de voltar à primeira pergunta do Roda Viva de hoje, que o Jorge fez, a respeito da Veja. Porque eu me lembro que há alguns anos, quando Dom [José] Ivo [Lorscheider] era presidente da CNBB, a Veja deu também uma matéria de capa dizendo que a Igreja queria o governo, queria o poder. E agora, na última edição, disse que a Igreja se afastou dos pobres e que o catolicismo está decadente. Eu pergunto, habitualmente não aparece o pensamento da Igreja, quer dizer, aparece o pensamento da Veja, mas não aparece o pensamento da Igreja, a não ser de um ou outro bispo que concorda com aquela linha. Então eu pergunto: pelo que me consta, e até outros companheiros aqui que cobrem essa área, a Veja é a única publicação que nos últimos anos foi objeto de uma nota da Assembléia Geral da CNBB em Itaici. Acho que seria um bom momento para o senhor também falar a respeito disso.

Dom Luciano Mendes de Almeida: Olha, Dermi. Eu sou convidado aqui neste programa com muita alegria e vontade de participar. Então, é preciso que seja também transparente em todas as respostas. Eu lia a Veja, mas há mais de cinco anos que eu cortei a minha assinatura porque eu acho que o parecer que ela dá sobre a Igreja é falho. E, infelizmente, poderia não ser falho, porque os outros têm aí os elementos objetivos para formar a sua posição. Então, eu respeito os leitores de Veja, respeito os editores de Veja, mas não me considero um leitor de Veja, porque não estou habilitado e nem qualificado para fazer uma crítica de Veja, porque eu já me afastei da leitura [dessa revista].

Carlos Tramontina: Essa capa que diz diretamente [sobre] a Igreja, o senhor também não viu essa matéria, a edição desta semana?

Dom Luciano Mendes de Almeida: Não, eu não leio [Veja].

Jorge Escosteguy: Dom Luciano, o senhor não diria que é uma atitude radical e pouco cristã essa sua decisão de eliminar da sua existência um órgão de imprensa?

Dom Luciano Mendes de Almeida: Na verdade, se eu tivesse tempo, eu faria até isso. Mas selecionando as coisas importantes, essa [leitura] vem muito depois, porque perdeu para mim os critérios de objetividade. E os critérios de objetividade são fundamentais para a gente poder servir o próximo. Então, é uma coisa que não está excluída, digamos assim, sem mais. É porque o tempo é pouco, a vida é curta, não dá. Então, eu prefiro outras coisas que me dão mais condições de objetividade.

Pedro Del Picchia: Dom Luciano, o que é melhor: ser presidente da CNBB ou ser bispo aqui no Belém, na Zona Leste de São Paulo?

Dom Luciano Mendes de Almeida: Bem, a resposta é muito simples. Eu acho que, para mim, tudo é bom, porque eu não escolhi nem um, nem outro. Eu vim aqui...

Pedro Del Picchia: [interrompendo] O senhor ocupa um cargo político, o senhor tem de conviver com o poder. O senhor governa indiretamente o povo de Deus.

Dom Luciano Mendes de Almeida: Veja, eu nunca pensei em minha vida que seria bispo. Padre, eu quis ser. Mas bispo, nem em sonho, de modo que aquilo caiu assim sobre mim como uma novidade. E até eu me acostumar, demorou muito. A mesma coisa para a CNBB: até eu me acostumar, demorou bastante.

Jorge Escosteguy: Dom Luciano, estamos chegando ao final. O Oliviero tem uma pergunta curta para o senhor, se o senhor puder dar uma resposta breve...

Oliviero Pluviano: No ano que vem, Santo Domingo [capital da República Dominicana] será sede da reunião dos bispos latino-americanos. O senhor foi um dos protagonistas de Puebla [no México, em 1979, na Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano]. Passados esses anos, o Dom Luciano que irá para Santo Domingo é o mesmo Dom Luciano de Puebla, a mesma energia, a mesma força?

Dom Luciano Mendes de Almeida: Eu estou [agora] um pouco "remendado" [risos], então não sei como vai ser. De qualquer forma, o entusiasmo é o mesmo. E também, digamos assim, a disponibilidade, porque essas reuniões não são tão preparadas como parece. Porque depois vem a liberdade de palavra, de expressão. Eu creio que é muito difícil prever exatamente o que vai acontecer para a Igreja através dessa reunião. Eu a considero importante, porque é a presença de representantes de toda a América Latina. Gostaria muito que tivesse um fruto positivo para o Haiti, que está no Santo Domingo e que está sofrendo tanto, e quem sabe aqui a solidariedade do Brasil poderia, falando de Santo Domingo, se lembrar do Haiti, que está do lado. E para termos de Igreja, também o que está em questão não é a celebração dos 500 anos, mas é a vida que vem agora, depois de tudo aquilo que aconteceu nos 500 anos. Qual é a nova vida na América Latina? A união dos povos, a amálgama das raças, os caminhos de superação das injustiças...

Oliviero Pluviano: A opção preferencial pelos...

Dom Luciano Mendes de Almeida: ...a opção evangélica preferencial pelos povos, muito obrigado. É isso aí.

Jorge Escosteguy: Dom Luciano, eu queria que o senhor me desse uma última resposta, um pouco mais objetiva, até porque os telespectadores têm ligado sobre o assunto, sobre essa questão do afastamento da Igreja, porque eu acho que o senhor passa muito por cima e não dá uma resposta objetiva para quem hoje freqüenta as igrejas. Deixe-me só lhe fazer uma pergunta e lhe dar um exemplo. O José Carlos, de Ribeirão Preto, telefonou e disse: “Será que o motivo do afastamento dos fiéis não é, como diz a Bíblia : ‘Os maus pastores não cuidaram direito dos rebanhos nos dias de chuva'?”. E eu lhe dou um exemplo recente. Há pouco tempo, faleceu a mulher de um amigo meu e, na semana seguinte, a filha foi procurar uma igreja para rezar uma missa de sétimo dia. Ela andou por quatro, cinco ou seis igrejas em São Paulo e não conseguiu um padre que rezasse a missa de sétimo dia. Em uma das igrejas, inclusive, lhe disseram: “Se você trouxer o padre, nós rezamos a missa”. Aí ela conseguiu uma missa de sétimo numa igreja aqui perto da [avenida] Giovanni Gronchi, e seria celebrada a missa para duas pessoas. Dois falecimentos, inclusive a mulher desse amigo meu. O padre se apresentou para rezar a missa, e era uma coisa absolutamente burocrática. O senhor, assistindo a essa missa, é como se fosse um burocrata num guichê batendo o carimbo, com perdão da palavra. Ou seja, ele consultava as coisas do livro, não sabia nitidamente as coisas que continha o livro, que ele tinha que ler, tropeçava [na leitura]. Já era um padre de certa idade, com experiência. Na hora de mencionar na missa o nome das pessoas, ele procurou um papel para ver o nome das pessoas às quais a missa era dedicada. Só encontrou um papel, só leu o nome de uma pessoa e não leu o nome da outra. Enfim, as pessoas que saíram dessa missa, saíram absolutamente decepcionadas, inclusive o comentário era esse: “Desse jeito, a Igreja Católica realmente tem que perder os seus fiéis para outras seitas ou para outras religiões etc”. Então, eu queria que o senhor desse, para encerrar, nesta antevéspera do Natal, com brevidade e objetividade, por favor, uma última resposta.

Dom Luciano Mendes de Almeida: Pois sim. Quero aproveitar para agradecer todas essas perguntas e reconhecer que onde há erro tem que haver correção. Então, se há uma atitude, um comportamento falho da parte de alguém no exercício do seu ministério, é claro que nós todos devemos ajudar para que haja uma superação dessa falha, um melhor atendimento dos fiéis. No entanto, nesse caso descrito, há três aspectos que vale a pena ser considerados. Primeiro, é que quando se oferece a Deus a celebração da Eucaristia, não é para uma pessoa, é para todos que pedem. E, às vezes, não é possível cada um pedir uma celebração isolada, porque pode haver vários falecimentos na mesma paróquia. E teologicamente se sabe que Deus não é só inteligente e bom, mas Ele acolhe essa celebração para todos que dela possam necessitar. Segunda coisa: às vezes, um padre não sabe realmente cumprir tudo aquilo que dele se espera. Mas se é uma pessoa de mais idade, pode ser até que tivesse uma componente derivada da própria idade ou do estado de saúde que ele está, porque não é normal que uma pessoa de muitos anos não saiba se situar diante de um livro de oração, de modo que aí deve haver uma componente também mais ocasional. Em terceiro lugar, eu creio que a causa pela qual as pessoas passam para outras seitas, não é porque pertencem à Igreja Católica, é porque não pertencem à Igreja Católica. Daí aquela resposta que eu procurei encaminhar, que quem realmente se considera católico viva a sua fé. E a questão do nosso correspondente que falou da atuação dos maus pastores, estou plenamente de acordo que a razão de algumas dessas mudanças pode ser um mau comportamento do ministro. Só que aí prova-se também a falta de raiz do fiel, porque ele devia ser o primeiro a querer ajudar o pastor a ele mudar o seu comportamento. E não ele deixar de pertencer à igreja que ele ama, de modo que aí eu creio que há um pouco também de visão que tem que ser aperfeiçoada, completada. Mas já que estamos no fim, no Natal a palavra é esperança. Queria agradecer a oportunidade e dizer: tudo o que aqui nós dissemos, tudo o que foi perguntado só tem uma finalidade, é que essa celebração no Natal não seja apenas uma ceia, um presente, mas seja uma presença histórica, unidos para melhorar não só a qualidade de vida, que são as coisas indispensáveis, a dignidade de vida humana para que a gente tenha o de comer, o trabalho, o salário, mas também o comportamento humano, a fidelidade à própria consciência. E mais do que tudo, aquilo que Deus quer, que é uma fraternidade que supera a violência, supera as segregações, supera as opressões. E é uma grande antecipação daquilo que um dia, nós esperamos, será para todos nós a alegria dessa comunhão plena com Deus. Esse é o Natal.

Jorge Escosteguy: Muito obrigado. Nós agradecemos então a presença esta noite no Roda Viva de Dom Luciano Mendes de Almeida, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, lembrando que Aparecida Nunes, aqui da Vila Matilde, sua ex-aluna, lhe deseja um feliz Natal e pergunta se o senhor sarou e se está bem. A entrevista de hoje de Dom Luciano é uma prova de que ele está ótimo. Nós agradecemos também a presença dos companheiros jornalistas. O Roda Viva fica por aqui, voltando na próxima semana às nove horas da noite, na segunda-feira. Um feliz Natal a todos e até a próxima segunda-feira.

Dom Luciano Mendes de Almeida, nascido em 5 de outubro de 1930, no Rio de Janeiro, morreu em São Paulo, ao lado da família e dos amigos, por falência múltipla de órgãos, conseqüência de um câncer de fígado, em 27 de agosto de 2006, aos 75 anos. O corpo do arcebispo emérito de Mariana foi enterrado na cripta da Catedral de Nossa Senhora da Assunção.

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