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Memória Roda Viva

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Almirante Mário Cesar Flores

4/5/1992

Almirante e ministro da Marinha aponta para a necessidade de se discutir o papel das Forças Armadas

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Jorge Escosteguy: Boa noite. Conta a história que um dos motivos que levaram ao golpe militar da Proclamação da República, há mais de um século, foi o descontentamento dos militares com os salários que recebiam. Hoje, mais de um século depois, os militares outra vez estão descontentes com os salários que recebem. É claro que os tempos mudaram e hoje, por exemplo, talvez seja mais fácil a monarquia ser reconduzida ao poder pelo plebiscito marcado para 1993, do que propriamente por um pronunciamento militar. Ou seja, nas duas hipóteses, a mudança de regime parece absolutamente remota. No centro do Roda Viva que está começando agora pela TV Cultura de São Paulo, nós vamos falar de militares e de política. Vamos falar dos salários dos militares, de armamentos e da função das Forças Armadas no Brasil de hoje. No centro do Roda Viva, está sentado o nosso convidado de hoje, o almirante Mário César Flores, ministro da Marinha. O almirante Mário César Flores tem 61 anos, começou seus estudos em Santa Catarina, onde nasceu. Cursou a Escola Naval, sentou praça como aspirante em 1947. Foi sendo promovido ao longo da carreira até chegar a almirante de esquadra, em novembro de 1987. Entre outros cargos e funções, foi diretor da Escola de Guerra Naval e diretor de ensino da Marinha, adido naval em Buenos Aires e em Montevidéu. Para entrevistar o almirante Mário César Flores, esta noite no Roda Viva, nós convidamos: Ricardo Setti, diretor editorial adjunto da Editora Abril; Alberto Tamer, comentarista de economia do SBT e editorialista do jornal O Estado de S. Paulo; Pedro Del Picchia, comentarista político do Shopping News; o jornalista Fernando Pacheco Jordão; José Paulo Kupfer, diretor de redação do Diário do Comércio e Indústria, DCI; José Arbex, repórter especial da Folha de S. Paulo; Geraldo Cavagnari Filho, diretor do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp, e Roberto Godoy, jornalista da Agência Estado, especializado em assuntos militares. Boa noite, ministro.

Almirante Mário Flores: Boa noite.

Jorge Escosteguy: Vamos começar pela questão inevitável, a questão dos salários dos militares. Sempre se diz que todas as pessoas são iguais perante a lei, mas nessas movimentações em função dos salários defasados dos militares, algumas pessoas acham que de repente os militares estariam se considerando mais iguais do que outros. Por exemplo, todos os trabalhadores brasileiros estão enfrentando a recessão e enfrentando problemas de baixos salários. O próprio funcionalismo público civil também está sofrendo com essa defasagem. O senhor acha que os militares deveriam ter um tratamento diferenciado nessa questão salarial?

Almirante Mário Flores: Não, eu não acho, nem os militares jamais defenderam essa tese. Pelo contrário, nós temos tentado demonstrar que no cenário dos servidores públicos brasileiros, existem carreiras, quadros bastante prejudicados pela questão salarial. Em particular, além dos militares que efetivamente estão prejudicados, os servidores civis do plano de classificação de cargos, do velho plano da antiga lei, Estatuto de Funcionários Públicos do Brasil. Essa gente é muito mal remunerada, injustamente mal remunerada, e também precisa de um tratamento diferenciado para uma recuperação do seu padrão de vida e seu poder aquisitivo. Portanto não é verdade que os militares falem apenas deles. Falam deles, mas não apenas. Os próprios ministros militares têm insistentemente tentado demonstrar que regras de melhora dessa questão devem ser estendidas também a servidores civis. É um pouco complicado, porque no âmbito dos servidores civis existe de tudo. Existem os muito bem remunerados, os medianamente remunerados e os muito mal remunerados. Então é mais complicado do que no caso dos militares, em que nós temos um quadro salarial bastante definido. Mas de qualquer maneira, é preciso levantar aqueles que estão na base da pirâmide e trazê-los acima com os militares.

Jorge Escosteguy: Agora, como é que o senhor vê essas manifestações em relação ao salário dos militares? Ou seja, passeatas, manifestações de familiares de militares de um lado, e de outro lado reuniões de oficiais, de onde às vezes saem recados como “de repente “os oficiais não vão conseguir mais conter a tropa”. Não sei em que sentido, enfim, mas são notícias que saem nos jornais.

Almirante Mário Flores: Há muito exagero em ambas as notícias. A passeata de que eu tenho conhecimento foi uma levada a efeito na Esplanada dos Ministérios em Brasília, que foi diminuta. Na verdade, se a compararmos com o número de famílias de militares residentes em Brasília, ali não teríamos seguramente 5%.

Fernando Pacheco Jordão: Ministro, essa manifestação foi organizada, ou articulada, pelo deputado [Jair Messias] Bolsonaro [parlamentar conhecido pelas idéias de cunho nacionalista e conservador, com comportamento extremado e bastante polêmico na defesa da ditadura militar e de medidas como tortura e execução sumária para traficantes e homicidas. Em 1986, já capitão do Exército, foi preso por quinze dias por liderar manifestação por melhoria de salários. Posteriormente, foi eleito deputado, dizendo-se representante dos militares no Congresso], que é um oficial do Exército e tem sido ele muito criticado pelos chefes militares por ter promovido isso. O senhor discorda que um militar, que hoje é um parlamentar, tente representar dessa forma a classe militar no parlamento e na atuação pública dele?

Almirante Mário Flores: Eu não sei se ele representa a classe militar, eu acho que isso é uma ilusão. Ele tem todo o direito de fazer manifestações, e nunca foi contestado isso. O que tem sido contestado pelos ministros, em particular pelo ministro do Exército, é o linguajar destemperado que ele usa. O direito de manifestar a sua opinião e de tentar se apresentar como um credor dos votos, que é isso que ele deseja, é um direito livre. Agora, não o direito de usar palavreados, de usar expressões que não são condizentes nem com o cargo de deputado, nem com a condição de ex-capitão do exército. Na verdade, não houve nenhuma contrariedade em relação à manifestação. Nós desejávamos que ela não fosse feita onde foi, por uma questão de incomodar, pois incomoda o funcionamento dos ministérios, mas incomoda a dele e incomoda a do carnaval, de qualquer manifestação que se faça ali. Não é razoável que ele prossiga usando a forma de se expressar que já usou. E isso já foi reconhecido pelos próprios congressistas, colegas dele, da Câmara dos Deputados, que têm tentado fazê-lo voltar ao trilho normal de um congressista. De modo que a passeata foi, eu diria, inexpressiva, não houve nada demais nela. Neste dia houve um comportamento compatível com a condição dele, pelo o que eu ouvi, porque ouvi muito pouco, ouvi só quando passou perto do Ministério da Marinha. Não tinha nada demais, teve esses lugares comuns que são usados nessas ocasiões, e a passeata começou e encerrou com uma certa rapidez, sem nenhum problema.

Jorge Escosteguy: Agora, ministro, antes de passar... Desculpe, Tamer, só um minutinho. Antes de passar a você, eu queria que o senhor falasse um pouco do outro aspecto que lhe coloquei na primeira pergunta, ou seja, eu lembraria aqui, nos jornais, o comunicado, por exemplo, emitido pelo ministro da Aeronáutica, Sócrates [da Costa] Monteiro, após uma reunião de oficiais da Aeronáutica, alertando para os riscos de ruptura dos mecanismos de controle da tropa. O que está implícito nesse...

Almirante Mário Flores: Eu não vejo relação de causa e efeito com a passeata.

Jorge Escosteguy: Não, não. Digo manifestações de um lado, com uma passeata e, de outro, comunicados como esse, que de repente ressuscitam nos brasileiros, velhos fantasmas do passado.

Almirante Mário Flores: Não, novamente eu digo que o relembrar velhos fantasmas do passado é um exagero. O que o ministro Sócrates quis dizer, e isso eu tenho certeza, porque convivemos e conversamos sobre esse assunto com muita freqüência, é que a difícil situação salarial poderia gerar manifestações individuais ou de pequenas coletividades militares sem nenhum reflexo institucional, apenas manifestações de indisciplina, que teriam reflexos muito limitados e que se exauririam rapidamente. Mas nada que fosse capaz de conduzir a um impasse, a um problema de maior grandeza, a alguma coisa institucional como já houve no passado. O senhor mencionou no início do programa a questão salarial ao término do Império. Na verdade o que produziu a República não foi a questão salarial. Ela fertilizou o campo da República.

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Sim, foi um incentivo, vamos dizer.

Almirante Mário Flores: Mas ela ajudou a fazer com que houvesse uma predisposição contra a ordem vigente, mas não foi a causa fundamental da República. Novamente, no ano de 1962, 1963, início de 64, havia um descontentamento muito forte com a questão salarial, mas novamente não foi a questão salarial a causa primária do que aconteceu em março de 1964. Portanto a manifestação do...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Ela poderia ter fertilizado? O senhor acha que não há o risco de que ela outra vez fertilize qualquer tipo de manifestação?

Almirante Mário Flores: Eu diria, senhor, que quando há uma satisfação dos militares como seres sociais, que todos somos, não somos diferentes da sociedade, a resistência à adoção de caminhos heterodoxos é maior. Evidentemente que essa resistência se enfraquece quando as causas que são as fundamentais se somaram a uma insatisfação social.

Alberto Tamer: O senhor, então, o senhor pessoalmente, o senhor como ministro da Marinha, condena? O senhor não gostaria que tivesse havido a passeata?

Almirante Mário Flores: Ah! Eu preferiria que ali, onde ela ocorreu, não tivesse havido. Não me importa que haja passeata.

Alberto Tamer: Se não fosse ali, em outro lugar?

Almirante Mário Flores: Não me importa.

Alberto Tamer: Qualquer lugar. O senhor não é contra ...

Almirante Mário Flores: [interrompendo] No Distrito Federal, existem lugares definidos pelo governo do Distrito Federal para reuniões públicas. Que houvesse num lugar desses, não teria a menor importância para mim.

Alberto Tamer: O senhor não é contra o fato de que as mulheres dos militares e os militares tivessem ido às ruas e reclamado?

Almirante Mário Flores: Não. Para lhe falar com franqueza, não me preocupou nem um pouco, a não ser o distúrbio que é trabalhar sob o som de um aparelho de som muito alto. Eu fui à janela, olhei e vi que minha mulher não estava, fiquei satisfeito, e fui trabalhar. [risos]

Fernando Pacheco Jordão: É isto que eu ia perguntar: se o senhor gostaria que a sua família participasse da passeata.

[...]: Tinha risco, ministro, de que ela aparecesse lá?

Almirante Mário Flores: Não sei, não sei, não sei.

Jorge Escosteguy: Ela tem se queixado muito do seu salário?

Almirante Mário Flores: De vez em quando se queixa.

Pedro Del Picchia: Ministro, quanto ganha um oficial em início de carreira? E quanto ganha um oficial general, no caso da Marinha, um almirante?

Almirante Mário Flores: Com o aumento de 30% que houve em 1º de abril, o salário de um almirante em fim de carreira é da ordem de 4, 8 milhões [de cruzeiros] brutos.

José Paulo Kupfer: Tem algum benefício?

Almirante Mário Flores: Não, não, isso aí é incluído, é bruto, com todos os benefícios.

José Paulo Kupfer: Sim, mas eu digo casa, quando está em outro lugar, quinquênios...

Almirante Mário Flores: [interrompendo] Alguns. Por exemplo, no caso da Marinha, nós somos 78 almirantes, nós temos 11 almirantes que têm residência. A Marinha está concentrada no Rio de Janeiro, cerca de 78% da Marinha está no Rio de Janeiro em termos de pessoal militar. No Rio de Janeiro, nenhum tem. Os comandantes de distrito têm e os residentes em Brasília têm. Bom, o senhor perguntou também do início da carreira. É da ordem de 1, 6 milhão de cruzeiros, para um tenente. Um cabo, com o aumento de 30%, recebe cerca de 650 mil cruzeiros. Essa é a projeção.

José Arbex: Ministro, eu gostaria de recolocar a questão inicial sob um outro ângulo. Eu estive recentemente no Peru para cobrir o golpe de Estado desferido por Fujimori e, conversando com as pessoas na rua, observa-se nitidamente um apoio da população ao golpe. Porque a população alega que estava cansada de corrupção, bandalheira no parlamento. E os militares, por sua vez, como os generais, recebiam salários de 250 dólares, pouco mais do que quinhentos mil cruzeiros, o que os tornava presa fácil do narcotráfico, que subornava a caserna facilmente. Tanto que eu constatei pessoalmente que a população apoiou o golpe, cuja palavra de ordem seria moralizar as instituições e a ordem pública. E os militares apoiaram o golpe, inclusive, para impor maior disciplina ao Exército, que estaria perdendo oficiais para o narcotráfico. Eu gostaria de transportar, fazer um paralelo com a situação brasileira, que tem muita coisa análoga aí. O problema da corrupção na esfera pública, os baixos salários dos militares, o mau funcionamento que a opinião pública acredita que o parlamento tem e assim por diante. O senhor acha que o golpe de Fujimori lança sombra sobre a democracia brasileira ou o senhor descarta essa hipótese?

Almirante Mário Flores: Olhe, eu reconheço que existem algumas similitudes, mas a grandeza é muito distinta. A questão salarial, embora nós estejamos – como, aliás, o povo brasileiro de um modo geral está – arrochados com o salário, não chega à intensidade que havia no Peru. A questão da corrupção pública, também nós não chegamos à situação epidêmica que havia no Peru. A outra questão que o senhor falou foi o descontentamento do povo com relação à esfera política. Isso também existe no Brasil, mas, novamente, não existe uma unidade nessa contrariedade. Nós somos muito mais diversificados em termos de opiniões políticas. Agora, a questão do Peru é muito difícil de ser julgada. O senhor esteve lá, teve a oportunidade de falar com muitas pessoas, deve ter conhecimentos bem melhores que os meus a respeito, mas o fato é que democracia não é uma abstração jurídica idílica, é um comportamento político que está vinculado a uma realidade social e econômica. A realidade social e econômica do Peru era caótica. Obviamente isso produz o enfraquecimento do processo democrático. Mas se foi certo ou errado, o que o presidente do Peru fez, com o apoio das Forças Armadas, isso aí ainda é prematuro julgar. Eu sei que a opinião pública é crescentemente favorável, já está na ordem de mais de 90% de opiniões favoráveis, mas as opiniões favoráveis conjunturais no momento podem não ser as que vão ser expressas daqui a um ano, daqui a dois anos. Porque o regime de exceção, embora ele desafogue no primeiro momento e dê uma resposta por vezes até conveniente às demandas da sociedade, num longo prazo, ele não é o melhor. De modo que eu diria que existiram essas razões que o senhor mencionou, em grau muito intenso, agravados pela insegurança reinante no Peru com a questão do Sendero Luminoso, com a disseminação desenfreada do problema da droga, o que não existe no Brasil nesse grau, existe em grau muito menor. E tudo isso levou ao enfraquecimento do processo democrático e a um julgamento do presidente do Peru, com pessoas que o assessoraram, que eu desconheço quais sejam, para tentar uma solução fora do trilho democrático. Pessoalmente, eu acho que não tenho direito nem conhecimento de julgar se ele procedeu certo ou errado, mas tenho a convicção de que no longo prazo, não terá sido bom.

Jorge Escosteguy: Mas o governo brasileiro praticamente condenou imediatamente o golpe?

Almirante Mário Flores: Logo no início, houve uma manifestação, acho que expressa pelo Ministério das Relações Exteriores, no sentido de condenar a ruptura do processo democrático.

Alberto Tamer: E a comparação com a Venezuela, como é que o senhor faria?

Almirante Mário Flores: Eu penso que a situação da Venezuela é muito menos grave do que no Peru. Em primeiro lugar, eles não têm lá dentro um Sendero Luminoso, não tem a questão das drogas praticamente institucionalizada, como há no Peru. E a própria questão do descontentamento militar e do povo em geral, porque o descontentamento militar venezuelano está muito semelhante ao descontentamento do povo em geral. Não chega ao ponto da ruptura que aconteceu no Peru, acho que não chega. Eu tenho a impressão de que o que houve dois meses atrás, eu creio, três meses, foi um espasmo sem apoio generalizado. O que não significa que se não vierem a dar certas medidas que se impõem, isso não possa vir a ocorrer, eu volto a dizer, a democracia não é algo abstrato que...

Alberto Tamer: [interrompendo] E se no Brasil também não vierem a dar certo as medidas, o senhor imagina uma coisa mais séria?

Almirante Mário Flores: Eu acho mais difícil no Brasil. Nós somos uma sociedade bastante heterogênea, em que a diversificação de interesses é muito maior. Nós temos diversificações regionais, níveis de riqueza e de afluência muito distintos. Então a conjunção dessas várias parcelas da sociedade brasileira para um caminho fora dos trilhos, das regras que estão vigentes, é bem mais difícil de acontecer. Não digo e não afirmo que seja impossível, nada é impossível, mas será muito difícil de acontecer, e seguramente não acontecerá, não acontecerá pelas mãos militares.

Jorge Escosteguy: O senhor diria que em relação a 1964, por exemplo, o Brasil mudou ou os militares mudaram?

Almirante Mário Flores: Mudou o Brasil e mudaram os militares. Mudaram todos, felizmente mudamos todos. [risos]

Ricardo Setti: Ministro, nessa questão do salário dos militares, a insatisfação dos militares, já não vem há um bom tempo obscurecendo a necessidade da discussão de uma outra questão, que é o papel das Forças Armadas neste mundo em mutação, em acelerada mutação, sobretudo depois do final da União Soviética, do final da Guerra Fria? Quer dizer, tudo isso levanta questões sérias sobre o tamanho que deve ter as Forças Armadas, para que elas servem, que tipo de equipamento elas devem ter? Quais são as suas missões principais? De onde vem agora o inimigo? Tudo isso não são questões fundamentais que estão sendo frequentemente adiadas pelo conjuntural? Ou existe nas Forças Armadas, existe no segmento militar, grupos de peso, fazendo já esse trabalho?

Jorge Escosteguy: O senhor mesmo tem dito que falta clareza para a sociedade, do destino que ela pretende para as Forças Armadas.

Almirante Mário Flores: Eu acho que sou réu do que eu já disse, não é? De modo que vamos tentar nos defender. [risos] O senhor tem razão. A questão salarial tem anestesiado, infelizmente, a questão fundamental, que é: para quê, por que e que Forças Armadas devem existir no Brasil? Evidentemente que, uma vez definido isso, a questão salarial tem um curso natural. Se somos necessários e importantes, valemos mais; se não somos necessários nem importantes, valemos menos. Fugir dessa regra universal não faz sentido num regime democrático. De modo que eu tenho afirmado freqüentemente e procurado trazer a discussão para o tema principal, que é por quê, para quê, que Forças Armadas nós precisamos. Esse aí é um assunto para longas conversas, existem opiniões...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Nós temos mais uma hora ainda, ministro. Nós temos mais de uma hora ainda.

Almirante Mário Flores: Pode ser que existam outras perguntas, em todo caso vamos continuar nela. Existem opiniões distintas a respeito, o senhor mesmo mencionou en passant [de passagem] o ocaso da Guerra Fria como uma razão para mudar o modelo das Forças Armadas, as dimensões, enfim, e isso tudo precisa ser discutido. Eu gostaria de fazer um parêntese nessa questão. Eu também leio em jornais e ouço frequentes menções à necessidade de discutir esse assunto, mas não se discute. E não é porque nós não queiramos. Eu mesmo já estive depondo sobre isso mais de uma vez, na Comissão de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, e não encontrei eco para essa questão. As perguntas são direcionadas para o eterno problema salarial, para questões secundárias, subsidiárias, para missões do tipo exercido pelas Capitanias dos Portos, controles civis a cargo das Forças Armadas, esses controles do tipo policial. A questão básica, porém, raramente é objeto de uma pergunta, ou de um desejo, um manifesto de discussão. Eu acredito, não vamos fazer aqui uma injustiça, que esse desinteresse reflete o próprio desinteresse da sociedade brasileira, que é apática ao problema da defesa nacional. Não existe nenhuma emoção pelo problema de defesa nacional. Guerra, sob nossa responsabilidade fundamental, que não era nem exclusiva, mas maior, a última foi a Guerra do Paraguai. Já estivemos em outras depois, mas sempre na condição de coadjuvante secundário. Na Primeira e Segunda Guerra Mundial, na verdade, em particular o nosso Exército teve participações muito mais internas do que em guerras externas, em defesas externas. Então isso tudo gera uma imensa apatia pelo problema de defesa nacional, que produz um desinteresse daqueles que estudam, que se capacitam de alguma forma intelectual, dos nossos representantes políticos, que não estão preparados para discutir o assunto. Desejam discutir o assunto, mas é preciso que haja alguém com quem eu discuta o assunto. E isso não existe. Essa história de que precisa ser discutida com a sociedade, eu acho que os 150 milhões de habitantes não discutirão o assunto; é preciso que existam fóruns capazes de fazê-lo. O Congresso Nacional é o principal, e não tem havido muito interesse. Para consagrar bem o que eu estou dizendo, eu lhe diria que o nosso relacionamento com o Congresso Nacional e com a própria tecnocracia do poder executivo civil, a tecnocracia, sobretudo do setor econômico, se resume à época da montagem do orçamento. E mesmo na montagem do orçamento, com um detalhe que é típico nosso. Não tem nada a ver com o que acontece nos países mais desenvolvidos. Discute-se no Congresso e na área econômica do poder executivo, se existe ou não o dinheiro que se pede, mas não se discute se as razões pelas quais eu estou pedindo o dinheiro são sensatas, são corretas, são razoáveis para o Brasil. Decide-se se tem ou não o dinheiro. Se tem, dá-se, sem perguntar por que eu estou querendo aquilo. Se não tem, não se dá, sem se discutir as consequências de não se dar aquilo. Então, na verdade, o orçamento é um elo frio, que nos une ao mundo civil, ao mundo tecnocrata e do legislativo, e é o único elo que nos une a eles.

Ricardo Setti: Então, o senhor como militar, se ressente da falta desse interesse?

Almirante Mário Flores: Absolutamente me ressinto. Eu não me sinto tranquilo em ser o condutor da Marinha, sem ter um sentimento do que esperam de nós, o que desejam de nós. E isso é preciso ser discutido com algum conhecimento de causa. Fala-se muito na nova ordem mundial decorrente do ocaso do universo comunista, a existência de uma única superpotência com capacidade militar; falam-se coisas em torno disso. Entretanto já existem muitas opiniões, sobretudo da Europa, apesar da retórica da unidade européia, muitas opiniões que vêm da Europa, de que estamos caminhando para uma nova desordem mundial. De modo que é preciso ver exatamente com o que nós devemos nos preocupar em termos de segurança nacional, latu sensu [expressão latina que significa “em sentido amplo”], incluí aí a defesa da terra...

Jorge Escosteguy: [retomando a pergunta de Ricardo Setti] O senhor atribui a quê esse [desinteresse]...?

José Paulo Kupfer: [falando ao mesmo tempo em que Jorge Escosteguy] Posso fazer uma perguntinha?

Almirante Mário Flores: [respondendo a José Paulo Kupfer] Acho que todos podem, então eu acho que o senhor também pode.

[risos]

José Paulo Kupfer: O senhor fez uma crítica à forma como é discutido o orçamento com o ministério dos militares. Talvez o senhor não tenha a resposta, nem eu, mas pensando juntos, será que não é a mesma maneira como são discutidos os orçamentos com os outros ministérios?

Almirante Mário Flores: Olhe, eu acredito que se não for igual, não deve ser muito diferente. É provável que outros ministérios, particularmente os da área social, que têm reflexos muito importantes na questão eleitoral, sejam mais bem discutidos. Recursos para casas populares, isso tem, evidentemente, o senhor há de imaginar, um reflexo muito grande na questão eleitoral. O Ministério da Saúde... Eu não estou aqui, pelo amor de Deus, eu não estou reduzindo as dimensões da importância deles, são extremamente importantes. Mas como eles têm um relacionamento muito forte com a vida da sociedade, em compensação trazem sobre a questão eleitoral um reflexo importante que nós não temos. A questão militar, na verdade, não induz voto. Ela não induz voto por essa apatia, esse desinteresse.

José Paulo Kupfer: Então o senhor acha que o nosso orçamento, para todos os ministérios, é feito de olho nos votos, não com base em para que serve um certo ministério, quais são, enfim, as suas ações sociais ou de outra ordem. O voto é o que preside a distribuição do pouco que nós temos...

Almirante Mário Flores: Eu não chegaria à tamanha injustiça. O orçamento, a mecânica do orçamento... Existe primeiro a lei de diretrizes orçamentárias, que estabelece aqueles grandes parâmetros lá do orçamento. E o poder executivo prepara a proposta de orçamento a ser transformada na lei de meios, que vai ao Congresso Nacional. Eu acho que esse preparo é bem mais livre das injunções eleitorais, é muito mais fundamentado na racionalidade tecnocrática do poder executivo, e muito menos, portanto, na lógica eleitoral que é mais intensa no poder legislativo. No poder legislativo, dentro das limitações permitidas pela Constituição – não pode aumentar despesas, e para aumentar despesas, tem que prover recursos adicionais, essas coisas todas – a influência da questão voto é maior. Não quer dizer que ela seja absoluta, não tem sido absoluta, mas ela se faz presente.

Pedro Del Picchia: Ministro, essa maneira como é feita o orçamento decorre principalmente do regime de governo, o presidencialista. Portanto cabe ao executivo apresentar uma proposta orçamentária. Como o senhor contesta isso, dá a impressão de que o senhor é a favor do parlamentarismo.

Almirante Mário Flores: Não, eu acho que o parlamentarismo, em tese, é o melhor sistema, mas não creio que ele seja o melhor para o Brasil que nós estamos vivendo...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Por quê, ministro?

Almirante Mário Flores: Quem sabe para os nossos filhos venha a ser, mas por enquanto, não é. Eu acho que o parlamentarismo exige que se refaça de uma maneira radical a questão partidária, com partidos que sejam representativos e que tenham programas precisos e não esses programas fluidos, um tanto vagos, que servem para qualquer partido em qualquer lugar do mundo. Enfim, que tenham programas bem mais objetivos, esse é um caso. E o outro caso, nós vamos cair na questão inicial, que é o preparo de uma burocracia do Estado competente, e que depende de outras coisas, mas também depende de uma retribuição salarial compatível. Não se pode funcionar um parlamentarismo com esta loucura que é o provisionamento dos cargos de segundo e terceiro escalão. Outro dia eu ouvi uma conversa, aliás, me foi relatada pelo ministro da Aeronáutica, esteve aí – é um tanto cômico, mas no bom sentido – poucos dias atrás, no Brasil, o chefe do estado-maior da Força Aérea italiana, que é o comandante da Força Aérea italiana. Conversando com o brigadeiro Sócrates, sobre os assuntos que relacionam Força Aérea brasileira e italiana, o projeto AMX [Programa de cooperação entre Brasil e Itália, iniciado em 1980, para a construção de um jato de ataque de primeira linha, realizado por três empresas consorciadas: Embraer (Brasil), Aeritália (Itália) e Aermacchi (Itália)] etc, o brigadeiro Sócrates comentou com ele: “O seu presidente renunciou, e o primeiro-ministro também. E respondeu o general: “Incrível, não temos governo”. E aí o Brigadeiro Sócrates disse: “Sim, e como é que funciona?” “Funciona normal”. Quer dizer, o presidente da rede ferroviária, se é que lá existe isso, não muda; o diretor do Lloyd não muda; o presidente da Petrobras deles não muda; o chefe estadual da Aeronáutica não muda. O funcionamento administrativo corre corrente, normal. A minha dúvida é se nós teremos condições de mudar os nossos padrões culturais, para que isso venha a acontecer, caso se estabeleça o parlamentarismo.

Geraldo Cavagnari Filho: Eu vou retornar ao início dessa pergunta, fazendo um gancho com o que lhe disse o Ricardo Setti. O senhor assinalou muito bem que não existem interlocutores na questão do debate sobre a defesa nacional. Mas é verdade que não há uma tradição brasileira de debate dessas questões, das questões estratégicas, das questões militares, fora do meio restrito militar. Isso é muito recente, esse debate é muito recente no Brasil, praticamente remonta ao início da Constituinte. Então nós temos ainda cinco anos de debate disso aí, ainda está na universidade e em alguns fóruns, não chegou ainda à classe política. Mas percebe-se também o seguinte: parece que os militares não têm uma perspectiva de futuro a respeito de que país nós queremos, de que Forças Armadas nós queremos. Eu creio que a resposta não deve ser buscada apenas na sociedade, mas também deve ser buscada no meio militar. E os militares brasileiros, por enquanto, não demonstraram uma determinada segurança sobre o futuro das suas próprias Forças Armadas.

Jorge Escosteguy: Na sua opinião, ministro, complementando, qual deve ser o papel das Forças Armadas no Brasil hoje?

Ricardo Setti: Qual contribuição o senhor daria para esse debate que está fazendo falta?

Almirante Mário Flores: Começaria dizendo, aquele lugar comum: no Brasil, como em qualquer lugar do mundo, o papel das Forças Armadas é a defesa nacional e a ordem interna. É inútil querer escamotear a ordem interna, porque em certas situações, como vimos recentemente nos Estados Unidos, o Exército americano, que não tem nenhuma tradição de interferência interna, teve que intervir. Mas isso é vago. É difícil quando o senhor não tem inimigos concretos – e felizmente não temos e eu espero que não venhamos a ter – é difícil estabelecer exatamente que padrão de Forças Armadas se deve ter. Então o caminho é inverso: que interesses nacionais nós devemos preservar a qualquer custo? Estabelecer que interesses nacionais. Isso aí é suscetível de muitas controvérsias, alguns não são suscetíveis de controvérsias, como a integridade territorial brasileira latu sensu, aí inclui-se o mar evidentemente, a soberania nacional, que é evidentemente um interesse que estará sendo crescentemente contestada daqui para o futuro, pela própria questão da nova ordem; a proteção de nossos recursos suscetíveis de serem ilegalmente explorados. O controle – um interesse importante hoje pelo próprio cenário que nós estamos vivendo – de regiões atrasadas no que concerne à prática de delitos, que eu chamaria de delitos graves contra a humanidade em geral, o mais comum evidentemente, o mais conhecido é a droga, mas temos o terrorismo internacional e outros. Isso é muito sensível, principalmente nas regiões atrasadas, onde só as Forças Armadas têm condição de dar uma resposta. O ideal é que não precisássemos usar as Forças Armadas, e sim os sistemas policiais, mas não estão aparelhados e nem estarão. As Forças Armadas estarão sempre melhor aparelhadas para isso.

Geraldo Cavagnari Filho: Então o senhor é favorável ao combate do narcotráfico pelas Forças Armadas?

Almirante Mário Flores: Não, não assim. Eu acho que as Forças Armadas não devem entrar como a frente principal. Elas são acessórios de apoio logístico e operacional, quando a operação transcende a capacidade policial. Vou dar um exemplo ao senhor. Nós temos usados os navios da esquadra, que afinal de contas é uma organização para o combate naval, em apoio à Polícia Federal, que não dispõe de navios. Então se precisamos mover um grupo da Polícia Federal para interceptar um navio mercante, que se supõe, ou sobre o qual se tenha notícia de que ele está trazendo algum contrabando, em particular de drogas, nós usamos os navios de combate, fazendo, portanto, o apoio operacional, no caso. O Exército tem feito apoio logístico à Polícia Federal de uma maneira imensa, muito grande na Amazônia e, eventualmente, mesmo o apoio operacional, dando retaguarda. O que eu quero dizer com isso é que a ação é policial, mas não se sabe a dimensão da reação que vai haver. O Exército provê uma segurança operacional para aquela operação policial. Isso tem acontecido na Amazônia. O que eu não aceito, professor, é a institucionalização do papel, como a razão de ser das Forças Armadas. Isso não é razoável, e eu acho até perigoso, porque quando se institucionaliza como correta a intromissão militar em atividades que não são essencialmente militares, nós estamos abrindo o caminho para a inserção das Forças Armadas na vida burocrática, administrativa e política do país, e isso não é bom. De modo que deixamos no limbo das ações eventuais, transitórias e de apoio. Se as coisas forem demasiado fortes, se viermos a ter a infelicidade de vir a acontecer nas nossas fronteiras, por exemplo, uma presença de narcotraficantes ou de produtores de droga, organizados, capazes de comprometer ou exceder radicalmente a capacidade policial, aí não há dúvida, tem que usar o Exército.

Roberto Godoy: Ministro, o senhor levantou a questão operacional, os sucessivos cortes orçamentários que os ministérios vêm sofrendo fazem com que o senhor tenha semanas de operações navais, a Força Aérea tenha alguns dias de operações aéreas, e com que o Exército tenha transformado, por exemplo, a Brigada de Tabatinga, numa brigada vegetariana durante algumas semanas, porque não tinha dinheiro para comprar carne. No recente episódio daquela questão de fronteira com a Venezuela [em 16 de janeiro de 1992, um helicóptero da Guarda Nacional da Venezuela abateu a tiros um avião monomotor brasileiro com três garimpeiros brasileiros a bordo. O avião sobrevoava o território venezuelano a fim de jogar alimentos e combustível para os garimpeiros brasileiros que lá trabalham. Dois dos garimpeiros morreram, causando um atrito diplomático entre Brasil e Venezuela], violação do espaço aéreo, aquela coisa toda, surgiu um impasse muito grande. A Força Aérea e o Exército, por exemplo, dispunham de planos prontos e até recursos para atuar de alguma forma ali. No entanto foi admitido claramente que não havia recursos para um deslocamento como a situação exigia. Isso tudo combinado com o fato de que os salários realmente estão achatados não faz com que, primeiro, haja uma grande desmotivação? Segundo, não cria uma situação de risco? É como se a gente tivesse uma polícia sem gasolina, ou coisa desse tipo, ou com todos os cadeados da nação relativamente enferrujados. A gente não está em risco?

Almirante Mário Flores: Cria situação de risco. Felizmente as hipóteses de ameaças são ainda diminutas, mas existe o risco. O senhor levantou uma nova questão do problema, que se relaciona com a do jornalista Ricardo Setti. É o problema do para quê e do porquê das Forças Armadas, a questão orçamentária das Forças Armadas. É lógico que são questões vinculadas uma com a outra.

Roberto Godoy: Agora, os ministérios civis esperneiam, os militares não esperneiam, e às vezes conseguem alguma coisa.

Almirante Mário Flores: Os militares são comportados, ao contrário do que muitos dos senhores certamente pensam, nós somos comportados.

[risos]

Jorge Escosteguy: Ou só esperneiam uma vez, ministro, definitivamente.

Almirante Mário Flores: Quando é para espernear, aí esperneamos para valer.

Roberto Godoy: E às vezes o espernear é para o final.

Almirante Mário Flores: Mas os nossos orçamentos são hoje diminutos, em quaisquer termos, quaisquer parâmetros que o senhor usar para raciocinar com eles. Vamos considerar – Orçamento Geral da União. Nós estamos, os três ministérios juntos, com cerca de 3,5% do Orçamento Geral da União. O menor é o do Exército, incrível. O maior é o da Aeronáutica, mas é uma visão incorreta do problema, porque a Aeronáutica tem uma carga imensa no seu orçamento, na questão de segurança do transporte aéreo. Toda essa infraestrutura aeroportuária e de segurança de vôo custa caro, bem mais caro do que custa à Marinha a segurança da navegação que também é nossa, a navegação aquaviária. Então, o Exército é o que menos tem: no corrente ano, perto de 1,03% do Orçamento Geral da União. A Marinha, um pouquinho mais, e a Aeronáutica, 1,3%. A soma dá 3,5%. Isso se nós compararmos com... Escolha um país típico, seja na América do Sul, seja da grande potência e seja de regiões que efetivamente têm que gastar mais, é até razoável que gaste mais, como o Oriente Médio. É muito pequena a nossa participação no Orçamento Geral da União. Eu chamo a atenção do senhor para isso, porque é muito comum o senhor ouvir, e eu tenho ouvido, tem tido debate sobre isso, de que nós somos um fator prejudicial ao atendimento das questões sociais do Brasil. E eu sempre menciono que, se hoje, por um passe de mágica, cessasse a existência do Ministério da Marinha, incluindo-se aí as nossas atividades de apoio à segurança da navegação, controle da marinha mercante em relação à segurança dos navios etc, e toda a parte militar propriamente dita da Marinha, nós teríamos um ponto qualquer coisa por cento para distribuir para a ação social fazer casa, saúde, atender a população, educação, para dar instrução ao povo. É desprezível o que nós pesamos. Se o senhor comparar em termos, usar como parâmetro o Produto Interno Bruto, nós estamos na ordem de 0,4% do PIB para gastos de defesa. E isso veio numa curva descendente. É óbvio que eu não afirmo que estaria correto o que aconteceu nos anos 50 e voltou a acontecer no início dos 70. Foram piques altos de participação militar no Orçamento da União e no PIB nacional. Talvez o que houve naquela época fosse excessivo, mas o que existe hoje é perigosamente pouco. A questão operacional a que o senhor se referiu é verdade. Nós estamos fazendo restrições e a Aeronáutica é quem mais sente, por uma razão simples: a capacitação da Força Aérea depende muito do treinamento humano. Então eles têm que voar e não estão voando o suficiente. Os aviões do tipo auxiliar ainda voam satisfatoriamente, ainda se tem pilotos satisfatoriamente treinados em C-130 [avião com quatro turbo propulsores, capaz de aterrar ou decolar em pistas pequenas ou improvisadas, é utilizado pelas Forças Armadas de vários países para o transporte de tropas e carga], em Búfalo [avião de transporte da Força Aérea Brasileira, utilizado desde a década de 1960, principalmente pelos militares dos Pelotões Especiais de Fronteira do Exército. O último vôo da aeronave aconteceu no dia 31 de março de 2008, em Manaus (AM)], no grupo de transportes especiais, enfim, nesse tipo de avião. Mas quando o senhor vai à aviação estratégica, à aviação tipo Mirage [caça supersônico francês construído na década de 1950, foi adquirido pelas Forças Aéreas de vários países] ou F-5 [denominado Northrop F-5E Tiger, é um caça tático de defesa aérea e ataque ao solo, bastante manobrável e rápido, utilizado principalmente em combates aéreos], já não acontece a mesma coisa. Voa-se muito pouco nesses aviões, e isso é perigoso. É perigoso em dois sentidos: é perigoso porque é perigoso mesmo, a pessoa pode cometer erros, e perigoso porque deixa o piloto sem ter o que fazer, a fofocar salário nos cassinos.

[risos]

Jorge Escosteguy: Ministro, nós ainda voltaremos nesse assunto, o Tamer tem uma pergunta, mas primeiro nós vamos fazer um rápido intervalo. O Roda Viva volta daqui a pouco entrevistando hoje o ministro da marinha, o almirante Mário César Flores.

[intervalo]                                                                                                                                   

Jorge Escosteguy: Voltamos com o Roda Viva que hoje está entrevistando o ministro da Marinha, almirante Mário Cesar Flores. Ministro, no primeiro bloco, o senhor disse com todas as letras que o povo está arrochado no salário. Como é essa conversa ou essa discussão, para o senhor como ministro, com acesso ao presidente da República, no seio do governo? Quando o senhor conversa com o presidente da República e conversa sobre a questão salarial dos militares, por exemplo, como é encarada essa questão do povo arrochado no salário.

Almirante Mário Flores: Bom, eu tenho conversas e tenho acesso para tratar do assunto sob a perspectiva do serviço público. A questão do empresariado privado e do assalariado das empresas privadas, embora eu reconheça que também não esteja bem, pelo contrário, foge à minha capacidade de atuação. No que concerne ao serviço público, há uma sensibilidade grande do presidente para isso. Acontece, e todos os que acompanham os acontecimentos nacionais percebem isso, que a preocupação fundamental, que é o controle da inflação, induz à necessidade de que o Tesouro Nacional não gaste mais do que arrecade. E como a receita, em decorrência do próprio mecanismo de combate à inflação que foi adotado por este governo, que passa pela recessão, caiu; além do mais, nós estamos tendo quedas na receita, em decorrência de ações judiciais que permitem às empresas não recolherem determinados impostos, o principalmente deles é o fim social, nós temos uma receita pequena, reduzida, e por isso é difícil prover melhores salários aos servidores públicos. Faz-se o que é possível. Essa recente decisão do presidente da República de anotar esse aumento de 30% em 1º de abril, 25 e 25, em 1º de maio e 1º de junho, foi uma decisão do próprio presidente, discordando da posição matematicamente correta do setor econômico do governo e responsáveis, portanto, pelo Tesouro Nacional. Então há aí um conflito entre o reconhecimento de uma necessidade de melhores salários e o reconhecimento de que não tem com o que pagar melhores salários. Então os aumentos salariais não serão grandes, não haverá aumentos reais ponderáveis, enquanto nós não tivermos uma retomada do crescimento econômico, que permita uma receita melhor. E aí seguramente haverá isso.

Jorge Escosteguy: No primeiro bloco, o senhor também falou um pouco de corrupção, quando lhe fizeram a pergunta sobre o Peru, por exemplo; um pouco, passou-se por essa questão quando se falou no parlamentarismo, na questão de preenchimento de cargos etc. O telespectador Vanderlei Soares da Silva, de Campinas, telefonou e perguntou: o que o senhor acha da corrupção no Brasil?

Almirante Mário Flores: Eu acho que a corrupção é uma componente da natureza humana. Ela sempre existiu e não creio que ela cessará. O que acontece hoje – assim penso eu, eu não tenho me dedicado com profundidade a esse tema – é que ela é muito mais ventilada à opinião pública pela imprensa em geral. Não é muito diferente do que ocorria no passado, ela é muito mais conhecida e evidentemente num cenário como o que nós estamos vivendo de contrariedade social, porque estamos todos vivendo com apertos, ela gera uma animosidade muito mais forte. Mas não me parece que ela seja anormal em termos mundiais. E quando a gente lê a respeito do que acontece no riquíssimo Japão, o que acontece nos Estados Unidos, o que acontece em nossos vizinhos, nós vemos que não somos muito diferentes, somos semelhantes. Corrupção é um problema das falhas da natureza humana, cuja correção será, se houver, lenta e jamais perfeita.

Jorge Escosteguy: O senhor diria que isso é uma espécie de consolo?

Almirante Mário Flores: Não, não é não. Eu lamento muito, mas é a verdade. Nem sempre a gente pode trabalhar apenas com a utopia, a realidade se impõe.

Jorge Escosteguy: Antes de passar ao Tamer – desculpe, professor – gostaria de lembrar ao telespectador Nelson Dutra, de Espírito Santo do Pinhal, que o ministro já respondeu sobre a questão do deputado Bolsonaro. Por favor, Tamer.

Alberto Tamer: Ministro, eu tenho duas perguntas que se casam. A primeira pergunta, acompanhando o seu raciocínio do fim do primeiro bloco, em que o senhor disse que realmente o ministério está com poucos recursos. Então como é que o senhor explica que o Ministério da Marinha, por exemplo, esteja destinando uma grande parte de dinheiro, uma estimativa de 350 milhões de dólares para produzir um reator nuclear para fabricar um submarino atômico, num país, onde o senhor admite que a situação é dramática, que não há dinheiro, não tem nada, que a situação é difícil. Nós vamos produzir um reator nuclear para depois fabricar um submarino atômico. E a idéia é fazer um outro. Há uma estimativa de 350 a quinhentos milhões de dólares só na pesquisa do primeiro reator. E o segundo, o senhor não acha que seria lógico, então, já que não há dinheiro, primeiro não fazer essa pesquisa, ou deixar para outros fazerem, não a Marinha? Por que a Marinha? E segundo, por que não diminuir o contingente da Marinha que é de 64 mil pessoas, me parece. Reduzir o número e poder pagar mais aos que ficam.

Jorge Escosteguy: Ministro, desculpe, só para complementar, alguns telespectadores telefonaram levantando as mesmas questões. Wilson Roberto Martins, aqui de São Paulo, pergunta se, na atual conjuntura, se justifica o projeto de um submarino nuclear? O Luiz Carlos, aqui de São Paulo, também pergunta se o projeto nuclear brasileiro irá atingir só o submarino ou há outros planos? E quanto à segunda questão do Tamer, o Alexandre Colela, aqui de São Paulo, também pergunta se em vez de aumentar os salários, por que não reduzir o efetivo das Forças Armadas?

Almirante Mário Flores: Vamos pela segunda pergunta que é mais fácil. Se isso fosse viável, tão facilmente quanto imagina quem não conhece o problema, já teria sido feito. Nós estamos reduzindo os efetivos, mas a redução dos efetivos é lenta. Desde o início do atual governo, na Marinha, nós reduzimos cerca de dois mil militares. Estamos atualmente com cerca de 57 mil militares. Nós poderíamos reduzir um número ponderável, da ordem de cinco mil, se pudéssemos ter civis. E desejamos fazer essa troca. Trocar todo o apoio técnico que hoje é dado por militares, fazê-lo por civis. Infelizmente nós temos uma legislação que regula os servidores públicos civis da União, que impossibilita isso. Essa Lei do Regime Jurídico Único, sancionada em dezembro de 1990, inibe o uso, dificulta o uso de civis nos lugares onde nós desejaríamos ter civis. Toda a questão de indústria naval, manutenção, reparos de equipamentos, sejam estruturais, máquinas eletrônicas etc, o ideal é que seja civil. E por que é que o ideal seja civil? É porque ele é estável, o militar é inerentemente móvel, tem que mudar de comissão para a sua carreira. Já no caso do civil, nós podemos treinar um jovem engenheiro, ou um jovem técnico, e ele passar a vida fazendo um certo tipo de trabalho, ascendendo ao longo dos níveis da carreira do funcionalismo civil, mas trabalhando no mesmo lugar. Então, eu diria ao senhor que nós poderíamos reduzir substancialmente os militares se pudéssemos ter a flexibilidade de contratar civis, o que não existe. A Força Aérea está no mesmo caso, deseja reduzir os seus militares, deseja reduzir da ordem de sete mil militares. É possível fazê-lo e não consegue, porque não consegue um mecanismo de admissão de civis. Então essa idéia de reduzir efetivos é um tanto simplória, sem conhecer em profundidade o problema. Com relação à questão nuclear, essa questão é bastante mais complexa do que aparentemente se coloca pela sua pergunta. Nós imaginamos, ainda nos anos 70, de que conviria ao Brasil, que tem uma dimensão marítima muito grande, dispor de uma unidade como é o submarino de propulsão nuclear. Não se trata de um submarino de estratégia ou como arma nuclear; não tem nada a ver uma coisa com a outra. Apenas a máquina propulsora, em vez de ser um diesel e bateria, seria a máquina nuclear. E que isso não viria por outro caminho, que não fosse por esforço próprio, porque nenhum país do mundo nos ajudaria a chegar a essa arma, porque é evidentemente uma arma que nos fortalece diante dos fortes. Bom, chegamos à conclusão de que precisaríamos fazer um esforço próprio, e isso começou no ano de 1979, 1980 na verdade, na prática. Mas já no ano de 1979 a primeira montagem. Isso vem sendo feito, a parte laboratorial toda, aqui no Ipem [Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares], na USP. E com o correr do tempo, na medida em que houve sucesso laboratorial, chegou a hora de se transformar isso em dimensão de pequena indústria, uma pequena dimensão industrial, e foi escolhida, então, a região de Iperó [estado de São Paulo], onde temos o nosso centro experimental [Centro Experimental Aramar]. Esse desenvolvimento em curso é, por enquanto, desenvolvimento de tecnologia nuclear, que terá, no pensar da Marinha como um produto, a propulsão naval nuclear. Mas ele é útil ao país de uma maneira larga; é fundamentalmente um programa que permite a geração de energia. Se a geração de energia vai ser energia elétrica para consumo do povo em geral ou se vai ser para virar uma hélice de navio, isso no fundo é a mesma coisa, é geração de energia. Então o nosso desenvolvimento tecnológico nuclear, independente do submarino de propulsão nuclear, é um grande aporte para o desenvolvimento tecnológico brasileiro. A questão do custo, à que o senhor se referiu, de 1979 até recentemente, até alguns dias atrás, porque este programa é um dos programas do serviço público brasileiro melhor montado em termos de controle gerencial, eu diria que é o melhor montado, portanto eu tenho condições de saber na véspera, até a véspera quanto se gastou nesse programa. Nós gastamos algo da ordem de quinhentos milhões de dólares com tudo o que foi feito. Isso significa que chegamos à produção, à transformação do yellowcake [material composto de urânio, já livre de impurezas, que serve para fins de produção de energia nuclear, obtendo-se, nesse processo entre 70 % e 80 % de urânio puro], que já se fazia, em hexafluoreto de urânio, o beneficiamento do hexafluoreto de urânio para ser enriquecido. O enriquecimento, que é o grande passo, um passo que ninguém nos forneceria no mundo, conseguimos, está dominado, é uma questão apenas de ampliação. Tanto faz para usar num pequeno reator de propulsão naval como num grande reator de geração de energia elétrica. Temos já a tecnologia da reconversão desse urânio enriquecido para transformar no combustível a ser posto no reator, e estamos desenvolvendo a tecnologia do reator propriamente dito e dos seus apêndices: as máquinas que são trabalhadas pelo calor gerado no reator. Isso tudo está ainda em desenvolvimento, é uma questão importante para o país, não é muito, o senhor vê que são quinhentos milhões de dólares em 11 anos, provavelmente teremos mais uns quatrocentos milhões de dólares para chegarmos à dimensão industrial, à dimensão de uma pequena indústria, não é exatamente uma grande indústria ...

Alberto Tamer: [interrompendo] O senhor me perdoe, mas com novecentos milhões de dólares o senhor terminaria Angra II [usinas nucleares do Brasil], que pode gerar 1, 2 milhão kilowatts...

Almirante Mário Flores: [interrompendo] Eu não, porque eu não tenho nada a ver com Angra II.

Alberto Tamer: Mas o senhor está afirmando que o reator também é para gerar energia. Para gerar energia, nós já temos Angra II parada por falta de dinheiro, há 11 anos. Ela vai custar uma fortuna, porque está parada por falta de dinheiro, de cruzeiros.

Almirante Mário Flores: Isso é muito controvertido, mas em minha opinião conviria terminar Angra II. Mas não é por causa do programa nuclear conduzido pela Marinha com a CNEN [Comissão Nacional de Energia Nuclear] que não se conclui Angra II.

Alberto Tamer: O que eu quero dizer é que o programa nuclear da Marinha, no que diz respeito à geração de energia, vem se contrapor ao esforço e geração de energia elétrica que se pretende com...

Almirante Mário Flores: [interrompendo] Não, senhor. O programa de Angra II é um programa estrangeiro. Para alimentar o reator de Angra II, como o de Angra I, é o urânio importado, condicionado...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] É uma caixa-preta.

Almirante Mário Flores: É a caixa-preta. Condicionado [o urânio] a todas as regras de ressalvas. O que nós estamos desenvolvendo é Brasil independente. Então não tem nada a ver uma coisa com a outra. O programa de Angra II é um acordo com a Alemanha. O programa em que nós estamos envolvidos é um programa próprio, de tecnologia própria, que nos permitirá dominar, já dominamos o ciclo do combustível, e é uma questão apenas financeira de dispor de recursos para ampliá-lo. Poderemos ter futuramente usinas de produção de energia elétrica com a tecnologia que nós desenvolvemos pensando no submarino. Então, Angra II, tudo bem, também acho que deva ser terminada. É uma questão aí que os técnicos em eletricidade discutem muito: se seria melhor investir os recursos aplicados para terminá-la em hidroelétricas. Enfim, isso aí é uma coisa que não me diz respeito, nem eu conheço o assunto para discuti-lo. Mas suponha que termine Angra II, é uma usina de tecnologia estrangeira, caixa-preta, que não dominamos, que pouco sabemos sobre ela e cujo combustível depende do estrangeiro.

Alberto Tamer: Mas, ministro, o senhor me perdoe por voltar ao assunto. Se cada país que fosse instalar usina nuclear no mundo, quisesse também criar o seu, enriquecer o seu urânio, se cada país fosse fazer isso, nós teríamos uma situação insustentável. Então cada país, vamos supor, a Argentina, vamos supor o Chile, vamos supor a própria Áustria, a própria Alemanha, quem seja. Se cada país que fosse instalar uma usina nuclear para gerar energia, fosse gastar quase que o equivalente ao preço da usina para enriquecer o seu combustível, estaríamos diante de uma situação economicamente insustentável, seria tecnicamente e economicamente inviável.

Almirante Mário Flores: Mas a sua idéia tem um vício: de que se constrói uma usina, na qual gastou-se um bilhão, sei lá, quantos dólares. Mas deve-se considerar que a tecnologia nuclear se estenderá por cinquenta anos, cem anos de produção de urânio enriquecido para o que vier a ser construído e não apenas para aquela usina. Agora o senhor mencionou “se cada país”. A Argentina domina o ciclo do combustível e tem...

Alberto Tamer: [interrompendo] A Argentina e alguns poucos países.

Almirante Mário Flores: Mas vamos ver os que têm usinas nucleares. A Argentina tem e domina o ciclo, os Estados Unidos tem, Rússia tem, a União Soviética, enfim, seja lá o que for; o Japão tem, domina toda a tecnologia nuclear. A Europa, o senhor mencionou a Áustria, realmente não tem, mas tem a Europa unificada, tem a tecnologia. Então a Europa funciona como uma unidade, o Euratom funciona como uma unidade. Então é uma área tecnológica, em que o repasse de conhecimentos é muito controlado, não nos repassarão.

Alberto Tamer: Mas o senhor não acha que num país pobre como o Brasil, com tantas dificuldades – na área social, na educação, na saúde, com hospital parado, sem escola, sem nada – um país realmente numa situação dramática, nós não poderíamos deixar um pouquinho de lado essa questão da busca de enriquecimento do urânio, para cuidar de algo um pouco mais concreto, e na própria Marinha, da própria Marinha?

Almirante Mário Flores: Eu acho que não há nada tão concreto quanto buscar tecnologia nacional.

Alberto Tamer: De urânio?

Almirante Mário Flores: Nuclear é um, mas não é o único. O país não será um país cuja sociedade seja feliz e rica sem tecnologia. É fundamental dominar a tecnologia.

José Paulo Kupfer: Ministro, acabamos de entregar, por exemplo, a tecnologia que começava a ser desenvolvida na área do chip, da microeletrônica. Isso foi aberto, isso acabou. As empresas não vão mais colocar dinheiro na pesquisa desses elementos. Essa também é uma questão tecnológica séria, de domínio de algo que é importante e vai ser mais importante ainda, e nós abrimos mão com o fim casto e prático da própria reserva de mercado na área da informática, especialmente nessa área da microeletrônica. Foi definido que o Brasil não tinha vantagens competitivas e que, portanto, iria comprar de outros lugares que fazem isso a preços mais baixos.

Alberto Tamer: Mas porque é mais barato comprar.

José Paulo Kupfer: E é a alma de todo o desenvolvimento tecnológico dos computadores, enfim, das coisas todas que ele pode gerar de produção. Por que também não se fixou esse aspecto como fundamental, que eu entendo como o senhor, que seja para o nosso desenvolvimento, independente de tecnologias de ponta fundamentais para os próximos períodos?

Almirante Mário Flores: Pessoalmente eu acho também que não é bom para o futuro do país nós deixarmos de ganhar terreno nessa área de tecnologia de ponta na área da informática. Não há dúvida de que seria bom que também tivéssemos investimentos nessa área. E nada proíbe que se tenha. O senhor mencionou que para o fim da reserva de mercado, se processou essa possibilidade.

José Paulo Kupfer: As empresas que estavam com altos investimentos em pesquisas nessa área desistiram. Tacitamente estão fazendo joint ventures [modelo estratégico de parceria empresarial para alcançar objetivos comuns, em que há união legal entre duas empresas sem que haja necessariamente subordinação societária] para importação, sem domínio da técnica de produção, na aceitação de que – como o Tamer estava falando – é uma especialização em ordem mundial e que não nos cabe. Seria muito caro, custoso, etc e tal, produzir o chip, ou seja, inventar a roda que já está inventada em outro lugar. Isso é muito discutível, como eu acho também...

Almirante Mário Flores: [interrompendo] Bom, mas é uma roda que nos vendem, e a nuclear não nos vendem.

José Paulo Kupfer: Sim.

Almirante Mário Flores: A roda inventada nuclear não nos vendem.

José Paulo Kupfer: Vendem bem fechadinha com o controle lá, enfim, austríaco.

Almirante Mário Flores: Tudo bem, fechadinha, mas não dominamos nada.

José Paulo Kupfer: Eu queria fazer uma pergunta, uma curiosidade.

Almirante Mário Flores: Eu só queria completar, por favor, um momentinho. Eu entendo que o doutor Tamer deseja que o Brasil volte a ser o país agrário do fim do Império, quer dizer, é isso.

Alberto Tamer: Não, não, de longe. O que eu quero dizer, ministro, é o seguinte: é que há uma escala de prioridades dentro até das próprias Forças Armadas, dentro da Marinha.

Almirante Mário Flores: Na Marinha a maior é a produção naval.

Alberto Tamer: No momento em que o senhor reconhece que não há recursos, admite que a situação é delicada, nós estamos numa situação delicada; no momento em que nós estamos neste quadro em que os senhores estão sem navio, sem nada, os senhores destinarem quase um bilhão de dólares para buscar a tecnologia do urânio que, agora com o fim da Guerra Fria, vai mudar de teor, gastar todo esse dinheiro para enriquecer o urânio, descobrir um processo que já foi descoberto há muitos e muitos anos, estamos aqui gastando um bilhão para descobrir um processo que já foi descoberto.

Almirante Mário Flores: [interrompendo] E quem descobriu antes nos venderia esse processo? Sim, mas quem nos venderia? O [...] nos venderia esse processo.

Alberto Tamer: Mas qual é a necessidade que nós temos neste momento, nesta circunstância?

Almirante Mário Flores: É a única forma de o senhor ter a liberdade de usar aquilo.

Alberto Tamer: Mas dentro das prioridades econômicas e sociais, ministro.

Jorge Escosteguy: Desculpe, Tamer, posso...

Alberto Tamer: Aí é que eu me coloco o problema. Temos uma escala de prioridades econômicas e sociais.

Almirante Mário Flores: Quanto à questão do custo, nós tivemos quinhentos milhões de dólares em 11 anos, o que dá cinquenta milhões de dólares por ano, nem isso. Agora, o que significa um bilhão em vinte anos?

Jorge Escosteguy: Vou tentar fazer uma conclusão da polêmica. Em suma, o ministro acha que é importante investir nessa tecnologia, e o Tamer acha que não é importante. Então estamos esclarecidos, e eu gostaria de passar para mais uma pergunta.

Alberto Tamer: Não é prioritário. Importante é. É importante, mas não é prioritário na conjuntura atual.

Jorge Escosteguy: Não é prioritário! Está corrigido. O Tamer acha que não é prioritário, o ministro acredita que sim. O Fernando Jordão tem outra pergunta.

Fernando Pacheco Jordão: Ministro, eu queria fazer uma pergunta que é praticamente uma virada na entrevista, fugindo desse assunto, e fugindo do futuro, indo para o passado recente, para a história do Brasil, na verdade. A revista Isto É desta semana publica uma entrevista do general Dilermando [Gomes] Monteiro, que foi comandante do 2° Exército aqui em São Paulo numa época crítica do governo Geisel [1974-1979]. Assumiu logo depois de dois assassinatos aqui no DOI-Codi, de São Paulo. E o general Dilermando, nessa entrevista, diz que o DOI-Codi era uma unidade fora de controle do comando. E ele usa a expressão que era um cancrozinho dentro da organização. A Marinha também teve o seu correspondente do DOI-Codi que foi o Cenimar [Centro de Informações de Segurança Interna].

Almirante Mário Flores: Não são exatamente as mesmas coisas. O DOI-Codi era uma agência operacional.

Fernando Pacheco Jordão: Eu só queria concluir o seguinte : o senhor diria, usaria o mesmo termo, “um cancrozinho”, [para referir-se a]o Cenimar dentro da Marinha?

Almirante Mário Flores: Não.

Fernando Pacheco Jordão: E o que é feito do Cenimar hoje?

Almirante Mário Flores: Ele foi revisto e hoje deixou de ser um Centro de Informações de Segurança Interna e passou a ser um Centro de Manipulação de Inteligência, de informações que se recebem de questões internas, que dizem respeito à Marinha, exclusivamente. O que eu chamaria de diz respeito à Marinha? A Marinha tem responsabilidade na questão marítima; então, há portos, marinha mercante, esse tipo de coisa, e externas. Está tudo junto agora. O Centro de Inteligência da Marinha uniu externa e interna, ou interna nessa nova dimensão. Agora, com relação à história, eu não conheço bem esse problema. Na verdade nessa época dos anos 70, eu acho que eu era chofer de navio, não tinha muito a ver com esse tipo de assunto e muito pouco conhecia dele. Para lhe mostrar, é uma ilusão que existe nas pessoas que não conhecem bem o funcionamento das Forças Armadas pensar que a questão interna era prevalecente na cabeça de todos os militares. Não era, decididamente não era. Eu vou lhe dizer um exemplo. Eu cheguei a capitão de mar e guerra, relativamente antigo, comandando uma base naval em Salvador, quando fui chamado pelo almirante local para substituí-lo, porque ele ia se ausentar de férias, ou qualquer coisa assim, e eu era o seguinte. E quando ele me passou as coisas lá do gabinete dele, apontou para um telefone e disse: “Aquele fala direto com o DOI”. Eu disse: “o quê? Com quem?” Ele disse: “Com o DOI”. Eu disse: “que DOI”? Ora, eu estou apenas mencionando isso para mostrar ao senhor que não havia uma obsessão com esse problema nas Forças Armadas. Era um segmento das Forças Armadas que estava bastante envolvido com esse tipo de problema. Isso mudou muito, deixou... o clima que permitia isso cessou inteiramente, e hoje as coisas estão em outros rumos, estão em outro leito. O da Marinha eu conheço bem, o Centro de Inteligência da Marinha funciona bem, é até eficiente, como um manipulador ou um digestor de inteligência.

Fernando Pacheco Jordão: Agora, o general Dilermando disse também que ele acha hoje que foi um terrível equívoco as Forças Armadas terem assumido esse papel na época do regime militar. O senhor concorda com isso?

Almirante Mário Flores: Olhe, julgar o passado sem estar vivendo a época é um alto risco.

Fernando Pacheco Jordão: Ele viveu como comandante.

Almirante Mário Flores: Portanto ele tem direito de dizer isso. Eu francamente não tenho. Não vivi, o general era quatro estrelas e eu era coronel, era capitão de mar e guerra nesta época, a época à que ele se refere quando ele substituiu aquele comandante do 2º Exército aqui. Deve ter as razões. Eu acho que aconteceu algo que foi prejudicial às Forças Armadas, que foi a existência de um sistema paralelo. Esse sistema paralelo fundamentado no sistema de informações e nos órgãos operacionais que apoiavam esse sistema adquiriu uma inércia própria. E essa inércia, mais dia, menos dia, entraria em conflito com a hierarquia formal das Forças Armadas. Aparentemente isso ocorreu, eu me recordo, apenas cito como exemplo, se isso não teria a ver, por exemplo, com aquele evento entre o presidente Geisel e o general, o ministro da Guerra, o Silvio Frota [Ernesto Geisel demitiu o general Sílvio Frota, isolando o grupo de militares que se colocavam contra o processo de abertura política, que o presidente vinha empreendendo em sua gestão]. É um conflito entre a hierarquia formal e a hierarquia dos sistemas paralelos. Isso evidentemente é ruim, é deletério para as Forças Armadas, e eu não aceito. Mas é preciso para julgar o quanto isso foi prejudicial, estar na época vivendo o quanto se percebia como necessário; se era real a percepção, a história vai discutir um bocado. Mas o fato é que havia a percepção dessa necessidade nos anos 60.

José Arbex: Por que não fazer o julgamento, ministro? Por que não levar a julgamento os responsáveis? Por exemplo, o capitão Rodrigo [Aparecido Laertes Calandra, cuja identidade era desconhecida, na época, pelos presos, era conhecido como capitão Ubirajara. Foi o responsável por várias atrocidades contra os presos políticos e até mesmo contra parentes destes, como por exemplo, o estupro de várias mulheres] que deu uma entrevista para a Isto É, foi capa, inclusive da Isto É, que disse: “Eu interroguei Vladimir Herzog, que foi executado no DOI-Codi, no 2° Exército”. Por que não apurar os fatos?

Almirante Mário Flores: [interrompendo] Eu não sei quem é. É capitão do Exército?

José Arbex: Não, ele era do DOI-Codi. O codinome dele era capitão Rodrigo. Por que não apurar os responsáveis daquela época? Levar a julgamento? Punir?

Almirante Mário Flores: Mas eu tenho a impressão de que há uma lei que anistiou a todos.

José Arbex: Sim, mas há reivindicações também da sociedade, dos órgãos democráticos.

Almirante Mário Flores: Mas há?

José Arbex: Claro que há.

Almirante Mário Flores: Eu não estou vendo muito entusiasmo da sociedade em relação a isso.

José Arbex: E o senhor acha saudável o fato de não haver entusiasmo?

Almirante Mário Flores: O senhor, por exemplo, eu já senti que está entusiasmado com o problema. Mas será que o senhor é representativo dos 150 milhões de brasileiros? Estarão interessados nesse problema, em tirar cinzas e reavivar fogos que estão extintos? Será que isso existe na sociedade brasileira?

José Arbex: Eu acho que o próprio Estado reconhece que existe, quando abre os arquivos do Dops e se dispõe a vasculhar os arquivos.

Almirante Mário Flores: Isso é bom até para que se escreva a história, mas reavivar cinzas... Qual é o efeito construtivo que isso terá? Eu aí me ponho na condição de perguntador: que efeito construtivo isso terá para a situação brasileira? O que isso produzirá de efeitos positivos para melhorar a situação da pobreza brasileira, da miséria brasileira?

José Arbex: Então eu me coloco na condição de respondedor e digo que não sei se são cinzas, eu não sei se a democratização chegou de fato às Forças Armadas, eu não sei se não há bolsões que atuaram no passado e continuam intactos no presente e que podem produzir situações como as do Peru, por exemplo.

Almirante Mário Flores: Eu acho que é improvável isso, porque na dinâmica das Forças Armadas há uma sucessão geracional. Os que estiveram envolvidos nisso, com autoridade, não estão mais em serviço ativo. Não existe mais.

Jorge Escosteguy: Ministro, antes de passar... Desculpe, o senhor pode terminar, por favor.

Almirante Mário Flores: Não é que não exista ainda em serviço ativo alguém que esteve envolvido nesse tipo de problema, mas não com autoridade e comando. Esses já estão todos na reserva. Essa possibilidade de bolsões, de recrudescimento desse tipo de mentalidade, é muito improvável, até porque prevalece nas Forças Armadas, sem dúvida alguma, uma opinião contrária a isso.

Jorge Escosteguy: [pequeno corte no vídeo] Tem o Fernando Machado, também de São Paulo, sobre a questão do deputado Bolsonaro. Roberto Godoy, por favor, depois o professor Cavagnari.

Roberto Godoy: Apanhando aqui um gancho das questões colocadas pelo Tamer e pelo Fernando Pacheco Jordão, queria fazer duas perguntas ao senhor. Primeiro, a sociedade já sente os efeitos multiplicadores da aquisição dessa tecnologia nuclear? E segundo, o senhor disse que quando assumiu o comando em Salvador, disseram ao senhor que havia um telefone que falava direto no DOI-Codi. O senhor usou esse telefone?

Almirante Mário Flores: Não, nunca precisei usar. [risos] Eu acho que não usaria.

[...]: O senhor nem usou para ver quem atendia?

[sobreposição de vozes]

Almirante Mário Flores: Francamente, não tive a curiosidade.

Jorge Escosteguy: Nem para ouvir o barulho do outro lado, ministro?

Almirante Mário Flores: Nem para saber quem responderia do outro lado. Mas de fato, não tive necessidade e tenho a impressão de que se houvesse algum problema, eu ia ficar muito embaraçado em usá-lo, porque eu não saberia o que fazer. Com relação a sua outra pergunta, já existe um reflexo muito grande que não é o objetivo direto de geração de energia.

Roberto Godoy: Em que áreas, por exemplo?

Almirante Mário Flores: Mas é o desenvolvimento da tecnologia na indústria. O sistema que nós adotamos para esse programa é um sistema compartilhado. Nós fazemos as concepções iniciais, os projetos básicos dos equipamentos e passamos à indústria privada. E isso gerou na indústria, sobretudo no estado de São Paulo, também em outros lugares, mas em particular no estado de São Paulo, um esforço de desenvolvimento tecnológico para responder às nossas necessidades. Eu não domino a técnica. Por exemplo, uma questão que eu me recordo de ouvir os técnicos falarem: o desenvolvimento da metalurgia da peça que roda na outra centrífuga que evidentemente sofre esforços muito grandes de força centrífuga e que precisa ter uma contextura metalúrgica muito perfeita. Foi um desenvolvimento feito numa indústria privada de São Paulo. O metal das válvulas por onde flui o hexafluoreto, que é extremamente corrosivo, foi um desenvolvimento tecnológico de indústria paulista, que tem reflexo na utilização civil. Tudo isso tem reflexo na utilização civil. Gostaria de mencionar outros exemplos, mas como eu disse, não sou técnico, não domino a tecnologia, e como temos um [técnico] presente, eu tenho medo de dizer alguma coisa que depois ele critique, por eu não saber a lição. [risos]

Geraldo Cavagnari Filho: Ministro, eu vou voltar novamente à questão do efetivo. Não me satisfez a sua resposta sobre a questão da redução da estrutura militar. Nós sabemos que temos que enxugar essa máquina, porque essa máquina é pesada, não é? Mesmo que se queira, mesmo que se retome o crescimento do país até uns 2% da participação militar no PIB, é óbvio que esses 2% não seriam suficientes para dar a essa estrutura atual uma capacidade operacional satisfatória. Então, há a necessidade de se enxugar a máquina. Mas o senhor me falou que já se iniciaram os cortes nas Forças Armadas, em cada força, no Exército, na Marinha e na Aeronáutica.

Almirante Mário Flores: Não, no Exército eu não sei. Eu sei da Marinha e da Aeronáutica.

Geraldo Cavagnari Filho: Da Marinha e da Aeronáutica. Dois mil homens sendo substituídos por civis. Mas nós não estamos enxugando a máquina, praticamente nós estamos mantendo a mesma estrutura, porque são duas estruturas que nós temos que enxugar. Eu não vou dizer que a Marinha tem que enxugar a estrutura operacional, eu creio que a Marinha e a Aeronáutica estão mais alocadas em estrutura administrativa. Mas o Exército, por exemplo, tem mais de trinta brigadas, quando nós temos uma região toda que está em processo de estabilização estratégica em face de uma mentalidade de cooperação sul-americana. Então a força terrestre teria de passar por esse crivo para uma redução maior. Eu não vou fazer a pergunta para o senhor “vamos reduzir o Exército e não vamos deixar a Marinha e a Aeronáutica”. O que eu quero dizer é o seguinte. Eu acredito que os passos que estão sendo dados até agora não convencem. As medidas tomadas pelas três forças, ou pela Marinha e pela Aeronáutica, na questão de redução, não convencem que está se querendo mesmo tirar a gordura das Forças Armadas.

Almirante Mário Flores: Mas eu apreciaria muito tirar as gorduras, mas o gordo da Marinha sou só eu; a Marinha é magra, não tem o que tirar. Francamente eu tenho dificuldade e vou dar um exemplo ao senhor, professor. Nós tentamos – aí me refiro ao Ministério da Marinha – reduzir algumas coisas em termos de organizações, e é um inferno. Porque assim que o senhor diz que vai tirar uma capitania do porto do lugar "X", o prefeito, o deputado local, o governador chiam porque não querem que tire a capitania. Se o senhor diz que vai tirar aquela pequena unidade que faz a conscrição [alistamento dos homens obrigados ao serviço militar] do pessoal local, chovem cartas de pedidos para não fazê-lo. Não é muito fácil politicamente a redução. Eu tenho, por exemplo, uma questão, no momento – este programa vai a Santa Catarina? Espero que não, vou falar aqui de Santa Catarina – em que nós queremos liquidar com uma das duas capitanias de porto, a Laguna ou Imbituba, que ficam a trinta quilômetros uma da outra, é um absurdo haver as duas. As resistências locais das duas cidades são impressionantes. Eu agora oficiei ao governador, dizendo: “o problema é seu, uma das duas eu vou cortar. O senhor escolha aí qual é que o senhor quer que tire”.

[...]: Escolher uma terceira. [risos]

Almirante Mário Flores: Uma terceira não tem. Então, não é muito fácil essa redução. Agora, o senhor mencionou que nós temos reduzido dois mil homens, substituído por civis. Infelizmente, eu não substituí por civis, essa redução foi pura e simplesmente redução.

Geraldo Cavagnari Filho: Mas não pretendem com ...

Almirante Mário Flores: Para esses dois mil, não. Fundamentalmente é eliminação de concurso de entrada de oficiais nos quadros complementares e auxiliares femininos e redução de recrutas. Mas mesmo a redução de recrutas, professor, quando nós tiramos um município como tributário, o prefeito reclama com o governador para falar comigo para repor o município como tributário, porque ele quer que tenha serviço militar no município, porque é uma forma de emprego do garoto de 18 anos. Então, não é tão fácil assim essa redução.

Fernando Pacheco Jordão: Mas na hora em que houver uma política global das Forças Armadas, o senhor não acha que esse tipo de problema do varejo seria superado? Porque o senhor mencionou agora há pouco, por exemplo, que 78% do pessoal da Marinha está concentrado no Rio de Janeiro. O Exército também é fortemente concentrado em São Paulo, Rio, Brasília, nesse eixo centro, centro-sul. Não há também essa inadequação de distribuição geográfica das Forças Armadas?

[sobreposição de vozes]

Almirante Mário Flores: No caso da Marinha, é fácil de explicar.

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Um momentinho, desculpe, por favor. Tem um telespectador, o Daniel, de Vicente de Carvalho, no Guarujá, que perguntou justamente isto: por que as Forças Armadas não se concentram nas fronteiras do país em vez de se concentrar...

Almirante Mário Flores: [interrompendo] Concentrar porta-aviões na fronteira do Brasil seria um pouco difícil, mas com os submarinos também seria difícil.

[risos]

Alberto Tamer: Ministro, eu complemento com uma pergunta: e se unificasse, fizesse, como se pretende, o Ministério da Defesa, não seria mais econômico?

Almirante Mário Flores: Bom, eu acredito que a cúpula ia aumentar, simplesmente iria aumentar, como, aliás, aumentou nos Estados Unidos e aumentou na Argentina quando criaram o Ministério da Defesa.

Alberto Tamer: A cúpula! Mas o contingente?

Almirante Mário Flores: Poderia haver algumas reduções na área logística, por exemplo, hospitais. É provável que nós possamos integrar hospitais, serviços hospitalares. Escolas, provavelmente as escolas secundárias, nós poderíamos juntar. Evidentemente que quem vai fazer um curso secundário tanto faz fazer no Colégio Naval como na Escola do Exército, é a mesma coisa. Então poderíamos concentrar. Mas na parte operacional não há o que juntar.

Ricardo Setti: Ministro, com a perspectiva do parlamentarismo...

Alberto Tamer: [interrompendo] O senhor é contra, então, o Ministério da Defesa?

Almirante Mário Flores: Não, eu não sou contra o Ministério da Defesa em termos dogmáticos, pelo contrário, eu tenho declarado seguidamente à imprensa que o Ministério da Defesa é provavelmente o rumo do futuro, apenas o que nós não desejamos é atropelá-lo. Pensar que por um ato, por uma medida provisória, se cria um Ministério da Defesa, se cria o caos. De modo que é preciso primeiro, planejar e preparar para a criação do Ministério da Defesa, o que de certa forma já está em curso.

Jorge Escosteguy: Ministro, o Setti tinha uma observação sobre essa questão do Ministério da Defesa.

Ricardo Setti: Se o parlamentarismo for aprovado o ano que vem, ministro, é bem provável que tenha que se correr com essa questão, porque fica totalmente impraticável com o regime parlamentar ter quatro ministros militares, que não são parlamentares, não são eleitos.

Almirante Mário Flores: Com o parlamentarismo – eu me lembro que o senhor me perguntou sobre isso quando me entrevistou – o Ministério da Defesa tem uma razão de ser adicional: a conveniência de se ter um único ministro demissível com o gabinete. Teremos comandantes. Mas a pergunta do doutor Tamer, eu volto ao responder através do senhor: nós vamos ter comandantes gerais das forças que fazem o que fazem os ministros hoje. E teremos um ministro da Defesa em cima com toda uma entourage [meio social] própria. Então a cúpula seguramente aumentará. Eu não vejo possibilidade de diminuir as despesas. [Jorge Escosteguy tenta interrompê-lo] Dá tempo de responder para ele? É que alguém que telefonou falou sobre a questão de desconcentrar no Rio de Janeiro. Eu não tenho condições de julgar para o Exército, que aliás, eu acho que não está tão concentrado quanto se pensa. A Marinha é inviável, porque os navios se movem e vão para onde é necessário, mas o sistema de apoio está, e foi criado, e se desenvolveu no Rio de Janeiro. Para eu criar bases navais que façam o que o Rio de Janeiro faz é uma fortuna. O meu orçamento não dará durante muitos anos, para fazer novas bases navais capazes de dar apoio a submarinos, a torpedos, a mísseis em outros lugares que não o Rio de Janeiro. É muito difícil tirar do Rio de Janeiro. E não atrapalha o uso, porque navio é móvel.

Jorge Escosteguy: Ministro, nosso tempo está se esgotando, apenas duas últimas questões. Uma, se o senhor pudesse ser o mais breve possível. O senhor mencionou há pouco rapidamente a questão do serviço militar, eu lhe pergunto se o senhor defende a permanência sempre do serviço militar obrigatório.

Almirante Mário Flores: Olha, essa é uma das questões um tanto ilusórias, porque a Marinha vive praticamente do serviço militar voluntário, são as escolas de aprendiz de marinheiros. O recruta do serviço militar inicial é para nós um estorvo, um estorvo que nós engolimos praticamente como uma carga social. Nós temos como principal fonte de nossas praças – é óbvio que os oficiais todos são voluntários, ninguém faz concurso para as escolas obrigado – as escolas de aprendizes de marinheiros, que são voluntários, e uma grande demanda, quer dizer, uma grande oferta de gente para as vagas existentes. Com relação ao serviço militar como tese em si, eu acho que no Brasil é conveniente que se mantenha legalmente a obrigatoriedade. Na verdade, na prática, isso já não está ocorrendo, porque há cerca de um milhão de jovens que completam a condição, e cerca de cem mil, oitenta mil que são aproveitados. Então, na verdade nós não aproveitamos aqueles que não desejam. No fundo, já é um tanto voluntário. Mas pelo menos se mantém legalmente o direito de fazer com que o filho do rico também sirva se for conveniente ao país.

Jorge Escosteguy: Perfeito, apenas para encerrar então. O senhor comentou, eu lhe perguntei no primeiro bloco, se não me engano, se o Brasil tinha mudado em relação a 1964 ou os militares tinham mudado. O senhor disse que ambos mudaram. Eu gostaria que o senhor, para encerrar a entrevista, fosse um pouco mais explícito, e eu lhe daria dois exemplos aparentemente contraditórios. Recentemente nós vimos nos jornais o ex-guerrilheiro e hoje deputado José Genoíno, pedindo moderação e diálogo na questão dos salários dos militares. E o ex-deputado Márcio Moreira Alves, que deflagrou um processo que desaguou no ato institucional, escreveu dois artigos nos jornais recentemente, atacando o capitão Bolsonaro e, de certa forma, defendendo a posição das Forças Armadas, das chefias das Forças Armadas. E ao mesmo tempo, um telespectador aparentemente “fujimorista”, Manoel Pereira Brandão, de Bauru, aqui em São Paulo, pergunta por que as Forças Armadas, que possuem rígida disciplina, não fazem algo em relação ao INSS, setor legislativo e judiciário, no sentido de acabar com a corrupção?

Almirante Mário Flores: Olha, que sugestão extraordinária essa. [risos] Eu espero que o senhor não compartilhe dela.

Jorge Escosteguy: Não, não, eu apenas aqui transmito a opinião dos telespectadores.

Almirante Mário Flores: Está bem, eu acho que é uma opinião que nós devemos exorcizar rapidamente. Não nos convém. Vamos tentar resolver os problemas nacionais pelas regras que estão aí. Se for necessário, que se mudem as regras pelas regras, através das regras. Por exemplo, o Emendão nada mais é do que mudar as regras através das regras. Agora, a sua primeira parte, o senhor perguntou...

Jorge Escosteguy: Eu mencionei, por exemplo, o ex-guerrilheiro José Genoíno e o ex-deputado Márcio Moreira Alves.

Almirante Mário Flores: Bom, o deputado José Genoíno tem sido – espero que isto não tire votos dele [risos] – extremamente construtivo no relacionamento com as Forças Armadas...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Amanhã ele vai fazer um discurso atacando as Forças Armadas.

Almirante Mário Flores: Ele é uma pessoa curiosa. Nas reuniões do Conselho da Comissão de Defesa Nacional, ele faz perguntas de uma objetividade profissional muito boa. Não sei se ele entende bastante da questão militar, eu acho que ele aprendeu, mas o fato é que ele põe... Certa vez ele me perguntou se na situação brasileira atual, qual é o teatro geoestratégico que eu entendia como adequado para a preocupação da Marinha. É uma pergunta de um deputado, de um político que se interessa por essas questões. O jornalista Márcio Moreira Alves me disse, conversando comigo: “Eu amadureci”. Aí eu delicadamente disse: “nós também”. [risos] Também amadurecemos. De modo que é um processo de evolução que é inerente a todos nós.

Jorge Escosteguy: Nós agradecemos, então, a presença, esta noite aqui no Roda Viva, do ministro da Marinha, almirante Mário César Flores. Agradecemos também aos companheiros jornalistas e aos telespectadores, lembrando que as perguntas que não puderam ser feitas ao vivo serão entregues após o programa ao almirante.

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