;

Memória Roda Viva

Listar por: Entrevistas | Temas | Data

Fábio Wanderley Reis

1/11/2004

O cientista político e professor emérito da UFMG analisa os resultados das eleições municipais de 2004 e a possível evolução dos processos eleitorais no país

Baixe o player Flash para assistir esse vídeo.

     
     

[programa ao vivo, permitindo a participação dos telespectadores]

Paulo Markun: Boa noite. Final de segundo turno, mais uma eleição concluída, políticos e partidos contabilizam vitórias e derrotas, já analisando o que pode melhorar e o que pode piorar nos seus projetos para 2006. Mas, é momento também de perguntar sobre o futuro político do país, o que as eleições têm nos ensinado e o que políticos, eleitores e o próprio processo eleitoral ainda precisam aprender, se é que há alguém que possa ensinar isso tudo para essas entidades. Para discutir essas questões, está no centro do Roda Viva o cientista político mineiro Fábio Wanderley Reis. Ele é um dos principais estudiosos do desenvolvimento da política no Brasil.

[Comentarista]: Nas capitais, o PSDB [Partido da Social Democracia Brasileira] levou a melhor em cinco delas: Teresina, Florianópolis, Curitiba, Cuiabá e São Paulo. O PT [Partido dos Trabalhadores] só ganhou em três: Vitória, Porto Velho e Fortaleza. Nas capitais, onde houve confronto direto entre os dois partidos no segundo turno, o PT conseguiu ganhar em Vitória e Porto velho. O PSDB teve resultados melhores, vencendo o PT em Curitiba, Cuiabá e em São Paulo, onde está o maior colégio eleitoral do país. No quadro...[vídeo pára no meio]

Paulo Markun: Bem, nós paramos o VT fora de hora e de lugar, mas vamos continuar aqui. Para entrevistar o cientista político Fábio Wanderley Reis, nós convidamos: Kennedy Alencar, repórter especial da sucursal de Brasília do jornal Folha de S.Paulo; Helena Chagas, diretora da sucursal de Brasília do jornal O Globo; Mauro Chaves, editorialista e articulista do jornal O Estado de S. Paulo; Antônio Octávio Cintra, professor e especialista em ciência política pelo MIT [Massachusetts Institute of Technology] dos Estados Unidos; Luciano Suassuna, diretor de redação da revista Isto é Gente; Carlos Novaes cientista político e analista de política da TV Cultura. Acompanham a entrevista em nossa platéia os seguintes convidados: Ana Luísa Saibro, jornalista e diretora da ONG Transparência Brasil; José Paulo Martins Júnior, aluno de pós-graduação em ciência política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP [Universidade de São Paulo]; Rafael Mantovani, aluno do curso de graduação da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP [Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]; Ruth Esporme, fundadora e vice-coordenadora da ONG Movimento Voto Consciente; Raquel Estensel, editora da agência de notícias Reuters, em São Paulo; Carlos Eduardo Meireles Mateus, professor de ética da PUC-SP e consultor na área de Opinião Pública; Melina Negrini, estudante de jornalismo das Faculdades Integradas Rio Branco; Cristini Faustino, estudante de pós-graduação em farmácia na Universidade de São Paulo; Leda Arachiro, estudante de jornalismo das Faculdades Integradas Rio Branco; Sidomar Biancardi Filho, arquiteto e mestrando em arquitetura e urbanismo pela [Universidade Presbiteriana] Mackenzie; Olímpio Augusto Ribeiro, arquiteto e especialista em conservação de monumentos históricos pela Universidade Federal da Bahia. O Roda Viva, como você sabe, é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para o Distrito Federal pela rede pública de televisão. Você pode também acompanhar o programa pelo próprio site que é: www.tvcultura.com.br/rodaviva e por intermédio da rádio Cultura AM. Para participar do programa, você pode fazer suas perguntas pelo telefone (011) 3252-6525 ou pelo fax 3874-3454. Pode também mandar sua pergunta, sua crítica, sua sugestão pelo e-mail rodaviva@tvcultura.com.br. Bom, antes de a gente começar, vamos então ver aquele VT que estava sendo exibido logo no começo e que mostra o quadro partidário que surge dessas eleições. Cada partido experimenta uma situação nova, isso muda o ambiente político no país. Vamos ver.

[Comentarista]: Fábio Wanderley Reis é professor emérito de filosofia e ciências humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em ciências políticas por Havard, pós-graduado em sociologia no Chile, foi professor visitante em outras universidades no Brasil, Estados Unidos e Europa. Seus estudos e análises já resultaram em inúmeras publicações acadêmicas, além de artigos e livros. Em Mercado e Utopia [2002], ele reflete sobre mecanismos de análise das relações entre Estado e sociedade, processo eleitoral e relações raciais no país. Em Tempo presente, do MDB a FHC [2002], seu mais recente livro, Fábio Wanderley Reis reúne artigos publicados em jornais entre 1978 e 2001. São indagações e questionamentos a respeito do mundo globalizado e da transição democrática brasileira. O livro analisa conjunturas que foram se apresentando no mundo desde o que ele chama de "estranha derrocada do socialismo, fim da geografia e crise da globalização". No plano nacional, o autor reflete sobre um país onde a discussão sobre democracia e legitimidade inclui a esperteza. É um país que se divide entre civismo e cinismo, entre verdades privadas e mentiras públicas e que, no final, ainda pergunta: “Que crise é essa?”.

Paulo Markun: Repetindo ou aproveitando a pergunta, professor, que resultado eleitoral é esse? Que cenário o senhor acha que sai dessa eleição municipal? Quem ganha e quem perde?

Fábio Wanderley Reis: Bem, acho que nós temos dois ganhadores muito claros: PT e PSDB. Apesar das oscilações, de quem terá ganhado mais no primeiro turno ou no segundo turno, claramente os dois são os grandes vitoriosos e acho que se justifica aquilo que tem sido dito por muita gente de que há uma polaridade estabelecida na política brasileira entre esses dois partidos.

Paulo Markun: O senhor pensa que há essa polaridade?

Fábio Wanderley Reis: Acho que sim. O que resulta no segundo turno, na verdade, é algo que já apareceu com bastante nitidez no próprio primeiro turno. Temos nas eleições de agora um desdobramento com um passo a mais no processo que, na verdade, começou com a abertura democrática com a restauração da democracia em 1985. Parece que talvez o ponto mais alto foi na eleição do Lula para presidente da República nas últimas eleições, em 2002, pelo ineditismo da situação que se criou, com a chegada à Presidência da República de um partido que, afinal de contas, era de origem revolucionária, do ideário socialista, o que remete a uma longa história em que esse partido - ou outros de esquerda - era objeto de um veto latente ou explícito que produziu longas turbulências na história brasileira das últimas décadas. Isso culminou, inclusive, no regime de 1964, em que nós tivemos vinte anos de ditadura. Com a eleição do Lula, há uma nova fase. Nós temos evoluído de uma maneira muito satisfatória diante desse teste que a eleição do Lula representa. Estamos vivendo, como disse agora, uma etapa nova e boa no sentido de que os dois partidos em torno dos quais se estabelecem as polaridades representam algo de positivo no quadro que nós temos. Além do período autoritário, nós temos uma longa história de presença de partidos de lideranças personalísticas, partidos excessivamente clientelistas, realistas, pragmáticos etc. Acho que o PT e o PSDB representam algo de singular e positivo nesse quadro.

Kennedy Alencar: Professor, até o começo dessa eleição, o presidente Lula tentava de alguma maneira uma aproximação com o PSDB. Em 2003, negociou com alguns setores do PSDB para aprovar reformas importantes no Congresso [Nacional]. Alguns líderes do PSDB acham que uma grande contradição dessa eleição é que essa polaridade que o senhor vê fixada entre PT e PSDB pode, de alguma maneira, impedir um salto de qualidade do país. Algumas pessoas vêem que esse salto de qualidade aconteceria com o diálogo entre PT e PSDB. Em que medida esse resultado eleitoral, essas feridas eleitorais de uma disputa aqui em São Paulo, que foi muito dura, podem viabilizar esse diálogo ou não? Em que medida isso seria importante para o país?

Fábio Wanderley Reis: Eu não acredito que inviabilize. Inclusive, já está havendo acenos muito claros pelo noticiário de hoje, o próprio Lula está empenhado em desarmar espíritos e estabelecer diálogos e até a possibilidade de encaminhar ao Congresso as reformas que são necessárias para dar viabilidade a uma administração minimamente adequada. Acho que, evidentemente, existiria a possibilidade - e isso se colocou muito claramente alguns anos atrás - de união entre PSDB e PT, o que seria até uma fusão.

Kennedy Alencar: Isso fica distante agora, não é?

Fábio Wanderley Reis: Por outro lado, isso é a expressão de uma lógica que pode ser vista contendo um lado positivo, quer dizer, na verdade, os extremos do espectro ideológico estão inviabilizado neste país. É difícil imaginar alguém se apresentando propriamente como direita sem condição de fazer um aceno populista ao povão. Está aí o caso do PFL [Partido da Frente Liberal, tornou-se mais tarde o Democratas], que não viabiliza um presidente da República desde...[não completa a frase]

Mauro Chaves: O senhor acha que haveria realmente essa possibilidade? Veja o fato de o PSDB da oposição ter tido um comportamento, no início, apoiando as reformas. Isso em nenhum momento descaracterizou o PSDB. Não concordo com essa interpretação segundo a qual  os dois partidos tendiam a uma unidade ou união. Eu acho que nunca tenderam a essa união. Agora, o que existe é a bipolaridade, sem dúvida nenhuma. Ela está bem segmentada. Agora, uma coisa que eu queria que o senhor comentasse também é que o senhor falou que os dois partidos ganharam. Você não acha que quem ganhou realmente, quem demonstrou maturidade foi o eleitor, especialmente em São Paulo, que não entrou no convencimento fácil do marketing, da propaganda cara? Você não acha que houve uma certa evolução crítica? Aqueles resultados se mantiveram. Não houve apelo, não houve nada que modificasse aquilo que o eleitor já tinha achado. Você não acha que houve evolução em termos de maturidade crítica do eleitor, tendo em vista especialmente o que aconteceu em São Paulo? 

Fábio Wanderley Reis: Olha, minha perspectiva ideológica é bastante restritiva com relação à avaliação do eleitor e das disposições que ele manifesta. Certamente é possível encontrar uma certa consistência que teria se manifestado agora no caso de São Paulo como você está citando, o fato de que certas identificações que se produziram de maneira precoce no processo se mantiveram. Mas, na minha avaliação, isso não quer dizer muito do ponto de vista de abertura, de sofisticação, de entendimento refinado ou determinação no sentido mais nobre do eleitor. Eu acho que tem a ver com mecanismos que produzem essa identificação, que operam há muito tempo e que são indicativos de uma certa singeleza. É claro que isso não significa que essa palavra valha para todas as camadas do eleitorado, mas acho que ela vale para boa parte, para a ampla maioria do eleitorado, que é o eleitorado popular...

Helena Chagas: Será que não houve talvez uma evolução no sentido de que, na maior parte das capitais e das cidades, a escolha foi mais com base em critérios administrativos do que propriamente políticos? A gente vê que várias lideranças tradicionais clientelistas praticamente acabaram, não conseguiram se eleger e nem eleger seus indicados em vários lugares. Isso não seria um passo à frente?

Fábio Wanderley Reis: Sem a menor dúvida, isso me parece até um passo à frente, mas eu acho que a razão para isso está, antes de mais nada, na identificação que se estabelece com os partidos, na identificação partidária. 

Helena Chagas: O senhor acha que os partidos saíram mais fortes dessa eleição?

Fábio Wanderley Reis: Acho que sim. Nós temos uma longa história, desde a época da ditadura militar, de manipulações do quadro partidário que não permitiram ao eleitor o pensamento que vem acontecendo agora com o repetido protagonismo eleitoral de PT e PSDB. Isso é principalmente a identificação do eleitor com um determinado partido. No momento em que ele começava a se identificar, a decidir, a estruturar o quadro político partidário, lá vinha alguma modificação! Agora nós temos tido, como eu disse, o protagonismo desses dois partidos e a possibilidade de se estabelecer isso. Essa é a grande razão porque lideranças personalistas como ACM, Maluf e Garotinho vêm perdendo consistência e penetração. Quanto à questão de se dizer que o eleitor se orienta por questões locais ou por questões nacionais, acho que o critério decisivo não é tanto a atenção para as questões específicas em jogo, mas é precisamente a identificação com os lados que se abrem e que agora tendem a tomar a afeição especialmente desses dois partidos: PT e PSDB.

Antônio Octávio Cintra: Fábio, retomando esse ponto da percepção do eleitor, você não acha que, apesar disso que você está apontando, sobre uma certa identificação maior ao redor desses dois partidos, a política de coalizões, a que o presidencialismo brasileiro obriga os presidentes e os partidos que chegam ao poder, não contribui para diminuir exatamente essa identificação, essa idéia de "farinha do mesmo saco" que está na cultura cívica da população? Você não acha que isso é uma coisa séria também em termos de futuro, no sentido de que o sistema tem que ser inteligível para o eleitor, de que você tem que criar lealdade e assim por diante?

Fábio Wanderley Reis: Eu acho que, certamente, é um fator que opera na direção contrária do que eu estou dizendo. Ele opera no sentido de diluir as identidades e dificultar as identificações por parte do eleitor.

Antônio Octávio Cintra: Mas você tem um requisito estrutural que é ter coalizão, não é? E a coalizão atual é até curiosa porque você vai da extrema esquerda aos mais conservadores e pula o centro. A coalizão do [presidente] Fernando Henrique era mais centro-esquerda e centro-direita. Agora você tem uma situação em que o elástico estica demais...

Paulo Markun: São "farinhas de vários sacos"!

Antônio Otávio Cintra: É, exatamente. [risos]

Fábio Wanderley Reis: Eventualmente isso poderia ser até uma das razões do desgaste do PT em determinadas localidades, de perder a eleição...Há um certo comprometimento do simbolismo associado ao partido que ajudava nessa identificação, não é? Ele foi comprometido com alguns eventos mais ou menos recentes.

Helena Chagas: Você atribui as derrotas do PT no segundo turno - porque ele teve grandes vitórias no primeiro turno, mas no segundo levou várias “surras” em São Paulo, Porto Alegre - à falta de coalizão? Ele perdeu justamente nos lugares onde não fez coalizão!

Fábio Wanderley Reis: É, eu acho que o caso de São Paulo é claro. Havia possibilidade de coalizão com o PMDB [Partido do Movimento Democrático Trabalhista], mas ela foi descartada. Aliás, curiosamente, alguém interpretava a derrota como sendo resultado de pensamento de alianças sem critérios, quando a derrota foi por causa da falta de alianças. Eu acho que são duas coisas diferentes, uma é a aliança que pode ajudar eleitoralmente e que tem importância do ponto de vista da governabilidade, outra é o apelo do partido ao eleitor. Uma coisa pode eventualmente interferir na outra...

Paulo Markun: Há um dado curioso: em algumas capitais e cidades grandes onde o PT estava fora da disputa no segundo turno, há um registro de crescimento significativo no número de votos nulos. É o único lugar onde se expressa isso, não há registro de aumento de votos nulos, eles sempre ficaram em torno de 2%, salvo, por exemplo, em Florianópolis, onde o PT ficou fora da disputa e não se sentia confortável à militância, em que os votos nulos chegaram a quase a 10%. Isso, de alguma forma, indica alguma identificação maior entre eleitor e partido?

Fábio Wanderley Reis: Claro, me parece que isso vem na direção dessa idéia de identificação.

Luciano Suassuna: Professor, você não acha que houve um dado novo nessa eleição de São Paulo, no sentido de que uma das coisas que mais aglutinou força ao candidato José Serra foi justamente uma certa oposição à criação de taxas e aumento de impostos, feitos pela prefeita Marta Suplicy [Serra ganhou a eleição para prefeito de São Paulo com 55% dos votos no segundo turno]? Houve um eleitor expressivo que votou, que se uniu, que foi ao Serra, contra esse aumento de taxas, para protestar contra aumento de imposto. O voto contra o imposto não é um dado novo na eleição política brasileira?

Fábio Wanderley Reis: Eu duvido muito que isso tenha sido um critério decisivo para ampla parte do eleitorado, para a maioria do eleitorado. Acho que a coisa decisiva no caso da Marta é aquilo que tem sido destacado. Neste país, imaginar que um político no exercício do cargo, mesmo que fosse um homem, se separasse do cônjuge, se casasse e ainda ganhasse a eleição, seria um resultado prodigioso. No caso de uma mulher, tratando-se de uma Marta Suplicy, é uma razão.

[...]: O senhor acha que isso foi o fator principal?

Fábio Wanderley Reis: Acho que essa foi a razão decisiva.

Mauro Chaves: O senhor acha tão importante esse fator?

Fábio Wanderley Reis: Acho, porque o eleitor acha...

Mauro Chaves: [interrompendo] Então o senhor acha que realmente houve preconceito contra a prefeita Marta?

Fábio Wanderley Reis: Acho que há preconceito. Eu diria o seguinte: isso tem a ver com o ponto que eu destacava antes de uma visão restritiva do eleitorado popular. No caso, há uma percepção que contém um elemento de machismo, que é preconceituosa etc. Há um eleitor que é simpático ao Suplicy, que o elege repetidamente e que, de repente, viu nele uma vítima...

Mauro Chaves: Mas ele apoiou a prefeita o tempo todo!

Fábio Wanderley Reis: Tudo bem, mas pode ser que alguém tenha interpretado isso de uma maneira negativa: "Ele ainda continua a apoiando mesmo depois de tudo...".

Luciano Suassuna: Mas o senhor não vê dessa forma o caso do ex-presidente Itamar Franco, que se elegeu governador do seu estado [Minais Gerais] depois daquele episódio do Carnaval [No Carnaval de 1994, o ex-presidente Itamar Franco foi fotografado ao lado da modelo Lílian Ramos nos camarotes da Marquês de Sapucaí. A foto, que estampou revistas e jornais de todo o país, mostravam que Lílian estava sem calcinha], depois de ter tido várias namoradas? Isso não influenciou em nada, a ponto de ele conseguir o mandato...

Fábio Wanderley Reis: Acho que isso foi na mesma direção. O eleitor mineiro que elegeu Itamar Franco é um eleitor tosco. O decisivo foi o simples fato de que Itamar era o ex-presidente da República...

[...]: Prestígio de ex-presidente...

Fábio Wanderley Reis: Foi a mera visibilidade trazida pelo fato de ter sido presidente da República. Isso não qualifica, não nos permite falar bem do eleitor, ao contrário, nos permite falar mal do eleitor!

Paulo Markun: Aldo de Souza, do Rio de Janeiro, pergunta: “Que tipo de projeção nacional o prefeito César Maia pode ter para as eleições de 2006? O senhor acha possível uma chapa com [Geraldo] Alckmin [ver entrevista de Geraldo Alckmin no Roda Viva] e César Maia [prefeito do Rio de Janeiro por três mandatos. Ver entrevista de César Maia no Roda Viva]?”.

Fábio Wanderley Reis: Confesso que não sei, acho que é possível sim, dependendo das voltas que o mundo dê até lá.

Kennedy Alencar: Essa chapa terá peso para enfrentar o Lula, professor? Qual é o efeito dessa eleição de 2004 em 2006? Como o senhor vê isso?

Fábio Wanderley Reis: Se depender da ajuda do César Maia, não. Acho que o Alckmin, eventualmente, pode ganhar. Certamente, ele aumentou suas chances com a vitória do Serra, com a vitória do PSDB no estado e no sul do país. Mas, ainda assim, vai ser preciso se cacifar muito para chegar...

Mauro Chaves: Na sua análise, houve federalização? Isso se discute muito...O José Dirceu disse que não houve nenhuma, porque o PSDB não federalizou. Isso é meia verdade, pois no início o PSDB realmente não quis federalizar, não mencionava o Lula etc. Acontece que, na hora em que o presidente da República tem uma participação direta, como nunca teve antes, ele realmente jogou,  ficou sócio dessa derrota. Então, descolar a figura do Lula é muito difícil, não se pode dizer que a Marta perdeu por causa do Lula, mas é muito difícil descolar porque ele investiu nisso diretamente, houve uma federalização que, no meu entender, o próprio PT começou. Eu queria sua análise a respeito disso. Houve uma perda significativa também do PT em Porto Alegre e em São Paulo, que são dois lugares simbólicos, não é? Eu queria saber se isso, na sua opinião, não vai ter algum reflexo quanto às forças que vão disputar as eleições de 2006.

Fábio Wanderley Reis: Eu acho que algum reflexo fatalmente tem. Concordo inteiramente que as perdas em São Paulo e em Porto Alegre tiveram um impacto importante. Afinal de contas, São Paulo é o terceiro orçamento do país, é o maior e mais importante município, com alta visibilidade, de peso, tem também o aspecto simbólico pois é o berço do PT. Porto Alegre também ganhou uma dimensão, é a grande vitrine, o PT está lá há muito tempo e tal. Claramente, isso tem um impacto importante. Houve um certo abalo para o PT, um aspecto de derrota para o PT, que vai exigir recomposições, negociações, ajustes e tudo mais. No entanto, acho que a conexão efetiva, como a que vai acontecer em 2006, ainda é remota. Acho que não há nenhuma ligação óbvia. É bom lembrar que quando o Fernando Henrique estava na Presidência, o Serra perdeu a eleição em São Paulo e nem por isso o Fernando Henrique foi comprometido.

[...]: Se bem que ele não se envolveu na campanha como o Lula...

Carlos Novaes: Professor, o senhor deu entrevista nos últimos anos e escreveu ensaios, onde o senhor registrava a chegada do PT à Presidência da República como um elemento de teste para as instituições da democracia brasileira. É considerado que, para fazer esse teste, o PT precisou abandonar vários aspectos que precisamente nos levavam a pensar que haveria um teste. O PT  suavizou-se a tal ponto que vários elementos de teste foram abandonados ou apagados. Até que ponto realmente, depois de dois anos de governo Lula, o senhor sustentaria que o PT significou um teste para o que quer que seja? Até que ponto a cultura e dinâmica da tradicional política brasileira engoliram o PT? As eventuais arestas, que poderiam significar teste, estão condenadas a desaparecer em muito pouco tempo?

Fábio Wanderley Reis: É, eu acho que houve um teste sim, é bom lembrar o que aconteceu no momento da campanha. Alguém andou dizendo na imprensa, o Ricupero [ex-ministro Rubens Ricupero, diplomata. Ministro da Fazenda de março a setembro de 1994] e outras pessoas, que a gente sofreria do que antes surgiu quando a esquerda  ameaçava ganhar uma eleição, que agora nós teríamos o golpe de mercado. De repente, estava posto um cenário catastrófico, a “argentinização” [crise argentina] que o próprio governo Fernando Henrique andou brandindo como a ameaça que vinha no horizonte [Durante uma entrevista em 2002, FHC afirmou que o Brasil poderia ficar em crise como a Argentina caso elegesse políticos incompetentes e sem respeitabilidade]. A imposição de realismo, de moderação, de buscar aplacar a fera, era inevitável, era uma efetiva imposição para o partido. Por outro lado, com uma aprendizagem rápida e na "canelada", eles repetem a trajetória que nós vimos nos partidos socialistas europeus, que começaram em muitos casos como partidos efetivamente revolucionários, afinal de contas, sua democracia era sinônimo de partido marxista, revolucionário etc...

[...]: [interrompendo] Quer dizer que o reformismo é uma obrigação?

Fábio Wanderley Reis: ...e depois se transformou em sinônimo de equilíbrio, de moderação etc. O que eu diria é o seguinte: ainda bem que aconteceu isso! É um teste para a democracia no sentido de que houve esse aprendizado, quer o PT goste disso ou não, para ele se viabilizar eleitoralmente e para ter condição de administrar. E o PT está tendo condição de administrar em boa parte porque fez esse aprendizado, senão nós certamente estaríamos...

[...]: [interrompendo] Não foi rápido demais, professor? Não foi na "canelada" demais, não?

Fábio Wanderley Reis: Eu faço questão de acrescentar uma coisa. É bom a gente registrar que o fator crucial da ameaça que tivemos durante muito tempo e que levou à 1965 não está morto. Antes de começar o programa nós estávamos falando de acontecimentos recentes envolvendo o aparecimento das fotos do Brizola. Nós tivemos aquela nota fantástica do Exército, tivemos a dificuldade do governo para obter a retratação, houve várias notas que foram recusadas. O Lula estava lá e teve que ditar...Nós tivemos, por exemplo, um artigo do ex-ministro Jarbas Passarinho no jornal dizendo "Humilhação não!"...

[...]: [interrompendo] Fábio!

Fábio Wanderley Reis: Um instante só! Isso me fez lembrar o ex-ministro chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos do Itamar Franco, o Mário César Flores, dizendo em 1994: “O regime civil não é a rendição incondicional das Forças Armadas, é um mero armistício”, quer dizer, a instituição militar tem uma relação problemática com a sociedade, tem uma relação de exuberância, ela não resolveu isso, ainda não domesticamos a fera.

Carlos Novaes: Professor, só para fazer uma nota polêmica, porque esse debate é para isso...Eu estou de acordo com o senhor em várias coisas, principalmente com essas suas ressalvas a respeito do compromisso do outro lado com as lições democráticas e tal, mas quando o senhor faz essa comparação da trajetória do PT com a social-democracia, eu gostaria de fazer uma nota polêmica. Primeiro, o PT fez isso de maneira totalmente irrefletida, ou seja, foi um processo totalmente inercial de adesão às circunstâncias e não foi precedido nem acompanhado por um profundo debate, como foi lá. Segundo, esse processo inercial levou o PT a um processo de descaracterização que não aconteceu lá! Onde se localiza isso? Nas alianças, que dizer, o Brasil fez um esforço danado nos últimos anos com a ajuda do PT para compor blocos de alianças muitos claros que ajudavam a organizar a cabeça desse eleitor que o senhor chama de precário. Agora o PT fez tal ordem de alianças que nunca se viu ninguém na Europa fazer isso. Não houve alianças de extremos opostos como está havendo aqui! Então, de certa forma, há um processo de desconstrução de uma certa organização partidária institucional e principalmente imagética do esquema político brasileiro.

Fábio Wanderley Reis: Novaes, meu caro, Brasil não é Europa!

Carlos Novaes: Perfeito!

Fábio Wanderley Reis: Brasil não é Europa! O aprendizado foi nas "caneladas". Não é correto que não tenha havido reflexão, que não tenha havido colocação. Houve várias manifestações, houve programas que já colocavam a coisa moderada em 1999. Não é verdade que o partido tenha feito a caminhada para trás só depois de ter chegado ao poder. Agora, o que importa, apesar disso, é que quando se tratou das alianças, você não tem como jogar sem fazer isso neste país. As condições que levam principalmente à coalizão estão dadas, estão aí e é preciso jogar esse jogo se você quiser administrar. Você não tem escapatória para isso...

Kennedy Alencar: Agora, quando o PT faz uma aliança em São Paulo com o Maluf, ele não avançou demais, não foi na "canelada" demais? Como o Novaes está falando, isso não confunde a cabeça do eleitor? Aqui em São Paulo, professor, o PT sempre criticou o Maluf, e o Maluf [sempre criticou] o PT, ou seja, não se avançou além de uma linha, o que é prejudicial à democracia?

Fábio Wanderley Reis: Eu acho que sim, que confunde a cabeça de eleitor, mas o eleitor é passível de confusão em termos diferentes do que está sendo posto aqui. O eleitor estrutura o universo político em termos de lados percebidos singelamente, toscamente. Eu falei da "síndrome do Flamengo", em que você simplesmente opta pelo lado popular e adere a ele sem que a coisa envolva conteúdos específicos de qualquer natureza, não é? Nesse sentido, o Maluf é perfeitamente a fim com uma Luiza Erundina [prefeita de São Paulo pelo PT entre 1989 e 1993], com uma Marta Suplicy...

Mauro Chaves: O senhor me desculpe, o senhor me desculpe, professor Fábio, mas o senhor sempre se refere ao eleitor de uma forma depreciativa. É como se o eleitor brasileiro...Como o senhor diz "O Brasil não é Europa!", é como se o eleitor brasileiro fosse simplesmente um tosco, o senhor usa a palavra "tosco". Muito bem! O senhor não acha que esse eleitor está evoluindo, professor? Não é simplesmente tosco, ele está demonstrando... Antes se falava da ditadura dos marqueteiros, se falava muito que o discurso político tinha sido substituído por todas aquelas imagens e tal. O que esse eleitorado está mostrando agora é que ele resiste a isso...

Paulo Markun: Mas não houve marqueteiros no PSDB?

Fábio Wanderley Reis: Claro que houve...

Mauro Chaves: Todos têm, todos têm! Mas eu acho que ele tem resistido àquelas técnicas um pouco mais óbvias, mais emocionais.

Fábio Wanderley Reis: Eu acho que não é verdade. Desculpe, Mauro...

Mauro Chaves: Ele tem resistido mais, não tem?

Fábio Wanderley Reis: Eu acho que não é verdade, não. Eu acho que os marqueteiros estão aí, o bom é que os marqueteiros, estejam ajudando ou não o Maluf, estão [ajudando] o PT e o PSDB. Com isso, nós temos avanços. Quanto à questão do "tosco" no eleitorado...

Mauro Chaves: [interrompendo] Ele não é tão passivo assim, o eleitor brasileiro não é tão passivo dessa forma, não é tão tosco ou ignorante como o senhor dá a impressão.

Fábio Wanderley Reis: Enfim, isso parece a mera reiteração daquela frase famosa: “Nenhum eleitor brasileiro sabe votar”. Por outro lado, eu estou me referindo aos dados de pesquisas feitas ao longo de décadas, onde, reiteradamente, o eleitorado brasileiro aparece como o grande campeão negativo em planos latino-americanos, por exemplo, diante da pergunta sobre o que é democracia. A porcentagem de respostas completamente equivocadas ou que não fazem o menor sentido no Brasil é 64%. O segundo colocado, que é El Salvador, se não me engano, com 43%. A gente se esquece com freqüência do peso negativo do... O Brasil é, afinal de contas, o único grande país moderno que tem um legado maciço da escravidão. A gente tem o sul dos Estados Unidos - a escravidão perdeu a guerra lá - e a gente tem alguns países do Caribe e o Brasil. O legado dessa coisa está aí, é pesado, há ineficiências educacionais associadas às ineficiências materiais. Então, pensar que 60% desses eleitores, que não têm a mínima idéia do que é democracia, vão se orientar de uma maneira minimamente sofisticada diante de questões complicadas, não vão! Eles vão agir toscamente...

Mauro Chaves: Tem havido uma evolução, professor...

Fábio Wanderley Reis: Tem havido evolução.

Mauro Chaves: Tivemos impeachment [do presidente Collor], Diretas Já, acho que tem havido uma evolução...

Fábio Wanderley Reis: Evolução sempre há, evolução sempre há. Eu mesmo estou apontando um fator de evolução na medida em que se criam condições que permitem a identificação com partidos, coisa que a perturbação do nosso processo não vinha permitindo. Isso é um avanço, isso é um avanço. Agora, as condições que têm que ser criadas têm que ser propícias para esse eleitor que é singelo, desinformado, desatento à política, que não está prestando atenção...

[...]: [interrompendo] Professor.

Fábio Wanderley Reis: ...na sua ampla maioria. Se nós não fizermos isso, se nós não enquadrarmos a coisa institucionalmente de uma maneira que favoreça a mobilização em direção a esse eleitorado...

Mauro Chaves: [interrompendo] E qual seria a forma de fazer isso, professor?

Fábio Wanderley Reis: Eu acho que é, por exemplo, o que nós estamos mencionando de que, ao invés do enfrentamento que leva à briga, ao golpe, às regras casuísticas a respeito de partidos, ao desmanche permanente da estrutura partidária...Se nós tivermos a possibilidade de estabelecer identificações em que os partidos passem a contar e possam funcionar como freios para as identificações populistas, para a manipulação populista, isso é um avanço. Há um ensinamento importante aí, é bom lembrar que no período entre 1945 e 1964 nós não tínhamos, por exemplo, a troca-troca partidária que passou a ser regra agora. PSD [Partido Social Democrático] e o UDN [União Democrática Nacional, partido de oposição a Getúlio Vargas cujo maior rival do PSD] permitiram uma identificação, produziram uma identificação real em torno da figura de Getúlio Vargas. Havia de um lado um partido identificado com Getúlio e havia o que o hostilizava, girava em torno disso. Outro dia, eu conversava com uma jurista mineira que é de uma cidade do norte de Minas Gerais e ela me dizia que na terra dela até hoje é PSD e UDN.

Helena Chagas: Professor, passando pela questão da democracia que o senhor falou aí, nessa campanha eleitoral, nós observamos que a oposição perdeu o discurso da economia. Então, lá pelo meio da campanha, eles buscaram um novo discurso que era chamar o PT de autoritário, aproveitar uma série de ações do governo, meio atabalhoadas, para tachar o PT como autoritário, de difícil convivência com as instituições democráticas. Parece que esse argumento colou um pouco ali em São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, quer dizer, o PT perdeu o voto junto à elite nesse Brasil próspero. Será que foi um pouco em função do discurso do autoritarismo que os tucanos souberam usar com muita habilidade em um determinado momento da campanha eleitoral? Será que esse discurso colou no governo do PT?

Fábio Wanderley Reis: Eu acho que sim, em certos setores mais atentos isso certamente tem peso...

Helena Chagas: Nas elites?

Fábio Wanderley Reis: Não, digamos que [seja na] classe média para cima, o que não quer dizer que não haja também uma relevância em certas elites populares. Esse é um discurso que tem importância, tem relevância para determinados...

Helena Chagas: [interrompendo] Mas houve algum fundamento nisso? A democracia correu risco porque a Marta iria ganhar?

Fábio Wanderley Reis: Acho que definitivamente não. Esse é um discurso de jogo político. Todo partido procura a hegemonia. Quando o Sérgio Motta [(1940-1998) político brasileiro, um dos fundadores do PSDB. Foi ministro das Comunicações no governo FHC] falava de vinte anos de poder, ele estava sendo hegemonista?

Helena Chagas: Pois é! O senhor acha que o PT é pior do que o PSDB nesse ponto? O Fernando Henrique também participava de campanhas eleitorais, nós lembramos disso nitidamente...

Fábio Wanderley Reis: Imagine o Lula propondo a reeleição se nós não tivéssemos obtido a aprovação da reeleição [a instituição da reeleição foi aprovada anteriormente, durante o governo Fernando Henrique Cardoso]! Teria sido um "Deus nos acuda"!

Antônio Octávio Cintra: No caso do PT, houve tentativas de fazer a coisa lá dos jornalistas... quer dizer, iniciativas que davam um pouco esse débito, além do problema do aparelhamento do Estado, tudo isso...

Fábio Wanderley Reis: Concordo. Esse é um aspecto relevante, quer dizer, não se trata de fazer elogios sem matizes ao PT, efetivamente o partido tem uma necessidade de aprendizado. Esse aprendizado não se completou. O partido tem uma herança sectária que é evidente, é nítida. É possível citar, por exemplo, testes para a seleção de professores no Rio Grande do Sul. O governo do Olívio Dutra [político gaúcho, iniciou a trajetória política no sindicalismo. No período de redemocratização do Brasil, foi um dos fundadores do PT. Foi deputado federal, prefeito de Porto Alegre e, posteriormente, governador do estado], que era bobocamente ideológico, porque se fosse ideologicamente consistente, mas era uma bobagem, "bestialógico ideológico"...[não completa a frase] Eu me lembro de coisas parecidas acontecendo em Belo Horizonte. O partido ainda tem seus nichos, seus setores, sua herança sectária, não é? E com relação àquelas iniciativas todas, apesar de eu não concordar com a denúncia do pacote inteiro, acho que há muita arrogância da imprensa, arrogância profissional, na maneira como se andou denunciando...

[...]: Arrogância ou interesse?

Fábio Wanderley Reis: Ou interesse! A idéia de algum tipo de regulação da imprensa é mais do que necessária, não é? A tentativa de controlar o Ministério Público faz sentido em certos aspectos, o negócio de sair divulgando indícios e tudo mais. Mas, acho que a idéia de controlar funcionários públicos que não possam se manifestar é também inaceitável.

Paulo Markun: Professor, vou fazer algumas perguntas de telespectadores que remetem na mesma direção. Emílio Moretti, de Piracicaba, diz o seguinte: “Aqui em Piracicaba, o PSDB venceu o PT. Na eleição passada, o PT venceu o PSDB. A cidade contínua com os mesmos problemas. Até quando seremos laboratórios dos partidos?”. O Ney Araújo, de Contagem, em Minas Gerais, diz: “Com o PT perdendo as eleições importantes para o partido em termos políticos, como Porto Alegre e São Paulo, isso fará com que o eixo de decisão do partido passe mais agora por Belo Horizonte, fortalecendo o prefeito [Fernando] Pimentel junto ao diretório nacional já que ele obteve uma vitória expressiva?”. E, finalmente, pergunta mandada pela internet por Fabiano Lorenzo Lonvaler, que é gaúcho: “Não é estranho que uma capital politizada como Porto Alegre eleja José Fogaça, do PPS [Partido Popular Socialista], só por causa de um discurso "água com açúcar"?

Fábio Wanderley Reis: Bem, acho que no caso de Porto Alegre não é coisa que se diga. Afinal de contas, o PT esta lá há 16 anos. Isso é democracia, eleições se ganham e se perdem. Acho que o discursado no assunto provavelmente vai significar em boa medida a incorporação do que vinha antes. Ele foi muito explícito em dizer que vai dar continuidade a muita coisa e tudo mais...

Paulo Markun: Mas como isso se encaixa com a idéia de que entra um partido, sai outro partido e os problemas da cidade continuam?

Fábio Wanderley Reis: Não acho que isso seja verdade no caso de Porto Alegre, principalmente. O fato de que o Fogaça tenha reconhecido dar continuidade é um reconhecimento de que houve avanço hipoteticamente em uma boa administração. Isso pode servir de verdade em outros casos, em administração mal sucedida de um partido ou de outro. Acho que isso não afeta o diagnóstico geral de que nós temos dado um passo à frente quanto à identificação do eleitorado.

Paulo Markun: E essas derrotas de São Paulo e Rio Grande do Sul realmente reforçam o peso de Minas Gerais dentro do PT?

Fábio Wanderley Reis: Em relação ao PT, certamente! Especialmente no caso de Fernando Pimentel, que me parece ser uma liderança potencial emergente, isso tende a ser uma liderança de alcance nacional.

Paulo Markun: Aliás, só para registrar, senão daqui a pouco a gente vai achar que o marketing político desapareceu, essa foi uma das campanhas feitas pelo mesmo marqueteiro que perdeu a eleição aqui em São Paulo, que é o Duda Mendonça...

Fábio Wanderley Reis: O poder dos marqueteiros é relativo, acho que há muita mistificação em torno disso.

Mauro Chaves: Professor Fábio! Eu queria recuperar duas perguntas muito importantes sobre autoritarismo, feitas pela Helena Chagas e pelo Antônio Cintra, além de tocar também em uma coisa que o Suassuna falou sobre taxas. Foi mencionado aqui o autoritarismo do PT, não é? Se eu falar do aparelhamento, de outras coisas que foram mencionadas, eu lembro que uma declaração do José Eduardo Cardozo, que foi presidente da Câmara dos Vereadores [de São Paulo] e que é um deputado do PT, fazia a seguinte autocrítica: “Aqui no município de São Paulo, a Câmara dos Vereadores teve realmente uma postura autoritária do PT com relação às taxas”. Isso não foi discutido realmente pela sociedade, essas taxas todas que vieram de lixo, de luz, os partidos não entraram em discussão, foi uma certa demonstração de autoritarismo. É importante que o próprio partido comece a fazer essa autocrítica, como o Cardozo, que é um dos melhores quadros do PT, que foi presidente da Câmara dos Vereadores, que teve uma atuação importante, que é um deputado federal. Não era importante que houvesse uma reflexão desse tipo no PT agora?

Fábio Wanderley Reis: Sim, acho que o partido precisa refletir. Há outras coisas até mais importantes do que isso como, por exemplo, o episódio do Waldomiro Diniz [subchefe de Assuntos Parlamentares da Casa Civil, acusado de concussão, corrupção passiva e gestão fraudulenta. O caso foi investigado na CPI dos Bingos], da maneira como o PT se portou em relação àquilo, que foi absolutamente frustrante em relação à imagem que o PT tratou sempre de projetar, ou seja, que tinha compromisso com a dimensão social, com problemas sociais etc, mas também compromisso com princípios éticos. No entanto, nós vimos o PT, quando posto à prova com relação a isso, julgar realisticamente. Eu critiquei muito o governo Fernando Henrique Cardoso por esse aspecto durante a eleição. Todas as vezes em que FHC foi posto como presidente, diante da opção entre agir de maneira exemplar ou realisticamente, tratando de ser hábil politicamente, ele agiu sempre na direção dessa segunda alternativa, na direção realista, o famoso "soco na mesa", a idéia de que nunca se dispôs, nunca mostrou o limite. Muito bem! O Lula, de quem se esperaria alguma diferença, ao contrário disso, mostrou a semelhança.

Carlos Novaes: Uma evasão do teste!

Fábio Wanderley Reis: Uma evasão do teste, sem a menor dúvida. Com respeito ao teste, o que é decisivo a gente considerar é o condicionamento econômico. O ponto saliente da política de administração do governo Lula é a questão econômica que, desde o começo, leva críticas severas, inclusive de alas petistas de esquerda etc.

Kennedy Alencar: [interrompendo] Professor, mas o episódio do Exército...

Fábio Wanderley Reis: Só um minutinho, só para concluir isso aqui! O ponto crucial é que não havia opções reais, que dizer, a gente poderia imaginar o governo Lula optando por um enfrentamento dramático com os agentes do capitalismo internacional igual ao que nós estamos vivendo aí, o que significaria evidentemente perder condições de [...] minimamente adequadas na dinâmica econômica internacional. Isso criaria condições de turbulência institucional. Obviamente, isso tinha que ser evitado. O partido foi bem sucedido em evitar isso, o que não significa que ele tenha sido bem sucedido em outras faixas. Acho que a preocupação com o autoritarismo se justifica com certos aspectos importantes, o partido corre o risco de comprometer rapidamente, de desgastar rapidamente o capital simbólico que ele trazia especialmente ligado à ética...

Helena Chagas: O PT está devendo no social e é o partido que tinha a bandeira do social. O governo também não está devendo nessa área da ética?

Fábio Wanderley Reis: Eu acho que está devendo, mas aí as coisas ficam muito complicadas. Usando uma tese do presidente Fernando Henrique Cardoso, que pelo menos era atribuída a ele com freqüência, há a idéia de que política social, na verdade, seria política econômica, as coisas correm para baixo. Se você faz boa política econômica e se ela for bem sucedida, em algum momento no futuro indeterminado as coisas vão escorrer para baixo...

[...]: [interrompendo] Já não é a visão do PT...

Fábio Wanderley Reis: ...e vão beneficiar o quadro. Isso é inaceitável, até porque o país vem sendo economicamente dinâmico há mais de um século, é talvez o país que mais cresceu desde o fim do século XIX para cá. No entanto, a desigualdade está aí em termos inaceitáveis. É preciso sim haver assistencialismo, é preciso haver doses maciças de paternalismo estatal. Nós não vamos andar se não houver, evidentemente, esse paternalismo. Evidentemente, um estado democrático não pode ser aquele que apenas reage à capacidade diferencial de pressão dos diversos interesses, tem que ter...

Helena Chagas: [interrompendo] Então o Bolsa Família está correto?

Fábio Wanderley Reis: Claro, como concepção, o que não significa que não há problemas na execução, problemas de eficiência.

Antônio Octávio Cintra: Nas funcionalidades também, não é?

Fábio Wanderley Reis: Claro!

Antônio Octávio Cintra: Não é ser só paternalista, tem que ser...

Fábio Wanderley Reis: O grande problema é que você não pode simplesmente transformar o governo em um grande paizão assistencialista. Nesse sentido, tem que haver boa política econômica e boa política social. O Fernando Henrique, em algum sentido, tem razão sim. É preciso criar um processo consistente, no qual a política social possa derivar do êxito da dinâmica econômica do país. Então, é um jogo difícil, é um jogo complicado...

Paulo Markun: Nesse sentido, o PT está devendo ou não?

Fábio Wanderley Reis: Está devendo, só que me parece que é um pouco precoce a cobrança. O processo de produzir condições econômicas adequadas é um processo de maturação mais lento. É ilusão nas condições deste país que a gente falou antes pretender que vai ser possível consertar socialmente este país em uma perspectiva...

[...]: De uma geração?

Fábio Wanderley Reis: De uma geração onde tudo ela paga para ver...

Mauro Chaves: O senhor é muito pessimista!

Fábio Wanderley Reis: Eu acho que, na verdade, este país já deu errado. Basta andar pelas favelas do Rio de Janeiro, pela periferia de Belo Horizonte ou de São Paulo. Basta ver o noticiário do local, o noticiário sobre violência, em qualquer dia da semana. Basta ver o noticiário a respeito da desigualdade em geral. Há um sentido muito grande neste país que dá errado há muito tempo historicamente. Não estou falando de conjunturas de administração desse ou daquele governo. O desafio é consertar esse país "ruim", usando a expressão de Darcy Ribeiro [ver entrevistas do antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) no Roda Viva] que eu gosto de usar. Ele falava da ruindade do Brasil...

Mauro Chaves: O senhor é tão pessimista que o senhor não estimula a auto-estima! O senhor acha que o eleitor brasileiro é tosco, que tudo é ruim, que tudo está feio...

Fábio Wanderley Reis: Mauro, isso é irrelevante. Eu não quero saber se eu estou estimulando a auto-estima...

Mauro Chaves: Parece que o Brasil é o fim...

Fábio Wanderley Reis: Eu não quero saber se eu estou estimulando a auto-estima de ninguém. Eu quero saber o seguinte...

Mauro Chaves: Mas precisa estimular um pouco!

Fábio Wanderley Reis: Como nós vamos diagnosticar de maneira adequada e realista os problemas deste país para termos condição de agir numa perspectiva de tempo adequada para encaminhar todos os problemas? O resto é bobagem, essa história de que o brasileiro tem auto-estima ou não tem...Aliás, o governo Lula andou fazendo campanha a respeito disso, isso é conversa fiada. Inclusive, aquele negócio envolve um grande equívoco. Há uma pesquisa científica, de nível mundial, em que aparece: “O brasileiro não se sente em condições de confiar nos outros” e isso era transformado em falta de auto-estima. O dado negativo a respeito disso é o fato de que o Brasil é campeão negativo em plano mundial.

[...]: Em quê?

Fábio Wanderley Reis: A porcentagem de brasileiros que responde se você pode confiar nas outras pessoas é 3%, apenas 3%...

[...]: Não entendi...que responde a quê, professor?

Fábio Wanderley Reis: Que dão uma resposta positiva à pergunta "Você pode, em geral, confiar nas outras pessoas?".

Helena Chagas: Nos políticos então...

Fábio Wanderley Reis: Não, nem se fala! Isso evidentemente reflete a violência, reflete a corrupção, reflete as coisas ruins entre a população...

Luciano Suassuna: Professor, o senhor me parece também um pouco contraditório.

Fábio Wanderley Reis: Por quê?

Luciano Suassuna: O senhor não elogia o eleitor, mas elogia o fato de a gente ter saído com menos caciques políticos demagógicos e clientelistas nessa eleição. Ao mesmo tempo, reforça a necessidade de um estado patriarcal, é uma expressão do senhor...

[...]: Patriarcal não!

Fábio Wanderley Reis: Paternalista!

Luciano Suassuna: Paternalista, desculpe! Mas, como um professor, o senhor não falou em educação.

Fábio Wanderley Reis: Como não?

Luciano Suassuna: Não! O senhor não falou em educação aqui ainda.

Fábio Wanderley Reis: Desculpe, deixa eu falar um pouquinho agora. Isso é infinito, não dá para falar tudo ao mesmo tempo. Isso é, na minha avaliação, absolutamente crucial. Deixa eu contar uma historinha para o eleitor, que envolve o [jornal] O Estado de S. Paulo, do Mauro Chaves. É uma historinha exemplar, muito elucidativa a respeito de como este país é tão ineficiente em educação. Afinal de contas, a Argentina já resolveu o problema do analfabetismo no século XIX. O Brasil está com alto índice de analfabetismo ainda hoje. O Estadão, do Mauro Chaves, republicou na virada de 1999 para 2000 o editorial que eles tinham publicado na virada de 1900 para 1901. A intenção era principalmente ilustrar graficamente a capa de um caderno especial com a proposta da virada do milênio, do século e tudo mais. Havia desenhos que impediam a leitura, mas a leitura do editorial é fantástica como ensinamento e esclarecimento da psicologia social envolvida nessa sociedade de castas, na comunidade brasileira de que falava Darcy Ribeiro. E lembro o seguinte: o racismo que temos aparece de uma maneira muito cândida na perspectiva do editorialista, assim como o eurocentrismo que aparece lá fica muito claro, é a percepção que o editorialista tira do Brasil. Era uma percepção na qual o Brasil aparecia como um país europeu que tinha tido que recorrer às conveniências da mão-de-obra escrava, africana, e que agora vem essa mão-de-obra transformada em um problema. Na verdade, essa gente não fazia parte do povo brasileiro...

Mauro Chaves: O senhor me desculpe mas, como editorialista, eu não penso dessa forma hoje.

Fábio Wanderley Reis: Não, eu estou falando de 1901, calma!

[...]: Você vê como evolui, como o mundo evolui!

Fábio Wanderley Reis: Eu estou falando de 1901 para eu poder tentar tirar...

Mauro Chaves: Não fazemos editoriais racistas...

Fábio Wanderley Reis: Um minutinho, um minutinho!

Mauro Chaves: ...e nem nos achamos como a Europa.

Fábio Wanderley Reis: Eu estou falando de 1901, para eu poder tentar tirar uma conseqüência.

Mauro Chaves: Está certo!

Fábio Wanderley Reis: Peço que me permita levar a coisa onde eu quero. O que me parece importante à relação a isso é que isso explica algo, que era a divulgação de certos dados feitos pelo IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] a respeito das deficiências educacionais no país relativas à 1950, certos avanços precários que apareciam quando você comparava os dados de agora, de dois, três anos atrás, com 1950. Em 1950 era uma tragédia. Acontece que 1950, visto na ótica desse editorial, era apenas meio século, eram apenas 50 anos depois dessa coisa onde a perspectiva era essa que eu estou falando. E, obviamente, a questão que estava posta na cabeça desse pessoal era "Educar essa gente?". Surge uma razão muito clara do porquê não se fez o investimento maciço em educação precocemente. Eu acho que educação é definitivamente importante, crucial. Simplesmente, o problema está em que o investimento em educação é de amadurecimento lento, não dá para pensar que vamos investir em educação agora e que daqui a cincos anos as coisas vão estar...

[...]: [interrompendo] O senhor não acha que o governo está investindo mais, professor?

[sobreposição de vozes]

Antônio Octávio Cintra: Eu acho que a crítica que se faz ao Bolsa Família não é que ele seja paternalista. No Bolsa Família e em outros programas, não há apenas a dimensão assistencialista, você tem o que eles chamam de constitucionalidade. A mãe tem que vacinar a criança, a criança tem que freqüentar a escola etc. Nisso é que o programa está pecando porque não está havendo controle. Está sendo realmente um programa paternalista e assistencialista puramente, sem o outro lado, que é uma política de emancipação.

[...]: Não tem porta de saída.

Fábio Wanderley Reis: Essa dimensão me parece dramaticamente expressiva das dificuldades da comunidade brasileira. Outro dia, estava vendo uma entrevista do [Antero] Paes de Barros [entçao senador pelo PSDB do Mato Grosso] a respeito do problema da desigualdade do país, que me parece muito esclarecedora dessa dificuldade. Ele dizia: "É bobagem integrar programas da mesma natureza, pegar o Bolsa Escola, o Bolsa Alimentação e transformá-los no Bolsa Família. Precisamos integrar programas de natureza variada, então é preciso dar recursos, como combate direto à pobreza, criar empregabilidade. Por outro lado, é preciso criar creches para que a mulher cuja empregabilidade foi aumentada possa efetivamente exercer o emprego". E aí é possível acrescentar a atenção à saúde...

[...]: [interrompendo] Reformar o futebol!

Fábio Wanderley Reis: É preciso fazer tudo!

Antônio Octávio Cintra: Mas política social é isso, Fábio.

Fábio Wanderley Reis: Pois é, mas é isso mesmo. Evidentemente é muito difícil fazer tudo ao mesmo tempo, o que significa botar a coisa em uma perspectiva em que os problemas não têm solução. Você acaba caindo no cinismo do próprio Paes de Barros com aquela história de "É melhor jogar o dinheiro de avião do que fazer esse negócio que a gente está fazendo".

Paulo Markun: Além do fato de que não basta apenas vontade política, como se diz...

Fábio Wanderley Reis: Claro, é preciso manter política e lucidez tanto quanto possível!   

Paulo Markun: Duas perguntas de telespectadores para reiniciarmos o debate, professor. Sônia Regina, do Rio de Janeiro, diz o seguinte: “Professor, como o eleitor não sabe votar? Só quem vai para uma academia sabe votar? Então como se diz que a democracia no país avança?”. E Sandro Márcio, de Belo Horizonte: “Gostaria que o senhor comentasse sobre a obrigatoriedade do voto”.

Fábio Wanderley Reis: Ótima a questão do eleitor saber votar! Eu poderia contrapor isso, por exemplo, ao que se observa nos Estados Unidos. Há um livro de uns anos atrás que é uma espécie de síntese das observações do eleitorado norte-americano, onde você tem uma elite informada, uns 5%, uma ampla categoria média, mais ou menos atenta, que alcança aí seus 60%, 70%, e tem o resíduo de gente desinformada, desatenta, alheia, de costas para a política. No caso brasileiro, a grande diferença é que a grande maioria corresponde a essa minoria do caso norte-americano. No caso do Brasil, os traços negativos correspondem aos 70%. Agora, isso tem que ser dito com certo cuidado porque estamos contrapondo uma perspectiva mais realista a respeito da percepção do eleitorado, a perspectiva usual que roda por aí é uma perspectiva ideológica do eleitorado. A gente tem aqui uma certa visão de política ideológica que é uma visão que percebe uma estrutura partidária em que você tem partidos que vão da extrema esquerda à extrema direita, o que evidentemente é uma ficção. Isso corresponde, no máximo, a uma experiência fugaz de alguns países europeus em um certo momento. Fora disso, o eleitor responde pragmaticamente. O eleitor ideológico é uma minoria mesmo nos países que a gente tomaria como correspondente a um modelo idealizado nesses tempos, quer dizer, não é o caso de se fazer essa idealização. Agora, quanto à questão do voto obrigatório, a temática da reforma política é uma temática muito complicada, cheia de confusões, muito complexa e que é objeto de tomada de posições muito rígidas. A gente tem uma espécie de "Fla-Flu" por aí, entre majoritarista, proporcionalista, presidencialista, parlamentarista e tudo mais. Há um par de coisas sobre as quais eu acho que é possível ter posições firmes. Uma delas é o financiamento das campanhas. Eu acho que a gente tem o direito de votar assegurado para todo mundo, mas não tem o direito de ser votado assegurado para todo mundo, porque o direito de ser votado está fortemente condicionado por disponibilidade de recursos financeiros. A outra coisa é o voto obrigatório. Aqui, nós temos um amplo consenso em torno de uma posição que me parece errada que é a tese do voto facultativo. A idéia de que seria preciso entender o voto como direito e, portanto, acabar com o voto obrigatório. Por que não entendem o voto como dever? Por outro lado, em todos os lugares em que o voto é facultativo, quem primeiro é posto para fora, quem primeiro deixa de votar, quem primeiro abdica do sufrágio são as camadas populares, as camadas menos informadas, de menores recursos. No caso do Brasil, a gente já tem a exclusão das camadas populares, mesmo com o voto obrigatório. Essas camadas são as menos presentes, em função de meras exigências burocráticas para se ter condição de votar etc. Então, se a gente criar, além disso, o voto facultativo, nós vamos ter uma exclusão adicional, um fator adicional de exclusão.

Helena Chagas: Na sua idéia de reforma política, não entraria aí também algum tipo de reforma no sistema eleitoral para diminuir um pouco essa tendência que se tem a se votar sempre na pessoa e menos no partido? Seria talvez uma votação por listas ou voto distrital, alguma ajeitada aí para fortalecer... O senhor falou muito em partidos, mas o sistema age em sentido contrário ao fortalecimento partidário.

Carlos Novaes: Aproveitando, sou totalmente oposto à idéia de voto por lista [o partido estabelece uma lista ordenando os candidatos a obterem vagas] e voto distrital [Oposto ao sistema proporcional, trata-se de um sistema eleitoral no qual o país é dividido em tantos "distritos eleitorais" quantas são as vagas no Parlamento, sendo que cada distrito elege apenas um representante. O candidato mais votado é eleito]. O senhor não considera que o voto por listas dá excessivo poder às burocracias partidárias e que o voto distrital, por condição majoritária do voto, não acaba  colonizando as listas, como aconteceu em vários países europeus?

Fábio Wanderley Reis: Com relação ao sistema da reforma política, com exceção dos dois itens que eu destaquei, nós temos sempre duas dimensões que se chocam. Uma delas é a preocupação da representatividade democrática, de garantir que o  que quer que se faça seja representativo seja garantido, enfim, algo que incremente o grau de democracia. A outra é uma exigência que é contrária a essa, que é a eficiência...

[...]: [interrompendo] De coordenação!

Fábio Wanderley Reis: A eficiência de agregação. Você tem que não só representar adequadamente as diferentes categorias de eleitores mas também tratar de agregar, de integrar de maneira a criar viabilidade de acesso ao poder e de administração.

Helena Chagas: Mas só assim acabaria o "varejo" no Congresso, não é? O senhor fala muito aí de presidencialismo, de coalizão, mas todo presidente tem que fazer aquele "varejão" no Congresso. Isso não muda enquanto não mudar o sistema eleitoral.

Fábio Wanderley Reis: Eu sou sim, em princípio, favorável ao voto distrital. De alguma forma, é o trato de combinar...É claro que nós temos problemas complicados em como você estabelecer as listas. Seria o caso de um tratado para estabelecer listas flexíveis, combinando a possibilidade da lista pelo partido com a possibilidade de o eleitor também botar lá o nome de alguém. Enfim, há tecnicismos aí que podem ser discutidos longamente. Em princípio, como uma combinação de agregação, se você for excessivamente preocupado com a representatividade em relação às bases que estão dadas, você não vai fazer agregação e não vai criar condição e nem eficiência. Aliás, no limite, você acaba comprometendo a própria idéia de representação. Por que não vamos representar as tendências dentro dos pequenos partidos? Por que não vamos representar cada indivíduo? Então acabou com a representação, não é? Agora, por outro lado, se nós temos que conter essa coisa e fazer agregação, também é o caso de não diluir inteiramente a referência à identidade de alguma forma dada e buscar o equilíbrio. Isso se coloca para os próprios partidos: a função de agregação ao lado da função de focalização de interesses, que são as duas dimensões muito claras. Esse equilíbrio, por exemplo, nós teríamos com o voto distrital misto. Eu acho que sim, é o caso de se fazer algo a respeito disso, apesar das complicações.

Kennedy Alencar: Professor, o senhor falou da questão militar. Eu queria retornar um pouco a ela, já que o senhor considerou que ela é sensível e não está completamente resolvida. Nesse episódio, você falou que Fernando Henrique atuou mais realisticamente. Parece que o Lula demarcou o limite. Houve uma nota do Exército lamentando a morte do Vladimir Herzog. Nesse episódio, o Lula abriu a possibilidade de discussão sobre a abertura dos arquivos do país, não apenas arquivos da ditadura militar, mas documentos históricos. Na opinião do senhor, que disse que essa questão militar é uma questão sensível, o senhor acha que seria um avanço a abertura desses arquivos? Você acha que o governo Lula vai ter coragem de levar a frente esse assunto ou o senhor recomendaria ele agir mais realisticamente e se preocupar com a economia, a educação, a geração de empregos e não discutir esse assunto?

Fábio Wanderley Reis: Eu te confesso que não tenho muita clareza a respeito disso, viu...Após cutucar a fera, agora tem atacá-la e aplacá-la. Mas, por outro lado, acho que minha inclinação é achar que houve um certo excesso de preocupação, acho que as condições já são mudadas em um sentido bastante importante, eu acho que a fera continua viva, pois há dificuldade de obter a nota de retratação, temos as reações do ministro Jarbas Passarinho falando de humilhação do Exército, coisas como o Mário César Flores que eu evoquei falando de armistício, não de rendição. Quer dizer, é uma linguagem de estapafúrdio...

Kennedy Alencar: Mas não é o momento de tocar nessa ferida?

Fábio Wanderley Reis: Claro, minha inclinação é essa, de testar o limite do possível e se dispor um pouco a cutucar a fera. Mas, acho que, na verdade, não dá para imaginar algo parecido com 1964.

Kennedy Alencar: Quando a Alemanha colocou o nazismo, ou seja, o governo pediu desculpas pelo que fez, o país avançou. As Forças Armadas não sairiam engrandecidas se pedissem desculpas pelo que fizeram?

Fábio Wanderley Reis: É, mas acho difícil haver pedido desculpas das Forças Armadas. Eu acho que deveríamos punir. O governo adotou a eliminação da punição e isso não me parece adequado. Seria necessário punir o responsável, que aparentemente é o ministro do Exército...

[...]: O governo pode punir?

[...]: O ministro não, o comandante do Exército, o Exército não tem mais ministro.

Fábio Wanderley Reis: O comandante do Exército, perdão! A gente está acostumado com a velha linguagem.

Mauro Chaves: Pessoal, eu queria só voltar um pouco a essa parte do mecanismo da reforma política. Eu estava pensando o seguinte: até que ponto o senhor dá importância - eu dou muita importância - às ONGs que interferem nesse processo? Nós temos aqui [no estúdio] representantes... O Movimento Voto Consciente é muito importante porque leva informação ao eleitorado sobre a atuação de cada parlamentar. A imprensa não consegue dar uma cobertura constante do dia sobre todos. O senhor não acha que isso deveria ser estimulado porque esse organismo da sociedade contribui para a evolução do eleitorado?

Fábio Wanderley Reis: Minha posição a respeito disso é balizada. Por um lado, eu concordo literalmente com a sugestão básica contida aí. É inegável que as ONGs têm tido, podem ter e várias têm um papel muito positivo. A gente tem, aliás, um exemplo dramático disso que é a coisa dos [medicamentos] genéricos, em que o [José] Serra, numa atuação que me pareceu muito positiva, se valeu de ONGs no plano internacional, a associação com o governo lá da África do Sul, para uma mobilização dramática de ONGs que acabaram permitindo uma luta bem sucedida contra certos laboratórios. Isso é um exemplo do que há de positivo. Agora, há uma ressalva que eu acho muito importante que é o seguinte: com muita freqüência a perspectiva positiva a respeito das ONGs está associada a uma certa idéia de que elas têm uma motivação que é altruísta peculiar e que tendem mais ou menos rapidamente a substituir o Estado. Acho que isso é um equívoco dramático porque as ONGs compartilham com o mercado uma característica crucial, que é a dispersão.

[...]: E tem que haver algum controle também...

Fábio Wanderley Reis: Claro!
 
[...]: As ONGs têm que estar com algum controle!

Fábio Wanderley Reis: O desafio é alguma articulação apropriada sobre as ONGs nesse sentido do Estado...

Paulo Markun: Mas é justamente sobre isso, professor. Nesse artigo do livro Mercado e Utopia: teoria política e sociedade brasileira, o senhor avalia, inclusive, a noção de cidadania, a questão de esfera privada etc. O que eu queria acrescentar a essa avaliação é o seguinte: a gente examina a juventude de hoje. Meus filhos têm 29, 18 e 15 [anos] e estão muito mais propensos a se engajar em qualquer movimento de uma organização não-governamental do que em um partido político. Nas várias palestras que eu faço em universidades, toda vez que eu faço uma pergunta, jamais encontro uma pessoa disposta a levantar o braço. A pergunta é a seguinte: "quem aqui quer ser vereador, deputado estadual, deputado federal, governador, prefeito ou presidente da República?", o que faz supor que essa juventude imagina que virá uma nave espacial com um grupo de marcianos para governar o Brasil daqui a vinte anos. Não é um risco nosso no momento em que a própria estrutura partidária abandona a juventude e a juventude, por seu lado, se desinteressa completamente do jogo partidário, achando que é tudo "farinha do mesmo saco"?

Fábio Wanderley Reis: Claro, acho lamentável. Acho que a política é insubstituível. Os partidos têm um papel decisivo a cumprir, inclusive, em confronto com as ONGs, no sentido da agregação. Você não tem como escapar do papel agregador que os partidos desempenham. As ONGs não têm a possibilidade de fazer isso. E é decisivo que se faça isso de maneira adequada e satisfatória. O desafio é de uma articulação apropriada dessa coisa. Sobre isso, há algo que eu costumo evocar que está no artiguinho do outro livro, que é uma posição sustentada recentemente sobre as manifestações das ONGs em Seattle ou Praga, essa coisa que não é do meu tempo, contra a globalização. Há uma matéria do [jornal britânico] The Economist que me parece muito ilustrativa por se tratar da posição do The Economist sobre o liberalismo econômico há muito tempo etc. É uma matéria escrita há uns três anos, em que se faziam as seguintes perguntas: quem elegeu as ONGs? quem deu às ONGs o direito de contestar a política adotada por corporações econômicas cumpridoras das leis ou estados eleitos democraticamente do governo? A pergunta óbvia que não ocorria era: quem elegeu as grandes corporações econômicas? É uma pergunta absurda do ponto de vista do The Economist, porque inicialmente ele era favorável ao liberalismo econômico, que florescessem mil corporações. Ora, florescem mil ONGs! Quer dizer, há uma dinâmica de mercado que é também a dinâmica das ONGs. Você tem que assegurar, naturalmente, que isso é parte crucial da democracia, assegurar um espaço para manifestação autônoma espontânea de interesses ou opiniões variadas, que vão se corporificar em empresas privadas, na livre iniciativa, em ONGs e outros setores da sociedade civil.
 
Paulo Markun: Nesse sentido o senhor é otimista? O senhor acha que encontraremos uma solução para esse problema ou vamos para um processo cada vez mais de distanciamento da juventude em relação à política tradicional, ficando o neto ou o bisneto do fulano governando esse país?

Fábio Wanderley Reis: Olha, o que eu posso dizer é o seguinte: tomara que a gente encontre! Agora, eu não tenho ilusão de que vai haver algo muito positivo quanto a isso ou às outras coisas. Na minha perspectiva dos bisnetos com relação a isso...

Mauro Chaves: [ironizando] Eu ia perguntar para o senhor se no futebol nós somos bons... Pelo menos isso, para eu sair um pouco mais animado! No futebol nós somos bons, professor? [risos]

Fábio Wanderley Reis: Ótimo! Isso me permite qualificar de uma maneira importante o que eu estou dizendo. Eu tenho brigado com o pessoal quanto ao problema racial no Brasil. Há uma certa briga com o sujeito do Movimento Negro, certas teses nessa eleição. Esse Brasil das comunidades - e eu falava de Darcy Ribeiro - tem um aspecto muito positivo de inclusividade, nem tudo é ruindade, que dizer, acho que nas nossas relações raciais, apesar do componente, por exemplo, apesar do componente de discriminação que existe que se associa com esse legado do expresso no editorial que comissionava o Estado de S. Paulo e tudo. Nós temos, sim, uma cegueira racial que é positiva. E eu acho que é um equívoco de certos setores do Movimento Negro, de certos setores de opinião na universidade etc., pretender tornar o Brasil um país racialmente sensível. O que nós queremos é, sim, uma sociedade onde raça seja relevante. E eu quero cotas, eu admito a idéia de cotas, desde que elas tenham fundamento social, e não para...

Mauro Chaves: Para a educação, para financiar a educação.

Fábio Wanderley Reis: Sim, para financiar a educação. Agora, isso se associa à idéia de que há setores, como o futebol, que são áreas óbvias...

Mauro Chaves: [interrompendo] Música popular brasileira também.

Fábio Wanderley Reis: Música popular, mas o futebol talvez seja a mais clara. Chegar à Seleção Brasileira envolve prestígio, oportunidade de ganho financeiro etc. Atualmente, neste país, sem a menor dúvida, isso não está condicionado ao fato de ser branco ou negro, ter origem humilde ou não.

[...]: Professor...

Fábio Wanderley Reis: Quem sabe a gente consiga fazer isso em outras faixas e acabar com a ruindade brasileira...

Luciano Suassuna: Numa das suas respostas, o senhor disse que era preciso haver um controle da imprensa, que se deveria pelo menos discutir isso. Eu sou a favor da liberdade irrestrita. Nesse caso, eu queria saber o que é. É uma censura? Que controle é esse que o senhor defende?

Fábio Wanderley Reis: Eu defendo o seguinte...

Luciano Suassuna: Em que sentido isso melhora a democracia?

Fábio Wanderley Reis: Trata-se de um assunto complicado e qualquer coisa que se faça aí envolve um esforço também complicado da construção institucional. O ponto que me parece crucial é que não se pode esquecer, em nome da democracia, que a imprensa com muita freqüência compromete direitos civis básicos dos cidadãos. O que aconteceu com Alceni Guerra [ministro da Saúde no governo Collor. Foi acusado na mídia de realizar compras superfaturadas em seu mandato, mas acabou inocentado anos depois], o que aconteceu com a Escola de Base [Em março de 1994, a imprensa, baseada apenas em uma investigação policial inconclusa, publicou reportagens, afirmando que seis funcionários da instituição estariam envolvidos no abuso sexual das crianças ali atendidas. A escola, localizada em São Paulo, foi depredada e saqueada pela população. Os proprietários foram à falência e eram constantemente ameaçados de morte. Chegaram a ser presos, mas como por falta de provas, o inquérito foi arquivado. O governo e vários órgãos de imprensa foram condenados], o que aconteceu com vários de nós. Eu poderia citar casinhos pessoais em que de repente você é vitimado, sem ter condições nem de se defender. As notinhas aparecem sempre depois dos parágrafos e a última palavra fica com o jornal. Eles dão um “cacete” e depois botam a última palavra. O fato é que a imprensa, com muita freqüência, compromete direitos civis básicos.

Luciano Suassuna: Em que sentido um conselho corrigiria isso?

Fábio Wanderley Reis: Não estou falando desse conselho. Eu não quero fazer a defesa do conselho...Aliás, eu não gosto da proposta do Sindicato...Como é que chama? Enfim, daquele treco lá! [refere-se ao projeto de criação do Conselho Federal de Jornalismo criado pelo PT em 2004, mas que acabou sendo arquivado] Agora, eu acho que um Conselho de Ética eleito pelos próprios profissionais da área, com alguma participação de outra gente escolhida democraticamente para que pudesse reagir prontamente diante de alguma coisa que parecesse imprópria, pelo menos no sentido de dizer "Isso não está legal"...
 
[...]: [interrompendo] Mas há a Justiça, professor! Temos a Lei de Imprensa em vigor, entendeu?

Fábio Wanderley Reis: Eu não estou propondo que o governo vá lá impedir, bloquear etc. Simplesmente me parece que - aliás, isso foi admitido explicitamente pelo presidente do STF [Supremo Tribunal Federal] - o recurso da Justiça, que é dito como a coisa a se fazer, é evidentemente insatisfatório. A Justiça é lenta, demora, é de acesso complicado para a maioria da população. Penso que se precisa fazer alguma coisa. Eu não tenho idéia muito clara de como...Por exemplo, um conselho que pudesse se manifestar prontamente, que estivesse atento, que viesse a público dizendo "Isso não está bom!".
 
Paulo Markun: Professor!

Fábio Wanderley Reis: Eu me lembro... Deixa só eu acrescentar mais uma coisinha a respeito disso. Eu me lembro do espanto que eu tive no dia em que vi no Congresso o Eduardo Jorge [Eduardo Jorge Caldas Pereira, ex-secretário-geral da presidência da República no governo de Fernando Henrique Cardoso]. Eu mesmo, diante do tratamento que a imprensa dava a ele, já o tinha tachado de bandido. No entanto, ele se defendeu de uma maneira impressionante. Minha pergunta é: como uma pessoa que tem condições de se defender em público com essa força já foi transformado em um bandido tão rapidamente pela imprensa?

[...]: Pela imprensa, não.

Paulo Markun: Não, pela imprensa! O Roda Viva termina aqui. Eu queria agradecer muito a entrevista do senhor, aos nossos entrevistadores, a você que está em casa e convidá-lo para estar aqui novamente na próxima segunda-feira, às dez e meia da noite. Uma ótima semana e até segunda!

 

Sobre o projeto | Quem somos | Fale Conosco