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Memória Roda Viva

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Elza Soares

2/9/2002

A mulata assanhada de voz rouca e rasgada recorda sua trajetória e fala de seu novo disco

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Paulo Markun: Boa noite. Cada vez que o samba mandou chamar, ela veio. Ultimamente, nem tem sido o samba propriamente dito que tem chamado, mas o prazer pela música. Ela, que num determinado momento cantou para não enlouquecer, hoje só quer viver para cantar, com a garganta e a voz que só ela tem.  Elza Soares, apelidos: guerreira, abelha rainha, gata de sete fôlegos, dura na queda.  O Roda Viva mandou chamar e ela veio.

[Comentarista]: Elza Conceição Soares, filha de mãe lavadeira e pai operário, nascida em favela e quase menina de rua, foi mãe aos 12 anos de idade e viúva aos 21 anos com quatro filhos. Por causa da doença de um deles, foi tentar ganhar dinheiro cantando; voz ela já tinha desde menina, quando subia o morro cantando, reclamando de ter que carregar água. Voz rouca e rasgada. Voz malandra, sincopada. Aos 20 anos, virou crooner de orquestra, fazia temporada na Argentina, cantava na Rádio Mauá, na Rádio Tupi, em boates de Copacabana, até que veio o primeiro disco, em 1960, sucesso imediato e não por acaso. Madrinha da seleção brasileira em 1962, Elza foi ao Chile ver o Brasil jogar na Copa do Mundo. Lá, ela conheceu e impressionou Louis Armstrong. Só não foi para os Estados Unidos com ele,  porque  conheceu e se impressionou com Garrincha. Apaixonada, voltou ao Brasil e casou com o grande ídolo, com quem viveu uma história de paixão e drama, como quase tudo em sua vida. Aqueles momentos felizes se foram e a história da menina pobre que virou estrela ficou marcada por uma vida tumultuada de altos e baixos, de ganhos e perdas. Perdeu maridos, filhos, amargou a falta de dinheiro e de trabalho. Ela, que tinha tamanha discografia, que cantou todos os mestres da música popular brasileira, passou quase dez anos sem gravar. Rodou pelos Estados Unidos e pela Europa, só reaparecendo em 1984 num CD de Caetano Veloso [Velô]. Voltando aos poucos, retornando ao Rio de janeiro em 1994 com novas gravações, novo CDs e um livro com sua história, parte da história de Garrincha, Estrela solitária [Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha, de Ruy Castro - ver entrevista com Ruy Castro no Roda Viva]. Cantando para não enlouquecer, foi mais que um título, foi a fórmula de sobrevivência que, a cada tombo, inclusive um no palco com fraturas, levou Elza Soares a compensar os desaforos da vida e a ressurgir. Uma história de ressurgimentos e de recomeços, como agora no novo CD, Do cóccix até o pescoço, que ela fez com José Miguel Wisnik. Moderna, com diversidade de repertório, a mulata assanhada reaparece, forte e lírica, com feridas curadas e com direito a cantar tudo que quiser.

Paulo Markun: Para entrevistar Elza Soares, nós convidamos Tárik de Souza, crítico de música do Jornal do Brasil; João Pimentel, crítico de música do jornal O Globo; Regina Porto, radialista, editora e musicista; Lia Machado Alvim, produtora e diretora dos programas Faixa livre, Instrumental BR e Todos os sons, da Rádio Cultura AM; Luís Caversan, repórter especial do jornal Folha de S. Paulo; Washington Olivetto, presidente e diretor de criação da W/Brasil e Zuza Homem de Mello, crítico de música. Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília. Se você quiser participar do programa, fazer sua pergunta ou observação, pode usar nosso telefone, que é (011) 252-6525. Nosso fax é o 3874-3454 aqui em São Paulo, código da cidade é 11. O endereço do programa na internet é rodaviva@tvcultura.com.br

Paulo Markun: Boa noite, Elza.

Elza Soares: Boa noite.

Paulo Markun: Queria começar pelo começo, não é muita novidade. Como é que a música entrou na sua vida? Eu sei que você já contou esta história algumas vezes, mas vamos começar por isso.

Elza Soares: Pois é, eu acho que eu já nasci música. Eu acho que eu chorava cantando e meu pai era músico, tocava violão e tinha o maior prazer de dizer para as pessoas que tinha uma filha que cantava, isso quando eu era pequenininha. Quando eu levei o negócio a sério, meu pai disse: "Não, cantar não". Mas eu nasci cantando, se eu não cantasse, eu morreria, eu já disse várias vezes “cantar ainda é remédio bom”, e cantando para não enlouquecer.

Paulo Markun: E você canta fora do expediente, digamos assim? 

Elza Soares: Não, não me peguei cantando ainda não.

Paulo Markun: E você canta quando vai trabalhar ou em casa se pega cantando?

Elza Soares: Não. Não canto em casa, acho que em casa eu desafino, acho que não tem nada a ver. Agora já cantei em fábrica, quando trabalhava na fábrica de sabão, começava a cantar e era despedida dos empregos. Eu começava a cantar e era um desespero, né? Mas em casa eu acho que não, nada a ver, nem no chuveiro eu canto.

Tárik de Souza: Elza, você começou em 1960, você estourou em 1960, com Se acaso você chegasse, em plena bossa nova. A bossa nova era acusada de ser o samba com jazz e você fez um samba com improviso do Louis Armstrong [o mais popular músico americano do jazz e um dos melhores trompetistas do gênero]. Você ouvia jazz? Como é que você chegou a essa fusão de samba com jazz que não era bossa nova?

Elza Soares: Não sei, Tárik. Sinceramente, não, porque eu não ouvia rádio, porque a gente não tinha tempo e na minha casa não tinha nem como ouvir rádio, não tinha rádio.  Acho que esse negócio... É porque eu aprendi fazer esse [faz um som típico de seu estilo com voz grossa e rouca] Era com a lata d'água mesmo, já cantei com texto várias vezes, pegava a lata, dava um gemido, “aiiiii”... Ai eu achei que dava um swing e acabou acontecendo que deu certo no programa do Ari Barroso, pela primeira vez.

Tárik de Souza: Quer dizer, você não tinha ouvido Louis Armstrong ainda?

Elza Soares: Nem sabia o que era. Sinceramente, não...

Tárik de Souza: Quer dizer, estava dentro de você mesma essa coisa espontânea. Quando você gravou, você colocou esse improviso direto?

Elza Soares: É improviso, mesmo, coisa meio negrona, mesmo, estava dentro de mim mesma.

Luiz Caversan: Elza, eu li que você, quando era garota, era muito moleca; brincava muito, corria muito, gostava de brincar com bichinhos e tal. E tem uma história de um louva-a-deus que fazia um barulho e você tentou repetir o barulho, que seria esse trinado. Tem a ver? É verdade essa história?

Elza Soares: É verdade, eu tenho paixão por louva-a-deus. Aliás, é o louva-a-deus que me levou ao casamento. O louva-a-deus, ele tem um som e eu pegava aquele bichinho e botava para ouvir, ele faz ”zzzzzzzzzzzzzzz”. E eu e comecei fazendo um sonzinho do louva-a-deus também, entendeu?

Paulo Markun: Eu já li esta história evidentemente. Mas você disse que levou ao casamento, por quê?

Elza Soares: Porque eu levava café para meu pai todo dia às duas horas da tarde. Meu pai trabalhava numa pedreira, né? E então, à tarde, eu levava café para meu pai. Um dia eu fui levar café pro meu pai às duas horas da tarde, o horário de sempre, e fui entrando no mato de cócoras e um garoto me viu entrando no mato e foi atrás para ver o que eu estava fazendo e entornou o bule de café. Eu fui pegar um louva-a-deus e o bandido entrou para saber o que eu estava fazendo. Aí eu entornei o bule de café, a gente saiu no pau, a gente começou a brigar. E o meu pai viu que eu não chegava, foi ver eu estava brigando dentro do mato. Ele disse: “Bom, vai casar com minha filha, porque alguma coisa aconteceu dentro do mato”. Ele pensou que eu tivesse saído no pau com ele mesmo. Daí me casei por causa do louva-a-deus, mas mesmo assim eu amo o louva-a-deus.

Zuza Homem de Mello: E quando você fez esse primeiro disco, o Se acaso você chegasse o pessoal da gravadora era a Odeon, não é?

Elza Soares: Isso.

Zuza Homem de Mello: Eles comentaram a respeito desse improviso, que foi o que mais chamou atenção?

Elza Soares: Da Lins de Oliveira, né? Eu trabalhava na boate Texas Bar, fui levada pelo Moreira da Silva. Uma noite, eu estava cantando, passou uma mocinha dançando, eu tinha um medo louco, porque naquela época, se chegasse em casa tarde, tudo que você fazia fora de hora era como prostituição total. E tinha um aviso em casa: se chegar com uma barriga em casa, rua!  Eu não entendia nada, né?  E passava uma mocinha dançando assim perto de mim na boate Texas Bar, com dentinhos assim meio coelhinho. Falei: “Pô, eu tenho medo de homem e essa mulher me olhando, o que aconteceu na minha vida?" E ela disse assim: “Quando você acabar, você quer se sentar à mesa com a gente ali?". Eu falei: “Olha, eu acho que a senhora  está muito enganada. Eu fui contratada para cantar, mas não para ir à mesa com ninguém”. E era Silvinha Teles [uma das primeiras estrelas da bossa nova]. Eu passei a maior vergonha. Ela disse: “Mas meu nome é Silvinha Teles”. Eu disse: “Dona Silvinha, mas a senhora não disse nada”! Ela falou: “Mas você parece um bicho!" Me levaram para a Odeon e nessa noite ela tinha levado Aloísio de Oliveira [reconhecido produtor musical da época do surgimento da bossa nova]. Já sabia, porque antes já tinham dito na gravadora RCA Victor da minha existência. Só que eles não queriam porque eu era negra. Disseram: “Que cor a menina tem?" "É negra." "Então, a gente não quer”. O Darcy Louro que me contou essa história. Ele era o divulgador na época...

Washington Olivetto: Elza, quem era a cantora naquele momento que você admirava, a cantora que você gostaria de ser? 

Elza Soares: Naquele momento, como a gente não tinha assim muito acesso, eu amava Dalva de Oliveira [cantora paulista, eleita a “Rainha do Rádio” em 1951], amei demais a Ângela Maria [cantora brasileira de destaque, intérprete de bossa nova, samba-canção e bolero], que foi a mulher que me vestiu, que me deu muitos vestidos para eu cantar. Mas eu tinha, assim, na época, era Dalva de Oliveira e a Ângela.

Washington Olivetto: Sabe que eu tenho um disco teu que é um disco mágico que é a A bossa negra de Elza Soares. É um disco impressionante e que tem uma gravação, você cantando um boato, que você imita com a orquestra a Dalva de Oliveira, o Miltinho e a Alaíde Costa [cantora e compositora carioca] e avisa na seqüência. É fácil para você até hoje fazer isso? 

Elza Soares:  É fácil, é fácil.

Washington Olivetto: Ela faz igualzinho, igualzinho. Os três, na seqüência, e ainda avisa...

Elza Soares: É o Miltinho: [canta imitando o cantor]

Washington Olivetto: Agora faz a Alaíde, vai...

Elza Soares: E a Alaíde faz assim: [cantando] “Você foi a mentira que deixou saudade. Todo boato tem um fundo de verdade”! [risos]

Washington Olivetto: Isso porque ela está com gripe hoje.

Elza Soares: É, eu tô gripada! 

Regina Porto: Elza, será que..

Elza Soares: Oi, meu amor. Fala, Portinho.

Regina Porto: Será que a versatilidade, em algum momento, afetou a sua carreira? Porque, olhando retrospectivamente, você está, neste momento, de uma fusão plena de todos os seus talentos, de toda sua versatilidade, talvez o momento atual, musical até, favoreça isso. Mas é, nesse início, até voltando à pergunta do Tárik, quando ele tocou na questão da bossa nova e você conta a história da Silvinha Teles que, de certa maneira te apadrinhou... Olhando retrospectivamente, a impressão que a gente tem é que a sua história é uma história de uma gangorra permanente entre entrosamento e exclusão do próprio meio musical. Quer dizer, de um lado você representava o sucesso popular da gafieira, do sambão. Você tinha esse contato com povão. De outro lado, você era, de certo maneira, apadrinhada por músicos da classe mais intelectualizada sem que, ao mesmo tempo, você fizesse parte, vocês dialogassem musicalmente da mesma forma. Eu te pergunto: essa inserção meio dúbia que você teve ao longo da sua história na música brasileira explica um pouco essa gangorra na sua história e até esse sucesso tremendo no dia de hoje?

Elza Soares: É um pouco de conflito, não é? Porque, quer dizer, me classificavam sempre como boa sambista, porque... a cinturinha fina, bumbum grande, sambava bem, né! Na época tinha muita crioula sambando, cantando, muita negra. Hoje a gente já não tem tanta negra cantando samba, o que é um pecado. Então, mas quando fazia isso, que eu gravei a primeira versão que foi do Mack the knife [também chamada The ballad of Mack the knife, originalmente Die Moritat von Mack Messer,  canção composta por Kurt Weil, com letra de Bertolt Brecht, para o espetáculo A ópera de três tostões] que é [começa a cantar]. Quando entrava isso, ninguém sabia o que era. Se era uma sambista, se era uma negra americana, se era bossa nova.

Regina Porto: Você começou cantando Brecht no [...?]?

Elza Soares: Sim. Que é uma coisa meio estranha não é, quer dizer, pra quem, não é, Tárik, pra quem desce o morro, que vai fazer um disco de samba com Astor Silva, que era, na época o maior maestro, o Nelsinho... e começa a fazer esse groove, essa coisa, né, é uma coisa meio estranha.

Paulo Markun: Aliás, deixa eu te interromper. O Carlos Humberto, que é de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, pergunta por que você nunca mais cantou Mack the knife. Aliás você acabou de cantar...

Elza Soares: Acabei de cantar. Cantei agora [risos]. Eu tenho coisas assim, que nem bruxa! Cantei agora para você  a Mack the knife, está vendo só.

Tárik de Souza: Agora, Elza, como é que foi o seu encontro com Louis Armstrong? 

Elza Soares: Ah, foi terrível...

Tárik de Souza: Quando ele viu que tinha uma mulher que sabia fazer exatamente aquele som...

Elza Soares:  Pois é... Foi terrível. Eu cometi muita gafe. Eu acho isso maravilhoso. Eu estava no Chile, que eu fui como madrinha de seleção de 1962, que eu não sabia o que era ser madrinha da seleção. Fui levada por um grande empresário, que era o Edmundo Klinger, na época. E eu, cantando no Chile, estava cantando "Rei do mundo": [Elza canta] “Rei do mundo nunca sabe bem o que faz!"  E escuto um trompete fazendo aquelas variações, e as pessoas, os músicos estavam todos nervosos e diziam: “Olha para trás, olha para trás”. Eu olhei e vi um soweto, parecia um soweto. E aquele negão, se parece mesmo.  Lindo, né, aquele lenço. Eu falei: “Tá bom, aqui é a Elza Soares”. Quando eu terminei de cantar, ele pediu que me levasse ao camarim. E me levaram ao camarim dele, aquela coisa toda. E veio aquele negão. E ele dizia: "Yeeaaah!" Eu olhava... Que coisa é esta? Não entendia nada de inglês. E o negão lá: "Yeaaah!!! I’m doctor!" O que é isso? Ainda me traz aqui e me chama de doutora, pô! E ele: “Yeah, doctor”. Eu falei: “Por que está me chamando de doutora, cara? Você não viu que eu me chamo, Elza”?  E eu acho que o cara pensou que eu estivesse brincando. Ele disse: “Você não sabe o que quer dizer doctor”?  Falei: “Doctor, eu sei, é doutora”. E ele: “Não, daughter in English”, quer dizer filha”. Eu digo: “Não tem nada a ver, doutor!" Agora vai lá e faz um carinho no cara. Eu digo: “Começo por onde?" Parecia um armário, “faz um carinho no cara”! Eu digo: “Começo por onde, meu Deus do céu”! [risos] “Vai lá, faz um carinho nele e chama ele de “my father!”. Eu digo: “Não, aí não, agora pega”. “Como é que eu vou chegar perto do cara e dizer: “my father”? [risos] Ele disse: “Mas você não sabe o que quer dizer isso”? Eu disse: “Lógico que eu sei o que quer dizer father, todo mundo sabe, só não vou chamar o cara para mim, pô”. Ele disse: “Não, vai e diz isso daí que ele vai gostar muito”! Falei: “Olha, que eu vou dizer agora, logo agora”. E cheguei perto dele e disse assim: “My... father!” E ele disse: "Yeeeaaahh!" E eu digo: “Ele gostou da coisa”, agora o que é que eu disse pra ele”? “Você chamou ele  de pai”. E eu disse: “É, tem a ver, father e filha!” Assim que eu conheci o Louis Armstrong. Foi uma paixão, que ele queria que eu fosse embora com ele, mas não tinha...

Paulo Markun: Você mencionou uma vez que você tem uma corda vocal a mais, uma forma de dizer que esse é um recurso extra que você tem. Você já investigou que faz com que você consiga fazer estas variações tão extremas da voz, sem realmente comprometer o funcionamento da máquina? 

Elza Soares: Não, eu acho que existe até um equívoco porque diziam isso, mas ninguém tem uma corda vocal a mais, é uma coisa meio louca. Ela é torta, acho que ela entorta, como na minha vida tudo começa torto mesmo, até foi escrito por pernas tortas [referência às pernas de Mané Garrincha] a minha vida, até minha garganta, até minha corda vocal é torta, cara. Começa a cantar, ela começa a ficar meio que fora de linha né, e acontece isso aí, que eu faço tranqüilamente... [faz vibração com a voz] e começo a falar novamente, foi isso que assustou Louis Armstrong, que eu faço normal e falo normalmente.

Zuza Homem de Mello:  Elza, no dia 30 de novembro de 1965, você participou do programa Corte Rayol Show [programa humorísitico musical da TV Record] num quadro chamado "Roda de samba", fazendo parte de um quarteto vocal, que era formado pelo Lúcio Alves, Agostinho dos Santos e Elis Regina.

Elza Soares: É verdade.

Zuza Homem de Mello: Vocês cantaram um pout-pourri do morro, e você cantou a Despedida de Mangueira [samba do carnaval de 1940]. Você se lembra desse dia, do ensaio? Isso foi na TV Record. E os três já se foram, você é a única... sobreviveu.

Elza Soares: Amém.

Zuza Homem de Mello: Desse quarteto maravilhoso.

Elza Soares: Olha, não me lembro muito bem, eu sei que a gente fez isso, Lúcio Alves era o rei disso, né? A gente fazia, eu tive até um programa com ele no canal dois, que eu era “Dona Bossa” e ele era o “Zé Tamborim”, entendeu, que o Lúcio Alves era o rei do improviso, de vocalizar mesmo.

Zuza Homem de Mello: Vocalizar, isso mesmo.

Elza Soares:  Ele era maravilhoso.

Zuza Homem de Mello: Você se lembra disso, dessa noite?

Lia Machado: Eu tenho uma...

Zuza Homem de Mello: Foi uma coisa emocionante.

Elza Soares: Eu tenho uma certa lembrança, sim, do Agostinho dos Santos, principalmente, tenho sim.

Lia Machado: Foram lembrados dois episódios do começo da sua carreira, que foi seu encontro com a Silvinha Telles e seu encontro com Louis Armstrong. Tem outros dois encontros também que foram marcantes, embora muita gente conheça, que foi seu encontro com Lupicínio Rodrigues [(1914-1974), também conhecido como Lupe, era compositor de marchinhas de carnaval e samba-canção, inventor do termo "dor-de-cotovelo", autor de "Nervos de aço" e "Ela disse-me assim", entre tantas outras] e também a sua participação, sua estréia no programa do Ary Barroso [(1903-1968) um dos maiores compositores brasileiros, foi também músico e radialista, autor de "Aquarela do Brasil"], você poderia contar novamente?

Elza Soares: Bom, o do Lupicínio também foi outra gafe, né? Eu cantava na boate Texas Bar e estava cantando e tinha uma pessoa sentada, assim, toda de branco, umas rosas, muitas rosas, e me olhando o tempo todo. Eu falei: “Ih, meu Deus do céu! Mais um que estava olhando!" E eu que tinha um medo louco, né, já tinha aquele aviso de casa... Aí, acho que ele não agüentou de tanto me olhar, e eu só olhava pro Lupicínio com uma cara muito feia. Ele disse: “Com licença, eu trago umas rosas para outra rosa!" Eu disse: “Olha, o senhor se enganou, não me chamo Rosa, detesto rosas, não gosto de rosas, por favor”... Ele disse: “Mas eu sei que você se chama Elza e eu sou Lupicínio Rodrigues e sou o autor de 'Se acaso você chegasse'”. Aí eu: “Seu Lupicínio”!  Mas aí já não dava mais tempo, já tinha cometido a gafe! Não adiantou mais nada. Ary Barroso também foi outra, aí não foi gafe, aí foi uma humilhação mesmo, do Ary. Meu filho Carlinhos, que é o meu primeiro filho, estava muito doente, precisava ganhar uma grana para levar meu filho ao médico, precisava de dinheiro e a única maneira era cantando, porque não sabia como salvar meu filho. E tinha um programa de calouros que estava com a nota cinco acumulada. E eu fui no programa do Ary Barroso, fiz inscrição com o Samuel Rosemberg, que era às terças-feiras, e ele me disse o seguinte: “Domingo aqui todo mundo bonita”! Eu falei: “Pô, mas bonita como?" Não sabia como. Aí eu fui no programa do Ary Barroso no domingo, que era um programa de uma audiência tremenda, acho que tão grande quanto o Roda Viva aqui, né? Aí ele disse o seguinte.... Eu fiquei ali, era um banquinho, tinha um banco, ficava todo mundo sentado, parecia gado que já ia para ser detonado. E foi um dia de festa, cara, eu nunca tinha visto aquilo, eu sentada naquele banquinho ali esperando.  Cada um que levava um gongo, que era gongado, era uma festa, e eu morria de rir. Só que eu me esqueci que eu também fazia parte daquilo ali. Daqui a um bocadinho ele disse: “Elza Gomes da Conceição”! Eu disse: “Sou eu”. Aí eu me levantei, quando eu me levantei, aquele auditório veio a baixo, todo mundo rindo muito, porque eu estava com uma roupa de minha mãe, com uma porção de alfinetes, porque eu pesava trinta e poucos quilos,  e a minha mãe pesava um pouquinho mais de sessenta e poucos. Então para aquele pessoal eu era uma bruxinha, um ET, que estava entrando ali com duas maria-chiquinhas. O Ary Barroso ficou meio apavorado quando viu minha figura, ficou meio parado assim, perto do piano e disse: “Aproxime-se”. Aí, eu cheguei. Tinha um neguinho que rodava um pau, uma coisa assim, um pretinho que rodava um pau – a minha vida já tava perseguida pelo "pau grande" [referência à cidade de Pau Grande, RJ, onde nasceu Mané Garrincha] – que era para poder rodar o pau, que era pra alongar. Aí, eu já olhei, né, e o Ary Barroso rindo muito, todo mundo rindo, o Ary Barroso sério. Ele disse: “O que você veio fazer aqui”?  Eu disse: “Seu Ary, eu acho que aqui a gente canta, né”?  “E quem disse que você canta?"  Eu disse: “Eu canto”.  E antes que ele perguntasse o nome dos atores, eu disse o nome dos autores, que eu cantei em [...?].  E ele disse: “Então me faz o favor e me diga de que planeta você veio”?  E aí aquilo ficou... meio magoada, né? Eu disse: “Do mesmo planeta seu, seu Ary”. Ele disse: “E qual é o meu planeta”?  Eu disse: “Planeta fome”.  E naquele momento quem estava rindo parou, botou a bundinha na cadeira, todo mundo quietinho, terminei de cantar, ele me abraçando e dizendo: “Senhoras e senhores, nesse exato momento nasce uma estrela”. E eu comecei a procurar estrela, como nasce uma estrela assim à toa, eu nunca tinha escutado dizer que nasce uma estrela assim.

Washington Olivetto: Nesse momento você não estava se sentindo bonita, quando chegou lá. O inverso, qual é o momento da sua vida que você se sentiu mais bonita no palco, disse assim: “Estou o máximo”?

Elza Soares: Toda vez que eu entro no palco, eu me sinto o máximo, te juro. Porque eu acho que eu nasci para o palco. Eu sem o palco eu sou completamente nada, fora do palco eu me sinto... eu sou outra, sou a Conceição mesmo, né. Agora, quando eu entro no palco, me sinto linda, me sinto maravilhosa, eu me sinto a negra mais gostosa, me sinto a mulher mais sedutora.

Washington Olivetto: Você gosta mais do canto do palco ou do estúdio de disco?

Elza Soares: Do palco.

Washington Olivetto: Quando você ouve...

Elza Soares: Do palco, eu critico muito a Elza, estou sempre criticando, estou sempre achando que podia fazer melhor. Mas no palco eu estou viva, eu vejo aquilo ali , aquilo pra mim é muita coisa, me faz muito bem.

Washington Olivetto: Agora o Cóccix até o pescoço você acha absolutamente perfeito, é um disco perfeito? 

Elza Soares: Não sei se é perfeito, não, mas eu pretendo fazer outros CDs, pretendo melhorar mais. Eu acho que perfeição não existe, eu acho que ele está maravilhoso, como disse o Tárik de Souza, me deixou muito emocionada, como vocês todos que têm me dado bastantes elogios.  Ele tá bom, tá maravilhoso, mas perfeição não existe.

Regina Porto: Elza, eu acho que talvez valesse a pena você falar um pouco do seu encontro com José Miguel Wisnik [músico, compositor, professor e ensaísta brasileiro], que, afinal, foi desse encontro...

Elza Soares: Dessa relação, né?

Regina Porto: Desse encontro que saiu esse disco incrível.

Elza Soares: Aliás, o Zé Miguel é uma criatura linda. O Zé Miguel, aquela sensibilidade, aquele intelectual que fala a linguagem do povo e que me deu muita chance, junto com Lê Siqueira, para que eu pudesse usar a voz, para que eu pudesse brincar mais com a voz.  E num determinado momento, eu achei que não queria ousar tanto, eu tenho certeza que posso fazer melhor. Mas foi através do Zé Miguel que também que.... Aliás, gente, eu quero explicar o seguinte: esse CD já vem sendo trabalhado há dois anos, quando eu comecei a trabalhar com o Gonzaga, que foi o homem que estruturou a minha vida artista artística, que me deu uma certa tranqüilidade. Porque eu nunca tive tranqüilidade assim, de pessoas trabalhando, uma organização, eu o convidei para trabalhar comigo e ele disse: “Tudo bem, mas a gente vai passar uma borracha no que eu acho que não está certo, e vamos começar um trabalho”.  Então, há dois anos que a gente vem trabalhando esse processo com esse CD. E, no dia do aniversário dele, nós estávamos jantando num restaurante e nós pensamos juntos numa pessoa, que era preciso uma pessoa para que a gente pudesse trazer para gente. E pensamos no José Miguel Wisnik, que é uma pessoa que eu amo muito, tenho muito carinho por ele, e agradeço esse CD muito ao José Miguel Wisnik também.

Lia Machado: Você conheceu Wisnick quando ele lançou o São Paulo-Rio, quando ele estava produzindo o disco São Paulo-Rio, foi aí que vocês se conheceram ou no interior? 

Elza Soares: Não, tinha um projeto que... “Chorando alto”, não teve esse projeto?

Lia Machado: Hum-hum.

Elza Soares: E eu fui convidada, éramos dois convidados: eu e o Marcos Suzano. E nessa ocasião, a gente começou a brincar muito e o Zé Miguel me disse o seguinte, que ele já estava me seguindo, que aonde eu ia ele ia ver porque ele gostava muito da Elza Soares. E ali a gente começou a namorar mais musicalmente e acabou neste casamento maravilhoso.

Paulo Markun: Elza, nós vamos fazer um rápido intervalo, mas eu só queria registrar que seu CD é lançado pela Maianga, que é uma gravadora da Bahia.

Elza Soares: Pela Maianga. Eu quero também dizer que o Sérgio Guerra, a Iracema têm sido assim... eles foram pessoas que acreditaram no trabalho da gente, acreditaram na proposta do nosso trabalho. Eu agradeço muito à Maianga por ter acreditado na capacidade.  Acho que nem eu, nem Gonzaga, nem Zé Miguel, nem o Alê Siqueira, nem o Gringo, ninguém acreditava que esse trabalho pudesse ser tão produtivo, como está sendo produtivo, como está sendo tão querido assim. Eu agradeço bastante.

Paulo Markun: Talvez uma prova de que quando você investe em música de qualidade, o resultado é bom.

Elza Soares: O Brasil tem qualidade, pode se investir na qualidade musical também.

Paulo Markun: Vamos fazer um rápido intervalo e a gente volta já.

Elza Soares: Ok

[intervalo]

Paulo Markun: Como você vê, a nossa entrevistada de hoje é Elza Soares. Para você participar do programa: operadora, 11, telefone 252-6525 ou pelo fax 3874-3454 ou rodaviva@tvcultura.com.br. João Pimentel, a pergunta é sua.

João Pimentel: Elza, você sempre foi definida, de forma simples, como uma sambista. E por outro lado, o pessoal do samba também torce, às vezes, o nariz porque, não, você mistura o jazz, você entra com milhões... Você acha que esse disco é uma síntese da sua visão de música de uma coisa mais ampla, de uma coisa geral? 

Elza Soares: Eu acho que a música é música, você tem o direito de ampliar. Se você tem capacidade de cantar, canta, por que você tem que ser rotulada só uma coisa?  Eu acho que o samba, na minha opinião, é a coisa mais linda que nós temos, é um poder, é rico, é maravilhoso, mas eu acho que neste momento ele é muito mal produzido. A gente, graças a Deus, que a gente tem o Zeca Pagodinho que está aí fazendo o que eu amo, tem o Jorge Aragão, que é meu afilhado. Mas eu acho que a força do rock, o samba tem a mesma força. Se a gente pudesse fazer a garotada trazer para nossa juventude o que é o samba, para que eles entendessem nossa cultura seria maravilhoso. Mas eu não me incomodo com isso, não, eu amo todo mundo, eles gostam de mim, eles sabem que eu sou assim mesmo e não vou mudar por isso.

João Pimentel: E, na sua origem, em Padre Miguel, você fala que não ouvia rádio, não conhecia Louis Armstrong. Você ouvia samba ali? Porque tinha a Mocidade [Independente de Padre Miguel, escola de samba do Rio de Janeiro], tinha os blocos que geraram a Mocidade... foi a fusão de dois blocos. Tinha samba na sua vida? Você ouvia de terreiro, em algum lugar?

Elza Soares: Eu nasci em Padre Miguel, mas foi fui criada na Água Santa. Quer dizer, a gente não tinha tempo, não, porque minha mãe tinha 25 lavagens de roupa e a gente tinha que carregar água, tinha que fazer muito trabalho e estudar. Então, não tinha nem muito tempo, mas sabia da existência do samba, porque meu pai tocava um bom violão, já fazia o fundo de quintal em casa, sabia da existência boa do samba.

Zuza Homem de Mello: Elza, segundo a revista Só sucessos, as quatro músicas mais pedidas e mais cantadas nas rádios do Brasil no mês de agosto foram Love never fails, com Sandy e Júnior; Anjo, com Kelly Key; Convite de casamento, com Vavá, e  Distância com Os Travessos. Você faz um disco maravilhoso, com uma equipe de qualidade e com este nome até, de uma certa maneira, under rated da música brasileira que é Zé Miguel Wisnik, brilhante músico brasileiro.  Qual sua expectativa desse disco em relação às rádios brasileiras? 

Elza Soares: Olha, Zuza Homem de Mello, a gente fez um CD por um selo da Bahia, que é a Maianga, e que a gente está apostando. Eu tenho certeza, eu hoje tenho um homem que trabalha comigo que chama José Gonzaga. Gonzaga é um homem de muita confiança e um homem que também tem atitude, como eu tenho atitude. A gente tem certeza que esse CD, ele pode não ser tão pedido como essas que estão aí, tá, mas que vai ser tocado vai, porque eu acho que a as pessoas, o povo sabe de coisa boa também, está necessitando de coisa boa também, não estou querendo dizer que seja ruim ou não, que eu não tenho nada contra ninguém, mas que a minha é boa, também é.

Tárik de Souza: Elza, complementando um pouco o que o Pimentel te perguntou... esse disco, uma das coisas mais incríveis desse disco é o fato de que cada faixa é uma coisa diferente da outra e cada faixa tem uma Elza Soares diferente.  Como é que você entra no personagem? Você entra na história e se transforma dessa maneira? 

Elza Soares: Deixa eu te contar, eu tive a felicidade de conhecer o [Astor] Piazzolla [maestro argentino, compositor e arranjador, bandoneonista que reinventou o tango] em Buenos Aires. E eu sei que completa agora dez anos que a gente perdeu o Piazzolla. E eu queria prestar uma homenagem a ele, porque ele foi muito meu amigo, ele foi muito carinhoso quando eu precisei dele em Buenos Aires e não achava uma letra, uma coisa que pudesse virar um tango, só o [Luiz] Melodia [cantor e compositor carioca], quer dizer, eu peguei a música do Melodia, "Fadas", que foi lindo...

Tárik de Souza: Que era um choro, né.

Elza Soares: E a gente transformou "Fadas" num tango que duas pessoas fortíssimas... Eu acho que ali eu me encaixei cantando tango, porque quando eu comecei a cantar em Buenos Aires, eu cantava tango. Eu cantei tango, bolero, não era novidade essa coisa que eu faço. Eu fui crooner [voz principal de um grupo musical] e, como crooner, você canta de tudo. Crooner não vai entrar numa boate pra cantar como crooner  e só cantar samba. Você tem que cantar bolero, tcha-tcha-tcha, mambo, você tem que cantar valsa, tango. E eu fui crooner. Blues, jazz, tem que cantar tudo isso. Eu substituí Ella Fitzgerald [cantora norte-americana de jazz, considerada uma das divas do gênero ao lado de Sarah Vaughan e Billie Holliday] quando ela precisou de uma cantora para substituí-la.  Então, eu acho que esse negócio de eu cantar várias coisas assim, não é novidade porque eu fui uma cantora de noite, eu cantei em boates.

Paulo Markun: Nós começamos o bloco mostrando o trecho do clipe da sua música, que é uma música extremamente...

Elza Soares:  "A carne".

Paulo Markun: Isso, "A carne negra", que é uma música muito dura na sua crítica à situação. E tem duas perguntas aqui sobre essa questão. Débora de Lucas, aqui de São Paulo, pergunta o seguinte: isso que você falou, sobre racismo na RCA Victor... ela quer saber se você, hoje em dia, enfrenta preconceito racial? Guilherme de Medeiros, de Mogi das Cruzes, que é professor, pergunta se você acha que o negro é bem tratado pela mídia.

Elza Soares: Essa música do Marcelo Yuka [baterista da banda O Rappa] e Seu Jorge [nome artístico de Jorge Mário da Silva, cantor, compositor e ator brasileiro], eu tenho paixão pelo Marcelo Yuka, tenho paixão pelo Rappa, tenho paixão por essa gente que faz boa música e, quando vi "A carne", não quis gravar como se fosse um protesto do negro, não, gravei "A Carne" porque tinha minha cara. Eu ainda procuro nas primeiras cadeiras sempre de qualquer lugar um negro sentado e eu não vejo, então...

Luiz Caversan: No disco você gravou também o "Haiti".

Paulo Markun: Que é mesmo tema.

Elza Soares: "Haiti".

Luiz Caversan: E é uma música muito forte também.

Elza Soares: Muito forte. E gozado que ele só sentiu que o disco se tornou negro, entendeu, uma coisa meio negrona, depois que a gente ouviu "A carne", e que a gente ouviu "Haiti", que já cantava antes nos shows, é que a gente partiu. Aí o Gringo, com capacidade total, que eu já usava black power [estilo de penteado em que o cabelo é deixado bem armado, utilizado pelos negros americanos, na década de 1970] nos anos 1970, ele disse: “Ó, Elza, vamos voltar ao black power porque... Em Londres, quando eu estive em Londres, ganhei como a melhor cantora do milênio pela BBC de Londres. Gente, isso é muito para uma ex- lavadeira, uma ex- operária, uma ex-tudo, sei lá.

Washington Olivetto: Elza, uma coisa. Bem possivelmente quando você começou cantar, a música pra você era mais a melodia do que a letra.

Elza Soares: Não, a letra, a letra.

Washington Olivetto: Era a letra já? No seu discurso você era: interpretar aquela palavra.

Elza Soares: Aquela palavra, eu já me sentia dentro daquilo ali. Você vê hoje o modelo, você vê hoje, para ser modelo, para ser um ator, acho que não é hoje. É muito difícil você ver um negro sentado ou negro fazendo um trabalho assim.  A gente sabe, eu não estou aqui, eu não quero ser Tiradentes, não quero ter a corda no pescoço, está entendendo, por uma luta. Mas eu acho que tem que dar mais atenção para negritude. Eu namoro um negro lindo, maravilhoso, um negrão lindo e maravilhoso, está lá, a gente está feliz. Eu acho que negro tem que lutar mesmo, taí o Gonzaga que faz um trabalho maravilhoso, tem o Marco, tudo é negro, então nós estamos aí, trabalhando.

Luiz Caversan: Elza, e a favela que está na ordem do dia agora com essa história do filme Cidade de Deus? Você tem uma frase famosa sua, que você nunca saiu de favela, né?

Elza Soares: Não, nunca saí da favela.

Luiz Caversan: Mas você não saiu dessa favela que existe hoje, o caso da criminalidade pesada do jeito que é, com essa garotada armada do jeito que é. Qual foi à última vez que você foi à favela?

Regina Porto: Aliás, posso só completar? Eu achei uma frase sua aí que você disse o seguinte para a imprensa, uma entrevista: “Eu venho de um mundo totalmente socialista, qual favelado que não é socialista?" E aí o exemplo que você dava é que na favela tudo se divide. Se divide feijão etc., na classe média não se divide o ar do elevador.

Elza Soares: Não se divide nada.

Regina Porto: E a pergunta que eu faço, completando, neste momento em que está muito difícil desassociar favela de violência, onde você encontra o ponto de unidade pra esse discurso de solidariedade que é próprio aos muito pobres. Quem são seus iguais hoje?  

Elza Soares: É trazendo, como  a gente trouxe para esse CD o Bruno, que veio lá de [favela do] Vidigal, um menino que está dentro desse CD para mostrar que na favela existe muita família, muita gente boa também. E, pode estar certo, não tá tudo dentro da favela, não, tá mais no asfalto. A favela paga porque ali só tem o mais pobre, ali tem mais o miserável. Mas eu acho que tudo isso não tá só dentro da favela, tá no asfalto.

Luiz Caversan: Tudo o quê? A criminalidade está no asfalto também?

Elza Soares: Tá mais no asfalto, a favela paga porque é favela, cara. Mas se você vai procurar bem...Quem vai lá na favela? Sai do asfalto. Eu acho que eu continuo favela.

Lia Machado: Você pode dizer que o morador da favela de hoje, ele tem alguma semelhança com o morador da favela da sua época?

Elza Soares: Não, não.

Lia Machado: Não? 

Elza Soares: A favela da minha época, eu não sou de favela, favela, favela. Eu morei na Água Santa porque era uma pedreira que meu pai era trabalhador dessa pedreira e ali nesta pedreira cada um fazia seu barraquinho e meu pai construiu nosso barraco ali. Mas eu acho que favela é dignidade, favela tem dignidade também, é preciso olhar a favela com mais dignidade.  É preciso levar para essa gente o voto de postura, de atitude. Favela não é tudo isso que as pessoas classificam, acho que não.

João Pimentel: Você não acha que o ponto que liga, enfim, as comunidades carentes de seu tempo de criança, da favela de hoje, ainda existe solidariedade na favela, ainda existe... Choveu, e um ajuda a tirar a água do barraco do outro... Você não acha que isso pode ser um ponto de mudança, talvez o único ponto que ainda exista de dignidade mesmo, seria, porque fora poder, público que não existe essa coisa da solidariedade, então...

Elza Soares: Fora o poder público, se não vão morrer na mão de todo mundo aí...

João Pimentel: Você acha que este ponto ainda existe na favela?

Elza Soares: Eu acho que sim, existe, acho que ainda existe este ponto. Infelizmente, eu não convivo hoje com a favela, não porque...  Não há, não há nem como, porque a vida transforma, eu hoje tenho uma outra vida. Mas não quero dizer com isso que eu não vou à favela, muito pelo contrário, se tiver necessidade, estou lá na favela.  A gente fez um trabalho com Afro Reggae, que é de uma comunidade, que todo mundo sabe.

João Pimentel: Vigário Geral.

Elza Soares: Vigário Geral, foi um show belíssimo, tinha os meninos do Afro Reggae do Vigário Geral. Quero mandar um beijo para essa garotada linda, maravilhosa, que eu sou a madrinha e o Lenine [cantor e compositor] é o padrinho. Então quando Gonzaga e o Gringo... a gente foi lá, descobriu a existência dessa garotada pra mostrar que não é droga, que não é nada, que eles são artistas, que tocam, cantam, uma beleza. E também o Gonzaga faz um trabalho no Vidigal que é um trabalho também com garotada, que é maravilhoso. Você vê, existe também o trabalho social muito grande, a gente não depende do governo para fazer isso, não. É você que tem que fazer... à favela, você tem que ir lá, tem que fazer mesmo, porque se você não for, eles morrem, e existe este negócio de...

João Pimentel: Você tem um sonho de um projeto social?

Elza Soares: Muito grande, tenho um sonho de um projeto social, só estou esperando me estabilizar melhor, porque só agora que eu tenho uma estabilidade, só agora que a gente tem uma estrutura, entendeu? Se Deus me permitir fazer também alguma coisa, quer dizer, a gente já faz, eu já lanço muita gente, quando eu posso lançar um cantor, eu lanço um cantor, quando eu posso lançar artista, eu vou e faço, e quem sabe a gente faz também, de repente, um belo trabalho.

João Pimentel: Elza, quando você conheceu esse garoto do Vidigal que tem uma história, que ele chegou até você com uma música.

Elza Soares: O Bruninho?

João Pimentel: É.

Elza Soares: O Bruninho é lindo. O Bruno me foi apresentado pela Gonzaga. Foi à minha casa e ele mostrou uma música. Eu falei: “Bruno, você é maravilhoso”. Ele compõe bem, entendeu?  Foi a primeira música do Bruno, pra você ver a coragem de pegar um menino que nunca tinha cantado, nunca tinha enfrentado microfone, não sabia o que era estúdio, não sabia nada. E a gente trouxe ele para o estúdio, trouxe para o CD, e eu tenho certeza que é um caminho que já tem, graças a Deus, e outros Brunos virão.

Tárik de Souza: Elza, queria que você falasse um pouco sobre esta outra transformação que aconteceu na favela. Quer dizer, antigamente na favela, o Bruno que aparecesse seria um sambista e hoje ele faz hip-hop e rap. Como é que você sente esta mudança da música que se faz hoje a partir da favela?

Elza Soares: Porque uma transformação, Tárik... você sabe que tudo transforma. Se você já pensou, não temos mais Noel Rosa [sambista, cantor, compositor brasileiro e um dos mais importantes artistas da música no Brasil. Foi responsável pela união do samba do morro com o do asfalto]. Fato este que mudaria para sempre, não só o samba, mas a história da música popular brasileira.. Não temos mais, deixa eu ver, meu Deus do céu...

Tárik de Souza: Cartola [Angenor de Oliveira (1908-1980), cantor carioca, compositor e poeta brasileiro, um dos sambistas da velha guarda da Estação Primeira de Mangueira]...

Elza Soares: Cartola, Nelson Cavaquinho [Nelson Antônio da Silva (1911-1986), sambista carioca, compositor]... O que a garotada está vendo hoje é isso. Eu adoraria fazer um show de samba, mas tenho certeza que vai ficar vazio o teatro, ninguém vai, há um preconceito, a gente sabe disso, há um preconceito. Eu adoraria fazer um belo trabalho de samba.

Tárik de Souza: Quer dizer que o samba já foi a voz da favela, e hoje ele é voz da elite? Quer dizer, hoje, quem gosta de samba é praticamente elite? 

Elza Soares: Acho que sim, hoje você tem que fazer muito hip hop mesmo, falar mesmo: “Eu to aí, pedindo, feijão com arroz, aprendo a votar, eleição está chegando”, que também não deixa de ser cultural.

Tárik de Souza: Claro que é.

Elza Soares: Porque o que eles falam é uma verdade muito grande, eles estão ali...

Luiz Caversan: Mas tem as escolas de samba que continuam mobilizando muita gente, os ensaios são lotados. Acho que tem uma certa, se não é uma tradição, não sei exatamente a palavra, mas tem uma continuidade. Os compositores continuam disputando, o samba continua disputadíssimo em todas as escolas do primeiro grupo.

Elza Soares: Carnaval, né?

Luiz Caversan: Acho que não se perdeu isso, mas é durante o ano todo, não é.

Elza Soares: Não, o ano todo, não.

Luiz Caversan: Disputa pela escolha do samba, ensaios para arrecadar dinheiro, existe uma atividade em torno de escola de samba?

Elza Soares: Existe, a Mangueira hoje tem um trabalho belíssimo, todo mundo sabe do trabalho da Mangueira, você sabe. Eu acho que outras escolas também, eu sou Mocidade Independente de Padre Miguel. Eu acho que as escolas de samba, hoje, também, elas se preocupam muito com esse lado social, com esse lado, entendeu, de trazer as crianças, tirar as crianças do caminho da droga, da marginalidade, está entendendo, mas não é o ano todo.  Quer dizer, acho que o samba começa, não sei...  Não é o ano todo que tem isso, não. Eu levei o Lobão pra uma escola de samba, quem levou o Lobão para Mangueira fui eu.

Paulo Markun: Elza, queria mudar o eixo da conversa e abordar um assunto que eu sei que te toca e vi, quando a gente estava começando o programa, apareceu a imagem sua com seu filho na foto, seu filho... a perda do seu filho, que foi um momento complicado da sua vida [morte do filho Garrinchinha em 1986]. E não é o único momento complicado da sua vida pessoal, quer dizer, em várias ocasiões você passou por... um trator passou em cima de você e você se levantou, se reergueu e deu a volta por cima, se é que a gente vai usar essa expressão desgastada.  O que te faz levantar?

Elza Soares: Acho que atitude é dignidade, é necessidade. Eu me amo, eu amo a vida.  Eu acho que você tem que ter, continuar vivendo. Eu acho que você está aí, acho que, se você perguntar o que é isso, nem eu sei, cara, porque eu durmo quatro horas só, malho muito, acredito na vida, ainda acredito no ser humano. Eu acho que ainda se pode reverter essa história triste, acredito muito na mulher brasileira, aliás, a mulher no mundo em geral, acredito muito, e acho que é isso que me faz viva: acreditar no ser humano.  E eu acho que cada... Eu tenho meus filhos, eu tenho que dar para meus filhos um bom exemplo de vida. Se as pessoas, Dilma, Gilson, Gerson, Carlinhos, a Sara, a Sarinha, que é minha filha, me vê caída, cara, vão dizer: “Pô, que mãe é essa, que mulher é essa”?  Então, eu acho que, até por eles, também, eu tenho esta atitude de me levantar. Desculpa a expressão que eu vou dizer, perdão, Washington, que eu vou dizer uma coisa aqui. Cada porrada que eu levo, cara, é como se fosse um beijo. Já me disseram: “Esse sofrimento seu!"  Não foi sofrimento, foi uma escola da vida. Eu aprendi muito, cada vez que você leva uma queda, que é só caindo que você vai se levantar.

Paulo Markun: Quer dizer, é mais importante aprender a beijar a lona do que ganhar a luta?

Elza Soares: Às vezes, você beijando a lona você ganha a luta. Eu acho que você beijou a lona uma vez só, também não vai beijar... não é sempre, não. É preciso beijar a lona para poder ganhar a luta uma vez na vida.

Washington Olivetto: Sua disciplina física é muito parecida há muito tempo, alimentação, dormir pouco, não beber. Sempre foi assim ou não? 

Elza Soares: Não, nunca foi assim, porque antes não tinha nem como fazer, né, Washington? Mas depois eu comecei a entender que havia uma necessidade de saúde, eu fui mãe e pai dos meus filhos, eu tinha que estar viva.  E eu sou muito vaidosa também, sou muito caprichosa, muito vaidosa e achei que tinha necessidade de cuidar do corpo, da alimentação, dormir cedo, não fumo, não bebo, gosto de tomar um champanhe, um bom champanhe, lógico, ninguém, acredito que aqui.... se disser que me matar, que o champanhe não faz bem, tá louco, né? Mas beber, fumar, aquela coisa louca não faz minha cabeça, não.

Washington Olivetto: Isso é disciplina para sua vida.

Elza Soares: É uma disciplina da minha vida.

Paulo Markun: E quanto à voz, como é que é: gelado pode ou não pode, tem essas coisas?

Elza Soares: Não, não tenho muita frescura com a voz não, só não tomo gelado por causa da gripe, mas a minha voz é igual à mulher de bandido: quanto mais apanha melhor fica [risos].

Washington Olivetto: Ninguém tem dúvida nenhuma [risos].

Regina Porto: Elza, você apanhou de bandido?

Elza Soares: Se eu apanhei de bandido? Não.

Regina Porto: Não, ou de malandro?

Elza Soares: Não, não, nunca apanhei de bandido nem de malandro, porque eu acho que essa é uma briga muito feia.

Regina Porto: E teve amor bandido na tua vida? 

Elza Soares: Eu acho que a vida é bandida, a vida é bandida. Se apanhei de bandido, apanhei da vida. A vida, ela é malandra, a vida é bandida, mas tem que ter um pouco de malandragem para saber driblar essa vida. Mas apanhar de bandido é uma coisa meio ruim.

Regina Porto: Falei um pouquinho, eu sei.  Mas é... disseram, né, más línguas disseram, que você apanhava do Garrincha?

Elza Soares: Não, não apanhava do Garrincha, eu não entendia que o alcoolismo era doença. E quando Mané bebia em excesso, eu queria protegê-lo, mas ele pesava muito mais que eu, você vê que eu sou uma fragilidade só, eu peso 50 quilinhos, olha o corpinho, 60 [cm] de cintura e 90 [cm] de busto. E quando eu pegava o Mané, evidentemente que ele vinha com aquele mãozão, batia, e caía... Já quebrou dente, já sangrou, mas não que ele fizesse isso por maldade, que o Mané era um passarinho, o Mané foi a figura mais dócil que eu já vi em toda minha vida e a pessoa mais difícil de ser conduzida, porque quando bebe, você sabe que é o médico e o monstro, e nesse momento, realmente a mão dele, onde batia, ia, né...

Paulo Markun: Este casamento com Mané Garrincha custou muito caro para você, no sentido da... em primeiro lugar da aceitação do público, da sociedade. Hoje em dia, tenho impressão que, se fizerem uma pesquisa, o resultado dá dez a zero pra você. Mas não foi sempre assim. Logo no começo, houve uma incompreensão?

Elza Soares: É muito gozado, que eu tenho pavor dessa palavra “pioneiro”, quando fala pioneiro acho horroroso, pioneiro, não existe pioneiro, pra mim pioneiro eu acho que é Deus. Mas acho que abri caminho para muita gente, namorei um jogador de futebol e pobre, cara! Só que, quando eu namorei o Mané, o Mané já tinha uma amante que se chamava Angelita Martim, que ele me fez entender isso. Eu relutei um pouco, não era isso que eu queria, estava ganhando muita grana, já estava com meus filhos, morava bem, morava na Urca, tinha saído da Água Santa. E conheci o Mané, e Mané foi uma paixão, depois que eu falei: “Meu Deus, é uma criatura dócil”. Só que não entendia porque que ele era um... na minha opinião, o maior jogador de futebol do mundo.  Me perdoem se...

Tárik de Souza: Elza, você gostava de futebol antes de conhecer o Mané? Você acompanhava, qual seu time?

Elza Soares: Flamengo, cara, meu pai era um flamenguista, mas eu não tinha essa coisa de seguir futebol e, através do Mané, comecei a gostar mais de futebol. E foi um namoro, mas eu pensei que fosse uma coisa assim, en passant, ia chegar aquele namoro, uma noite de cama, uma noitezinha, duas, três noites, uma semana e bye bye. Só que continuou, eu sou mulher de um homem só, quando eu gosto, eu gosto daquele e não troco, é difícil, e aí ficou só o Mané 17 anos.

Paulo Markun: Mas no começo com muita cobrança.

Elza Soares: Todo mundo cobrava, porque não entendia o que eles cobravam, a mulher gostar de um homem?  Não sei o que eles queriam, não sei se eles queriam que o Mané fosse um travesti, ou se eu fosse o... sei lá. Eu sei que cobrava muito, né, aquela coisa, e acabei trazendo a filharada dele toda para mim, para minha casa. Uma época eu trouxe todas as crianças para minha casa, tentei educá-las no colégio, ensinar um pouco melhor a vida, o que eu havia aprendido, que elas seriam capazes também de aprender. Mas foi uma cobrança terrível, uma cobrança tão grande, que passavam, davam tiro na minha casa, me mandaram embora desse país, não entendi nada até agora.

Paulo Markun: Quando é que a história virou, quando é que você virou mocinha nesta história? 

Elza Soares: Eu sempre fui mocinha, cara, sempre.

Paulo Markun: Na imagem do público?

Elza Soares: Mesmo como bandida eu era mocinha, porque eu enfrentava a coisa. Mesmo como vilã da história eu era mocinha, né, porque não estava ligando, não, porque o amor fala mais alto.  E eu sabia da necessidade do Mané ter uma mulher, eu era e fui uma grande mulher para o Mané, acredito nisso.

Washington Olivetto: Elza, partindo do princípio que a música é a tua primeira predileção, a tua arte favorita, qual é a segunda? É literatura, artes plásticas, pintura?

Elza Soares: Eu gosto muito de ler.

Washington Olivetto: Leitura.

Elza Soares: A leitura, eu tenho paixão por Florbela Espanca [poeta portuguesa, precursora do movimento feminista em seu país]. Então eu gosto muito de ler. Eu tentei fazer direito, porque o Grande Otelo [pseudônimo de Sebastião Bernardes de Souza Prata (1915-1993), grande ator, cantor e compositor brasileiro, um dos primeiros negros a ter sucesso profissional no Brasil] achava que eu tinha que ser advogada. Ele dizia: [imitando a voz e a entonação de Grande Otelo] “Vai ser advogada, porque não tem negra advogada!  Ô caramba, vai fazer direito”!  E eu dizia: “Direito eu faço as coisas”.  “Não é direito, você vai entrar na faculdade, vai ser advogada”!  Então, eu tentei ser advogada, tem um grande amigo, que é o professor Julio Machado Coelho, que também me incentivou muito para que eu estudasse, pra que eu fosse fazer direito. Mas já existia a música e não dava, eu tinha que alimentar meus filhos, ou voltava a morar no barraco para assim me tornar advogada ou então...

Washington Olivetto: Mas teu consumo caseiro, hoje, cultural, é literatura?

Elza Soares: Eu gosto, gosto muito, gosto muito!  Gosto muito de cinema, gosto muito de teatro, gosto muito. 

Tárik de Souza: Elza, nesse seu último disco, voltando a ele, tem duas músicas suas, tem "A cigarra", que é parceria com Letícia Sabatella [atriz], e tem aquele samba crioulo. Como é esse lado compositora, como é que você compõe?  Você toca algum instrumento além de voz?

Elza Soares: Eu estudo sax alto, eu comecei a estudar sax, eu morava em Los Angeles, comecei a estudar com Moacir Silva, Moacir Santos, perdão, que é o guru de todos nós, lá de Los Angeles, ele mora em Pasadena. E foi na fase que eu perdi meu filho, eu precisava de algo diferente, né, que eu chorava 24 horas por dia, você sabe, tive nove meses de dor de cabeça, foi uma coisa incrível. E o Moacir, então, ele achava que eu tenho a voz de sax alto, entendeu?  Então eu estudo sax alto até hoje, estudo sax.

Tárik de Souza: Mas você nunca tocou em show, né?

Elza Soares: Não, acho que não, acho que a música é coisa muito séria, Tárik. Se é pra tocar um instrumento desafinado, tocar mal, não, prefiro estudar. Mas um dia ainda vou chegar com um sax no palco. Gosto de percussão, gosto também um pouco de violão, cada coisa eu gosto de pegar um pouquinho e ser um pouco atrevida.

Tárik de Souza: Aliás, você gravou aquele disco com o Wilson das Neves que tem um dueto de percussão e voz, e neste disco você faz um também né?

Elza Soares: Com Marcos Suzano, né, que é "Quebra lá, que eu quebro cá". Lá eu fiz com o Wilson da Neves, meu compadre, que é: [cantando] “deixa que digam, que pensam, que falem, deixa isso pra lá, vem pra cá, o que é que tem. Mas eu não tô fazendo nada, nem você também”.

Tárik de Souza: E seu lado compositora, como você compõe? No violão?

Elza Soares: Eu tiro da vida mesmo, da própria dor, sei lá, do que eu estou vivendo.

Tárik de Souza: Você compõe no violão, como você faz?

Elza Soares: Você sabe que, às vezes, eu sonho com música, acordo com ela quase pronta, como aconteceu aqui com "A cigarra", eu  e a Letícia, né? Às vezes eu pego o violão. Mas eu gostaria, é pretensão até demais, de fazer alguma coisa como faz João Gilberto [João Gilberto do Prado Pereira de Oliveira (1931-), músico brasileiro considerado o criador da bossa nova], que foi muito meu amigo o João, né? E eu vi, muitas vezes, o João Gilberto fazendo bossa nova, que só ele faz aquilo no violão. E vi também o Baden [Powell de Aquino (1937-2000) , violonista brasileiro que tinha uma maneira única de tocar violão, incorporando elementos da técnica clássica e o suingue e harmonia populares], que foi também muito meu amigo, e aprendi fazer algumas notas no violão. De vez em quando eu vou lá e brinco, tiro algumas... alguma coisinha assim, mas não é tão bom, eu não sou tão boa compositora, não, não me atrevo muito, não.

Paulo Markun: Elza, nós vamos fazer mais um rápido intervalo, a gente volta em seguida.

Elza Soares: OK

[intervalo]

Paulo Markun: [comenta sobre a música "Flores horizontais", interpretada por Elza Soares] Poema de Oswald de Andrade, música do José Miguel Wisnik e Elza Soares.

 Elza Soares: Que lindo o Zé Miguel, né? O Zé é lindo, gente.

Paulo Markun: Elza, a Lesen de Oliveira Leringer, que é aqui de São Paulo, pergunta o seguinte: se em algum momento da sua vida você sentiu angústia, desânimo ou algo parecido por não ter seu talento reconhecido como deveria. Além disso, que tipo de atitude ou resposta você deu às pessoas que tentaram podar ou sufocar seu talento? 

Elza Soares: Não, eu não.... Tive assim, lógico, você tem seu trabalho, tem seu talento, de repente você fica meio que podada de fazer seu trabalho, mas revolta, revolta, assim, não, eu não tenho mágoa, não tenho revolta. Já disse que vou processar o Brasil, né, eu vou processar o Brasil por não me deixar trabalhar, por não me deixar viver. Mas revolta, não, acho que esta volta por cima, esta dignidade que você tem de dar a volta por cima, esta força que Deus te dá de você dar a volta por cima... ninguém pode ter revolta.

Lia Machado: Dois anos atrás você disse: “O Brasil me deve algo”. O que você queria dizer exatamente com isso?

Elza Soares: O Brasil me deve muito. Só não me dar o direito de curar o Mané, só não me dar o direito de entender que a bebida dele era uma doença... Quando ele jogava futebol que enfiavam uma agulha no joelho dele o tempo todo. Eu achava que Brasil me deve muito, fiquei muito tempo parada sem poder trabalhar porque eu tinha que cuidar dele.  O Brasil me deve mas, coitado, como é que ele vai pagar, né?  Deve tanto este país.

Zuza Homem de Mello: Tem algum plano para apresentar as músicas num show, num espetáculo? 

Elza Soares: A gente tem um show aqui dia 13, em São Paulo, no Sesc da Vila Mariana, de 13 a 15. E de 18 a 21 a gente vai estar no Rio de Janeiro, com esse show, com este repertório. E, aliás, é o Gringo Cardia [cenógrafo e designer, autodenominado “artista da imagem”] que está fazendo a direção, com a Rita Lee, que está ali junto com ele também.  Mas a direção total é do Gringo.  A gente está em São Paulo.

Tárik de Souza: Elza, este período que você passou longe do Brasil, que foi quase um exílio econômico, né...

Elza Soares: É verdade.

Tárik de Souza: Como é que você sentia lá fora, você, uma cantora de samba?  Como  é que o samba é recebido lá? É uma coisa exótica, meio diferente, ou há um respeito pelo tipo de coisa que você fazia lá? 

Elza Soares: Há um respeito, eles respeitam muito o Brasil. Eu acho que [cantando] “o Brazil não conhece o Brasil, o Brasil, lálálá, o Brasil” [trecho da canção "Querelas do Brasil", de Maurício Tapajós e Aldir Blanc]. Mas, lá fora, o pessoal gosta de samba. Você vê que, quando chega a época de carnaval, tem turista de tudo quanto é parte pra ver o samba, porque eles pensam que o Brasil tem samba todo dia, que é isso?  E não é.  Mas eles respeitam muito. E tem mais uma coisa, Tárik, eu fico contente quando eu vejo uma cantora nova surgindo, com talento, lógico, quando eu vejo alguém aparecendo, cantando, mostrando a capacidade de que vai ficar, que não é só comenta, aquela coisa, isso te faz muito bem, porque o Brasil tem... Olha gente, talento é o que não falta aqui, só falta se a gente empurrar este pessoal.

Washington Olivetto: Elza, aliás, uma coisa, não vale o teu. Se você saísse amanhã cedo para comprar três discos, quais você compraria?

Elza Soares: Eu compraria agora o disco do [Gilberto] Gil, Kaya na gandaia [com canções de Bob Marley], que eu acho o máximo. Compraria o disco do Bob Marley [Robert Nesta Marley (1945-1981), cantor, compositor e guitarrista jamaicano considerado o maior divulgador do gênero musical conhecido como reggae] mesmo, e ia procurar um disco da Billie Holliday [cantora de swing-jazz norte-americana], três discos.

Washington Olivetto: Boas dicas, bom dia para comprar discos.

João Pimentel: Elza, você fala que, quando surge uma cantora nova, um cantor novo, um compositor, você bate palma, dá força. Mas você acabou de citar três discos de gente, enfim, Bob Marley  já morreu, Gil está aí cantando Bob Marley...

Elza Soares: Graças a Deus.

João Pimentel: E quem você compraria de novo? Se fosse comprar três discos de novos artistas ou quem você vê talento pra gravar, pra despontar no mercado?

Elza Soares: Olha, eu gosto muito do que faz que eu já falei agora aqui, o nosso Carne negra, que é do Marcelo Yuka, que é do Rappa, né? Gosto muito do Cidade Negra, lógico, gosto muito. E compraria o Zeca Pagodinho, evidentemente, se tivesse que escolher alguém do samba ia buscar o Zeca, isso aí não ia faltar. 

João Pimentel: Você acha que a renovação, com essa indústria que a gente tem, com esse problema de rádio, televisão, de divulgação das músicas, de mostrar os trabalhos, você acha que isso mata a renovação ou prejudica a renovação? Você acha que muita gente pára pelo meio de caminho? 

Elza Soares: Mas pára, pára porque eles fazem uma coisa como se fosse descartável. Não há mais respeito ao ser humano. Hoje, surge um cantor, uma cantora que você pensa que vai ficar... daqui a uns três meses, um ano, o máximo que esta pessoa vive, aí ele passou. Eu pretendo, se Deus quiser, produzir alguma coisa neste país, musicalmente falando, é minha idéia de produzir. Já conversei isso com o Gonzaga, a gente vai partir para uma produção séria, de fazer um trabalho que eu acho que posso fazer isso. E também tem uma coisa que, às vezes, me deixa meio que chocada, já ajudei muitos músicos, já briguei muito por músico, já chorei muito por músico, levo para casa, e depois você tem uma decepção, também, né, mas isso aí faz parte, faz parte, como diz o...

João Pimentel: Você acha que isso é da classe ou que isso é do ser humano?

Elza Soares: Faz parte do ser humano, né!  Mas eu não desisto, não. Se precisar de mim, estou aí mais uma vez.

Regina Porto: Você ficou com mágoa de Ivete Sangalo? Aliás, se você quiser recontar o episódio da Ivete Sangalo...

Elza Soares: Ivete, Ivete é uma gracinha, gente. Ivete tá aí fazendo o show dela. Ivete, nem um pouquinho, não foi nem a Ivete, porque ela não tem nada a ver com isso, porque o Wilson Simonal [Castro (1939-2000),  cantor brasileiro de muito sucesso nas décadas de 1960 e 1970, que, porém, terminou a carreira repudiado por grande parte da classe artística porque teria sido colaborador do regime militar] foi meu amigo muito tempo.

Paulo Markun: Só vamos contar a história, que é do disco anterior que você gravou.

Elza Soares:  É, do Carioca da gema, um disco que eu fiz.

Paulo Markun: Que houve uma proibição da gravadora de utilizar porque era reservado para Ivete Sangalo.

Elza Soares: E era um disco que ia fazer sem nenhuma pretensão. Carioca da gema, ele não tinha que ir para Los Angeles pra ser mixado, foi mixado na Tijuca, numa coisinha pequenininha, lá, produção minha, direção minha, três músicas, aquela coisa lá. E eu queria prestar uma homenagem a Wilson Simonal. Ficamos muito tempo juntos aqui em São Paulo. E de repente eu recebo proibição de gravar "Sá Marina". Aliás, eu encontrei com o Antônio Adolfo, antes, falei: “Antônio Adolfo, vou gravar o 'Sá Marina'”. A gente esteve juntos em Los Angeles. Ele disse: “Que bom, Elza”.  Quando teve a proibição, eu falei: “Pô, mas que tá acontecendo? Não estou tô entendendo nada”! Mas posso dizer que a Ivete não tem nada a ver com isso, que ela na época, também, não estava nem fazendo esse sucesso todo. Ivete, eu gosto muito de você, cara. Eu não tenho raiva de ninguém e nem tenho mágoa de ninguém, mas como eu posso ter mágoa com este poder todo que Deus me deu de cantar, de estar aí ao lado de você todos? Só tem gente maravilhosa.

Luiz Caversan: Você falou do Simonal, que o Simonal era uma pessoa que, de certa maneira, foi injustiçado ou, pelo menos, foi perseguido por muita gente, né, no esquema de música brasileira. O que você acha disso que aconteceu com Simonal, dele ter sido vetado em várias situações, das acusações que caíram sobre ele de colaboração com regime militar? Sempre existiu uma polêmica em torno disso, mas uma coisa é certa: ele foi perseguido. Como você analisa isso? 

Elza Soares: Se eu disser alguma coisa aqui, eu vou falar uma coisa totalmente errada. Eu só sei que Simonal era um negão que cantava bem pra chuchu e chegou num momento que começou a dominar. O cara que faz um Maracanã [estádio de futebol, no Rio de Janeiro, onde foram também realizados grandes shows de música] cantar com ele, um  cara que tem um suingão. Eu sei que ele foi perseguido, mas eu não fiz parte dessa coisa, não estive muito presente, então eu acho que eu não posso nem falar muito, só acho que ele sofreu bastante e me chocou muito.

Regina Porto: Você chegou a ver os filhos dele, o Simoninha, o Max de Castro?

Elza Soares: Eu conheço o Simoninha desde pequenino, aquele bandidinho, ele levava para casa para eu trocar fraldinha. Eu acho que, se eles seguirem o pai, se tiverem o swing do pai, vai ser muito bom, porque o Simona é o Simona, hein, cuidado.

Regina Porto: E você tem filho músico?

Elza Soares: Não, aliás, meus filhos gostam, tem o Gerson que toca violão, o Gilson que toca violão, eles gostam de música. Tenho minha filha, que hoje é padeira, comprou uma padaria, tem nada de música, a Dilma. Ninguém quis seguir a carreira, graças a Deus, porque ia ser uma cobrança muito grande, ou tinha que dar as tremidinhas da Elza, tinha que cantar que nem a Elza, então tinha que ser atrevida como eu sou. Acho que eles não têm essa atitude de atrevimento não. A Dilma até é meio atrevida na posição dela como dona de padaria.

Paulo Markun: Você, além de atrevida, é uma pessoa que não deixa a bola quicando, né, você devolve?

Elza Soares: Não.

Paulo Markun: E o que é que te deixa mais indignada?

Elza Soares: É falta de respeito, é mentira, eu não gosto de mentira, eu não gosto de falsidade nem de fingimento. Eu te amo até o momento em que você provar o contrário. Quando você... há mentira, aí já me deixa, não gosto, mentira não gosto, acredito em todo mundo, até que.. você entendeu?  Isso me incomoda um pouco.

Zuza Homem de Mello: Você já fez algum disco, algum trabalho do qual você tenha se arrependido de ter feito, porque você foi de uma certa forma sugestionada a fazer por elementos de gravadora ou alguma coisa assim? Um disco que você não teve prazer de ter feito.

Elza Soares: Aliás, acho que quase todos os discos que eu fiz foram feitos assim, já tinha um repertório, era chegar no estúdio, gravar, e não tinha muita opinião e eu tinha muito medo. E aquela coisa: você está chegando e você está começando a ter uma outra vida, seus filhos já estão freqüentando colégio, estão comendo, aquela coisa toda. E eu tinha muito medo de dizer não.

Zuza Homem de Mello: Você então se arrependeu disso, de alguns casos?

Elza Soares: Já me arrependi muito.

Zuza Homem de Mello: Isso acontece com muita freqüência, justamente numa certa geração de artistas brasileiros, caso, por exemplo, do Cauby Peixoto [1931-),  cantor de música popular brasileira que, como Elza, é dono de timbre, dicção e estilo próprios]. E, hoje em dia, isso já é menos... o artista tem mais controle sobre seu trabalho, e você própria...

Paulo Markun: Só não consegue gravar, né?

Zuza Homem de Mello: É. Você está mostrando isso através desse trabalho, que você teve absoluto controle, você fez o que você quis. E aí você conseguiu fazer um disco que talvez seja muito superior a todos os demais que você tenha feito antes. O que mostra que, quando lhe foi dada a oportunidade de você controlar a coisa, você soube fazer. 

Elza Soares: Justo, mas aí já tinha uma estrutura, né, já tinha uma estrutura, comecei a falar do Gonzaga, tinha a estrutura, aquela estrutura que ele montou para que eu pudesse... Hoje me dou o direito de dizer, graças a Deus, posso fazer isso. Mas quando você não tem uma estrutura, você não faz. A melhor voz masculina, na minha opinião, até hoje, chama-se Jamelão [José Bispo Clementino dos Santos (1913-2008), cantor carioca, tradicional intérprete dos sambas-enredo da escola de samba Mangueira]. Tenho paixão pela voz do Jamelão, mas você não vê o Jamelão cantar.

Paulo Markun: Só no carnaval.

Elza Soares: Só no carnaval. E é uma belíssima voz, a voz do Jamelão.

Washington Olivetto: Tem um disco do Lupicínio Rodrigues que é maravilhoso.

Elza Soares: Não, é maravilhoso! Cauby é o mesmo jeito, quer dizer, é uma voz, eu gosto do Cauby, acho a voz do Cauby belíssima. Eu gosto do Jamelão, quer dizer, a gente não tá falando de Gil,  não tá falando de Caetano, a gente tá falando de outra coisa.

Lia Machado: O seu disco Trajetória não se enquadra nessa colocação que o Zuza fez, não foi um disco manipulado, foi um disco bem produzido, que você trabalhou muito bem ele, só que não foi muito bem trabalhado pela gravadora, não foi?

Elza Soares: Mas a trajetória também não escolhi muito não. Eu precisava gravar e tive a proposta maravilhosa do produtor, que é o Zé Milton. A gente gravou e eu queria gravar também, e eu acho que a gravadora também não dava muito bola para o disco.

Lia Machado: Mas é um disco bem produzido? Teve arranjos do Cristóvão Bastos...

Elza Soares: Muito bem produzido. Não é um Cóccix até o pescoço, mas é um disco bem trabalhado, bem feito.

Paulo Markun: O Antônio Augusto, aqui de São Paulo, sociólogo, pergunta se existe a possibilidade de relançarem sua obra em CD. E o Ronaldo de Almeida, de Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul, quer saber como é que ele pode conseguir os seus CDs. Aqui onde ele mora, diz ele, ele não encontra, apesar de gostar muito das suas músicas, só tem um CD seu.

Elza Soares: Que vergonha! Do cóccix até o pescoço, ô, Maianga, acorda! A gente tem que mandar CD para esse pessoal todo aí. Há pouco, o Washington estava me falando de um trabalho que... o segundo LP gravado, que é a Bossa negra, depois até eu vou te falar do título, por que o Bossa negra. Eu acho que a gravadora Odeon, que ainda está lá, que tem toda uma obra. Eu sei que tem CDs meus gravados na Alemanha, no Japão, em Londres, você encontra, só não encontra no Brasil. Quer dizer, uma raridade. Mas eu acho que agora com a Maianga, ô, Sérgio Guerra, saia da África e venha para o Brasil. Iracema, olha aí, estão cobrando Do cóccix até o pescoço. É melhor que eles cobrem pela Maianga,  que a Maianga vai mandar pra eles.

João Pimentel: Elza, com tantos discos em que você disse que não teve controle sobre o repertório, foram coisas meio impostas, você deve ter alguns outros projetos em mente, de discos que você gostaria de ter feito ou cantado algum compositor específico. Você tem algum sonho de próximos trabalhos, de você ter controle e poder escolher, você escolheria um compositor específico para cantar? 

Elza Soares: Um compositor?

João Pimentel: É, pra dizer assim: “vou cantar a obra do Lupicínio, vou cantar a obra do Caetano [Veloso], vou cantar..."

Elza Soares: Não sei se seria um compositor, porque é meio difícil cantar um compositor. Eu acho que eu escolheria alguns compositores maravilhosos, evidentemente, ia buscar no baú, até, tem tanta gente lá atrás, que está lá. A gente fala muito, agora, mas está esquecendo que tem muita gente lá atrás, cara, que ficou lá para trás, bons compositores do Brasil, como Nelson Cavaquinho que está lá na Mangueira, uma porção de gente boa. A gente já tem um projeto, que só eu não posso falar, porque é segredo de Estado, né? Aí o Gonzaga me gonga aqui. A gente já tem um projeto feito pelo Gringo também, que já está pensando em fazer esse trabalho. Se Deus quiser, no próximo trabalho, vem aí uma coisa...

Lia Machado: Você não está num projeto junto com o Renan, de gravar algumas versões do Louis Armstrong, que você iria lançar até o ano passado, que foi centenário de nascimento dele. Esse projeto está acontecendo ou não, está parado?

Elza Soares: Não, este projeto é do Renan, não é isso? 

Lia Machado: Isso.

Elza Soares: Ele gravou o Let’s duet, mas como eu tô falando bem o inglês , tá vendo? " Façamos", que foi o tema de novela, que música muito bem cantada, aliás, ontem foi um sucesso maravilhoso lá em Lençóis, essa música. E ele fez a proposta de relançar My father, que era o disco do Louis Armstrong, do centenário do Louis Armstrong, mas só ficou na história, ele falou na proposta, mas a coisa não foi totalmente evoluída, ficou aí. Não sei, de repente ainda aconteça.

Tárik de Souza: Elza, há uma polêmica, agora, que chegou até o nível do governo que é da numeração de discos. Você é contra ou a favor da numeração de disco? Você acha que você foi roubada em termos de vendagem de discos? Como você vê esta questão em relação ao mercado? 

Elza Soares: Agora? É, isso aí vem desde o tempo do presidente da vassoura, o Jânio [Quadros (1917-1992), presidente do Brasil no período de 31 de janeiro de 1961 a 25 de agosto de 1961, data em que renunciou ao mandato, usou uma vassoura na campanha como sinal que faria uma "limpeza"], ele que fez esse projeto, que todos os discos tinham que ser numerados. E ninguém cumpriu isso até hoje, eu sou a favor, como eu sou a favor do trabalho do Lobão, do disco pirata. É um trabalho que ele faz, porque o artista... a gente só ganha muito dinheiro em show, você sabe disso. Vendagem de CD, vendeu não sei quantos milhões, nos Estados Unidos vende, mas no Brasil não sei quanto vende.

Tárik de Souza: Agora esse seu disco está nas bancas de jornal, não está?

Elza Soares: Esse disco está nas bancas, ele tá na internet, em algumas lojas de CD também se encontra, Do cóccix até o pescoço, aliás, esta frase foi o Gonzaga, que a gente ouvindo num jantar a "Dor de cotovelo", que é a música do Caetano, que é linda a música do Caetano, né, e ele disse: “Olha uma frase, do cóccix até o pescoço, que era o nome do CD, que não era esse nome, o CD tinha um outro nome que você nem calcula... e que o Zé Miguel queria que fosse o nome, Zé Miguel, a Lê, todo mundo achava que tinha que ser esse.

Tárik de Souza: Qual é? 

Elza Soares: Foda-se [risos]. Aí o Gonzaga disse: “Nunca, pelo amor de Deus”!

Regina Porto: Resumia bem a sua idéia do disco?

Elza Soares: Não, depois pensando bem ia ser terrível, né? “Eu vim comprar aqui um Foda-se, da Elza Soares” [risos]. É terrível. Ia ser terrível, ninguém ia comprar nada! Aí o Gonzaga que disse: “Não, não, não, não, Zé, acho que não tem nada a ver esse nome”.  Eu sou muito pirada, eu sou uma criatura muito viva, muito ativa, acho que tudo que está na minha cabeça tem que acontecer, eu quero pular corda, eu quero estar feliz, eu quero malhar, eu quero acordar cedo, eu quero, entendeu?

Paulo Markun: Você nos últimos tempos, não sei quantos últimos tempos esses, você andou navegando por várias religiões.

Elza Soares: Completamente.

Paulo Markun: Você passou pelo budismo, depois teve a história de pastor que foi na sua casa aí e você se desencantou quando pediram dinheiro para fazer  igreja.

Elza Soares: Gente, não, não foi assim também, não. Pelo amor de Deus! Aconteceu uma coisa semelhante, mas não foi um pastor. O pastor era uma gracinha, não partiu do pastor, tenho muito respeito por ele. Houve um pedido de um dinheiro que me deixou assim, meio que parada, porque não sou membro de nenhuma...

Paulo Markun: Mas com a religião você faz mais ou menos o que você fez com esse disco, cada faixa é uma música, cada estilo?

Elza Soares: Eu acredito em Deus, acho que Deus está presente, eu acredito que Deus tá aí, sem Ele eu nada seria. Acho que estão vendendo Cristo em todas as esquinas, é preciso ter mais cuidado quando se fala em Jesus Cristo, quando se fala em Deus. Tenho muito medo, eu respeito, eu sei da existência de uma força superior, né? Mas eu fui budista também, junto com a Tina Tunner, que ela também era budista, eu vou continuar sendo budista, em Los Angeles, eu praticava o budismo. Depois eu falei: “Não é por aí”.  Acredito em Deus.  Acho que acredito em Deus, acredito na verdade. Sei lá, eu sou todas... desde que estejam falando em Deus, que tá aí presente, e não me decepcionem, tudo bem. 

Regina Porto: Eu vou fazer uma pergunta talvez um pouquinho incômoda...

Elza Soares: Mas eu quero que você pergunte tudo.

Regina Porto: Soube, por ouvir falar, que você visitou Escadinha [José dos Reis Encina, um dos maiores e mais famosos traficantes de drogas do Rio de Janeiro nos anos 1980] na prisão, parece que isso foi... passou na televisão etc. etc. e deram muitas versões para essa história.  E vamos dar a versão boa, que você é uma amiga fiel, que você defende seus amigos, você está do lado de seus amigos em qualquer circunstância.  Procede esse fato?

Elza Soares: Fui visitá-lo, sim, eu acho que ele era um ser humano legal, e era uma época que eu precisava de tantos amigos, eu fui amiga do “Beto Sem-braço”, né. Eu fui visitá-lo, ele queria minha visita, ele queria minha presença, porque se fazia shows. Era uma época que todo mundo levava shows nos presídios, hoje não tem mais isso, e ele queria que eu fosse uma cantora, que eu fosse cantar pra eles, eu fui cantar. Achei maravilhoso cantar para eles lá dentro. Eles também não têm culpa dessa vida maldita que, de repente, acontece com eles não. Fui lá e fiz um grande show pra eles, não só para ele como todos que estavam lá dentro. 

Paulo Markun: Você teve boas relações também com gente do bicho, né, jogo do bicho?

Elza Soares: Eu não tenho nada contra eles, não, nunca me fizeram mal [risos]. Nunca me fizeram mal nenhum, entendeu? Também nunca me deram nada, eu nunca pedi nada, porque se pedisse eles iam dar mesmo, tenho certeza. Se me dessem, gente, eu não estava pedindo para gravar, teria casas, carros e dinheiro, e não estava cobrando o Brasil, não estava querendo processar o Brasil. 

Paulo Markun: Como é sua relação com a política? 

Elza Soares: Eu acho que a política é uma coisa a pensar.  Eu acho que o país... a gente está chegando na época da política. Eu acho que você tem que pensar muito em quem você vai votar, tem que ter consciência em quem você vai votar, acho que não é em quatro anos que se muda um país. A gente ouve muitas promessas que ninguém pode cumprir em quatro anos. Acho que a política é uma coisa que você tem que pensar, porque também um dia eu posso ser uma grande política, quem sabe?  Só que você tem que ser honesto, e neste país honestidade é coisa muito séria.

Paulo Markun: Você faria campanha para algum candidato? Porque tem vários artistas, de várias linhas musicais, gente da televisão, que estão aí extremamente engajados em campanhas. Alguns por mais dinheiro, outros por menos.

Elza Soares: É um caso a pensar. Não digo nem que sim nem que não, é um caso a pensar, e eu aconselho muito a garotada que vai votar hoje, que começa a votar, que pense no seu candidato, que tenha cuidado. Eu acho que a matriarca, a mulher, ela tem que pensar muito, porque todo grande homem só é um grande homem quando tem uma grande mulher, não naquela frase machista “todo grande homem tem uma grande mulher por trás”, nada, ela tá na frente segurando ele, dando a mão a ele, andando do lado dele, dando a mão a ele... e saber como votar. Acho que política é uma coisa muito séria e eu penso seriamente em quem eu vou voltar. Ainda não tenho um candidato, mas tô aqui pensando seriamente como votar no meu país pra que ele seja um pouco melhor. Tirar essa desigualdade, tirar criança de rua, você ainda encontra tanta campanha que se faz aí para tirar criança de rua, você ainda encontra criança cheirando cola, você ainda encontra muito bandido, você ainda encontra muita coisa errada, ainda encontra muita desigualdade, muita fome, ainda encontra muito sem-terra, muita gente sem casa. Eu acho que é preciso pensar nisso, porque eu acho que este país precisa mais de educação e saúde que nós não temos, é uma coisa que você tem que estar atenta, tem que estar vivo, sim, votar, sim, mas saber como votar e em quem votar, para que você possa ter esse resultado positivo de tanta miséria, eu acho que este país não tem que ter tantos miseráveis como a gente vê por aí.

Paulo Markun: Pedro Henrique, de Porto Alegre, que é médico, pergunta se você está acompanhando a gravação do filme sobre a vida do Mané Garrincha

Elza Soares: Olha, não, eu estou sabendo, lógico, soube, porque esse filme foi extraído do livro do Ruy Castro, que foi o Ruy Castro que autorizou, por sinal amo o livro, amo Ruy Castro e espero que esse filme seja um grande sucesso, tal qual como o livro do Ruy Castro, porque merece. Eu acho que os produtores desse filme têm os meus respeitos por ter escolhido fazer um filme da vida do Mané.

Tárik de Souza: Uma coisa que é tabu, assim, em todas as matérias que tem a seu respeito, é a questão da idade. Eu não vou perguntar a sua idade, só quero perguntar a você como é que você tem toda essa força depois de tanto sofrimento, de tantos problemas que você teve na vida, como é que você tem essa idade que não tem idade nenhuma, quer dizer, você é uma pessoa jovem que pode dizer a idade que quiser que todo mundo acredita?

Elza Soares: Você vê aquela garotinha na capa do CD, aquela garotinha sou eu. Se este país tivesse respeito pela idade eu diria, mas aqui não é uma Europa, isso aqui não é um lugar que a pessoa tem idade e tem respeitabilidade. Fora do Brasil, quanto mais idade você tem, mais respeitado você é. Aqui se você tem idade, você é decadente, você tem que entrar na fila do INSS, coisa que não quero na minha vida, perdão, meu Deus.

Washington Olivetto: Elza, objetivamente você é a mais espetacular mulher com mais de 29 anos que tem no Brasil [risos].

Elza Soares: Eu acho que eu ainda vou fazer 22! [risos] Mas eu acho o seguinte:  um dia eu direi a idade que tenho, o dia em que esse país me respeitar. Aqui ninguém tem que ter idade, você tem que amar como eu amo até hoje, você tem que gostar da vida como eu gosto até hoje, você tem de ter essa garota levada, como eu tenho dentro de mim até hoje, tem que ser esta mulher vivida, tem que ser essa avó da Vanessa, como eu sou, da Virna, do Paulo André, da Tatiana, entendeu, da Tainá. Tem que ser isso tudo e tem que ser esta criança. Hoje eu namoro um cara muito idoso, ele tem 26 anos, cara, “um senhor de idade”, tudo que eu quero eu pergunto pra ele: “O que eu faço, meu senhor”?  Ele me diz.

Paulo Markun: Elza, queria agradecer muito a sua presença aqui, a dos nossos entrevistadores, e dizer que acho que a gente teve aqui uma lição, entre outras coisas, de saber onde é que dói o ciúme.

Elza Soares: O ciúme dói do “cóccix até o pescoço”. E eu queria dizer o seguinte: as pessoas querem saber sempre onde me encontram, eu queria deixar aqui: é 2249-1100,  021, Rio de Janeiro. Procura lá, que vocês vão encontrar uma pessoa, assim, pronta para levar a Elza para onde vocês quiserem. 

Paulo Markun: Obrigada a você, Elza.

Elza Soares: Obrigada a vocês, estou muito feliz, muito honrada em tê-los aqui, só não chorei para não fazer vergonha, porque iam dizer que eu sou fraca, eu quero ser forte, às vezes. Obrigada, Washington.

Paulo Markun: Obrigado a você que está em casa, e nós voltamos na próxima segunda-feira com mais um Roda Viva.

 

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