Baixe o player Flash para assistir esse vídeo.
[Programa ao vivo, permitindo a participação de telespectadores por telefone, faz e internet]
Paulo Markun: Boa noite. Ela está provando que a justiça pode sair dos gabinetes e se aproximar da população fazendo acordos e evitando conflitos que em geral acabam em violência. No centro do Roda Viva esta noite, a juíza Sueli Pereira Pini, juíza do Macapá, responsável pela primeira experiência de Justiça itinerante no Brasil.
[Comentarista]: Formalismo, lentidão, falta de recursos e muitas vezes de profissionais competentes. A Justiça brasileira está com dificuldade de fazer justiça. Processos empilhados, pendências que se arrastam anos e anos nos tribunais se transformaram em símbolo de ineficiência, em barreira à cidadania no Brasil. Pesquisas já revelaram que quase metade dos brasileiros não confia na Justiça. E, em geral, pessoas envolvidas em conflitos preferem não recorrer à Justiça. Além da ineficiência, denúncias de irregularidades e de nepotismo colocaram o judiciário sob suspeita, levando o Senado a instalar uma polêmica CPI, destinada a investigar juízes e tribunais. Mas paralelo ao modelo tradicional, um outro modelo de Justiça tem surgido, mostrando que é possível restabelecer a crença da sociedade num instrumento judicial. São Paulo, Minas, Bahia, Espírito Santo e outros estados estão colocando em prática uma experiência que começou de forma pioneira no estado do Amapá, em 1996, com o juizado especial de Macapá, coordenado pela juíza Sueli Pereira Pini. Formada em direito em 1992, dez anos mais tarde, Sueli se tornou juíza no recém criado estado do Amapá. Hoje, aos 38 anos de idade, ela comanda um trabalho de Justiça itinerante que está em seu terceiro ano e já exibe estatísticas orgulhosas. De 27 mil processos instaurados, 23 mil foram resolvidos. Em um ano o juizado especial é capaz de fazer o dobro de audiências que 13 varas da Justiça comum de Macapá podem realizar. São processos sobre pequenos delitos, casos de roubo, furto, conflitos entre vizinhos, acidentes de trânsito. Pessoas que conseguiram sentenças favoráveis nesses casos não precisaram de dinheiro nem de advogados, e a solução foi rápida. A receita está na agilidade do atendimento e na capacidade da Justiça de se aproximar dos cidadãos. No juizado especial de Macapá, além de trailers e ônibus que percorrem bairros e cidades, equipes de juízes fazem longas viagens de barcos pelo rio Amazonas, levando assistência jurídica às populações ribeirinhas. Numa comunidade amazônica, este casal teve de esperar mais de vinte anos por uma certidão que oficializasse o casamento. Outros só conseguiram agora, quando adultos, uma certidão de nascimento ou uma carteira de identidade. Entre os que já tinham documentos, muitos foram descobrir com esse juizado especial que seus papéis eram falsos. Foram emitidos durante campanhas eleitorais, sem o conhecimento da Justiça, por políticos que caçavam votos. Com esses fóruns sobre barcos ou sobre rodas, esses juizados especiais estão recriando a relação entre Justiça e cidadãos, e se transformando em exemplos de eficiência e rapidez no trabalho jurídico de garantir direitos dos cidadãos, cada vez que eles precisam de um árbitro para seus problemas.
Paulo Markun: Para entrevistar a juíza Sueli Pereira Pini, nós convidamos o jornalista Márcio Chaer, diretor da revista Consultor Jurídico; o jornalista José Eduardo Faria, professor da Faculdade da Direito da USP; o jurista José Afonso da Silva, ex-secretário da Segurança do Estado de São Paulo; a procuradora de Justiça Luiza Nagib Eluf, ex-secretária nacional dos Direitos da Cidadania; a jornalista Cláudia Trevisan, repórter de política do jornal Folha de S.Paulo; Renato Nalini, juiz do Tribunal de Alçada Criminal, e o juiz Ricardo Cunha Chimenti do Conselho Supervisor dos Juizados Especiais de São Paulo. Doutora Sueli, boa noite.
Sueli Pereira Pini: Boa noite.
Paulo Markun: Neste programa a gente imagina discutir na verdade dois temas que estão absolutamente interligados. Um deles é justamente a tentativa e os esforços de agilizar a Justiça, fazer com que ela chegue mais perto das pessoas. A idéia de definir "o que é montanha e o que é Maomé" nessa história. E, de outro lado, a questão que se coloca, e que também está ligada a essa, é o fato de que indiscutivelmente a Justiça precisa de uma reforma, e os limites e os caminhos dessa reforma se discutem hoje no Brasil como a gente vê na reportagem aí, como todo mundo acompanha pela imprensa. Eu imagino que uma coisa não funciona sem a outra. Quer dizer, não adianta nem reformar a Justiça se não mudarem os métodos de ação, e também talvez não adiante só as iniciativas pioneiras e valorosas sem modificar parte da estrutura. E a pergunta que eu faço para a senhora, para começar o bate-bola, é a seguinte: a senhora se sente confortável como integrante da Justiça brasileira hoje?
Sueli Pereira Pini: Muito, muito confortável. Desde que eu assumi a magistratura, eu sabia que o papel seria difícil de ser realizado. A magistratura tem algumas dificuldades, nós temos problemas internos, que nós ainda não conseguimos solucionar, mas eu também sei o seguinte. Eu tinha meu papel, eu tinha que cumprir um papel. E eu cito sempre aquilo que o professor Nalini diz que mais importante do que se fazer uma reforma no papel, é cada magistrado fazer a sua parte. Então, eu sinto que eu estou contribuindo da minha parte, arregaçando as mangas, fazendo o meu trabalho na magistratura, e penso que essa reforma é muito importante, a reforma estrutural, como o senhor disse. Mas o mais importante do que essa reforma estrutural é o papel de cada magistrado. É a gente arregaçar as mangas, ser criativo, e fazer efetivamente o nosso papel.
Paulo Markun: Mas será que é possível fazer isso? Por exemplo, eu às vezes converso, como jornalista, com juízes, e com gente aí ligada ao judiciário, e as pessoas me mostram pilhas gigantescas de processos que têm que ser despachados porque a burocracia e a estrutura da Justiça faz com que isso seja cumprido. E eu pergunto: existe espaço para esta coisa de arregaçar as mangas quando a gente está engessado dentro dessa forma?
Sueli Pereira Pini: Olha, eu vejo que é importante que as pessoas sejam criativas e usem a criatividade. Se a gente não tem o equipamento, material o suficiente na mão para dar cabo dessa montanha de feitos, é importante que os tribunais de Justiça dêem essa parada, criem, façam mutirões. Hoje mesmo no Amapá, essa semana agora que eu saí de lá, está sendo realizado um mutirão em que grande parte dos juízes – cada um recebeu uma leva de processos – vão levar para suas casas para darem cabo em 15 dias. Então, eu acho que o mutirão é uma das soluções que a gente pode aplicar, e existem muitas outras também. É evidente que hoje existe uma litigiosidade muito grande no país, as pessoas estão procurando o judiciário cada vez mais. Mas é importante também que o magistrado não crie um comodismo achando que está faltando condições materiais. É importante que ele vá. Por exemplo, se eu ficasse parada lá no juizado sem de repente sair à luta, seria difícil. Cada um tem que fazer um pouco sua parte, e essa é a intenção que eu penso que cada um tem que ter.
Cláudia Trevisan: Doutora Sueli, os juizados são apontados como uma grande solução para resolver parte do problema do judiciário brasileiro. Eles desafogaram a Justiça brasileira ou eles trouxeram para o judiciário conflitos que jamais chegariam e seriam solucionados de outra forma?
Sueli Pereira Pini: Na verdade as duas coisas. Ele desafogou em parte, apenas em parte, e o papel mais importante do juizado foi trazer a ele pessoas que nunca tinham tido acesso ao juizado. Esse foi o grande e relevante papel que ele vem desenvolvendo, são pessoas... Esta semana mesmo uma pessoa me procurou, tinha uma pendência no banco, uma coisa simples numa agência bancária, e ele procurou o juizado, e eu o orientei para que propusesse a reclamação dele. Só o fato de ele propor a reclamação, e o banco, ao ser citado, telefonou para a casa dele, para que ele fosse ao banco e resolvessem de imediato já a pendência. Nem precisou aguardar a audiência que seria realizada em trinta dias. Então, essa novidade fantástica dessa pessoa, com seus pequenos probleminhas do dia a dia, de vizinhança, coisas pequenas que para nós de repente parecem pequenas, o fato de ele encontrar esta porta aberta, eu acho esse papel relevante do juizado por si só já é fantástico, super relevante.
Luiza Nagib Eluf: Doutora, como foi que a senhora começou o seu trabalho, essa idéia do juizado itinerante de sair em busca do povo, de sair do seu gabinete e ir atrás do problema? Como surgiu essa idéia, esse seu trabalho, como é que foi o apoio depois de toda a magistratura, do tribunal em seu estado?
Sueli Pereira Pini: Na verdade é importante a gente colocar o seguinte: não foi uma idéia minha, isso partiu do próprio tribunal, foi uma coisa estudada entre várias pessoas. E eu fui convidada tão só na época para coordenar esse trabalho. É importante a gente deixar claro que eu não sou a mãe dessa idéia tão fantástica, sabe? Ela nasceu de um conjunto de idéias, de reuniões de pessoas. O desembargador Mário [Gurtyev de Queiroz] na época, que estava à frente da presidência do Tribunal de Justiça, uma pessoa extremamente inovadora, viu a idéia do Espírito Santo, com a Justiça volante, e ele falou: “Eu vou trazer também para o meu estado”. Então pronto, a gente foi expandindo isso, quer dizer, não foi uma idéia originária minha não. Eu até falo que o meu papel agora, já que a gente conseguiu dar cabo dessa inovação da justiça itinerante, é criar outras coisas agora. Digo sempre para o meu servidor o seguinte: “eu não quero um servidor mecânico, autômato. Eu quero um servidor que me ajude a criar, que me ajude a pensar em soluções cada vez melhores para que a população tenha esse tão falado acesso à Justiça”.
Paulo Markun: O que a senhora pensou que ainda não realizou?
Sueli Pereira Pini: Pois é, ainda agora, eu estava dizendo ao doutor Ricardo Chimenti o seguinte. Eu estava me trocando lá no hotel, pensando no que mais a gente poderia fazer. O tempo todo eu fico pensando o que mais é possível fazer. Eu cheguei a pensar o seguinte: seria ideal que as pessoas pudessem propor reclamações por telefone. Não precisa se deslocar da sua casa, ter que se transportar, pegar ônibus, pegar um táxi ou ir a pé; muitas vezes a pessoa não tem nem passe, nem vale transporte. Cheguei a pensar então que de repente as pessoas pudessem propor sua reclamação por telefone. Hoje você compra um monte de coisa por telefone, faz trabalhos bancários por telefone e tudo. Que tal estender o serviço também para isso. Então, o tempo todo eu fico pensando o que a gente pode fazer mais, para expandir mais, para melhorar mais esse trabalho da Justiça.
Ricardo Cunha Chimenti: No início, doutora Sueli, os juízes do juizado eram juízes voluntários que atuavam em outras áreas e resolveram construir esse sistema idealizado aí pelo legislador. Havia um preconceito grande de que eram causas menores e causas sem importância. Hoje o sistema de juizados especiais já representa mais de 60% da distribuição de processos em todo o país. A doutora entende que hoje já há uma consciência dos próprios magistrados de que aquele conceito preconceituoso de que causas menores não tinham importância na verdade são as causas que envolvem 80% da nossa população?
Sueli Pereira Pini: Doutor Ricardo, eu até queria dizer que sim, mas infelizmente ainda não é. Eu ouvi uma vez uma frase dizendo que nós juízes não sabíamos julgar as grandes causas, os grandes poderosos. Eu acho que é o contrário, talvez não saibamos receber o pobre na Justiça. Infelizmente ainda há um preconceito sim na nossa classe, a gente tem que falar sobre isso, é importante que as pessoas desmistifiquem isso. Infelizmente tem. O Tribunal de Justiça do Amapá, o que ele tem feito? Eu estou na coordenação do juizado na capital, mas a grande parte dos juízes que vem trabalhar comigo no juizado, que vem auxiliar, são juízes recém empossados. Eu até queria que os tribunais começassem a pensar na idéia de fazer com que juízes titulares também passassem por essa experiência fantástica que é o juizado. Eu falo sempre que o juizado no mínimo é um exercício de humildade que o juiz faz. Eu quero crer que esta geração que está sendo formada dentro dos juizados especiais vão ser juízes fantásticos no futuro, sabe? Inclusive são tantas as audiências, é uma em cima da outra, tem que ter criatividade para decidir. Doutor Roberto Bacellar [juiz de direito no Paraná] fez um trabalho fantástico falando da mediação que é maravilhoso, que está nascendo dentro dos juizados especiais. Que maravilhoso quando isso for levado para a Justiça comum porque a salvação do judiciário não são só os juizados especiais.
José Afonso da Silva: Doutora Sueli, por favor, nesta primeira intervenção, eu só queria pedir à senhora que expusesse realmente o desenvolvimento da experiência, especialmente as dificuldades encontradas, resistências, receptividade da população que é sempre muito arredia a essas inovações. Mas antes, como coordenador dos juizados especiais lá da capital do Amapá, eu gostaria também de cumprimentá-la pelo prêmio que recebeu no ano passado pelo seu livro, mas especialmente pelo seu trabalho. Esse trabalho pioneiro talvez delineie realmente um caminho para a Justiça do terceiro milênio. Nós temos ainda aí uma mera experiência, e evidentemente que não vai ser esta Justiça, desse modo que vai funcionar no terceiro milênio. Ela é e nem pode deixar de ser uma prática meramente complementar. Hoje e certamente o será no seguinte, não sei se a senhora concorda com isso também neste momento. Mas eu queria também fazer algumas observações neste início, este é o momento em que se discute realmente, às vezes até com certa aspereza, a posição do poder judiciário. Uma proposta de reforma está em andamento, mas o judiciário não carece apenas só de uma reforma da sua estrutura ou no âmbito institucional. Carece especialmente da transformação no pensamento jurídico...
Sueli Pereira Pini: É verdade.
José Afonso da Silva: ... do pensamento de mentalidade, da mudança de mentalidade, dos modelos que o direito plasmou nesses dois últimos séculos e que se esgotaram. E se queremos um judiciário como garantia essencial e efetiva dos direitos fundamentais da pessoa humana, há que se repensar fundo o judiciário. Se ele tem que ser mesmo a sede da cidadania, se a sua função jurisdicional tem que ser uma via de [...] da cidadania na expressão da constitucionalista mineira Carmem Lúcia [Antunes Rocha, procuradora-geral do estado no governo de Itamar Franco (1992-1994)]...
Márcio Chaer: Doutor José Afonso, poderia pegar uma carona em sua pergunta?
José Afonso da Silva: Por favor.
Márcio Chaer: Quanto tempo a senhora acha que vai demorar para transferir a morosidade da Justiça comum para os juizados especiais?
Sueli Pereira Pini: Olha, eu queria...
Márcio Chaer: Em São Paulo começou com um mês o prazo para se resolver um processo, e já está levando cinco meses.
Ricardo Cunha Chimenti: Mas há uma questão em São Paulo, graças até a um trabalho do próprio Ministério da Educação, que a estrutura de fato, até financeira, não é ampla. Mas já se vence um prazo, hoje há uma redução dos prazos. Aquilo que chegou a um aspecto inviável hoje está sendo recuperado com uma redução dos prazos e com a reestruturação do sistema. A preocupação é ampla sim.
Márcio Chaer: Sim, mas no caso da doutora Sueli, no caso do Amapá, como a senhora estava dizendo, com duzentos mil habitantes, é um universo menor. Mas em termos de Brasil, a senhora acredita que vai se transferir, da atratividade do juizado especial, vai transferir a morosidade, ou não vai?
Sueli Pereira Pini: A gente sabe, na verdade, que a solução para isso não é tão simples. É todo um contexto. Se não houver mudança na nossa legislação, nada vai acontecer; se não houver reformas profundas na nossa parte processual, é evidente que isso não vai acontecer.
Renato Nalini: Parece que Amapá já começou com um modelo novo, porque pelo que se verifica da experiência do Amapá, o juiz teve de abandonar alguns dogmas, a inércia. Ele saiu do fórum, do gabinete, e foi procurar problemas. E ele não está procurando só problemas que são aqueles tradicionais da Justiça...
Sueli Pereira Pini: Não.
Renato Nalini: ... de dizer o direito. Ele vai ser uma espécie de clínico geral.
Sueli Pereira Pini: Isso.
[Sobreposição de vozes]
Renato Nalini: Então esta é a nova Justiça.
[...]: Qual é a diferença, doutora Sueli, que a senhora vê...
Paulo Markun: [interrompendo] Só um minuto. Uma observação prática. Se todos falarem ao mesmo tempo, as pessoas não escutam. E eu acho só que se o senhor quisesse concluir, o fizesse rapidamente, por favor.
José Afonso da Silva: Não, está concluído. Eu só queria deixar que ela falasse a respeito do que eu pedi.
Paulo Markun: Isso, eu também acho.
José Afonso da Silva: Porque veja bem, nós estamos fazendo perguntas para ela, e o telespectador não sabe do que está sendo tratado. Que experiência é esta se ela não expuser a experiência que está sendo feita lá. É isso.
Paulo Markun: O objetivo da matéria de três minutos e meio que abriu o programa foi justamente de relatar um pouco disso, mas eu concordo com o senhor que vale a pena...
José Afonso da Silva: Sim, pois é. Mas que ela faça a experiência pessoal.
Sueli Pereira Pini: Primeiramente é importante dizer o seguinte. É claro que eu sou muito agradecida à revista Cláudia por ter me concedido um tão maravilhoso prêmio. Mas é importante também que eu diga que esse prêmio não fui eu que ganhei, ganhou a Justiça do Amapá em primeiro lugar, e depois, em segundo lugar, ganhou a Justiça do país. E mais: ninguém faz nada sozinho. Esse prêmio, no mínimo, eu tenho que repartir com meus serventuários, que trabalham comigo, e também tenho que repartir com a equipe maravilhosa que eu tenho de juízes que trabalham dentro do juizado especial da capital. Este trabalho da Justiça itinerante é tão fantástico porque na verdade ele é tão simples, é o tal do ovo do Colombo, de repente alguém colocou em pé. Mas é evidente que tinha que chegar a um ponto em que o juiz tinha que sair do seu pequeno castelo, dos seus fóruns, e ir até a comunidade. Então, essa experiência que a gente faz lá, de fazer a Justiça itinerante pelo ônibus – e olha que é uma dificuldade imensa porque o calor na região Norte, todos sabem, é intenso, o sol na lata do ônibus é uma coisa insuportável. O juiz trabalha sob suor, o promotor que está ali com ele, o serventuário, até o próprio jurisdicionado. Então, no futuro, a gente até pensa em suspender esse serviço. Ele é muito importante para desmistificar esse acesso do cidadão à Justiça, muito importante mesmo porque o cidadão tinha até medo de chegar naquele prédio do fórum, aquela escadaria; o juiz lá fechado na sua sala, aquela coisa da cátedra imensa, alta, o juiz naquela altura. O grande aspecto positivo desse trabalho da itinerância é desmistificar mesmo o acesso do cidadão à Justiça. Passar a ver o juiz com mais proximidade. Eu lembro bem que o desembargador Douglas – e eu não entendia por que ele dizia isso no começo quando assumi a magistratura – ele dizia que o sonho de Justiça para ele seria o dia em que o juiz pudesse ficar na sua cátedra para receber os reclamos do cidadão, sem se preocupar com montanhas de processos. O ideal é que ele não tivesse montanha nenhuma de processos e que estivesse na sua cátedra, à disposição do cidadão. Mas hoje eu vou mais longe. Mas mais importante do que ele ficar na sua cátedra à disposição do cidadão é que ele vá até ele. Não temos postos de saúde espalhados por vários bairros? Não temos escolas espalhadas por diversos bairros, delegacias? Assim também tem que ser a magistratura, não podemos ficar centralizados no fórum, no prédio, temos que sair às ruas e ganhar a confiança...
José Afonso da Silva: A senhora não acha também – dá licença – que esse juizado [incompreensível], especialmente o criminal, deveria exercer sua função 24 horas por dia?
Sueli Pereira Pini: Exatamente.
José Afonso da Silva: Como nos Estados Unidos, precisamente para resolver imediatamente o problema. Especialmente o delito, seja condenando, absolvendo e resolvendo problema.
Sueli Pereira Pini: Eu fico feliz em dizer que no Amapá, o juizado especial funciona realmente 24 horas. Ele funciona de 7:30 da manhã até meia noite; lá está o servidor, lá está o juiz, até meia noite. De meia noite até 7:29 da manhã, um juiz plantonista fica de plantão para atender casos de emergência. Então, se isso pode acontecer no estado do Amapá, é evidente que pode acontecer em qualquer parte do país. Eu digo sempre e repito mil vezes: padaria não fecha, farmácia não fecha, então a Justiça também não pode fechar. Quer dizer, o seu papel é que esteja aberta, à disposição. Nós somos pagos para isso, cada vez que eu recebo meu contracheque no final do mês, sei que para receber aquilo, pessoas estão passando fome e necessidade. Então, o mínimo que eu tenho que fazer é contraprestação. Esta mudança de mentalidade já está acontecendo. Da mesma forma que penso eu assim hoje, muitos juízes no país pensam assim. Essa mudança já está acontecendo, mas a natureza não dá salto, as coisas não acontecem do dia para a noite. Mas elas estão acontecendo, estamos em profunda mudança.
José Eduardo Faria: Doutora Sueli, eu queria levantar uma questão, que é a seguinte. A experiência dos juizados itinerantes, dos juizados de modo geral é extremamente interessante para aproximar a população da Justiça. Mas ela também tem um componente perverso que segmenta essa população mais pobre da Justiça, criando uma espécie de Justiça de primeira classe nos fóruns centrais e esses juizados itinerantes, uma espécie de juizado de segunda classe. Como esse problema é pensado no Amapá, principalmente porque nós temos no Amapá uma economia não consolidada, grandes conflitos indígenas, grandes conflitos fundiários. Ou seja, essa experiência funciona quando eu tenho partes que não pertencem ao mesmo espaço socioeconômico?
Sueli Pereira Pini: Na verdade, eu acho que não é bem assim, desculpe eu discordar. Acho que essa população que recebe a visita na sua casa, do juiz, é altamente privilegiada, diferentemente daquela que está lá no fórum.
Márcio Chaer: Parece que essa Justiça funciona e dá a resposta imediata e a nossa não...
Sueli Pereira Pini: Na verdade, é assim...
[Sobreposição de vozes]
Márcio Chaer: A Justiça convencional já está paralisada há muito tempo.
Renato Nalini: O tratamento, aliás, é de primeira classe. Talvez...
Sueli Pereira Pini: É de primeira classe. Na verdade a cena é bem esta: eu chegando com uma embarcação numa comunidade x, a embarcação pára, eu desço. Vocês viram pelo filme que grande parte é feito em passarelas porque são regiões alagadiças. É eu chegando e literalmente batendo. E a cena é realmente essa, porque eu fiz isso e aconteceu. De você bater na porta da casa do cidadão e dizer que o barco da Justiça está ali no centro comunitário e está à disposição da pessoa. Então, eu acho que essa é uma Justiça de primeira classe, pelo contrário, ele está ali. Inclusive eu sempre soube o seguinte: mais importante do que o juiz prestar a jurisdição, eu penso que é ele dar o seu tempo. Às vezes você chega a comunidades, praticamente não tem litígio nenhum. Mas como eu ainda dependo da maré para me locomover para outra comunidade, eu posso me dar ao luxo de sentar numa daquelas passarelas que vocês viram ou mesmo no centro comunitário e poder trocar um bom papo com o líder comunitário, trocar uma idéia...
José Eduardo Faria: Esse papo produz um acompanhamento das sentenças? Ou a sentença é tomada e se imagina que ela vá ser automaticamente executada? Há um acompanhamento?
Sueli Pereira Pini: Claro.
José Eduardo Faria: Como é feito o acompanhamento?
Sueli Pereira Pini: Na verdade as visitas são periódicas, e as sentenças que não são cumpridas são executadas. O trabalho é completo, não há compartimentação. Se de repente eu não posso realizar a audiência naquela viagem, por algum imprevisto, ou não consigo fazer a citação da parte contrária, por exemplo, já fica agendada para a próxima viagem. Então, na próxima, a parte está cientificada de que tem que trazer as suas provas, produzir... Pronto, realizamos essa audiência, e se o juiz sentir já condições de sentenciar, e na grande parte das vezes já sentencia na hora. É tudo mais informal, o juiz é guiado até mais pelo bom senso ...
Renato Nalini: Fala a linguagens das partes, não é?
Cláudia Trevisan: Nessa questão do juiz, qual é a diferença que a senhora vê do perfil do juiz que trabalha no juizado especial, principalmente no juizado itinerante, do juiz que atua na Justiça tradicional? O que o juiz do juizado especial tem que ter?
Sueli Pereira Pini: A diferença é abismal! É por isso que eu venho insistindo em que os tribunais de Justiça precisam investir, criar formas para que os juízes da chamada Justiça comum, tradicional venham a viver a experiência da Justiça dos juizados especiais, em especial essa Justiça itinerante. Enquanto isso não acontecer, vai haver sim uma distância muito grande. Eu digo sempre assim: se eu hoje, de repente, tomasse posse e fosse – não tivesse passado por essa experiência dos juizados especiais – ser titular de uma vara cível onde encontrasse dois mil, três mil processos conclusos para sentença. Se eu não tivesse passado pela experiência dos juizados especiais, o que eu ia fazer? Ia pegar esses três mil processos, ia levar para minha casa, e me consumir durante talvez um ano, para poder sentenciar todos. Eu estaria ali apenas decidindo esses processos. A experiência do juizado vai mais adiante. O juiz do juizado não apenas decide, ele procura solucionar aquela pendência. Então, eu digo que tem uma diferença muito grande entre você decidir e solucionar. Essa experiência do juiz passar pelos juizados especiais, se todos eles passassem por isso, para depois irem ser juízes da Justiça comum, eu tenho certeza de que haveria uma grande mudança. Esse juiz da Justiça comum iria procurar buscar mais fazer uma justiça consensual, porque a justiça dos juizados especiais é chamada justiça de cidadã, justiça de resultado, justiça consensual. Que maravilha você poder levar esse perfil dessa Justiça também para a comum. Eu tenho certeza de que tem pessoas aqui, eu mesma, eu tenho processos ainda tramitando na Justiça de quando eu era advogada. Já sou magistrada há quase oito anos e tenho processos pendentes de quando eu era ainda advogada. É inconcebível isso. Então, se nós buscarmos trazer também esse lado consensual que a gente procura aplicar 90% das vezes no juizado, e trazer para a comum, eu acho já que seria um grande passo que a gente daria.
Luiza Nagib Eluf: Doutora Pini, é o seguinte. Eu estou refletindo muito sobre o que a senhora está dizendo, que é extremamente útil para nós que somos profissionais do direito. Eu trabalhei aqui em São Paulo numa vara criminal durante muitos anos como promotora de Justiça, hoje eu sou procuradora e estou no tribunal. Mas na época em que eu estava na vara, nós fazíamos o possível para que os processos andassem muito rápido. E nós estávamos realmente conseguindo julgar os processos; com quatro a seis meses de andamento, nós tínhamos a solução, a sentença de primeira instância. Mas aí, fazendo uma análise daqueles casos todos que nós estávamos felizes de estar solucionando rapidamente, nós percebíamos que da data do fato até o julgamento, haviam transcorrido vários anos, porque na polícia o inquérito demorou para ser concluído. Muitas vezes, né? Então, eu gostaria de saber como a senhora visualiza a questão policial, da apuração do fato na polícia, e como essa apuração pode ser mais rápida para que a justiça se faça de uma forma também mais rápida?
Sueli Pereira Pini: Nós temos visto a experiência dos juizados especiais criminais, o quanto ela tem sido positiva, com a instituição dos chamados termos circunstanciados. Você imagina que a nossa justiça é tão complexa, tão burocrática que, na verdade, o juiz da instrução é um mero repetidor daquilo que foi feito na delegacia de polícia, repetindo, repetindo... Quer dizer, é insano tudo isso! Temos que mudar. Acabei de dizer agora há pouco que se não houver uma grande, profunda reforma na estrutura processualística, tanto civil quanto penal, não vamos chegar a lugar nenhum, vamos ficar andando em círculos, repetindo...
José Eduardo Faria: A senhora aceita a súmula vinculante?
Sueli Pereira Pini: Olha, muito tem se falado sobre a súmula vinculante, fica até difícil eu dizer porque hoje eu estou afastada um pouco assim da Justiça comum. Mas eu acho que a súmula vinculante tem lados positivos e lados negativos. Mas a AMB [Associação dos Magistrados Brasileiros] parece que tem uma proposta intermediária sobre a súmula vinculante, porque o problema dela é que ela poderia vir a engessar a liberdade do magistrado...
Paulo Markun: Doutora Sueli, a senhora poderia explicar para o telespectador o que é a súmula vinculante, porque eu tenho certeza de que tem gente que não conhece...
Renato Nalini: O [...] condicionante, né? Seria a observância obrigatória pelo juiz de primeiro grau de uma decisão já sufragada, reiterada pelos tribunais.
Paulo Markun: É uma espécie de forma, né? Tem uma forma para aquela decisão, se já foi decidido daquele jeito, seguiremos todos aquela forma.
Renato Nalini: Isso seria para o governo, porque o principal cliente da Justiça brasileira é o governo; é aquele que se recusa a cumprir as decisões judiciais. Então, se houvesse uma súmula vinculante administrativa para os órgãos do governo, em todas as suas formas – União, estado e municípios, autarquias, fundações – talvez não houvesse necessidade de súmula vinculante para o juiz.
Paulo Markun: Eu vou aproveitar o embalo aqui, pedir licença para implantar aqui... Sempre uma das coisas que o apresentador faz é achar uma gracinha para pedir um intervalo. Então, como o juiz [faz], eu sentencio aqui que nós vamos para um rápido intervalo e voltamos já.
[intervalo]
Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, hoje entrevistando a juíza Sueli Pereira Pini, que é coordenadora dos juizados especiais no estado do Amapá. Eu começo com a pergunta de Moisés Oliveira, de São João Del Rei, que queria que a senhora explicasse para os leigos o significado de juizado especial. Por que se fala em juizado especial, o que de especial tem esse juizado?
Sueli Pereira Pini: Bom, na verdade, o juizado especial é um novo órgão da Justiça criado recentemente três anos atrás pela Lei federal 9099/95, e ele criou um novo procedimento, mais célere. E esses juizados especiais que hoje estão implantados em todo o país, como disse o doutor Ricardo Chimenti, já representam quase 70% da demanda de novas ações no país. E com certeza, e é bem possível que na cidade de São João Del Rei, de onde veio a pergunta, eu quero crer e preciso acreditar nisso, que lá devem ter instalados os juizados especiais. Talvez o nome “especial” seja até por isto: é uma Justiça que procura zelar pela informalidade, pela celeridade, pela economia processual e, mais importante, pela gratuidade. Aliás, mais importante que a gratuidade ainda é o fato de a pessoa poder propor sozinha a sua reclamação.
Paulo Markun: Sim, mas eu queria entender o seguinte. Se eu tenho um problema lá com meu vizinho, ou alguém bateu o carro, ou aconteceu assim qualquer problema que exija a participação da Justiça. Eu posso escolher? Eu digo assim: “eu quero um juizado especial, não quero a Justiça [comum]”. Como é que o cidadão sabe disso e como é que se escolhe?
Sueli Pereira Pini: Ele pode. Hoje há um entendimento nacional, embora eu não concorde muito com ele, de que a via do juizado é optativa. Então, você pode optar tanto em ir para a Justiça comum, como ir para o juizado. Na verdade, no dia a dia, isso acabou ficando letra morta porque todos estão optando pelos juizados especiais em razão da gratuidade e pelo fato de você poder ir pessoalmente fazer sua reclamação, nas causas cujo valor seja de até vinte salários mínimos.
Paulo Markun: Tem um limite de salário.
Cláudia Trevisan: Mesmo no crime é assim? Mesmo no crime, a pessoa pode escolher? Porque aqui em São Paulo...
Sueli Pereira Pini: Não. No crime não, porque o que acontece? É claro que há alguns estados que por razões econômicas – não sei quais são – ainda não implantaram os juizados especiais criminais. Aí as varas criminais estão aplicando a Lei 9099. Se você tem uma pendência criminal que está dentro da competência dos juizados especiais, o delegado de polícia fará apenas um termo circunstanciado, vai encaminhar isso ao fórum, distribuirá isso a uma das varas criminais e o juiz vai aplicar a Lei 9099.
Cláudia Trevisan: O que eu quero dizer é que não é a pessoa que escolheu aí no caso, porque depende da competência...
Sueli Pereira Pini: No juízo criminal não. Essa opção na verdade é só no juizado cível.
Paulo Markun: E outra coisa: é só até vinte salários mínimos?
Sueli Pereira Pini: Veja bem, a competência dos juizados especiais cíveis é uma competência tanto pelo valor da causa como em razão da matéria. Há matérias que independem do valor da causa para que você possa ajuizar nos juizados especiais. Por exemplo, uma delas é o acidente de trânsito. Se você sofreu um acidente de trânsito, e o dano é superior a quarenta salários mínimos – em nossos juizados especiais em Macapá pelo menos vigora este entendimento – você pode optar ou pela Justiça comum ou pelos juizados especiais.
Márcio Chaer: Agora, nós estamos falando de causas que demoram oito anos, o que é um absurdo, ridículo, não é? Há causas com vinte anos. Agora, em contrapartida, uma causa que a senhora vai decidir na hora, ali, não corre o risco dessa celeridade comprometer a qualidade?
Sueli Pereira Pini: Na verdade, é isso paradoxal. A justiça tardia não serve, a justiça também antecipada demais não serve. O importante é o juiz usar do seu bom senso. Se ele sentir, se de repente não está ainda formado o seu juízo de convicção, se ele sente que as partes ainda precisam maturar a sua pretensão, é evidente que cabe ao juiz redesignar essa audiência com uma data posterior. A mesma coisa é feita numa separação, as separações judiciais. Se o juiz percebe que o casal ainda não está convicto daquela separação, qual é o papel dele? É redesignar uma nova data para que esse casal reflita melhor e volte depois, então é a mesma coisa também no juizado civil. Mas eu tenho percebido que o que as pessoas querem é que se resolva logo; até então não aconteceu isso com a gente lá. As pessoas querem que se resolva a sua questão imediatamente, que alguém decida por elas...
Ricardo Cunha Chimenti: Há a vantagem também da prova ainda estar intacta ali, a testemunha se lembra do que aconteceu, o documento ainda é legível. Então, de certa forma, essa agilidade não traz insegurança. Fora as instâncias recursais, né?
Sueli Pereira Pini: Nós viemos de uma tradição processualística do direito italiano, pela qual, velando tanto pela segurança do processo, criamos uma série de mecanismos processuais, tudo em razão dessa segurança jurídica. Mas eu acho até, veja bem, mesmo a informalidade, mesmo essa celeridade toda nos juizados especiais, ela não tem, pelo menos até onde tenho percebido, colocado em risco essa segurança jurídica. Mesmo porque eu quero acreditar que o magistrado que está conduzindo essa audiência é uma pessoa que tem aptidão para aquilo, tem o bom senso necessário para verificar que se ele perceber que uma decisão naquele momento ali não é ainda oportuna, com certeza...
Cláudia Trevisan: Mas não é uma crença muito grande no bom senso do magistrado? Não é uma crença excessiva no bom senso do magistrado?
Sueli Pereira Pini: O quê?
Cláudia Trevisan: De acreditar que todos os magistrados têm bom senso e que vão saber decidir. Não é um otimismo exagerado?
[sobreposição de vozes]
Sueli Pereira Pini: Mas eu preciso acreditar que eles tenham bom senso, porque o cidadão brasileiro ainda acredita muito no juiz, diferentemente do que foi mostrado inicialmente, nas pesquisas que foram feitas foi mostrado que o cidadão brasileiro acredita ainda no judiciário, apesar de todas as críticas feitas, da demora, da lentidão – são corretas as críticas – ele ainda confia no juiz para decidir a pendência.
Ricardo Cunha Chimenti: Aliás, ele acredita mais no juiz do que no judiciário, segundo as pesquisas.
Sueli Pereira Pini: Exatamente.
José Afonso da Silva: Doutora, a senhora falou que um dos elementos é a gratuidade. No Amapá é totalmente gratuito?
Sueli Pereira Pini: Totalmente gratuito.
José Afonso da Silva: Porque a lei prevê que com o recurso se paga tudo.
Sueli Pereira Pini: Olha, na verdade parece que há uma discussão no país hoje, não sei se é proposta da AMB, não estou lembrada, eu li alguma coisa a respeito, até para se pensar em abolir as custas processuais.
José Afonso da Silva: Eu acho que isso é conveniente.
Sueli Pereira Pini: É uma forma de você viabilizar cada vez mais o acesso à Justiça.
José Afonso da Silva: Eu li uma matéria de vossa excelência em que a senhora é a favor da descentralização da Justiça, e gostaria que aprofundasse esse tema. Parece que na matéria só se falava em descentralização ou dos próprios juizados especiais ou então dos próprios juízes de primeiro grau. Então, eu gostaria que vossa excelência aprofundasse isso, e também falasse da possibilidade da descentralização dos tribunais, que também precisam ir para perto do povo. Não apenas ficar nas capitais, aguardando que venham. Porque veja bem. Só o trânsito de processos do interior para a capital... É claro que quando está na capital de São Paulo, o movimento é maior aqui, é um tempo enorme que se perde por aí, e que vai contribuindo para a lentidão da Justiça. De modo que eu gostaria de ouvir da senhora.
Sueli Pereira Pini: Esta experiência da chamada Justiça descentralizada que nasce agora com os juizados especiais tem que ser levada sim para a Justiça comum e, como o senhor também disse, ser levada para dentro dos tribunais de Justiça. Não é importante desencastelar só o primeiro grau, tem que se desencastelar também o segundo grau. Então, é claro que os tribunais de Justiça precisam também sair dos seus casulos. Eu acho que em um estado como São Paulo, a idéia de descentralizar os tribunais é muito boa, muito proveitosa; de repente não ficar centralizado apenas num único local. No Amapá talvez ainda não, porque é um estado em que a densidade demográfica é pequena... Mas estados como Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul, talvez a idéia já pudesse ser estudada e ser levada. Então, essa idéia de descentralizar é importante. Eu estava dizendo agora no intervalo que nós lá, o que nós fizemos? Nós instalamos juizados especiais dentro das duas únicas faculdades que nós temos de direito lá no estado: tem uma particular e uma federal. Inclusive vamos inaugurar agora na federal esse juizado descentralizado. Olha que coisa incrível! Esse juizado descentralizado que nós temos hoje já funcionando há quase três anos dentro da faculdade particular de direito, a demanda dele sozinho – ele funciona em duas portinhas – equivale a mais do que o dobro de duas varas cíveis juntas. E o custo dele para a Justiça do estado é talvez um quarto das duas varas cíveis juntas. E a sua criatividade? Basta você usar, fazer parcerias. É evidente que tudo isso foi possível porque houve interesse também da faculdade em que nós nos instalássemos lá dentro. Houve um convênio em que ela cedeu funcionários, a estrutura física, segurança, a parte de limpeza. E mais importante: cedeu o seu acadêmico de direito. Então, hoje o meu ajudante dentro do juizado é o acadêmico de direito.
José Afonso da Silva: A senhora me disse que a mentalidade dos juízes dos juizados especiais é muito diferente da dos outros. Eu quero exprimir o meu ceticismo a respeito do funcionamento desses juizados especiais, se não se criarem carreiras especiais também na magistratura só para isso, porque senão não vai funcionar. Não acredito que funcione.
Sueli Pereira Pini: É evidente que o juiz dos juizados especiais tem que estar mais vocacionado do que nunca para a carreira da magistratura. Eu disse no começo do programa que já disseram que nós não estávamos preparados para julgar os poderosos, nem as grandes fortunas e tudo mais. Mas talvez nós não estejamos preparados para receber o pobre dentro da Justiça, sabe? Num país com trinta e poucos milhões de pessoas que ainda passam fome, é evidente que nós, magistrados, se nós não nos prepararmos para receber essa parcela da população... Criar carreiras especiais, projetos especiais, eu acho que não. O que se precisa é que os tribunais de Justiça, quando forem fazer a seleção dos novos magistrados, levem em conta essa vocação que eles possam ter para atuar em juizados especiais. Do contrário.
Renato Nalini: Eu gostaria de salientar a descentralização do segundo grau, porque é muito importante que esse exemplo do juizado itinerante aconteça também com os tribunais. Nada impede que órgãos grandes, que tenham muitos elementos morando fora de São Paulo, possam atuar junto a grandes centros, evitando a remessa dos processos para a capital. Nada impediria isso. O que parece insensato hoje seria nós pretendermos criar muitos outros tribunais, porque nós estamos num período de enxugamento, e o que o país está pedindo é essa criatividade, é fazer mais com menos, fazer com que se otimize o trabalho do juiz. E o juizado parece que está mostrando isso, mesmo porque está esquecendo um pouco o processo. Será que a Justiça convencional não ficou muito afeiçoada ao processo que em vez de [ser] um instrumento de realização de justiça se tornou em uma finalidade em si? E com isso ele se esqueceu dos problemas. O próprio presidente do STJ pedia para que todos pensassem como fazer o juiz brasileiro decidir o mérito das questões, porque 60% dos processos são decididos processualmente. Isso quer dizer, não são resolvidos. O que a senhora acha?
Sueli Pereira Pini: Na verdade é assim. Eu digo sempre que o juiz tem que gostar muito menos do processo e muito mais da solução, não é? É até estranho quando alguém chega para mim e fala assim: “Mas eu gosto tanto do processo civil, tanto do processo penal”. Mas como pode gostar tanto disso? Do que o juiz precisa gostar e ter vocação... ele tem que gostar é da solução. Quando recebo lá uma pendência, um processo, quero é resolver aquilo logo para que eu possa me livrar daquilo... Na verdade é assim. Os tribunais de Justiça precisam ensinar aos seus juízes, explicar para eles, quando estão fazendo o concurso e depois quando forem assumir a magistratura, que eles nada mais são do que resolvedores de problemas alheios, então tem que ter vocação para isso. Porque eu sei que grande parte das pessoas... Por exemplo, se eu estou na minha casa sossegada, eu não quero que ninguém me traga problema. Ninguém gosta de resolver problema alheio, a gente não gosta nem dos nossos, quiçá dos outros. Tem que explicar para o magistrado que a sua função é esta: resolver problema dos outros. Então, ele tem que gostar bem menos do processo e muito mais da solução, porque ele vai se livrando.
José Eduardo Faria: Eu queria lhe fazer uma pergunta que me ocorreu quando o professor José Afonso fez uma observação com relação à carreira da magistratura. E a senhora respondeu, e o doutor Nalini também, que a experiência do juizado é muito criativa, permite uma economia de recursos, e os convênios com as universidades podem inclusive repassar parte das despesas que caberia ao judiciário, a universidades públicas e privadas. Se por um lado isso propicia uma economia de recursos, por outro lado não é um perigo para o judiciário delegar parte da sua responsabilidade em nome de uma economia de recurso para universidades, principalmente as privadas, que visam lucro? Essa experiência não pode ser desfigurada a médio prazo?
Sueli Pereira Pini: De forma nenhuma. Na verdade não se está delegando nada, quem vai continuar decidindo as lides ali ainda é o poder judiciário. É apenas uma parceria que está sendo feita na parte material. As faculdades estão cedendo sua estrutura física, fica mais fácil inclusive para o acadêmico de direito que... Inclusive, lá na faculdade particular, conseguiu-se colocar dentro da cadeira de prática forense a obrigatoriedade, como prática curricular, de ele participar como conciliador nos juizados especiais. Então, isso é maravilhoso para o acadêmico. É muito mais fácil eu usar esse acadêmico dentro da própria universidade, dentro da própria faculdade, do que fazê-lo se deslocar para ir prestar serviço dentro do juizado especial, no prédio próprio da Justiça.
Ricardo Cunha Chimenti: Ao invés de investir em um júri simulado, investe-se em situações de verdade. Na verdade é um investimento da faculdade no órgão público.
Renato Nalini: Não seria interessante a gente verificar que isso pode significar uma retomada do controle pelo judiciário de uma situação que havia fugido dele? Você bem sabe que o grande capital não se subordina mais ao judiciário convencional. E os pobres haviam fugido da Justiça porque só conhecem da Justiça a face cruel. Não é uma forma?
José Eduardo Faria: É a mesma coisa que acontece com a universidade de modo geral. Eu venho de uma universidade onde também se pratica essa idéia não de uma prestação de serviços, mas de parcerias. Só que corremos o risco de indiferenciar o poder público do privado. Há um determinado momento em que essa experiência é tão boa, mas indiferencia o público e o privado; ela contém uma virtude, mas a médio prazo pode ter problemas.
Sueli Pereira Pini: Mas o mais importante é o resultado disso. O cidadão não quer saber se de repente isso vem daqui ou dali. O importante é que tenha alguém que vá solucionar a sua pendência, que tenha o poder de polícia o suficiente para fazer com que o outro cumpra.
Luiza Nagib Eluf: Não sei se o professor está querendo dizer que pode comprometer a independência do juiz?
José Eduardo Faria: Não é só a independência, mas todo o financiamento de política pública no Brasil.
[sobreposição de vozes]
José Eduardo Faria: Hoje se discute que a independência do judiciário é claramente uma independência também financeira... Aproveita uma CPI, entre outras coisas, por não saber gastar seus recursos. Então, corremos o risco de sair de uma situação ruim para uma situação pior a médio prazo.
Sueli Pereira Pini: Hoje está havendo grandes cortes nos orçamentos. Se os tribunais de Justiça não fizerem parcerias para poderem dar conta dessa demanda de litígios que hoje chegam à Justiça, eles não vão conseguir dar conta do seu serviço. Então, em relação a essas parcerias, eu não consigo ver esse lado tão negativo, só consigo achar que elas podem ser positivas. Por exemplo, veja lá o que conseguimos fazer. No início da instalação dos juizados especiais, nós tínhamos uma dificuldade muito grande com a mão de obra, não tinha serventuário o suficiente para atender este novo órgão que estava sendo criado. O que foi feito? Foram feitas parcerias, o poder executivo estadual cedeu funcionários, o poder executivo municipal, a mesma coisa, o órgão ministerial. E hoje metade do serventuário dos juizados especiais da capital, metade deles advém de outros órgãos. Então eu só posso imaginar que essa parceria seja positiva. Não consigo imaginar, não consigo ver nela nenhum lado negativo. Poderia pensar: “não, mas de repente vocês estão atrelados ao poder executivo?” Não, de forma nenhuma.
Cláudia Trevisan: Doutora Sueli, me parece que o juizado especial, apesar de ser uma experiência bem sucedida e tal, não está resolvendo o problema da Justiça tradicional. É quase uma Justiça paralela aí, que é célere, ágil, informal, mas a Justiça tradicional continua com os mesmos problemas, e quem tem uma causa superior a quarenta salários mínimos vai ter que enfrentar a morosidade e excesso de formalismo que existe na Justiça hoje. Como resolver isso? Quem está com processo esperando para ser julgado?
Sueli Pereira Pini: Quisera eu ter resposta para isso. Todos já falamos sobre isso aqui: é todo um contexto. Essa mudança estrutural tem que acontecer, e ela vai acontecer. Claro que é importante o papel do Congresso na modificação das leis, o Congresso tem que fazer também a sua parte, fazendo leis coerentes, claras ... Olha, falar em lei é até engraçado. A Lei 9099, se você pegar do primeiro ao último artigo dela, ela tem imperfeições técnicas gravíssimas, tem muitos defeitos, mas é uma lei que deu certo. Se a gente for ver a história dessa lei dentro do Congresso, ela acabou saindo por acaso. As leis não podem mais no Congresso sair por acaso, as coisas têm que ser feitas com responsabilidade. Então, se o Congresso também não fizer a sua parte, elaborando leis claras e coerentes para ajudar na mudança dessa estrutura do judiciário, as coisas não vão ...
Paulo Markun: [interrompendo] A senhora acha que a CPI [CPI do Judiciário] é uma parte desse serviço?
Sueli Pereira Pini: Olha, em relação à CPI, eu disse para vocês já no início, só a história vai dizer quais foram os efeitos dela, se positivos ou negativos. Acho que nós podemos tirar lições da CPI que está acontecendo aí. É importante que aquilo que ela for apontando de irregularidade seja realmente apurado e seja responsabilizado. É claro que tudo isso é importante. Mas é evidente que a CPI não vai resolver o problema do judiciário. Ele precisa de uma reforma, e esta não pode ser feita – imagino eu – a toque de caixa, tem que ser uma coisa pensada. Ninguém individualmente tem a solução das coisas. É importante que todo mundo, a essa altura, queira que a Justiça dê certo. O Congresso, o poder executivo, [presidente] Fernando Henrique Cardoso. É importante que agora o Carlos [Mário da Silva] Velloso que acabou de assumir o Supremo Tribunal Federal, que ele diferentemente do que disse no Correio Brasiliense, a reforma do judiciário não pode ficar só nas mãos do presidente Fernando Henrique Cardoso [governou o Brasil por dois mandatos: de 1995 a 2003]. Cabe a ele, o ministro Carlos Velloso, também sair em campo, primeiro ter uma idéia do que é preciso realmente ser feito no país: visitar as justiças estaduais, ver... E ele, como chefe mandatário do poder judiciário nacional, [deve] fazer a parte dele também. Esperar que isso venha só do presidente da República.
Luiza Nagib Eluf: Estamos falando um pouco de alteração legal que é uma coisa muito necessária no nosso país, não só para reformar o judiciário, mas também porque temos várias leis que são anacrônicas, e nós temos algumas lacunas também sérias e acabam deixando as pessoas desprotegidas. Nós agora vemos que houve uma conclusão do Código Penal da proposta de novo Código Penal que foi feita pelo Ministério da Justiça. Há duas questões que afetam de perto a mulher, e como a senhora é mulher e deve compreender bem as nossas causas e os nossos problemas, eu gostaria de saber a sua opinião sobre duas questões polêmicas. A primeira delas seria a legalização do aborto por vontade da gestante. Nós temos aí uma grande compreensão com relação ao aborto em caso de má formação fetal, em caso de nascituros inviáveis etc. Mas, e no caso da vontade da gestante, a senhora como juíza presenciou casos assim? Como é o problema no seu estado? Como é a mortalidade e a morbidade com relação às mulheres por causa da proibição do aborto? A outra questão, se houver tempo para a senhora avaliar também, seria a incriminação do assédio sexual que vem causando também uma polêmica grande, e no meu entender, deveria ser uma conduta tipificada.
Sueli Pereira Pini: Com relação a esse cipoal de leis que nós temos, imagine que temos hoje no país algo em torno de um milhão de textos legais. É impossível para o operador do direito conseguir administrar tudo isso. Então, nós já temos leis demais, temos leis ótimas, leis péssimas. Num país com um milhão de textos legais, você deve imaginar o que deve ser para o operador do direito trabalhar em cima disso. Com relação ao aborto, como juíza não me chegou ainda às mãos nenhuma pendência judicial nesse aspecto. Eu, não por formação religiosa, mas por formação minha mesmo, convicção própria, eu sou particularmente contra o aborto. Mas também não posso deixar de ver esse aborto que acontece a toda hora, em que as pessoas são... De repente acontece hoje no país um percentual fenomenal de abortos clandestinos que são feitos... Não adianta colocar uma máscara de hipocrisia e falar que sou contra o aborto quando está acontecendo nas minhas costas aqui. Acho que esse é um assunto extremamente polêmico, o Congresso também está super dividido nesse aspecto. Sabe-se lá o que é que vai render agora, porque o que está feito por enquanto é só o anteprojeto de tudo isso. A polêmica que vai render isso no Congresso, com muitos segmentos, uns contra, outros a favor. Então, na verdade é difícil dizer para você o que vai...
Luiza Nagib Eluf: O que a senhora acha! Deveria ser legalizado por uma questão de saúde pública? Não logicamente porque as pessoas seriam favoráveis à prática...
Sueli Pereira Pini: Olha, eu prefiro acreditar em outra alternativa e não nessa. Eu prefiro acreditar na alternativa da educação, do investimento antes que ele [o aborto] aconteça; na divulgação, na distribuição de preventivos, na formação dessa adolescente, desse adolescente que também... Então, eu prefiro acreditar nessa alternativa.
Cláudia Trevisan: Mas como juíza a senhora condenaria uma mulher que tenha praticado aborto?
Sueli Pereira Pini: Na verdade o aborto não é julgado pelo juiz singular, é o júri que faz o julgamento do aborto. Quer dizer, se caísse nas minhas mãos, ficaria difícil eu dizer se faria isso ou se faria aquilo.
Paulo Markun: A senhora está dando uma de mineira [referência ao "jeitinho mineiro" de nunca colocar claramente a opinião sobre um assunto polêmico], [risos] com perdão da palavra.
[sobreposição de vozes]
Cláudia Trevisan: Se a senhora participasse de um júri popular, a senhora votaria como?
Sueli Pereira Pini: Eu acho que absolveria essa pessoa.
Paulo Markun: Eu queria colocar uma pergunta aqui, que vários telespectadores fizeram, com algumas nuances, o Luiz Cláudio Ribeiro que manda pela internet – e aí a gente fica sem saber, solicito inclusive que quem mandar, identifique o local de onde manda, porque o endereço eletrônico nem sempre esclarece. Vanderlei Xavier da Silva, que é advogado de Santo André, José Manoel, creio que é de Brasília, no Distrito Federal, todos eles perguntam basicamente o seguinte: como é que fica a posição dos advogados nesse processo dos juizados especiais, e se não há um risco de que a Justiça seja prejudicada pela falta da figura do advogado?
Sueli Pereira Pini: É até importante tocar nesse assunto, porque já que os juizados especiais foram instalados, e eu posso dizer isso no Amapá, houve uma crítica muito profunda da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] local. Mas o que nós verificamos? Em vez de tirar o trabalho do advogado, pelo contrário, a instalação dos juizados especiais veio a dar muito serviço para os advogados, porque trouxe para a Justiça uma clientela que não vinha antes. Então, hoje os juizados especiais, diferentemente do que se colocava no início, que eles iriam tirar o trabalho do advogado, pelo contrário, está dando trabalho para o advogado. E com relação ao fato de que as pessoas ficariam sem assistência técnica na audiência, isso não acontece. Tanto é que pela lei é assim: se uma das partes vem assistida de advogado, o juiz deverá, ou a parte vai contratar o advogado se puder contratar, o juiz vai obrigatoriamente – e isso é de lei – ele vai nomear um defensor público.
Paulo Markun: O defensor público acompanha essa Justiça itinerante sempre?
Sueli Pereira Pini: Acompanha. Lá no estado do Amapá, a defensoria pública tem uma autuação fantástica nos juizados especiais. Quando saí numa itinerância fluvial, o doutor José Maria, que é o defensor que nos acompanha no fluvial, é uma pessoa que merece todos os elogios da Justiça amapaense. É atuante, ele vai às comunidades, ele atende mesmo. Inclusive, tinha que tirar a máquina da mão dele, porque senão ele vai varando a noite trabalhando. Então, atua sim, a defensoria tem atuado muito nos juizados especiais, pelo menos no nosso estado.
Paulo Markun: Que bom. Nós vamos fazer mais um rápido intervalo, e o Roda Viva volta daqui a instantes.
[intervalo]
Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, hoje entrevistando a juíza Sueli Pereira Pini, que é coordenadora dos juizados especiais do estado do Amapá. Doutora Sueli, vou tentar fazer aqui três perguntas de telespectadores, são diversos os telespectadores que abordaram, vou citar o nome deles e tentar sintetizar a coisa. Márcio Guião, de Ribeirão Preto (São Paulo), Priscila de Sá, de Curitiba (Paraná), José Serdera, do Rio de Janeiro, e Paulo Oliveira, de Jundiaí, falam basicamente do problema da lentidão. Alguns simplesmente reclamando, outros falando da ineficiência da corregedoria, e outros ainda mencionando a falta de juízes. Eles querem saber se existe uma ligação entre uma coisa e outra?
Sueli Pereira Pini: Eu estava dizendo no intervalo que o estado do Amapá tem a melhor relação juiz/habitante do país. Temos lá hoje um juiz para cada nove mil habitantes, quando a média nacional parece que é um para 17 mil, e tem estados nossos que chegam a um para vinte e tantos mil. Então a relação juiz/habitante do Amapá nos favorece muito, isso já auxilia muito. O que ele perguntou mesmo?
Paulo Markun: Se também tinha ver a com a ineficiência da corregedoria.
Sueli Pereira Pini: Isso também acontece lá com a gente, é importante que as corregedorias de Justiça sejam super atuantes. Assumiu recentemente o desembargador Carmo Antônio [de Souza] a vice-presidência e corregedoria do Tribunal de Justiça do estado do Amapá, e ele tem feito um trabalho relevantíssimo. Pela primeira vez, o corregedor está saindo de dentro do tribunal e literalmente vivenciando o fórum junto com o juiz, pessoalmente ajudando a resolver os problemas. Então, essas coisas precisam acontecer não só no estado do Amapá, mas em todo o país. É importante que os desembargadores corregedores saiam de dentro das corregedorias e vão para dentro dos fóruns, junto com os magistrados, resolver os problemas. Inclusive o professor Nalini colocou uma vez que este juiz que de repente justifica no seu processo, “segue sentença com atraso em razão do acúmulo de serviço”, ele coloca muito bem que esse juiz precisa acabar. Na verdade, o juiz que está com acúmulo de serviço tem que acionar a corregedoria para que ela lhe dê solução, para que saia desse volume de processos, façam-se mutirões, para que ele possa trabalhar dignamente.
Márcio Chaer: Agora, o ano do juiz, há uma estimativa, é de 160 dias. Temos dois meses de férias, todos os feriados rigorosamente são emendados. A senhora creria que esse fato, essa carga horária um pouco reduzida influi também na morosidade?
Sueli Pereira Pini: Não sozinha, mas ela também acaba influenciando. No estado do Amapá, estamos fazendo a seguinte experiência. Para o próximo ano, vamos diminuir significativamente os feriados, porque já temos dois meses de férias no ano, já são sessenta dias em que o magistrado fica afastado da sua jurisdição. E nós temos intermináveis feriados, que são os feriados nacionais, estaduais, municipais. Olha a dificuldade que eu tive, por exemplo, no mês de fevereiro. Quando eu fui contar os dias úteis, eu tinha apenas 16 dias úteis no mês de fevereiro, e isso estrangula minha pauta. Aquilo que eu vinha mantendo em trinta dias a audiência, tive que passar para 35 dias em razão dessa montanha de feriado. Então, é evidente que isso tem que ser revisto não só por nós do estado do Amapá, mas eu acho que por todos os estados.
Márcio Chaer: Agora, doutora, uma questão política. Eu acho que a política está por trás de metade das perguntas que foram feitas aqui. A senhora falou da descentralização, falamos do desencastelamento da primeira e também da segunda instância, ou seja, falamos de democratização. Aqui em São Paulo foi aprovada uma emenda constitucional, a Constituição paulista, para que o comando do Tribunal de Justiça fosse eleito por todos os juízes e não apenas pelos desembargadores. Eu não sei se mexe também naquela regra absurda e ridícula de só os quatro mais velhos poderem ser eleitos, não sei se idade é...
[sobreposição de vozes]
Ricardo Cunha Chimenti: Não altera. Os elegíveis são os mesmos.
Márcio Chaer: Há opiniões, inclusive, de que seria inconstitucional essa emenda paulista. O que a senhora acha?
Sueli Pereira Pini: Eu quero parabenizar São Paulo, eu acho que foi uma vitória fantástica da magistratura paulista, e eu quero crer que atrás disso virão outros estados fazendo modificação. Mas mais importante, me parece que há uma proposta da AMB, na reforma agora da Constituição, para que isso valha para todos os estados. E é evidente que isso tem que acontecer. É preciso parar com essa dinastia dentro dos tribunais de Justiça em que eu já sei hoje quem vai ser presidente daqui a dez anos. Não é possível. Pessoas desvocacionadas para a administração.
Ricardo Cunha Chimenti: Só um detalhe, só para que não passe muito tempo. Essa questão de muitos feriados, nós temos algumas estatísticas de que nossos feriados são semelhantes aos feriados bancários. Um detalhe que é bom levantar, já que estamos falando da estrutura administrativa, que mesmo...
Paulo Markun: [interrompendo] Diga se de passagem apenas que os bancos também não são muito bem vistos pela população. [risos]
Ricardo Cunha Chimenti: Apenas é o exemplo típico da iniciativa privada. Um detalhe: é muito freqüente que o juiz – e acredito que isso ocorra com 90% dos juízes de todo o país – trabalhe muito nos seus períodos de férias e finais de semanas, em detrimento das próprias famílias.
[...]: Isso é verdade.
Paulo Markun: Levando processo para casa.
Ricardo Cunha Chimenti: Leva processo para casa, e muita coisa porque...
Márcio Chaer: Agora tendo mais audiências, talvez fluísse mais, não?
Ricardo Cunha Chimenti: Na verdade não, porque aqueles processos que não podem ser julgados em audiência são levados para casa para que o juiz possa meditar, ler com calma, sem aquele movimento de partes e testemunhas em seu gabinete. Então só para que não apareça aí que é uma categoria que não trabalha, não está aí o problema. Trabalho há, e há para muitos.
Paulo Markun: Queria só pegar uma carona na pergunta que o Márcio levantou, que é exatamente a pergunta dos telespectadores que eu não consegui fazer, que é a de Álvaro de Castilho, do Rio de Janeiro, jornalista e estudante de direito, e de Marconi Keiroga, advogado de Paraíba, da cidade de Souza. Eles perguntam basicamente qual sua opinião sobre o controle externo do judiciário, e se ele não pode de alguma forma melhorar aí a questão da corrupção na Justiça?
Sueli Pereira Pini: Olha, na verdade, a corrupção na Justiça, felizmente, são situações isoladíssimas. Eu acho que isso é um grande ponto na Justiça brasileira. Nós praticamos não temos corrupção dentro da magistratura nacional. Se existir, são situações isoladas. Eu penso que a proposta intermediária da AMB feita inclusive junto com a OAB para o controle externo é...
Paulo Markun: Que proposta é esta?
Sueli Pereira Pini: Na verdade é a criação do conselho...
Ricardo Cunha Chimenti: Conselho Nacional da Magistratura.
Sueli Pereira Pini: ... do Conselho Nacional da Magistratura, que seria um conselho formado por magistrados, por advogados, por membros do Ministério Público...
Paulo Markun: Representantes do poder executivo também?
Sueli Pereira Pini: ... para compor esse conselho. Porque na verdade o controle externo faria o quê? Ele não pode intervir na decisão jurisdicional do juiz. Na parte administrativa, já existe esse controle, que é feito pelos tribunais de contas, pelas assembléias quando aprovam os orçamentos da Justiça; já temos um controle muito grande sobre a Justiça que as pessoas precisam saber que existe. Só o fato de termos dentro da composição da Justiça, das justiças estaduais, dos tribunais superiores, onde é o quinto constitucional [mecanismo que confere 20% dos assentos existentes nos tribunais aos advogados e promotores], onde compõe a carreira do desembargadores e dos ministros, membros do Ministério Público, da Ordem dos Advogados. Todo o concurso da magistratura obrigatoriamente tem que ter um membro da OAB participando. Já existe um controle, as corregedorias já fazem o controle sobre os atos dos juízes. O que precisa é que esses controles funcionem, né? Eu não acho que a solução seja a criação...
José Afonso da Silva: Mas não fala sobre os desembargadores, só sobre os juízes .
Sueli Pereira Pini: O controle mais efetivo que existe hoje é sobre a justiça de primeiro grau. Eu acho que nós precisamos, inclusive, consertar isso também para que haja controle sobre os tribunais de Justiça sim.
José Eduardo Faria: Falando a grosso modo, existe uma regra em alguns países em que a carreira da magistratura é fechada, há controle externo, e onde a carreira é aberta, e não há controle externo. A senhora mencionou como um fator positivo a indicação de advogados que podem participar dos concursos de seleção da magistratura. Como são escolhidos esses advogados? Não se corre o risco, por exemplo, de serem os representantes dos principais advogados num estado pequeno como o do Amapá? Não se corre o risco de se fazer uma espécie de uma... não digo uma troca de favores, mas, na melhor das hipóteses, uma solidariedade meio corporativa disso?
Sueli Pereira Pini: Olha, eu penso que não. Podemos perceber que os concursos da magistratura são dificílimos. Eu mesma fui conseguir aprovação no terceiro concurso da magistratura. Mesmo sendo magistrada hoje, eu tenho feito concursos em outras unidades da Federação, e o grau de dificuldade é muito grande. Então, não vou colocar aqui se há ou não algum apadrinhamento, mas são situações isoladíssimas. Via de regra os concursos da magistratura são extremamente rígidos, inclusive na Justiça Federal são concursos mais rígidos ainda. Em relação a esse prejuízo que o senhor colocou, não que não possa existir, pode, infelizmente pode, mas não é a regra.
Renato Nalini: Doutora Sueli, nós estamos necessitando de uma reforma do judiciário, isso não se discute, o judiciário brasileiro sempre esteve necessitando de uma reforma. E a CPI levantou o problema, nós ganhamos espaço na mídia, nós não teríamos discussão sobre o judiciário não fosse toda esta algaravia em torno ao não funcionamento da Justiça. Só que parece que não é fácil fazer uma reforma estrutural profunda, como diz o ministro [José] Celso de Mello [Filho], se nós começarmos outra vez na Câmara ouvindo todos os presidentes de tribunais, ouvindo representantes do país todo. Nós já temos diagnósticos demais a respeito da ineficiência do judiciário brasileiro. Se lhe fosse dado fazer uma sugestão pontual, assim como tem sido feito com o Código de Processo Civil, mexer pontualmente em alguns aspectos numa reforma como a que o ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira vem fazendo, se a senhora pudesse alterar em três coisas o judiciário brasileiro, o que a senhora faria?
Sueli Pereira Pini: Acho que talvez não sei se poderia fazer três coisas, mas a coisa mais importante que tem que ser feita no judiciário é a mudança de mentalidade interna nossa. Quer dizer, se não houver uma mudança de mentalidade de nós magistrados...
Márcio Chaer: E isso, praticamente, como é que nós conseguiríamos?
Sueli Pereira Pini: O papel dos tribunais de Justiça nesse aspecto é altamente relevante. Está aí talvez o grande papel do Tribunal de Justiça neste final de século, nesta entrada de novo milênio.
Ricardo Cunha Chimenti: [...] sem primeira e segunda instância também seria um caminho para que também os membros dos tribunais tivessem um contato mais próximo com a realidade do dia-a-dia da população?
Sueli Pereira Pini: Esta Justiça nossa chamada técnica burocrática, verticalizada, de carreira, tem aspectos positivos e tem negativos também. Fica difícil a gente dizer qual seria a melhor maneira. O fato é que nós temos que colocar a cabeça para funcionar, eu também não sou dona da verdade, não tenho solução para as coisas...
José Eduardo Faria: Agora, as escolas de magistratura funcionam nesta mudança de mentalidade que a senhora menciona? Elas têm funcionado ou elas se burocratizaram mais rapidamente do que a gente poderia imaginar?
Sueli Pereira Pini: Olha, eu não sei como funciona aqui no estado de São Paulo. A nossa escola da magistratura no estado do Amapá.. Porque a nossa Justiça ainda é muito nova, tem apenas oito anos de existência no Amapá, diferentemente do estado de São Paulo que já tem um século de existência. Fica difícil a gente fazer um parâmetro. No Brasil esta disparidade que existe é tão grande. De repente a realidade que eu trago para cá é uma realidade muito diferente da que está aqui, não é? Então, tem toda essa dificuldade. As escolas de magistratura também precisam se modernizar. Não há mais espaço para esse juiz burocrático, para esse juiz processualista apegado à forma. Não há mais espaço. Se ele não pegar o bonde da história, vai ficar para trás, por quê? Porque vão ser criadas Justiças alternativas, eu não tenho dúvida disso. E acho até que tem o lado positivo disso. Estão aí as câmaras de mediação e arbitragem, às quais eu sou plenamente favorável. Mas olha só o paradoxo: eu amanhã, sendo magistrada, ter que procurar uma câmara de mediação e de arbitragem em vez de procurar a própria Justiça de que eu faço parte. É preciso que nós façamos a nossa mudança.
José Eduardo Faria: Ou seja, pela primeira vez no Brasil, o poder judiciário perdeu a sua exclusividade, portanto ele é obrigado a competir pelo serviço da resolução do conflito?
Sueli Pereira Pini: Exato. E eu acho que isso é bom para o cidadão. O importante é isto: esse destinatário final, beneficiário final, é para ele que é importante. Quanto mais ele tiver a sua disposição, [melhor]. Que ele tenha uma Justiça, vamos supor, privada, que ele tenha esta estatal também a sua disposição porque a gente sabe que as câmeras da mediação e arbitragem têm a competência também limitada em alguma matérias, sobra muita coisa para o judiciário ainda. Ele não precisa se preocupar com que tenha perdido espaço ou não, só se ganhou com tudo isso, estão se dividindo algumas tarefas. Mas é importante que nós façamos também um exame de consciência, que a gente procure mudar. E não está difícil, basta querer fazer, vai depender de cada um.
Luiza Nagib Eluf: A senhora não acha que também os magistrados em geral sofrem uma restrição muito grande na sua vida pessoal, na sua vida profissional. Eles não participam disso, não participam daquilo porque eles têm que preservar sua isenção, sua imparcialidade. Mas no fim, a senhora não acha que esse tipo de conduta acaba isolando muito o magistrado da comunidade?
Sueli Pereira Pini: Na verdade eu acho que isso é um fruto de uma insegurança do juiz. Eu vou ao supermercado, eu fico em fila de ônibus, em fila de banco.O magistrado jamais pode se afastar da realidade em que ele vive, porque senão como ele vai julgar? Como ele vai conhecer essa realidade? Ele é um ser humano normal, o que ele detém são técnicas para poder decidir aquele problema que lhe trazem às mãos, mas ele não pode jamais se afastar. Eu acho que ele deve sim participar da rodada de amigos, ele deve freqüentar clubes, ele deve dançar... É evidente que ele tem que fazer isso...
Luiza Nagib Eluf: Participar de associações...
Sueli Pereira Pini: Ele tem que ser um cidadão normal porque ele vai julgar as pessoas...
José Eduardo Faria: Pode abrir mão, por exemplo, se for magistrado do nível superior, de andar com carro de chapa de bronze? [risos]
Sueli Pereira Pini: Como?
José Eduardo Faria: Ele pode abrir mão do seu automóvel com chapa de bronze.
Sueli Pereira Pini: Eu acho que ele deve...
José Eduardo Faria: E se tornar uma pessoa como se faz na Europa que vai trabalhar de metrô!
Sueli Pereira Pini: Até onde eu sei o juiz alemão vai de bicicleta trabalhar.
Renato Nalini: Ela vai de barco, né? [risos]
Sueli Pereira Pini: No Amapá nós vamos de barco trabalhar. E na Alemanha, o juiz alemão não vai de bicicleta trabalhar? Acho que nós temos que descer um pouco...
Renato Nalini: Essa mudança de mentalidade que a senhora disse talvez esteja na ética. Precisamos de uma imersão ética do juiz brasileiro, né?
Sueli Pereira Pini: É importante que as faculdades de direito disciplinem a aplicação de ética do primeiro ao último ano. É importante que nas escolas da magistratura, nos cursos preparatórios da magistratura, a aula que tem que ser dada do primeiro ao último dia tem que falar sobre a ética...
Renato Nalini: E os concursos precisam parar de exigir memorização de legislação, doutrina e jurisprudência, e verificar se o candidato ou candidata tem aptidão, vontade de trabalhar...
Sueli Pereira Pini: Vocação, bom senso, humildade...
Cláudia Trevisan: Doutora, pelo que eu entendi, grande parte dos problemas do judiciário decorrem do próprio juiz?
Sueli Pereira Pini: Infelizmente eu tenho que dizer isso. Estava conversando com seu Nalini no começo da entrevista, dizendo o seguinte. É claro que a reforma é importante, precisa de leis, mas a reforma maior que pode acontecer no judiciário é a reforma de cada magistrado. Não adianta baixarmos mais leis, criarmos toda uma reforma na legislação que precisa, é evidente, mas ela sozinha não vai bastar. Tem que haver uma reforma também de mentalidade do magistrado.
[...]: Em que situação ficaria...
Luiza Nagib Eluf: E como se consegue isso? Essa reforma da mentalidade é uma das coisas mais difíceis de se realizar, porque não depende de lei, não depende da estrutura. Ela depende de uma abertura do poder judiciário para a sociedade, de um convívio mais próximo com questões que afetam a vida da população...
Sueli Pereira Pini: Eu percebo que isso já está acontecendo. Eu penso que os juizados especiais têm esse grande papel que foi feito. Claro que eu já falei que não ele não é a solução, mas é o grande laboratório, foi um grande passo dado para isso. A Justiça seria uma árvore plantada dentro de um vaso e o juizado especial veio, arrancou essa árvore que estava engessada no vaso e plantou no campo; os frutos, com certeza, vamos colher. Eu preciso acreditar nisso. Talvez eu seja até uma otimista irresponsável, mas eu tenho que acreditar nisso, porque senão eu vou vender pastel na praia.
Ricardo Cunha Chimenti: Será que a distância não está na cabeça da própria sociedade? Porque é comum o juiz do interior, é mais fácil o acesso ao juiz muitas vezes, do que ao delegado de polícia ou até um policial militar. O juiz numa cidade do interior está normalmente de portas abertas, atendendo aos conflitos da sociedade, sem a necessidade de estar num bar, tomando chope com um ou outro, porque isso pode gerar na cabeça da parte contrária uma interrogação muito grande: “olha, ele é amigo da outra parte”. Tem uma questão de abertura semelhante a dos juizados especiais...
Paulo Markun: [interrompendo] Qualquer pessoa que freqüente o prédio do fórum aqui em São Paulo, não necessariamente só da Justiça comum, da Justiça do trabalho, vai ver que aquilo é uma máquina. É uma máquina que garante a sobrevivência de milhares e milhares de pessoas: de advogados, de office-boys, de escriturários. A Justiça, no meu ponto de vista, não é esta coisa pura e bonita que cabe num barco de um rio do Amapá. É um pouco diferente. E aí tem todo um jogo: entra um advogado, que entra com recurso... Há várias perguntas inclusive aqui sobre a quantidade de recursos que fazem com que não se acabe nunca um processo.
Sueli Pereira Pini: Para você ter uma idéia, me parece que há um processo do Supremo Tribunal Federal que já demandou seiscentos recursos. Quer dizer, é inadmissível isso também, né?
Márcio Chaer: Agora, que peso a senhora atribuiria para a questão da seleção do juiz? Porque parece que foi aqui mais ou menos consenso que há problemas também em relações aos juízes, não é? Até há pouco tempo, não sei se continua, o exame de ingresso aqui exigia coisas como literatura eslava, não sei para que serve... [risos]
Renato Nalini: Isso foi uma tentativa de se humanizar o concurso que era meramente mnemônico, de capacitação de memória.
Sueli Pereira Pini: Técnico.
Márcio Chaer: Ok, nós temos um exame técnico que vai aferir a memória, ou sei lá o quê, não sei se é para um país de Terceiro Mundo, que é extremamente rigoroso e mais de 90% são reprovados. A vocação que, na minha modesta opinião é uma coisa muito importante para um juiz, mais importante que literatura eslava, a vocação se afere nos dois anos de vitaliciamento [ato ou efeito de tornar o cargo vitalício]. E aí passa todo mundo. O que a senhora acha disso? Isso tem algum peso na formação do juiz?
Sueli Pereira Pini: É evidente. Se a gente pegar nosso arcabouço legislativo, nesse aspecto da seleção do juiz, ele é quase perfeito. Porque esses dois anos que ele faz de estágio probatório é extremamente importante. O que se precisa é que na prática ele funcione, é que os tribunais de Justiça realmente avaliem. São dois anos, é muita coisa! E avalie, primeiro, a vocação, se ele tem aptidão, se tem capacidade técnica, se ele apresenta um comportamento ético dentro e fora, o suficiente para poder levar adiante o nome da Justiça. Então, na parte de legislação, já está perfeito, não temos que mudar quase nada praticamente nesse aspecto. Não sei como é feito nos países estrangeiros, mas talvez a escola nacional da magistratura pudesse, e a própria AMB também, buscar subsídios de fora; de repente tem coisas fantásticas acontecendo lá fora, e a gente não sabe.
Renato Nalini: A Escola Nacional da Magistratura já percorreu todos os países e o modelo continental é o de escola de preparação, que é uma preparação prévia. Parece que é insuficiente um curso propiciado depois para o magistrado, porque há uma tendência natural do aproveitamento de qualquer candidato que entre. Nunca vai se admitir que se errou em recrutar mal. De quatro mil candidatos passaram trinta, não vão admitir nunca, ou é muito difícil que dentre esses trinta...
Sueli Pereira Pini: Que dentre esses trinta...
Renato Nalini: ... haja cinco que não sejam vocacionados.
Sueli Pereira Pini: E nós sabemos que há, né?
José Eduardo Faria: Em função da necessidade de serviço, hoje existem dois problemas graves. O primeiro problema é a excessiva infantilização do recrutamento, ou seja, uma queda da faixa etária. Eu vejo ex-alunos meus com 24, 25 anos de idade...
Sueli Pereira Pini: Já são magistrados.
José Eduardo Faria: E tomando decisões. E alguns, que são meus alunos de pós-graduação, me trazem informações no sentido de mostrar como é difícil sair da faculdade sem o preparo necessário e tomar decisões.
Márcio Chaer: [interrompendo] Qual sua opinião a respeito do juiz de 21 anos? Desculpe. [dirigindo-se a José Eduardo Faria]
Sueli Pereira Pini: Na Inglaterra o magistrado não pode ter menos que quarenta anos. No Brasil temos juízes com 21 anos de idade. Eu acho que talvez seria ideal mais ou menos.... seria um meio-termo.
José Afonso da Silva: Com quarenta anos estão se aposentando aqui.
[risos]
José Eduardo Faria: Viram advogados depois!
Sueli Pereira Pini: Mas é muito difícil. Às vezes, um juiz de 35 anos é mais imaturo do que uma pessoa de 21 anos. Isso é relativo. Eu acho que essa juvenilização da Justiça está acontecendo, porque hoje, com os baixos salários da Justiça, um juiz federal inicia a carreira com cinco mil e poucos reais...
Márcio Chaer: Em São Paulo, o juiz recebe 2,7 mil.
Sueli Pereira Pini: Então isso não atrai mais os advogados...
Luiza Nagib Eluf: E a senhora acha que a experiência de vida é fundamental?
Sueli Pereira Pini: Não que ela seja fundamental, ela é importante. Mas olha o que está acontecendo. No estado do Amapá agora recentemente no último concurso, foram aprovados alguns magistrados, parte deles está lá comigo nos juizados especiais e são bem jovens. E eu tive a grata surpresa de ver que são jovens muito pé no chão, super maduros e que estão dando banho em pessoas de cabelos grisalhos.
José Eduardo Faria: Mas isso não pode ser uma exceção, na medida...
José Afonso da Silva: Há que se esclarecer que esse jovem de 21 anos passa por cinco, seis seleções diferentes: psicóloga, técnica, e tudo mais...
Sueli Pereira Pini: Passa, psicotécnica.
José Eduardo Faria: Mas isso pode ser uma exceção, porque nós temos alguma coisa hoje como 450 mil advogados no Brasil, e não há mercado de trabalho para todos. E há uma demanda bastante grande que a própria AMB, através de uma pesquisa feita pelo Ipej [Instituto de Pesquisas e Estudos Jurídicos], detectou, de carreiras de pessoas que não são vocacionadas para decidir, mas são advogados que querem consolidar e cristalizar uma carreira com o mínimo de segurança. E isso está levando a um fenômeno que é a movimentação dos candidatos pelo Brasil afora em busca de concursos em que possam ser aprovados. Esse número já é bastante significativo, ou seja, o sujeito se forma em São Paulo, e vai ser juiz em Minas; ele se forma em Minas e vai ser juiz no Espírito Santo; no Espírito Santo, ele vai ser juiz ... e assim sucessivamente.
Sueli Pereira Pini: No Amapá!
José Eduardo Faria: E isso, de certo modo, está tornando a carreira do magistrado uma carreira menos épica, menos heróica e mais funcional. Isso tem um lado negativo, mas isso pode ter um lado positivo que é a profissionalização definitiva da carreira. Como é que isso está, por exemplo, na Amazônia, de um modo geral?
Sueli Pereira Pini: Não poderia lhe falar da Amazônia, mas no estado do Amapá, grande parte – eu até acho que infelizmente, porque também só agora que a gente tem instalado as faculdades de direito – da magistratura do estado vem de fora. Nós temos lá colegas do Rio Grande do Sul, eu que sou do Paraná, tenho colega de Santa Catarina. Na verdade temos colegas praticamente do Brasil todo: de grande parte do Nordeste, aqui mesmo de São Paulo. E esse recrutamento traz vantagens, como o senhor disse hoje mesmo, pode ser perigoso, mas também traz vantagens. Essa questão hoje da dificuldade de quatrocentos mil advogados que o senhor colocou para os quais não há mercado de trabalho suficiente. A mesma coisa hoje acontece infelizmente dentro da área da medicina, da engenharia, quer dizer, é um fenômeno que está acontecendo economicamente no país que evidentemente vai afetar também a classe dos advogados.
Paulo Markun: Com a diferença de que a cada dia que a sociedade se complica mais, mais a sociedade precisa de advogado. Ela pode prescindir de engenheiro, pode prescindir de engenheiro de produção porque as fábricas estão desaparecendo, mas na sociedade complexa em que a gente vive, cada dia surge mais [problema jurídico]. Num certo sentido, é isso que sustenta essa indústria.
Renato Nalini: Talvez nós pudéssemos também trocar o sentido de uma advocacia que é para a luta – nós treinamos o advogado para a luta, a luta pelo direito, do [Rudolf Von] Ihering [(1818-1892), jurista e romancista alemão, pioneiro na defesa da concepção do direito como produto social, é dele a obra A luta pelo direito, onde se lê, por exemplo: “O fim do direito é a paz, o meio de que se serve para consegui-lo é a luta”] – para um advogado pacificador, da forma como esse juiz itinerante vai atender “n” situações que não seriam estritamente situações jurisdicionais. E o advogado precisa ser um profissional da pacificação, da mediação, do aconselhamento, um profissional da prevenção. Talvez aí haja espaço para todos.
Sueli Pereira Pini: Eu acho que isso acontece hoje, eu tenho certeza que os grandes escritórios de advocacia hoje já fazem isso, já chamam as partes, e grande parte das causas que chegam a eles não desaguam no judiciário.
José Eduardo Faria: A tendência hoje é de se impedir o acesso ao judiciário, exatamente porque é caro e lento, e portanto a tendência dos operadores jurídicos é de antecipar a eclosão do conflito e impedir a eclosão do conflito, se negocia antes.
Paulo Markun: Por falar em conciliação, doutora Sueli, Luís Belangero Júnior, aqui de São Paulo, pergunta qual a opinião que a senhora tem sobre profissionais que são tidos como profissionais justamente da conciliação que são os juízes classistas na Justiça do Trabalho. Como é que a senhora vê o juiz classista?
Sueli Pereira Pini: Eu na verdade, eu acho o seguinte. O juiz classista nem precisa estar sendo extinto como está acontecendo agora. O importante seria fazer com que a remuneração desse juiz classista não saísse do cofre público, mas dos próprios sindicatos que indicam...
Paulo Markun: Mas aí poderiam se extinguir, automaticamente.
Sueli Pereira Pini: Não é extinguir. Eles poderiam continuar existindo porque tem uma grande parte deles que são sim auxiliares da Justiça e que são super atuantes. Eu digo isso porque eu já fui advogada antes de exercer a magistratura, e eu tive experiências muito boas com os juízes classistas, super atuantes. Em vez de extinguir, o que poderia se fazer é que eles não fossem mais remunerados pelo cofre público, e sim pelos sindicatos que os indicam. Essa economia que vai ser feita com eles é uma economia relativa por quê? Porque o que vai acontecer agora? Parece que vão ter que contratar juízes togados, que talvez custem mais caro.
Márcio Chaer: E o que a senhora acha da participação dos juízes que representam a classe dos advogados e a classe dos promotores?
Sueli Pereira Pini: A presença deles no Tribunal de Justiça?
Márcio Chaer: Quinto constitucional.
Sueli Pereira Pini: Sou super a favor. É claro que tem uma grande corrente que é contra, mas eu acho importantíssima essa presença do quinto constitucional, acho democrática essa presença. As experiências que têm sido feitas nos estados, até onde eu sei, são boas. Nunca se ouviu falar em corporativismo entre eles. A experiência é boa, ela só serve para...
José Afonso da Silva: É que eles viram juiz. Virou juiz, ele se incorpora...
[sobreposição de vozes]
Sueli Pereira Pini: Vira um magistrado. O acesso deles é diferente do juiz de carreira, mas é uma forma democrática de participação da sociedade.
Ricardo Cunha Chimenti: E a figura do conciliador, professora Sueli? Porque nós temos na Justiça especial, nos juizados especiais, o conciliador que não é remunerado. Seria uma solução também?
Sueli Pereira Pini: No estado do Amapá nós também não remuneramos o conciliador, é um trabalho voluntário que é feito. E é uma solução maravilhosa porque o conciliador está aprendendo, grande parte deles advém das faculdades. E esse conciliador, esse corpo de conciliadores dos juizados especiais tinha que ser levado para a Justiça comum também porque deu certo nos juizados especiais. Imagine o quanto isso não pode ajudar a Justiça comum, e o corpo de conciliadores também na Justiça tradicional.
Paulo Markun: Doutora Sueli, nosso tempo está acabando, eu tenho uma última pergunta que é a seguinte. Uma pesquisa do Ibope de 1993 – pesquisa é sempre bom também para o jornalista colocar seu ponto de vista sem se queimar [risos] – indica que 86% dos entrevistados achavam que o Brasil tem uma casta de intocáveis, e 80% diziam que a lei só existe para o mais pobre. A senhora assina embaixo dessa pesquisa?
Sueli Pereira Pini: Não... Olha, fica até difícil você falar não, né...
Paulo Markun: A senhora já falou. [risos]
Sueli Pereira Pini: Não assino, mas também é importante ponderar o seguinte: tem ainda sim uma casta intocável, mas que isso, eu já disse no começo, talvez eu seja muito otimista, mas eu quero acreditar que isso está mudando. Se não mudar por bem, vai ter que mudar de qualquer maneira, compulsoriamente, porque precisa mudar. Não há mais lugar para esse juiz encastelado, não há mais lugar para esse juiz extremamente formal, para esse juiz amante do processo.
Paulo Markun: Muito obrigado pela sua entrevista. Parabéns pelo seu trabalho. Obrigado aos nossos participantes.
Sueli Pereira Pini: Obrigada.
Paulo Markun: Parabéns pelo seu trabalho. Obrigado aos nossos participantes, e a você que está em casa.