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Memória Roda Viva

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Lima Duarte

18/9/2006

O ator, que já estava nas primeiras transmissões da televisão brasileira, em 1950, fala de sua experiência e conta histórias saborosas

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Paulo Markun: Boa Noite. Ele já foi de tudo: mocinho, bandido, coronel, jagunço, empresário, padre, operário, vagabundo e até político. Mas não na vida real, embora ela tenha influenciado seus quase 60 personagens vividos principalmente em novelas e minisséries nas últimas 5 décadas. Hoje 18 de setembro, aniversário da inauguração da televisão no Brasil, o Roda Viva entrevista um dinossauro no melhor sentido da nossa era do vídeo: Lima Duarte, um dos atores mais populares e versáteis de todo o país, que tem de carreira na telinha o mesmo tempo de vida da TV no Brasil, 56 anos, e já trabalhava no rádio e no cinema antes disso. Para entrevistar o ator Lima Duarte nós convidamos Ubiratan Brasil, sub-editor do "Caderno 2" de O Estado de S. Paulo; Sérgio Rizzo, crítico de cinema da Folha de S. Paulo, Marta Góes, jornalista e dramaturga; Chico de Assis, ator e dramaturgo; Cunha Jr., apresentador do programa Metrópolis da TV Cultura; e Amilton Pinheiro, jornalista e biógrafo de Lima Duarte. E temos a participação do cartunista Paulo Caruso registrando em seus desenhos os momentos e os flagrantes do programa. O Roda Viva é transmitido em rede nacional ao vivo para todo o Brasil.

Paulo Markun: Boa noite Lima Duarte.

Lima Duarte: Boa noite.

Paulo Markun: Eu vou começar com uma pergunta daquelas quase de almanaque, mas que eu acho que seja obrigatória neste dia.

Lima Duarte: São as melhores.

Paulo Markun: Nesses 56 anos, o que é que mudou e o que é que não mudou na televisão brasileira?

Lima Duarte: Mudar, não mudou muito, não. Aquilo que a gente fez... Bom... No dia 18/09/1950 tinham 28 pessoas no estúdio na hora da inauguração. Só tem eu vivo de homem. A Hebe [Hebe Camargo (1929-), apresentadora de programa televisivo] também está viva e a Lolita Rodrigues [Silvia Gonçalves Rodrigues Leite (1929-), atriz e cantora], salvo engano. Deve ter algum técnico por aí, mas acho que não, porque eles eram todos muito velhos. Então, eu conto uma história - estava até contando para o Chico de Assis. As histórias são meio elucidativas. O primeiro ídolo popular da televisão brasileira – ídolo popular - foi uma participante do primeiro programa chamado O céu é o limite, que era dirigido pelo Túlio de Lemos, apresentado pelo Aurélio Campos, onde o Aurélio cunhou a expressão “absolutamente certo!”. E o primeiro ídolo popular, por volta de 1953, surgiu nesse programa. Era uma senhora muito bonita, muito elegante, sofisticada, chamada Cristiane Mendes Caldeira. É de uma família famosa. Mas ela era francesa, casou-se com um dos líderes dessa saga Mendes Caldeira. E ela respondia, no Céu é o limite, sobre Proust [Marcel Proust (1871-1922),  escritor francês cuja obra é reconhecida como fundamental na literatura mundial] e a sua fantástica tetralogia. São sete volumes, né? A procura do tempo perdido [refere-se ao livro de Marcel Proust Em busca do tempo perdido escrito entre 1908, 1909 e 1922. A obra contém sete volumes sendo o três últimos publicados postumamente], O Caminho de Guermantes, À sombra das raparigas em flor, A prisioneira, No caminho de Swann e o último Les temps retrouvé. Ela respondia sobre Proust na televisão e ficou muito famosa. Era apontada nos botequins, nos pontos de ônibus: “olha lá! Lá vai a Dona Cristiane. Sabe tudo sobre Proust. Essa aí, ela é fera em Proust.” Era essa a televisão que a gente fazia, onde uma mulher falava de Proust e era amada pelas gentes. Ela sabia tudo do Proust, da tetralogia, claro. Porque, imagine responder sobre A procura do tempo perdido [sic], 7 volumes! As madeleines [bolinho típico francês], o chá de hamamélis que o Proust teria tomado na casa da avó? E que perguntou o que que é isso? O que que é isso? [gesticulando] E destrinchou aquela forma de pensamento que é A procura do tempo perdido [sic]. Então era essa. Não sei se hoje os ídolos são assim.

Paulo Markun: Mas isso não teria a ver, sem querer defender a televisão de hoje...

Lima Duarte: Não, nem eu!

Paulo Markun: ...Longe de mim ser representante dessa facção... Não é pelo fato de que aquela televisão... Eu, que nasci em 1952, peguei a televisão engatinhando, mas já existia quando eu nasci. Eu fui, como todas as pessoas da minha geração, "televizinho" [referindo-se ao fato que muitos brasileiros, na época, quando não tinha aparelhos de TV em casa, iam assistir no vizinho]. A televisão não era um eletrodoméstico que existia na casa de todas as pessoas. Portanto, quem assistia à televisão - e isso é uma hipótese que eu faço - não era a grande massa de brasileiros. Não seria um pouco uma explicação para essa diferença?

Lima Duarte: Isso e mais um milhão de outras coisas. Mas a televisão... Nós estávamos jogando peteca um dia entre amigos, quando existiam amigos e petecas ainda, nós estávamos jogando ali no Sumaré.,Osny Silva, Homero Silva [apresentador do programa Pé na tábua da TV Tupi], Hebe Camargo e Ribeiro Filho [cantor e compositor]. A gente ficava jogando peteca, aí chegou um sujeito e começou a mexer no nosso campo de peteca dizendo “Vamos fazer a televisão aqui”. “Ah é mesmo? Estragaram com nosso campo de peteca?”. E fizeram a primeira televisão lá, né? Ficou 2 anos construindo. Nós temos uma fotografia muito linda, não sei se vocês têm, que nós estamos vindo de Santos com a televisão nos caixotes. Ela veio num caminhão em que estava escrito: “Aqui vem a primeira televisão da América Latina”. E nós, atrás, soltando foguetes [imita barulho de foguete]. Subiu a via Anchieta, ficou dois anos, tá pronta. Um dia uns engenheiros americanos que montaram a televisão chegaram para o doutor Assis Chateaubriand e falaram [imita o diálogo entre o técnico e Chateaubriand]: “Tá pronta a televisão, doutor? Ah, tá pronta? Então bote no ar! Bote no ar!” E aí eles disseram: “mas peraí doutor não tem receptor! Ah, não tem? Não tem. Vai botar no ar para quem? Pera um pouquinho” Daí ele pegou um “Constellation da panela” [se referindo ao avião Constellation, da Pan Air], conforme dizia o baiano que era o porteiro de lá. Pegou o “Constellation da panela” foi lá comprou vinte e tantos aparelhos de televisão veio no Constellation botou um no viaduto do chá, um no Cine Metro, um no Pacaembu, um na Rua Sete de Abril e foi para o ar a televisão, nesse dia. Um ano depois, já tinha mais de mil aparelhos de televisão. Ela foi um fascínio imediato, arrebatador, devastador. Amaram de imediato a televisão e chegavam com aquelas coisas loucas de botar um papel colorido na frente. Televisão a cores, então, é só colocar um papel azul e vermelho e ficava assistindo televisão a cores [risos]. E a televisão ia para o ar às 7 horas da noite e eles ligavam às 5. Ficava aquele chuvisco e o povo ficava olhando aquele ponto luminoso. E você era "televizinho". O "televizinho" aumentou muito aquele negócio do café. Porque naquele tempo se servia um cafezinho, não é? “Vou servir um café para os telespectadores”. Então tinha o cafezinho e o povo tomava o cafezinho e ficava esperando ir para o ar essas bobagens que a gente faz. Teve também esse lance que é do anedotário com o Cassiano. Depois nós preparamos a festa...

Paulo Markun: O Cassiano Gabus Mendes [1927-1993, radialista, foi um dos primeiros diretores da Tv Tupi], não é?

Lima Duarte: O Cassiano Gabus Mendes foi o primeiro diretor. Também a escolha desse primeiro diretor foi engraçada. Porque não tinha! O Dernival Costa era o diretor das rádios. E outra coisa, a televisão foi implantada no Brasil por radialistas, porque o doutor Assis Chateaubriand [1892-1968, famoso jornalista, senador, embaixador e empreendedor, criou e dirigiu a maior cadeia de imprensa do país, os Diários Associados com 34 jornais, 36 emissoras de rádios e 18 estações de televisão, figura polêmica, influenciou a política e incentivou as artes, criando o MASP em São Paulo] baixou uma ordem que era a seguinte: não se pode enfraquecer os quadros dos jornais Diário de São Paulo e Diário da Noite, que eram os grandes jornais, nem das rádios e nem das revistas - O Cruzeiro, A Cigarra - em detrimento da televisão. “Não pode! Vocês é que vão ter que fazer isso aí!” E ficou aí para nós. Aí então, o Costa Lima, que era o diretor das rádios chegou e disse: “Bom, quem é que vai ser o diretor?”. Tinha 3 candidatos: Walter Jorge Durst, Túlio de Lemos e Cassiano Mendes. Aí o Cassiano exibiu um filminho que ele tinha feito, e que, aliás, eu participei do filminho, era um filminho meio amador. Aí ele disse “que maravilha! Esse aí vai ser o diretor”. E o Cassiano... A primeira coisa que ele disse foi: “Eu só vou ser diretor se o Lima Duarte for meu assistente”. Eu era o sonoplasta, o operador de som! Aí eu disse: “O que é isso rapaz? Eu vou deixar de ser o sonoplasta para mexer com essa porcaria aí? Não quero saber!” Era um happening. Ninguém sabia o que era a televisão. Não tínhamos a menor idéia do que fosse. A nossa idéia de televisão era que no fim do Jeca Tatu, do Monteiro Lobato, ele fica tão bem de vida que ele monta uma televisão no cafezal para fiscalizar os trabalhadores. Então a gente falava: “Isso é coisa do Chateaubriand que quer fiscalizar o que nós estamos fazendo aqui!” Era isso que nós pensávamos de televisão.

E o Cassiano, depois do jantar da inauguração teve café... Ele veio do meu lado e disse: “Oh, mas foi muito bonito, foi bom, foi muito bonita a festa... Lima Duarte, e amanhã, hein?” Daquele dia até hoje não parou. “Mas o que nós fazemos?”. “Ah você vai nos consulados e pede. Porque eles têm muitos filmes das cidades. Pede lá.” Então eu trouxe. Era filme sobre doença venérea, que tem antes e depois, sobre sífilis, e tinha aquelas coisas de antes e depois... a pessoa ficava magra depois, [encolhe as bochechas e imita pessoa magra] assim. Passava isso direto à noite porque não tinha...nada ainda. Mas um ano depois as pessoas amaram a televisão com loucura e devaneio. Até hoje! Como diz o Alvin Tofller [escritor e futurista]– eu acho muito oportuno dizer isso assim – “Ninguém gosta da televisão. Ninguém! Só o povo.”

Ubiratan Brasil: Lima Duarte, o que tem de verdade nessas histórias, você falou do anedotário...

Lima Duarte: Perdão, eu falo muito, não sei se eu respondi. Eu falo mais que a língua.

Paulo Markun: Respondeu...[interrompido]

Ubiratan Brasil: ... desse primeiro dia, dessa inauguração. Conta-se que o Chateaubriand teria quebrado uma garrafa de champagne em uma das câmeras...

Lima Duarte: O doutor Chateaubriand era esse personagem que todos nós mais ou menos sabemos. Ele tinha uma mania, porque quando vai zarpar navio, vai lá e pah [imita o barulho de uma garrafa batendo no barco]. O doutor Assis tinha essa mania de tudo que inaugurava... Os dois últimos anos do doutor Assis eu trabalhei com ele, eu falava por ele. Era muito mais do que de confiança, porque ele teve um AVC tinha limitações seríssimas, motoras. E eu mais ou menos entendia o que ele dizia. O que eu não entendia eu inventava e ele adorava. Ele gostava mais quando eu inventava. Ficamos muito amigos, mas uma amizade assim. Puxa! Porque eu olhava aquele homem e ele era um vendaval. O doutor Assis era um... [faz gesto demonstrando grandeza] e de repente plom [gesticula demonstrando queda]. E com aquele motor, porque só a cabeça funcionava. E nem falar mais... Porque ele lesou o cérebro na parte da fala. E eu me comovia muito. Aqueles olhos vivos, aquela necessidade de se exprimir. Os encontros dele eram patéticos. Ruben Berta, essa gente aí... Eles ficaram mais ou menos atrás dele e todo mundo ficava muito constrangido. Olha, para descrever isso só Dostoievsk [Fiodor Dostoievisk (1821-1881), escritor russo, autor de Crime e castigo e O idiota, entre outros, escreveu com intensidade sobre a angústia humana], mas... E eles ficavam atrás “ O que ele disse? O que ele disse?”. E eu: “Ah ele está falando que o ministro Júlio Sambaqui [Julio Furquim Sambaqui (1906-1982), foi o último ministro da Educação no governo João Goulart] não concordou com aquela portaria nova do ministro Júlio...” E ele vinha “Aum, Aum, Aum” [imita Chateaubriand tentando se expressar]. E Eu: “Calma, o senhor vai ter um ataque ‘apoplético’[sic] aí e vai ficar muito mais chato, calma! O senhor não falou ontem nessa portaria?”. “Ahn, ahn, ahn... Mas era ontem? Hoje o senhor já não concorda?!”. E eu ia inventando. E ele tinha muito essa mania de andar louco, dessas coisas old fashion... Ele foi embaixador do Brasil em Londres e botou um chapéu de cangaceiro na cabeça da rainha! Tem essa fotografia no O Cruzeiro, é uma coisa maravilhosa. Porque ele tinha uma ordem “heráldica” [brasão] chamada “Ordem do Jagunço”, e ele nomeava os caras com a ordem e ao invés da medalha ele punha o chapéu de cangaceiro, pah! E ele pôs na cabeça da rainha “Eu nomeio a senhora com a ordem do Jagunço”. E, pah [imita Chateaubriand colocando o chapéu na cabeça da rainha com força] E tem aquela fotografia dela com aquele chapéu de cangaceiro. Ele era esse homem. Então ele tinha essa mania. “Quebra o champagne! Eu dou por inaugurada a televisão na América Latina”. E pou! Quebrou a câmera e a champagne. Já foi pro ar com duas só! E o Cassiano reclamando. Todo mundo ficava olhando. Ele era um homem assim. E então foi isso que aconteceu... mas o resto que aconteceu. Imaginem. Estavam lá todos os políticos vigentes.

Cunha Jr.: Lima Duarte, você, por toda a sua vivência em televisão, desde esse primeiro dia... Ninguém melhor do que você para criticar... Mas você também foi um revolucionário dentro da televisão, o que se repete até hoje. Mas você e a equipe que trabalhava, por exemplo, em Beto Rockefeller fizeram uma quebra, uma ruptura na linguagem "dramatúrgica" da televisão através daquela novela do Bráulio...

Lima Duarte: Do Bráulio Pedroso [1931-1990. Autor de novelas. Sua primeira foi justamente Beto Rockefeller em 1968 para a TV Tupi. Escreveu ainda O bofe (1972) e O cafona (1971)].

Cunha Jr.: Vocês tinha idéia de que estavam fazendo uma revolução? Era uma coisa intencional ou não?

Lima Duarte: Não tinha a mínima idéia. Eu fui para a Globo para fazer lá uma revolução. Entrei em fria e foi um fracasso. A primeira novela que fiz foi O bofe. A revolução não se faz, ela acontece, ela leva a gente na crista dos seus acontecimentos. O que tinha era uma boa idéia. O Cassiano Mendes gostava muito – e eu gosto também – do Luiz Gustavo [1940. Ator, principalmente de telenovelas, cujo apelido é Tatá], do jeito dele fazer as coisas. Eu achava muito interessante. E ele disse: “Lima Duarte vamos fazer uma novela para o Tatá?”. Eu disse: “Ótimo, vamos fazer”. “Então vou fazer uma novela pra ele e você dirige”. E o Abujamra [AntonioAbujamra. 1932. Diretor de teatro e ator. Apresenta o programa Provocações da Tv Cultura] disse: “Olha, o Bráulio Pedroso tá aí.”. Ele tinha sofrido um acidente. Ele também tinha problemas motores. “Ele tá na casa da Ruth Escobar [1936. Atriz de teatro], tá deitado lá, tá precisando escrever. Ele é um grande autor. Vamos lá falar com ele ver se ele faz.”. E o Cassiano teve a idéia. O ponto de partida do Beto Rockefeller é uma coisa simples e bem interessante e bem paulista. É a história de uma pessoa que nasceu na Teodoro Sampaio [rua do bairro de Pinheiros, na cidade de São Paulo], estão vendo bem essas ruas e quer fazer vida na rua Augusta [na cidade de São Paulo], que são duas ruas que descem paralelas em direção aos Jardins [bairro de classe média alta na cidade de são Paulo]. Do espigão [prédio alto] da Paulista [uma das principais avenidas da cidade de São Paulo, centro financeiro e empresarial] em direção aos Jardins. Então era a história de um sujeito que nasce... Você sabia que nesses três ou quatro quarteirões que medeiam uma e outra rua ninguém pode passar por ele sem pagar um pesado ônus. Era um homem que queria ascender socialmente sem pagar os compromissos que tem que pagar com as elites. Então era uma boa idéia. Ele trabalhava numa loja de sapatos, não tinha nada mas freqüentava a rua Augusta, no tempo em que a rua Augusta era a Augusta [a rua era famosa pelo trânsito de pessoas famosas, principalmente artistas, sendo inclusive citada em música popular famosa]. E ele tinha um amigo que tinha uma loja de carros e que emprestava uns carros pra ele. Ia dar umas voltas. E ele se insinua para uma família como o tal, um herdeiro dos Rockefeller [referência  a uma família milionária dos EUA]. E a família recebe ele. Tudo isso feito com muita imaginação. Então o ponto de partida era esse. Vamos lidar com isso, com esses elementos. Então a gente procurava uma maneira de expressar isso, de mostrar isso, com os meios que dispúnhamos.

Cunha Jr.: Mas diferia de toda a linguagem até então.

Lima Duarte: Nós tínhamos feito, eu tinha feito O direito de nascer, que era a novela entre as novelas, antes. Então com essa aqui, vamos mandar embora os barões, os condes, os filhos espúrios, os naturais, tudo!

Cunha Jr.: Podia ser um fracasso, era um experimentalismo.

Lima Duarte: Mas não chegava... Nós chegamos a isso conduzidos, não é verdade? Havia uma elite operária começando a surgir em São Paulo. A Wolksvagen tinha acabado de se estabelecer aí. Então havia operários de estamparia, operários categorizados exigindo um teatro e uma televisão para eles. Beto Rockefeller aconteceu mais ou menos com Eles não usam black tie [peça de teatro apresentada no Teatro de Arena em 1969, escrita e dirigida por Gianfrancesco Guarnieri (1934-Milão/2006-São Paulo), que também foi um grande ator de cinema, teatro e televisão], por aí, né Chico? [pergunta a Chico de Assis]

[ ]:É...

Lima Duarte: Com Eles não usam black tie o Teatro de Arena surgiu em oposição ao TBC [Teatro Brasileiro de Comédia]. Claro, que o TBC fazia aquelas coisas, com os diretores Flamínio Bollini Cerri, Luciano Salce, Ziembinski, D’Aversa, Ruggero Jacobi, todos italianos. Eu não sei por que que eles não representavam em francês ou em italiano. O primeiro sucesso do TBC foi The voice of the turtle (?) [sic] [La voix humaine, peça de Jean Cocteau, apresentada em francês, em 1948, marca a estréia do Teatro Brasileiro de Comédia, porém a apresentação era completada pela peça A mulher do próximo com a jovem atriz Cacilda Becker] - não sei como é que chamava em português - com a Madeleine Nichol, a Cacilda Becker e o Maurício Barroso. Essa gente, que começou a pressionar por um teatro para eles, começou a pressionar também por uma TV pra eles. A gente só soube ouvi-los. Não bem entendê-los, mas ouvir mais ou menos como falava a moçada. O Bráulio Pedroso também estava doente e ele não conseguia escrever – naquele tempo era máquina de escrever. E o Paulo Ubiratan, que veio a ser um dos grandes diretores da Globo era o datilógrafo dele. O Bráulio mandava o capítulo às 9 horas da manhã e a novela ia para o ar às 7 da noite. Às vezes a gente tava gravando o último break e o primeiro já tava no ar! “Corre que já vai! Plínio, Plínio inventa umas coisas aí que falta 5 minutos para completar o capítulo.”

Marta Góes: Como é que foi essa escalação do Plínio?

Lima Duarte: Do Plínio ou de toda a novela?

Marta Góes: Não. Do Plínio Marcos [autor e diretor de teatro - ver entrevista no Roda Viva]. Como é que se...

Lima Duarte: Ele trabalhava na Globo. Ele trabalhava fazendo apontamento. Ela tomava nota a hora que entra o comercial, a hora que sai. Era um trabalho horrível que ele ficava numa salinha lá vendo tudo. E ele falava muito que ele queria trabalhar, que ele tinha sido palhaço em Santos. Aí eu falei: “Ah então vamos, vamos fazer umas palhaçadas, lá” e escalei ele para fazer. Mas era um elenco muito bom o do Beto, viu? Tinha a Marília da Costa, Marília Pera, tinha a Débora [Duarte], a Bete Mendes. E outra coisa. O Cassiano chegou pra mim e disse “vamos parar com esse negócio de música” [faz barulhos] Bem! Bem! Bumk!, e tal. Vamos pôr umas músicas modernas. E fomos nós que fizemos isso. E ele me deu um monte de música para eu ouvir e eu escolhi o tema da Irene Ravache [1944, atriz de teatro, cinema e televisão], por exemplo. Lançou no Brasil. Era Here, there and everywhere [canta trechinho do refrão da música]. E o tema do Plínio, porque ele era italiano, ítalo-brasileiro, era Dio comme ti amo [fala o nome cantando]. E essas músicas foram sucessos espantosos.

Paulo Markun: Antes de a gente chamar o intervalo eu vou chamar a pergunta da Vida Alves, vamos ver:

Vida Alves (em vídeo): Lima, você que fez e faz televisão, fez rádio, fez cinema, fez teatro, fez dublagem, acho que até fez circo quando menino. Ninguém melhor do que você para responder à minha pergunta. Quem, na sua opinião, mais contribuiu para a implantação da televisão no Brasil, em São Paulo e logicamente no Brasil, em 18 de setembro de 1950?

Lima Duarte: Eu poderia citar vários nomes. Aliás, eu vivo para me lembrar dessas pessoas. Hoje, por exemplo, é aniversário da televisão e só a TV Cultura falou nisso. É um pecado. Não pela televisão, pelo evento, mas por aquelas pessoas tão maravilhosas que fizeram isso, como Walter Foster [ator e dramaturgo, escreveu “Sua vida me pertence” que foi ao ar na Tv Tupi em 1950. Contracenou com Vida Alves nessa novela promovendo a primeira cena de beijo na história da televisão], Ribeiro Filho [José Martins Ribeiro Filho. Fez parte do primeiro telejornal brasileiro Imagens do dia em 1950 na TV Tupi.], Walter Jorge Durst [1922-1997. Dramaturgo. Iniciou sua carreira como cineasta, em seguida trabalhou na TV Tupi, na Globo, na TV Cultura, no SBT e, finalmente, na Manchete. Adaptou, entre outras novelas, Gabriela, para a TV Globo, em 1975] mas eu acho que talvez o mais importante mesmo fica em implantar a teledramaturgia, que é uma coisa que não existe até hoje. Ninguém escreve para a televisão, faz teledramaturgia. Escreve um script... pega lá, do lado direito em branco, do lado esquerdo as falas... mas uma datação, pensando no veículo, no espectador. Quem primeiro fez isso chamava-se Walter Jorge Durst. Ele pensava a televisão como espetáculo, como teledramaturgia e escrevia... e Péricles Leal. Péricles Leal [jornalista e escritor] era filho do Simião Leal que é um jurista muito importante na Paraíba e escrevia pra televisão. Ele escreveu. Ah... a primeira telenovela eu fiz com a Vida Alves, que foi Sua vida me pertence. Era Vida Alves e Walter Foster, o tal famoso primeiro beijo teve lá. Não! Não teve só o primeiro beijo. Teve o primeiro bandido, que fui eu. Teve o primeiro pai, a primeira mãe, o primeiro amor, o primeiro rival, o primeiro tudo! Porque foi a primeira novela, não é verdade? Mas a gente só lembra do primeiro beijo. A história do primeiro beijo... É engraçado. Era o último capítulo e tinha que ter o primeiro beijo, o Walter Foster na Vida Alves. Mas aí, a autoridade da ocasião disse [fazendo voz grossa]: “Não, não. Não pode beijar. Beijar na televisão, não! Esses lábios unidos em lascívia penetrando o recôndito do lar, não! Não pode!”; “Mas, escuta, como é que podem passar nos filmes?”; [volta a engrossar a voz] “Mas são bocas americanas. Brasileiro, não! As crianças vêem. É brasileiro, pode encontrar com vocês na rua e vir vocês lá... Não! Não pode beijar!”. Mas aí os atores falavam “Ah, eu quero beijar, é o último capítulo, é só o último”. Mas o juiz disse não e o general falou não e o delegado também disse não e o padre também disse não. Mas os atores falavam “Sim! Deixa beijar! É o último capítulo! É o happy end!”. Aí foi aquela discussão: beija ou não beija. A novela ia pro ar às 7 horas. No dia teve uma reunião, às 3 horas da tarde. Beija ou não beija. E nós no estúdio esperando. Beija ou não beija? Era ao vivo. Quando foi 6 horas saiu o veredicto: beija... de boca fechada! [risos] E assim terminou a primeira novela. Então, Vida, eu acho que o mais importante... todos foram maravilhosos. Esse beijo foi tão importante, né? O Walter foi tão importante. Mas o Valter Jorge Durst e o Péricles Leal...O Péricles Leal escrevia novelas de cangaceiro. Dizem que fez a primeira, que ele escreveu para a televisão e da qual eu participei também. Talvez esses dois sejam os mais importantes.

[intervalo]

Paulo Markun: 18 de setembro de 2006. Faz 56 anos que a TV foi inaugurada no Brasil e o Roda Viva entrevista esta noite o ator Lima Duarte que também faz 56 anos de carreira na televisão, já que participou da primeira transmissão da Tupi Difusora em 1950. Desde lá, embora tenha dedicado parte de sua carreira ao teatro e mais ainda ao cinema, foi na TV que ele marcou seu trabalho e se fez o mais brasileiro dos atores brasileiros. Lima onde você encontra esse povo?

Lima Duarte: [risos] Especialmente na minha memória emotiva nos meus tios, primos, irmãos... Eu sou, se me permitem a imodéstia, na elite de atores brasileiros, eu sou o único de formação rural. Eu sou o único caboclo que virou ator. Me considero um "transfer" entre um mundo e outro, o rural e o urbano. Eu preciso ser fiel a esse mundo do qual eu vim. Eu sinto uma necessidade vital de não mentir pra eles, de ser fiel ao meu pai à minha mãe. Meu pai viu o mar com 58 anos pela primeira vez. Nós fomos de Minas. Eu vivia aqui em São Paulo, ele lá. Eu tinha uns 17 anos. Um dia ele veio me visitar e disse: “Vamo lá no Santos”. Ele era muito tímido, assim. Eu percebi que ele queria ver o mar, aí eu falei: “Vamo, pai, vamo lá ver o mar. Eu não vi ainda”. Aí pegamos o trem, esse São Paulo, Railway que sobe por carretilhas e depois desce sai na avenida da Costa, pegamos o bonde, o bonde faz uma curva... Eis o mar! O que aconteceu nos olhos do meu pai foi uma coisa pungente, uma coisa maravilhosa, maior que o mar. Não pude tirar os olhos dos olhos do meu pai, porque foi maior que o mar e porque eu também o via pela primeira vez. O Brecht [Bertolt Brecht.1898-1956. Dramaturgo e diretor alemão, principalmente de peças teatrais] diz “Eu quero nos meus atores o olhar de Galileu” que olhando uma vela descobriu que o mundo é redondo, né? E eu quero nos meus e em mim o olhar do meu pai diante do mar. Foi uma coisa tão fantástica e ele pediu pra mim “Vai lá, traz um bocadinho pra mim”. Porque ele não tirou o terno, né?

Paulo Markun: Não botou nem o pé na areia?

Lima Duarte: Não! Nem o pé. Ele ficou na calçada dizendo “Não vai lá que aquilo pode ser perigoso.” Mas eu fui. Eu fui, aluguei um calção no balneário das sereias, um calção né. Fui lá e trouxe um bocadinho de água pra ele e ele provou discretamente e disse assim: “É salgado, hein?”; É salgado...Então eu preciso, eu sinto uma grande necessidade de ser fiel a essas coisas. A mãe dele, que era meio búlgara, a minha vó, que era meio índia, falava pouco e baixo e era muito magrinha. E todas as tardes o meu pai ia visitá-la. Ele nasceu [quando] ela teria uns 13 anos. Então os dois juntavam no fundo do terreiro e começavam a falar uma coisa que ninguém ouvia e entendia, era uma linguagem só deles. Era uma coisa assim [começa a sussurrar] E a minha vó fazia doce de uma laranja. Metade pra ele metade pra ela. Nem eu tinha acesso a essa delícia. E eu de longe, olhando meu pai conversando com a minha avó, naquela língua que só eles falavam...E se chegando junto e se amando tanto e tão intensamente. Esse amor dourou a minha infância, banhou minha vida. Eu não posso esquecer disso. Não posso. Tais eventos, quem os viveu, não pode esquecer. É isso que eu procuro levar para os personagens

Chico de Assis: Uma coisa em cima disso. A gente sabe que a televisão vive de padrões. E eu tenho certeza de uma coisa: a pessoa que tirou o homem rural da chanchada e da comedinha barata foi você. Você enfiou o homem rural a nível de João Guimarães Rosa, ao nível da profundidade que ele realmente tinha e não do aproveitamento do matuto, aquele que não sabia nada porque tava metido no mato. Você tem noção dessa coisa que você inventou?

Lima Duarte: Bom, eu sei que nós estamos passando de sociedade rural à urbana em 40 ou 50 anos e isso não é nada diante dos grandes movimentos sociais. E o brasileiro ficou com o pé na roça e tem vergonha. E nega esse pé hoje, que é tão bonito e é o mais bem fincado. Eu penso muito nessas coisas. Pensava também naquele tempo. Eu fui chamado pelo Teatro de Arena porque quando o Teatro de Arena resolveu implantar a interpretação brasileira eles queriam colocar o brasileiro em cena. Porque tudo era um pastichio [mistura] das escolas americanas, francesas e inglesas. E eles queriam um brasileiro. Então vieram até a Tupi falar comigo... Você [aponta para Chico de Assis], o [Augusto] Boal [(1931-2009), diretor de teatro e dramaturgo, criador da metodologia cênica chamada Teatro do Oprimido, a aprtir dos anos 70, que combina drama e ação social] o [Gianfrancesco] Guarnieri...para me levar para o Arena, para nós conversarmos sobre o brasileiro em cena. Então pensava nisso, né, nesse transformador que eu sou, nessas coisas de lá. E na grandeza que tem isso. E que nós não devemos nos envergonhar porque é assim. No Guimarães Rosa tinha um personagem chamado Tim Tatu-tá-te-vendo [personagem do livro A hora e avez de Augusto Matraga] que levou um tiro na cabeça – e o Guimarães era médico – mas ele não morreu e a bala ficou lá. Ele passou a ser um homem que vivia com uma bala na cabeça, um pedaço de chumbo, o Tim Tatu-tá-te-vendo. Ele de vez em quando ele tinha dor de cabeça, ele tinha a dor de cabeça. E saiam umas coisas verdes dos olhos, da boca... Ele fechava as mãos assim e ficava no meio, e urrava, e afundava na terra um metro, e subia... Até ele desmaiar. Aí ele invadia o primeiro povoado. Ele era do bando do Joãozinho Bem-Bem. Invadia o primeiro povoado, ia na zona, e falava pras mulheres: “ó ele vai ficar aí, eu quero ele bem tratado, muito bem tratado. Depois quanto eu volto aqui daqui a dois meses, buscar ele, se ele não estiver muito bem tratado eu arrebento, mato todo mundo aí.” E aquelas enfermeiras, sobre a enfermagem, emprestavam a ele aquele "plus" fantástico. Então, essa história, esses homens, esses seres que são de uma imensa grandeza... Por que não falar deles? Por que ter vergonha deles? Não posso ter vergonha de mim, do meu pai...

Chico de Assis: Principalmente se levando em consideração que há quatro gerações atrás estávamos todos no campo.

Lima Duarte: Pois é.

Chico de Assis: Inclusive os estrangeiros. Inclusive os italianos, os japoneses.

Lima Duarte: Principalmente. O Antônio Candido [Antônio Candido de Mello e Souza. 1918. Ensaísta, professor e crítico literário. Escreveu, entre outras obras importantes, Formação da literatura brasileira: momentos decisivos] e o parceiro do Rio Bonito falam dos colonos aqui. É isso.

Marta Góes: Eu queria te perguntar isso. Tem um parentesco entre os personagens que você interpreta e o mundo de Guimarães Rosa e um parentesco anterior talvez à sua descoberta de Guimarães Rosa. Eu queria saber: como foi a sua descoberta de Guimarães Rosa?

Lima Duarte: Foi um momento tão maravilhoso, viu? Dionísio Azevedo [ator] me apresentou o Sagarana [livro de Guimarães Rosa sobre Minas Gerais, cujo nome é uma junção de palavras: saga significa lenda e/ou canto heróico e rana é uma palavra de origem indígena que significa à maneira de. A idéia do livro é contar diversas lendas e fábulas] O Sagarana é de 46, né? De 1946. Em 1952 nós já fizemos o primeiro Guimarães Rosa: O corpo fechado, que é um conto do Sagarana. Então nós, conversando, ele disse: “olha só o que apareceu aí”. E leu o Sagarana. Aquelas palavras, aquela coisa tão encantadora. O Guimarães... eu não gosto muito de estudo sobre ele mas ele é muito bom... Ele inventa línguas, né? Como dizia o Haroldo de Campos [1929-2003. Poeta e tradutor. Foi um dos fundadores do movimento concretista], o Augusto [Augusto de Campos. 1931. Poeta, tradutor e ensaísta. Junto com seu irmão, Haroldo, inaugurou a poesia concreta]... ele é um inventa-línguas. E tem uma coisa muito legal. Tem outro personagem que eu gosto muito... Eu vou ser breve, que é o Padre Antônio Vieira. Eu fiz o Padre Antônio Vieira [1608-1697. Orador e escritor, foi uma das figuras mais influentes de Portugal no século XVI. Atuou no Brasil como missionário. Seus sermões, riquíssimos e de excepcional qualidade literária, são usados também como fonte para análise de época histórica] com o mestre Domingos de Oliveira [1936. Cineasta. Dirigiu e atuou em muitos filmes como: Feminices e Todas as mulheres do mundo] .

Paulo Markun: Você fez lá naquele filme em Portugal.

Lima Duarte: É! O Palavra e utopia. Eu tive que mergulhar no universo do Padre Antônio Vieira. E o Padre Antônio Vieira nasceu em 1608 e veio para o Brasil em 1614 porque - dizem os biógrafos – ele tinha [faz voz rouca] "uma mancha no sangue". O avô dele andou com escrava de São Tomé [referência à Capitania Hereditária de São Tomé ou Capitania da Paraíba do Sul, que foi doada por Pero Góis e ia desde as atuais cidades de Cachoeiro de Itapemirim (Espírito Santo) à Macaé (Rio de Janeiro)]. Então ele carregava essa mancha, ele era negróide. Suportou por muito tempo essa mancha e esse homem manchado com aquela negra de São Tomé. Aí ele foi matriculado no colégio dos jesuítas para as primeiras letras e descobriu a fantástica vocação. E com 18 anos ele já lecionava – é isso que eu quero dizer. E teve a primeira lição dele. Os alunos chegaram e perguntaram: “Padre Antônio Vieira, o que podemos fazer para ajudar os gentios?” A Bahia naquele tempo tinha 25 mil negros, tinha holandeses, espanhóis, portugueses, um inferno, uma babel! “O que devemos fazer para ajudar os negros e índios?”. Ele disse: “Aprende a língua deles.” Essa é uma fantástica lição. Domina o universo cultural dele, você não ajudará ninguém se você não dominar o universo cultural dele. Essa lição, depois, o Fernando Pessoa [1888-1935. Um dos mais famosos poetas portugueses, figurando ao lado de Luís de Camões, foi também escritor e utilizou, para publicar, além do próprio nome, os heterônimos: Álvaro de Campos, Alberto Caieiro e Ricardo Reis] transformou em “minha pátria é minha língua” e o Guimarães Rosa ampliou o conceito e disse: “A pátria é a língua”. Então, nós descobrimos isso aí a nossa verdadeira pátria, quando começamos a ler o Guimarães Rosa. Nos apaixonamos. Fizemos, em 1952 e 53 o Corpo fechado [conto de Sagarana], fizemos depois na TV de Vanguarda que foi pro ar 16 anos todos os domingos apresentando uma peça completa. Poxa! Eu fiz o repertório do mundo inteiro, né? Tudo o que já foi escrito eu interpretei. Porque, 16 anos, todos os domingos... Então nos fizemos ali o A hora e a vez de Augusto Matraga e o Augusto Esteves das Pindaíbas. Eu fico sempre preocupado se eu respondi ou não.

Amilton Pinheiro: Lima, a gente está comemorando o aniversário da TV mas você, para um ator que nunca saiu da TV, fez muito cinema, mais de 30 filmes. Mas você sempre teve uma bronca com relação ao cinema. Você não se achava um ator de cinema. Tanto é que você passou a achar depois do Sargento Getúlio [filme baseado em livro de João Ubaldo Ribeiro]. Só que você já tinha feito umas coisas interessantes antes como o Guerra conjugal [longa metragem. 1974. Adaptação dos contos de Dalton Trevisan], do Pedro Joaquim, já tinha feito um filme em Portugal chamado Kilas, o mau da fita [longa. 1980. Feito em co-produção Brasil e Portugal], do José Fonseca e Costa, e tinha feito do Rui Guerra A queda [1976]. Por que você não se considerava um ator de cinema?

Lima Duarte: Porque é outra sensibilidade, né? Acho que pode ser um bom ator, mas no teatro é uma sensibilidade, a televisão é outra que tá se desenvolvendo agora, né? E o cinema é outra e a minha sensibilidade bate bem com a televisão. Eu sei porque me considero, pretendo ser fiel a essa gente, pretendo ser fiel a esses eventos tais que eu vivi e assim, sendo eu, falo pro povo mesmo. Eu falo com o pé na roça que cada um de nós tem cavado aí. Quando eu apareço o povo já vem dizendo assim: “êê lá vem esse cara. Ele vai inventar alguma coisa”, entendeu? Porque eu invento mesmo. Eu sou um contador de causos. Eu conto os causos através dos personagens. [imita um tipo popular] “Ih, ele vai me enganar”. Eles olham pra mim e riem. E no cinema não pode fazer isso porque agora eu tô descobrindo... cada tecnologia nova que surge provoca uma alteração no drama, no âmago do drama e na interpretação também. Pra ilustrar isso tem uma história bem engraçada. Quando eu dirigia o Beto Rockefeller [vira-se para o Markun] eu vou ser rápido...

Paulo Markun: Você olha pra mim eu vou acabar ficando culpado.[risos]

Lima Duarte: Desculpa. Mas é assim: eu queria, por exemplo, um close. Eu pedia: “um close!”. Pode se aproveitar disso os alunos, as pessoas que estão estudando televisão, começando e tal porque é bem interessante. Eu quero um close! A câmera pesava 50, né companheiro, 60 quilos.  50 quilos e andava em tripé, não dava. Hoje elas pesam 15, 20 quilos e têm uma mobilidade que vai assim... e aperta um botão. Então eu falava: “Aproxima dele, aproxima até o close dele”. O chão era de taco. E o tripé ia aproximando... E eram 4 lentes e tinham uma torre com 4 lentes e ele tinha que fazer “pau!” e fazer o foco! E “pau!” e fazer o foco! [gesticulando]. Coitado. “Aproxima! Não! Eu quero que mude de lente, porque se você mudar a lente pro close e “tum!”, close, e “tum!”. Close! Não! “Eu quero um close... Vá até o close”. Então ele ia com o tripé, mas o chão era de taco  [imita barulho do tripé passando sobre o chão de taco]...[risos]

Lima Duarte: Eu fiquei olhando e pensei, sabe, que isso pode ser até interessante, sabe como é? Agora hoje você aperta um botão e tem o close. Agora, quando você aproxima até o close é o espectador que vai ver os seus olhos, a sua dor, a sua alegria, surpreender a sua lágrima, É o espectador que vai. Quando você aperta um botão e vai pra close é você que vai. Isso muda tudo. Se eu vou te mostrar a minha lágrima, a minha alegria, a minha dor, então eu não passo de um exibicionista, que são a maioria dos atores americanos. Eles não fazem outra coisa senão namorar com a câmera. Os da televisão, então... Todos assim: [vira e olha para a câmera com a voz pomposa]Não! Eu Não te amo!” [risos]

Lima Duarte: Não tem assim? As meninas mostram a lágrima assim, que cai assim... Então eu gostava tanto quando o espectador ia, ia dar uma olhada, quando você sofre mesmo e não quando você vem mostrar pra mim a sua angústia. Então eu acho que cada tecnologia provoca uma alteração em tudo. Isso é passível de estudo hoje. E a interpretação na televisão é a mais sujeita à tecnologia porque muda todo dia, muda o dia inteiro. Claro que esses filmes hi-tech americano - vai cai, arrebenta e tal - têm muita tecnologia. Só tem. Mas na televisão você lida com ela todos os dias, o dia inteiro e ela é sempre nova, porque muda todo dia. Se muda a sua televisão na sua casa, o seu I-Pod, o seu mp3, imagina o que muda lá no estúdio, de iluminação e coisa... E hoje no cinema, o último filme que eu fiz é no sistema DH, né? Como é que chama esse sistema? HD?

[ ]: HDTV

Lima Duarte:Eu fiquei fascinado. Eu achei uma coisa fantástica. Antes a gente fazia película. Filme é pobre. Então quando tinha que fazer assim 3 vezes a mesma cena você já ficava: “Ah 3!? Desculpa! Eu vou precisar fazer mais uma vez? Ai, desculpa! Vai custar dinheiro, putz”. Esse filme eu programei para dois em um, quer dizer, duas vezes. Os americanos fazem 50 em 1, né? E eu ficava muito nervoso, eu ficava muito aflito: “Tem que acertar, tem que acertar!” Era um sofrimento! Agora com essa nova tecnologia eu fiquei fascinado, viu? É eletrônico, não tem a película. Você pode fazer quantas vezes você quiser.

Paulo Markun: Pode torrar, pode repetir quantas vezes quiser.

Lima Duarte: Quantas vezes quiser! E pode inventar...

Paulo Markun: Suponhamos que você vai estar mais no cinema agora!

Lima Duarte: Eu acho que o charme, o glamour, a graça das interpretações nas telenovelas... E tem! E tem! A brasileira, agora vai chegar ao cinema. Eu sei que existe um certo preconceito por parte dos grandes mercados, dos grandes festivais em relação aos filmes brasileiros, porque eles dizem: “Esse filme tá sendo feito pra televisão. E muitos filmes estão sendo feitos pra vender DHV, DH aí... sei lá”. Mas eu acho que quando nós pudermos mesmo usar esse charme, essa graça com seriedade para um fim, para um propósito legal, vai melhorar muito o cinema nacional. Muito! Quando nós perdermos o medo de fazer a cena porque podemos fazer muitas vezes, errar muito, fazer outra vez, diferente. Eu fiquei fascinado com essa nova tecnologia. E precisamos trabalhar sobre ela.

Sérgio Rizzo: Você tem gostado muito de trabalhar com o Manoel de Oliveira, o cineasta português, o mais velho em atividade. Só que ele pertence a um planeta completamente diferente disso tudo que você disse que te atrai na televisão... Você gosta de trabalhar com o Manoel ou de fazer os filmes do Manoel?

Lima Duarte: Eu gosto do Manoel. Adoro o Manoel. E ele por estar atrás disso tudo, o contrário disso tudo adora muito que eu fale isso tudo. O Manoel é muito meu amigo. Nem sei se ele é bom diretor, se ele gosta de mim como ator, eu faço os filmes... Mas o que eu gosto é de tomar uma garrafa de vinho com ele, e ouvi-lo conversar. Ele tem 97 anos. Outro dia, uma repórter perguntou pra ele; “Então seu Manoel, e o futuro?”. Aí ele disse: [imita o cineasta com sotaque português] “Futuro?! Pra mim? Futuro pra mim é o paraíso... pelo clima! E o inferno... pelas companhias” Um homem desse espírito! Então eu canto pra ele as cançõezinhas que a minha mãe cantava pra mim no circo e falou: "Vou fazer um musical! Vou fazer um musical com essas cançõezinhas!”. Porque eu sapateava com a minha mãe no circo. Depois que ela morreu eu nunca mais sapateei. E ela cantava com vestidinho curto demais pro meu zelo filial, um cabelo comprido demais pra minha paixão de filho, pro zelo do meu pai. Ela sapateava e cantava: “Venham todos, venham ver, os peixinhos a nadar!”. E eu entrava vestido de peixinho e atravessava. E eu canto pro Manoel isso aí. E tem uma outra que ela ficava parada assim e eu passava, e ela passava, e eu dizia: Por que passas, ó Maria, por que estás tão triste assim? Quase eu não te conhecia se não passas junto a mim”. O Manoel ficava... “Estou triste porque breve sei que tu vais embarcar. Eu não tenho quem me leve nem tu podes me levar. O meu amor...” O Manoel ficava doido. Ele quer que eu sapateie mas eu disse que não vou sapatear mais, não. Mesmo porque seria um hipopótamo no caos.

Paulo Markun: Lima, pergunta de Eva Wilma [atriz], vamos ver.

Eva Wilma (em vídeo): Que bom falar com você, mesmo que seja assim através da televisão. Nossos caminhos se cruzaram na TV Tupi várias vezes, mas nunca tão intensamente quanto na TV Globo quando a gente fez a novela Pedra sobre pedra. Nossa! Aquele talentoso Aguinaldo Silva [autor de tenovela] criou um casal do barulho pra nós dois, não foi? Principalmente pra você. Você era um Murilo Mendes arretadíssimo. Você me apelidou de “Hilda, minha filha”. Eu acho que nós tínhamos muita história pra contar daquela época. Eu, pelo menos, escrevi... Escrevi não, eu contei, no livro biográfico, que naquela época você me surpreendeu – como você sempre surpreende, porque um grande ator, como você é, surpreende sempre – e você me surpreendia porque você chegava de manhã no estúdio cedinho. 9 meses de gravações, uma gestação juntos. E quando eu pensava “ai que bom! Ele chegou, Vou passar o texto!” Era impossível passar o texto porque você chegava recitando poemas de Nietzsche [Frederich Nietzsche. 1844-1900. Filósofo alemão. Escreveu Assim falou Zaratrusta] de Goethe [Johann Wolfgang Van Goethe. 1749-1832. Escritor alemão, autor de Fausto] e aí você me conquistou definitivamente. Eu, por exemplo, que adoro estudar poetas pra me inspirar. Então, o seu processo de criação é invejável. O seu processo de ator... Gostaria que você falasse do seu processo para o público. Sua fã, fala pra mim. Sua fã, Eva. Aliás, sua fã, Hilda, sua filha.

Lima Duarte: [risos] Nietzsche é artilharia pesada, hein? Fernando Pessoa é artilharia pesada. Eu reconheço. Ah, o meu processo... Nem tenho muito. Eu decoro lá... O Aguinaldo... Eu fiz todas as novelas dele. Gosto dele e ele também gosta do meu trabalho. Então, tem que trabalhar muito. Tem que, mal ou bem, decorar. Eu procuro criar as coisas assim como “Tô certo, ou tô errado?” [fala de personagem de novela], “Ah! Meu padinho pade Cícero!”... Esses bordões você não faz assim, vai falando, vai falando e o povo repete. O povo, na sua imensa sabedoria, percebe: “Ih, tá querendo fazer ondinha, tá querendo que eu repita”. Eles têm que ser psicologicamente muito bem calcados. E eu criei essa coisa de “Hilda, minha filha” porque eu era um marido meio despótico, um coronel nordestino. E eu acho que isso põe tão pra fora... O sujeito que fala “Hilda, minha filha!” pra esposa dele, bota pra baixo, né? Coitada. Um prolongamento de mim, parte de mim. E isso fez muito sucesso, né? Eu fico pensando assim, o que ofende uma mulher mesmo? Mas ofende no âmago, ofende no coração dela, ofende lá no fundo. Acho que é isso. Chegar e dizer “ô Hilda, minha filha, vigia o café pra mim, minha filha!” Eu detestaria uma pessoa que fizesse isso comigo. Então funciona. Meu processo é esse. É andar procurando dentro de mim, procurando dentro dos amigos, dos colegas, as coisas que alegram, que apaixonam, que ofendem...

Marta Góes: Mas é na observação das pessoas o seu processo de trabalho?

Lima Duarte: Principalmente. É pras pessoas que a gente representa. Por exemplo, o professor Gianotti [José Arthur Gianotti, professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP], que é aquele de Sorocaba, cunhou a expressão – ah, ele é de Piracicaba – “caipiracicabano”. De vez em quando ele conversava comigo e eu gostava muito de ouvi-lo. E ele me dizia: “Lima, você sabe que o brasileiro é o único povo que conversa botando o pé na parede?” Eu falei: é mesmo? “É. Eles encostam assim, botam o pé na parede e ficam conversando”. Eu achei isso tão... brasileiro, é isso mesmo. Aí ele já pega uma coisa do brasileiro e guarda, entendeu? E ele falava também da delicadeza imensa do caboclo, do sertanejo, daquele homem lá. Ele dizia: “olha”... As casas antigamente tinham um objeto estranhíssimo que era a escarradeira, porque o fumo era de corda e estimula muito a salivação e eles... Mas a casa que não tinha, caboclo levava o lenço cuspia no lenço e botava no bolso. “Que coisa nobre, hein?”. Na casa dos outros, na frente dos outros. “Ah não”. Ele botava no lenço e botava no bolso e lá em casa botava o lenço pra lavar. Essa nobreza, né? Essa nobreza... é tão bonito.. e ele me falava também de um outro caipira que tinha uma camisa tão remendada, tão remendada que ficava bonito. Remendava, remendava, e da camisa original não tinha mais nada. Uai? Isso é estruturalismo quase, né? Eu perguntava pra ele: Que cor é a sua camisa?; “Ah eu comprei essa verde!”. Não tinha mais verde! Esse jogo mental, essa observação, essa poesia e tudo isso você acrescente o Fernando Pessoa “O Tejo é mais belo que o rio que corta pela minha aldeia. Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corta pela minha aldeia. Porque o Tejo não é o rio que corta pela minha aldeia”. Eu adoro, nesses caras, a dialética. No Padre Antônio Vieira... Porque eles não usavam a dialética para fazer poesia. Eles faziam poesia da dialética. Isso aí por exemplo, “O Tejo é mais belo que o rio que corta pela minha aldeia. Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corta pela minha aldeia” são natazinhas assim e conclui com “o Tejo não é o rio que corta pela minha aldeia”.

Marta Góes: Mas você não usa, por exemplo, assim, técnicas de apoio...

Lima Duarte: Perdão! Perdão! Eva Wilma eu acho que eu respondi, hein? Falei do Tejo, falei do Fernando Pessoa, falei tudo...

Marta Góes: Você falou da sua criação, da sua observação. Mas você, por exemplo, ficou 10 anos no Teatro de Arena. O que, por exemplo, o teatro te trouxe como técnica? O que isso te acrescentou?

Lima Duarte: Olha, o tempo que eu passei no Teatro de Arena foi um tempo de guerra. Eu entrei pro Teatro de Arena em 1961 fazendo O testamento do cangaceiro. E saí do Arena em 1971. Meu último espetáculo no Teatro de Arena foi em Marselha. A gente vinha do festival de Nancy, vendemos o espetáculo para o Festival de Marselha e foi ali o último espetáculo. Ali morreu o Arena, onde morrem as coisas que sabem morrer. Em Marselha. Terminou o espetáculo, eu saí e o Antônio Pedro falou: “Olha eu vou pra Toulouse”. O outro disse “Ah eu vou pra lá.”, “Você vai pra lá?” E foram sumindo assim. Nas brumas mediterrâneas eu vi o Teatro de Arena sumir. E eu voltei pra São Paulo pra fazer novela. Então os 10 anos que eu passei no Arena foram anos de guerra. Era uma trincheira porque foi de 1964 e depois 1971 e depois o Ato Institucional, 1968... São duas revoluções. Foi a década fantástica dos Beatles, do noveau romance, do Cinema Novo, Glauber Rocha [1939-1981. Cineasta. Dirigiu Terra em transe e Deus e o Diabo na terra do sol], bossa nova... Fundamental essa década. Eu passei na trincheira. Então não pensava em teatro, eu pensava em guerra. Toda noite tinha alguém que telefonava: “Hoje vai morrer um aí no teatro!”. Era o CCC [Comando de Caça aos Comunistas, organização conservadora formada por estudantes e intelectuais, cujo objetivo era apoiar o regime militar e perseguir os opositores de esquerda], a TFP [Tradição Família e Propriedade, movimento católico de extrema direita]. “Hoje vai morrer um aí!”. Eles pegaram a Marília Pêra, no Roda Viva [peça teatral que estava em cartaz na época], e tal. Então, a gente trabalhava e era arena, era assim [aponta para o cenário do programa] esperando o tiro. Atores trabalhavam esperando o tiro... Era uma experiência única e avassaladora. Foi isso que eu aprendi no teatro.

Marta Góes: Mas vocês liam muito, estudavam muito...

Lima Duarte: Muito! Nós só fazíamos isso. Íamos pra lá às 2 horas da tarde e ficávamos lendo, lendo, lendo. Nossa Senhora! O Chico me obrigando a ler o Henry Bergson [1859-1941. Filósofo francês. Ganhou, em 1927, o prêmio Nobel de literatura] e o cômico do Bergson. Lia, lia, lia. Às 9 horas: “Ah! Meu Deus, mas tem que fazer o espetáculo? Ah vamos lá fazer”. E aí voltava, lia, lia, lia. Levavam o cozinheiro pra nós. Ele cozinhava lá pra nós não sairmos de lá.

Paulo Markun: Lima, duas perguntas de telespectadores. Marcilene de SP – eu vou fazer as duas juntas – pergunta: “além do talento, quais os requisitos para uma pessoa se manter na carreira artística por tanto tempo?” E Fábio Santos, de Santos, o que você acha – ele chama de senhor, eu não consigo chamar – você acha da nova geração de atores.

Lima Duarte: Bom, além do talento é preciso paixão. Só a paixão te mantém. E estar ligado mesmo à cultura. A cultura do seu povo. Porque eu acho que... tem várias definições de cultura. Mas eu acho que a melhor, a que eu gosto mais é: o que liga o homem à eternidade é a cultura. Então se você for fiel à sua gente, a sua cultura, ao conhecimento, você fica eterno, não fica só fazendo televisão há 60 anos como eu faço. Você fica pra sempre. E eu gosto muito de pensar nisso... que eu trabalho desde o primeiro programa e tô há 35 anos na Globo e trabalhei 25 anos na Tupi. Então, sabe, eu trabalhei 60 anos e só trabalhei em dois lugares. Devo ser um bom trabalhador, né? Mas é...

Paulo Markun: Ou bons lugares.

Lima Duarte: Era a Tupi e a Globo. Isso aí vocês podem julgar. Agora, se eu sou trabalhador, isso sou eu que te digo.

Paulo Markun: Mas e os jovens atores? O que você acha dos novos atores, das novas gerações?

Lima Duarte: Eu acho que, como eu estava dizendo há pouco, a televisão é um lugar onde a tecnologia atua de maneira mais radical e eles precisam um pouco pensar nela e pensar também na cultura, né? Em ler, em aprender.

Paulo Markun: Talvez pensar mais na cultura do que na tecnologia.

Lima Duarte: Isso com certeza. Quando a pessoa vai representar deve saber pelo menos andar profissionalmente, falar boa tarde. Não parece fácil? Parece que é. Você chega aqui e diz “Boa noite, como vai”, é isso. Você chega lá e diz [fala mais pausadamente]Boa noite, como vai?”. Porque é difícil falar profissionalmente, andar profissionalmente. É preciso saber quem fez isso antes, como é que fez, como ele chegou a isso. E eu, particularmente, acho que ser fiel aos grandes atores brasileiros, verdadeiramente grandes, como Procópio Ferreira [João Álvaro de Jesus Quental. 1898-1979. Ator, pai da também atriz Bibi Ferreira. Participava do gênero artístico circo-teatro. Sua primeira peça foi Amigo,mulher e marido. Entre outras novelas fez para a televisão A viagem], Modesto de Souza [Ator. Encenou a novela Tic-tico no fubá em 1950], Jayme Costa [1897-1967. Ator. Atuou no teatro e na televisão, participou do filme Quem matou Anabela?, entre outros], esses grandes "estriões".

[ ]: Paulo Autran?

Lima Duarte: Não. Eu falo dos "estriões" mesmo, esse aí é muito culto. E ser fiel a eles e entendê-los é um bom caminho. E, sobretudo, estudar, ler muito, aprender muito. Não é fácil. É difícil. Não basta você chegar lá e mostrar assim um sorriso e coisa e tal. Não! Tem que compreender a alma mesmo! Tem que mergulhar na alma mesmo, porque um personagem é construído com isso, com muita vivência, com muita paixão pra ser um grande personagem. Porque pra você decorar as falas, chegar lá e ficar exibindo os físicos todos, isso não é ator. Então, estude!

Chico de Assis: Eu queria falar uma coisinha. Emendando aquilo que o Paulo Markun falou sobre o dinossauro. É antidiluviano. Você é um antidiluviano.

Lima Duarte: E o dilúvio? Quem foi?

Chico de Assis: O dilúvio foi na televisão um monte de bobagem que começou a aparecer...

Lima Duarte: Nossa me deu um susto agora o que você acabou de falar!

Chico de Assis: Depois de um certo tempo que você é obrigado a não saber... Hoje em dia qualquer um é bom. Ainda você pega lá uma coisa que você curte. Mas da televisão aberta – e eu estou falando isso aqui dentro da Cultura. Eu trabalho muito aqui. Eu acho que aqui é um lugar em que a gente se esconde sabe, do festival de besteira que assola a televisão há muito tempo. E o que falta, mas falta mesmo, na televisão é um pouquinho de cultura. Sabe? Dos atores! Não precisa nem ser cultura geral, sabe? Não precisa saber cultura geral onde fica a Grécia ... Eles precisam saber onde eles estão e eles não sabem! Isso eu sei porque eu dou aula pra ator, então eu sei com quem eu estou falando. É uma nulidade, uma coisa terrível. Os antidiluvianos, naquele tempo aonde a cultura, ela tinha um valor e a gente aprendia muito de nós mesmos. Como você disse. Eu conheci o Lima pelo som do Modern Jazz Quartet [grupo de jazz formado em 1952 por Milt Jackson, John Lewis, Percy Heath e Kenny Clarke]. Eu estava lá na Tupi, de repente eu ouvi o Modern Jazz Quartet. Olhei e tinha esse rapazinho que tava lá com um monte de disco, numa cabinazinha assim, ouvindo música. Aí eu fui lá. Hoje eu perguntei pro Lima: você não trouxe aquilo de Sacramento? Com quem que você aprendeu?

Lima Duarte: Cassiano Mendes.

Chico de Assis: A gente aprendia uns dos outros, sabe?

Lima Duarte: Eu sou retirante, né? Eu saí de casa com 15 anos de idade. Meu pai me pôs num caminhão de manga e falou como eles falam lá em Minas [imita voz do pai] “Vá-te embora! Vá-te embora!”. E eu vim no caminhão de manga. Aqui, onde as mangas foram descarregadas no mercadão, eu fiquei trabalhando lá. Precisava comer, e tal. São Paulo, assim. Dormia embaixo do caminhão. E fique lá uma semana só. E fiquei lá vendo São Paulo encantado com aquelas coisas. Bonde. Eu dizia pra minha mãe que queria montar num bonde e ela me dizia “vai ser difícil, hein? Montar vai ser difícil, mas um dia você anda”. E vi passar, resfolegante, fantástico. Aquele bonde que veio soltando poeira e coisa e tal. E eu agarrei ele! Agarrei e ele foi embora, foi pra Penha. E eu me lembro até hoje que tinha uma literatura de bonde. Tava escrito assim: “São Paulo, maior centro industrial da América Latina”. Que maravilha que é isso, hein? E tinha um outro anúncio daquele tempo que era muito engraçadinho que supõe uma mulher ou um homem bonito ao seu lado que dizia assim: “Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado. No entanto, acredite, quase morreu de bronquite. Salvou-a o rum creosotado”. O tipo já não é mais tão faceiro, o rum já não é mais creosotado e o bonde também acabou. Mas eu fiz uma metaforazinha. Tanto que eu amei, que achei encantador, que tinha assim, tinham outras coisas escritas assim: “Tudo nesta vida é passageiro, menos o condutor e o motorneiro”. Eu fiz uma metáfora. Adoro metáfora. [vira e fala olhando para a câmera]Tudo nessa vida é passageiro, menos o condutor e o motorneiro”. Ficou bonita? Isso não passa nunca, meu amigo, depende do condutor e do motorneiro. [risos]

Cunha Jr.: Lima, eu sei que seu personagem de televisão preferido é o Sassá Mutema, de O salvador da pátria fez muito sucesso lá no final dos anos 1980. E eu sei que você foi convidado na época, diante do sucesso do personagem, para ser vice do Covas [Mário Covas. 1930-2001. Foi governador de São Paulo e candidato a presidência pelo PSDB em 1989] que estava concorrendo, na época, à presidente da República. Sei que você disse não, mas, pelo que eu sei, você ficou tentado a dizer sim, mas a sua família o convenceu a dizer não. É verdade isso?

Lima Duarte: É verdade. Eu estava fazendo o último capítulo. E convém que o espectador saiba que eu estava fazendo uma novela que dava 80% de audiência. As novelas naquele tempo... E a maior audiência média da TV Globo até hoje. Deu 70% no primeiro capítulo e 70% no último. É O salvador da pátria. E é uma novela que eu gosto dela sobre todas as outras porque ela não tem uma trama, ela não tem uma história. É a história de um homem. É só ele. É a história daquele personagem. E a nossa idéia é que ele fosse mesmo uma metáfora do Brasil. Ele era assim: ele não sabia nada, ele não sabia ler, nem escrever, nem nada. Ele vivia com a mãe, sabia amar a mãe, mas ele não sabia o jogo amoroso, ele não sabia nada! Mas ele tinha um dom, ele punha a mão nas flores e elas vicejavam. Ele tinha esse dom, tem uma enzima lá, que ele segrega e as flores ficam bonitas. E ele vai aprendendo mais, e mais... E mais sobre menos, e menos e menos... Até que um dia ele põe a mão numa flor e ela morre. Era uma metáfora da nossa gente. Nós pretendíamos que fosse assim. O Lauro César Muniz [autor da novela]... pretendíamos que fosse assim. Ele olhava por exemplo, a Maitê Proença [atriz que fazia o par romântico com Lima Duarte na novela], então ele botava ela no lugar da Nossa Senhora. Aqueles olhos, aquela mulher, querendo estudar ele, a cultura, a arte nas culturas primitivas. Ela era uma antropóloga. Ela falava com ele e depois ele ficava... Ele põe ela no lugar da mãe e a mitificou. E depois ele descobriu o amor. E ela falou: “Que é isso? Eu estou só estudando, pára com isso. Não vou com você”. Que tombo ele levou! Tão grande, assim... Então era isso a novela. Era a história de um homem e o seu percurso ao conhecimento. E ele terminava como senador da República. Então essa novela era de muito sucesso. Eles, no último capítulo... Eles queriam comprar até um horário no Fantástico [promaga dominical de variedades, exibido pela Rede Globo] e diziam assim: “Não! Não! O sonho não acabou! O nosso vice é o Sassá Mutema”. Cara eu acho que a gente, ó, a gente punha o Covas no 2º turno. Eu acho que punha. Íamos pro palanque, mais Chitãozinho e Xororó [dupla de cantores de música sertaneja]... E no 2º turno ia complicar pro Collor [Fernando Collor de Mello, do PRN, o candidato que venceu a eleição daquele ano], porque o Covas, se vocês se lembram, ele ganhou em São Paulo, na capital. Ele perdeu no interior. Ganhou no interior o Maluf, e ele ganhou em São Paulo e o Collor ganhou.

Cunha Jr.:? E você se arrepende de não ter aceitado?

Lima Duarte: Não... é.... bom... Aí foram me convidar no dia eu que eu tava gravando o último capítulo, o José Serra, o Fernando Henrique Cardoso... E quem teve a idéia mesmo foi o Zé Richa, o senador José Richa [do PSDB do Paraná], que leu uma entrevista que eu dei pra Playboy - que era muito importante naquele tempo, fazia grandes entrevistas, e foi escrita por um jornalista maravilhoso chamado Carlos Maranhão, que eu faço questão de homenagear. E ele foi com aquela entrevista na mão dizendo “Esse homem tem que estar conosco! Tem que ser.. e coisa e tal”. Pode achar uma loucura, o telespectador pode achar “Esse cara é um delirante é um louco”. Mas quem foi o candidato a vice na chapa do Covas? [vira-se para o Markun] Você não vale, Markun! Quem foi?

Sérgio Rizzo: Roberto Magalhães.

Lima Duarte: Não! Esse... Pensou-se nele mas depois tiraram. Você viu? Se tivesse sido eu você lembrava, né? [risos] Sabe quem foi? Almir Gabriel. Governador do Pará. Mas eu... A minha filha falou “Pai, eles vão te destruir. Olha o que eles fizeram com esses aí que foram prefeitos. O dono do Itaú, acabaram com ele. O Ermírio de Moraes foi candidato e acabaram... Eles vão te destruir, pai. Você desse jeito que você é, delirante como você é, lidando com esses fatos...” Aí eu falei: “Você tem razão, minha filha”. Mas, fiquei grande amigo do Covas, pelo menos isso, e do Fernando Henrique e do José Serra.

Paulo Markun: Lima a pergunta é de Flávio Honorati de Campinas. Você chegou a afirmar que Belíssima seria sua última novela. Será mesmo?

Lima Duarte: Não, eu não afirmei isso não. O que saiu lá no jornal é um absurdo, né? Pegaram um bate-papo... Vocês estão vendo como eu converso. E agora eu vi uma nova expressão outro dia: “editorializaram” um bate-papo. Aí você pega uma coisa que eu digo e põe pra cá, pega outra e põe pra lá. Me deixaram mal com os meus patrões, com os meus colegas e com os anunciantes. Mas foi tudo muito editorializado.

Paulo Markun: Isso foi uma entrevista da Folha de S. Paulo.

Lima Duarte: É, foi. Que foi muito... manipulada é uma palavra muito forte pra jornalismo, né. Não é isso. Mas, fizeram chamada, primeira página e tal. E eu trabalho há 35 anos na Rede Globo. Fui eu que fiz a Rede Globo, não posso não gostar daquilo. Claro que eu gosto! Claro que o que tem de melhor lá eu que fiz. Eu trabalhei lá. Foi lá que eu fiz o Sassá Mutema. E eles são, a nível empresarial, a nível empregatício, eles são maravilhosos. Me respeitam, gostam de mim, admiram meu trabalho.

Paulo Markun: Mas novela você continuará...

Lima Duarte: Novela é o seguinte. Na Belíssima, naquele momento, tava muito difícil pra nós, porque a Glória Pires, que é a atriz principal ficou doente. E naquele momento na novela, a outra mocinha que era atriz também, a Cláudia Abreu, tinha ido pra cadeia. Então eu não tinha muita cena. E tudo isso pegou o autor de surpresa e ele começou a escrever muito pra mim e tal. Para mim não, para minha casa, para o meu cenário que era um cenário de muito sucesso na novela, tinha lá a Cláudia Raia, a Irene Ravache, atores maravilhosos. E funcionava muito a casa do turco Murat. Então começou muito serviço e o capítulo chegava... Por exemplo, eu recebia o capítulo no meu sítio. O capítulo chegava à uma da manhã de sábado pra domingo para gravar segunda-feira. Então eu passava o domingo decorando. E eu estava cansado. Aí eu dizia: “Ai, estou cansado da novela”. Mas não estou cansado de novela. Era dessa. Esava cansado desse momento. Mas não pretendo... eu não sei se faço mais, não. Eu gostaria que agora eu fizesse uma novela assim pra mim. Uma novela mais ou menos como a do Sassá Mutema, para eu contar essas coisas aí. Uma novela de um homem, assim, de um brasileiro assim. Eu gostaria. Para ver, para colocar no ar todas as coisas que nós temos visto, que nós temos vivido, todos nós que trabalhamos em televisão. Eu gostaria que fizessem isso e eu faria com prazer.

Chico de Assis: E o Som Brasil [programa de televisão apresentado por Rolando Boldrin e Lima Duarte entre 1981 e 1984 na Rede Globo]?

Lima Duarte: O Som Brasil eu também gostava muito de fazer mas na ocasião eu trabalhava muito, eu estava gravando o Roque Santeiro. E estava gravando também O salvador da pátria. Eu gravava novela e vinha fazer o Som Brasil. Não dava tempo pra eu me aplicar, pra eu me dedicar integralmente. Seria bom eu fazer. Aliás, gostaria de fazer com o Rolando Boldrin [ator, apresentador e compositor. Apresenta o programa Senhor Brasil da Tv Cultura] um programa sobre a cultura brasileira. Nós dois, cantando, contando causo, proseando, falando de tudo, do padre Antônio Vieira até o Lampião [famoso cangaceiro nordestino]. Falando de tudo, tudo. Seria uma prosa que é muito... que é a nossa gente... muito divertida. Acho que eu respondi, né?

Ubiratan Brasil: Você começou com a televisão em 1950, mas você só conseguiu assistir mesmo à televisão com o advento do vídeo-tape, em 1958. Conta como é que foi isso. Como é que foi essa primeira vez que você se viu numa fita gravada.

Lima Duarte: A primeira vez que eu me vi mesmo foi nos olhos da minha mãe. Porque a minha mãe era eu. Posso ser acusado de muita coisa e serei, mas fui um grande filho. Minha mãe teve câncer. E ela quando estava pra morrer... Eu me separei da mulher com quem eu vivia, meu irmão se separou da mulher dele e fomos os dois viver com a minha mãe porque eu sabia que eram os últimos anos dela. Então, ficamos lá. Eu aluguei uma casinha ali na Freguesia do Ó [bairro da cidade de São Paulo] e fomos viver os três. Eu estava dirigindo Beto Rockefeller. Então ela ficava assim... Eu estive no Peru com o [Teatro de] Arena e trouxe um casaquinho pra ela, pra ela ficar na cama deitadinha. E ela via televisão fazendo tricô. Aí entrava uma voz diferente e ela “Ah, o bandido”. E continuava assim... “Ah, a mocinha”. E eu chegava e perguntava: “Mãe, a senhora viu o capítulo do Beto Rockefeller?” E ela dizia: “Meu filho, você tá cada vez pior”. “Mas, mãe? Por que, mãe?”; “Você não tem porte! Você perdeu o porte.” Os personagens da gente... ela achava que eu não tinha porte, que eu trabalhava assim [com a postura arqueada]. Eu gostava muito de saber o que ela pensava de mim. Foi assim que eu comecei a ver televisão, através dela, ou, através do tricô dela. Ela ouvia...Mas a primeira vez que eu me vi foi no Shakeaspeare [Willian Shakeaspeare. 1616-?. Dramaturgo e escritor inglês, escreveu grandes clássicos da literatura mundial, entre eles Romeu e Julieta e Hamlet]. O primeiro Shakespeare da televisão também foi eu que fiz. Isso foi uma glória. Foi o Hamlet.

Chico de Assis: No cinescópio.

Lima Duarte: Não. Foi no vídeo-tape mesmo. Naquela fitona de vídeo-tape. Que cinescópico! Não era aquilo não. Era vídeo-tape, que o cara emendava a fita, né? Era pah! Slice! Corta e emenda, porque tinha o aparelho de vídeo-tape, tinha a cabeça de som e a cabeça de imagem. De maneira em que havia uma pequena diferença de som e imagem no vídeo-tape, né? Ele passava... Emendava, depois passava pra ver se ficava bom. Às vezes ficava tão ruim que tirava a emissora do ar [faz barulho de fita enroscando] Então nós fizemos o Hamlet. E eu fiz o Hamlet. Foi de onde saiu também a primeira crítica de televisão. Quem escreveu a primeira crítica que foi publicada no O Estado de S. Paulo foi o poeta Guilherme de Almeida [1890-1969. Poeta, jornalista e ensaísta], príncipe dos poetas. Ele escreveu uma crítica a respeito desse Hamlet. Então era tudo assim: um é do Assis Chateaubriand, o outro é do Júlio de Mesquita [1892-1969. Proprietário do jornal o Estado de S. Paulo] E eles eram rivais, né? Então, ele dizia: “o Shakespeare do Chateaubriand, até que o Hamlet dele tinha psique du rôle. E era eu! Então ele concluiu assim: “o espetáculo esteve patético, mas não esteve ridículo”. É isso que nós tentamos ser até hoje: patéticos, ok! Ridículos, nunca.

Paulo Markun: Lima eu queria encerrar com essa bela frase sua. Na verdade essa transcrição do poeta. E só fazer uma pergunta que é a seguinte. Eu sei que você mora sozinho, já disse que não consegue casar mais, e tal. Como é que você falando tanto, consegue ficar quieto?

Lima Duarte: Eu sou muito quieto. Eu não falo, sabia? Eu só conto histórias e falo porque você pergunta. Eu moro sozinho e fico sozinho o dia inteiro. Pra mim a maior fonte de prazer e de alegria é o pensamento. Muito, muito, muito. Eu gosto. De noite, por exemplo, eu caminho e gravo o que eu gosto. Mas é... Mesmo os sermões do Padre Antonio Vieira, o Nietzsche. O que eu gosto, eu gravo. Boto aqui [aponta para a orelha] e caminho quilômetros e quilômetros por caminhos, campos, matinhos, florestas. Ouvindo as coisas que eu gosto. E é por isso que eu sei delas também, não é? Proust, e tal. É isso. Eu passo meses sem falar. Uma vez eu estava em Nova York e falei assim: “puxa, mas há quanto eu tempo eu não converso e não escuto a minha voz?” Porque eu não falava inglês. Eu ficava sozinho andando na rua...

Paulo Markun: Só falava por dentro.

Lima Duarte: É. Eu falava: “Mas, meu Deus, eu preciso falar com alguém. Só tem esses gringos aí. Precisa ver se a minha voz não sumiu.” Eu fiquei preocupado. Mas não sou muito chato assim não, de falar tanto assim. Você vai encerrar? [Pergunta para Markun] Posso encerrar com um... Tem duas coisas assim que eu acho, gostaria mesmo de oferecer aos espectadores essas coisas preciosas. Uma é o Nietzsche, O Nietzsche morreu louco. Ele era o próprio pensamento o raciocínio mesmo e o processo de loucura dele foi uma coisa terrível. Porque ele foi revertendo à primeira infância. E terminou incapaz das coisas mais comezinhas, no colo da mãe. No auge desse processo morre-lhe a mãe. Ele vai pro colo da irmã, que era louca, casada com um major, veio a fundar uma colônia nazista no Paraguai e largou ele sozinho. Mas ele tinha uns insights de lucidez. Num desses, ele escreveu o seguinte: [vira-se para a câmera] “Quem me dera ser mais sagaz. Quem me dera ser essencialmente sagaz. Como a serpente. Mas eu quero o impossível, porque eu quero que a minha sagacidade caminhe ao lado da minha lucidez. Mas um dia, quando a minha sagacidade for embora – Ah, como ela gosta de voar – possa então a minha lucidez caminhar ao lado da minha loucura.” E posso encerrar com um sermão do Padre Antônio Vieira? Que é uma lição de humildade. O padrão da minha vida. O meu mantra é: “Todo poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente.” Isso é uma experiência que nós podemos fazer aí com os poderosos de ocasião. O Padre Antônio Vieira, no sermão do 4º domingo da ascensão, ele sobe ao púlpito. Ele era muito requisitado, os sermões dele eram... tinha muita gente. E todos esperando um sermão sobre o quarto domingo da ascensão, o Cristo como imagem. Ele sobe e diz assim:“A mim a imagem dos meus pecados me comove muito mais que essa imagem do Cristo crucificado”. Estupefação, né? [olha para a câmera] “Diante dessa imagem do Cristo crucificado eu sou levado a ensoberbecer-me por ver o preço pelo qual Deus me comprou diante da imagem dos meus pecados é que eu me apequeno por ver o preço pelo qual eu me vendi. Por ver que Deus me compra com todo o seu sangue, eu sou levado a pensar que eu sou muito, que eu valho muito. Mas quando noto que eu me vendo pelos nadas do mundo, aí eu vejo que eu sou nada. Eu valho nada.”

 Aplausos

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