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Memória Roda Viva

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Ives Gandra Martins

17/2/1992

"O brasileiro hoje é um homem que está pagando em torno de 50%, se não mais, do que ganha em todos os tributos embutidos", calcula o renomado jurista

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[programa ao vivo]

Jorge Escosteguy: Boa noite. O brasileiro é seguramente um dos cidadãos que mais pagam impostos em todo mundo. No Brasil, há imposto para todos, de todos os tipos, para todos os gostos e para todos os orçamentos. [Há] IPTU [Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana], IPVA [Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores], IPI [Imposto sobre Produtos Industrializados], ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços], Imposto de Renda [IR], o que quiser. O governo, toda vez que pensa em arrumar as suas contas, pensa logo num novo imposto, ou então em aumentar o imposto que já existe. Nós vamos discutir um pouco hoje essa carga tributária sobre o brasileiro porque no centro do Roda Viva, que está começando pela TV Cultura, está o tributarista, professor de direito constitucional da Universidade Mackenzie, Ives Gandra Martins. Lembramos que este programa também é transmitido pela TV Minas Cultural e Educativa, TVA do Ceará, TV Cultura do Pará, TVE do Piauí, TVE da Bahia, TVE de Porto Alegre e TVE do Mato Grosso do Sul. Para entrevistar Ives Gandra Martins esta noite, nós convidamos Denise Campos de Toledo, comentarista de economia e apresentadora do programa Lucros e Perdas da rádio Nova Eldorado AM; Antônio Félix, editor de economia do jornal O Estado de S. Paulo; Stephen Kanitz, professor da Universidade de São Paulo; Fernando Rodrigues, editor de economia do jornal Folha de S.Paulo; Milton Abrucio, editor assistente da editoria de Brasil da revista Veja; Alberto Tamer, comentarista de economia do SBT; Raimundo Pereira, redator do jornal Brasil Agora; e Jaime Martins, jornalista da TV Cultura. Na platéia, assistem ao programa alunos do curso de telejornalismo da TV Cultura. Boa noite, professor.

Ives Gandra Martins: Boa noite.

Jorge Escosteguy: Tem alguma solução para o brasileiro pagar menos imposto?

Ives Gandra Martins: A impressão é que o problema teria que ser colocado fundamentalmente numa pressão junto ao Congresso Nacional para que se fizesse uma revisão constitucional do sistema, uma simplificação. Hoje nós temos, em nível de Constituição, talvez o sistema mais complexo de todo o mundo. Basta dizer que o brasileiro, entre impostos, taxas, contribuições especiais, contribuição de melhoria, empréstimos compulsórios tem hoje em torno de 60 e poucos tributos, e todos esses tributos entram em todos os preços e todos os serviços que o brasileiro compra. O cidadão que ganha salário mínimo, no momento em que vai comprar um quilo de feijão no supermercado, está nesse quilo recebendo o impacto de todas essas tributações anteriores. E é evidente, com isso o brasileiro hoje é um homem que está pagando em torno de 50%, se não mais, do que ganha em todos os tributos embutidos, porque a carga tributária no Brasil é de 25% do PIB [Produto Interno Bruto], mas na formação do PIB nacional, praticamente 50% é o Estado, se não mais, e o Estado não paga tributos, o que vale dizer que a sociedade não governamental, os 90% de brasileiros que formam a sociedade não governamental suportam uma carga superior a 50% do que ganham. Trabalham os primeiros seis ou sete meses para os governos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, e depois começam a trabalhar para si mesmo.

Jorge Escosteguy: Quer dizer que metade do ano o brasileiro trabalha para pagar imposto?

Ives Gandra Martins: Para pagar os governos, os tributos.

Jorge Escosteguy: E o imposto único, de que tanto se fala, seria uma solução?

Ives Gandra Martins: O imposto único é uma solução interessante, mas tem que ser examinada com muita cautela, por quê? Porque o imposto único é um imposto que, se for adotado, eliminará todos os demais. E se houver uma forma de se contornar o imposto único, evidentemente esse contorno do imposto único vai quebrar o Estado e o sistema financeiro. Eu vou dar um exemplo, como é que incide o imposto único? Se o senhor comprar um carro de uma concessionária, vai dar um cheque a essa concessionária, e a concessionário deu o cheque à montadora. Se o carro custou 20 milhões, é evidente que sobre esse cheque incidirá um imposto de 2%, e o carro custou 15 milhões...

Jorge Escosteguy: [Será de] 2% se for fixado em 2%?

Ives Gandra Martins: ...[sim] 2%, que é o que eles estão propondo. E 15 milhões [foi o valor que] a concessionária pagou para a montadora. Quinze mais vinte milhões dá 35 [milhões]. Vamos admitir que se crie uma solução de engenharia tributária, as concessionárias todas resolvem conversar com as montadoras de tal forma que os seus compradores pagam o cheque que corresponde ao preço da concessionária para a concessionária, e a diferença para a montadora. Então, essa operação, que estava em 35 milhões de cruzeiros, pode ser compactada para 20 [milhões], o que vale a dizer: economiza-se nessa operação – que não é sonegação, é apenas uma forma de engenharia tributária – 15 milhões, ou 2% sobre 15 milhões. Se isso se generalizar [...] pode-se quebrar o Estado e o sistema financeiro. Eu tenho dito ao [deputado federal pelo PL] Flávio [Rocha] e ao [economista] Marcos Cintra [defensor do imposto único] que o problema não é da idéia, o problema do imposto único é encontrar formas de contornar a engenharia tributária. E há dois exemplos que me parecem extremamente importantes. O primeiro deles é que a Argentina adotou o imposto sobre o selo, e a essa altura esse imposto sobre o selo está trazendo problemas seriíssimos para o sistema financeiro...

Jorge Escosteguy: Imposto sobre...?

Ives Gandra Martins: Sobre o selo, sobre o cheque. E está trazendo problemas seriíssimos para o sistema financeiro, porque lá se compram os tijolaços. Você vai ao banco, o banco dá, lacrada, uma quantia determinada da moeda argentina. E esses tijolos...

Jorge Escosteguy: Troca tijolo por tijolo.

Ives Gandra Martins: ...então são os tijolaços. Isso, evidentemente, está reduzindo, compactando as atividades financeiras. E o outro exemplo: há um senador americano que pretendeu, logo no início do governo Bush [George H. W. Bush governou os Estados Unidos entre 1989-1993], adotar o mesmo imposto, e o sistema da reserva federal, que seria o Banco Central americano e ao mesmo tempo o Departamento do Tesouro, que funcionaria como a Secretaria da Receita Federal, examinaram e desaconselharam a tal ponto que quando os estudos chegaram ao senador, o próprio senador desistiu da proposta. Então me parece que a idéia é sugestiva porque simplificaria brutalmente – há grandes adeptos, por exemplo, o [economista e político] Roberto Campos [ver entrevistas de Roberto Campos no Roda Viva] é um grande adepto do imposto único –, mas tem que se estudar muito para que a sua adoção não venha representar uma grande frustração.

Stephen Kanitz: Mas ela não causa outras grandes injustiças? Quer dizer, tudo que é muito simples num país complexo, e tem que ser complexo numa economia moderna, essa simplificação não vai gerar grandes injustiças?

Ives Gandra Martins: Veja o seguinte: eu tenho a impressão de que nada é tão injusto neste país quanto o atual sistema tributário.

Stephen Kanitz: Sem dúvida.

Ives Gandra Martins: Qualquer coisa que venha para mudar esse sistema vai melhorar o país. Agora, é evidente que é um imposto nivelador, esse imposto não tem determinados princípios mais ideológicos, como, por exemplo, a progressividade, a seletividade, que se aplicam em quaisquer circunstâncias. Agora, o que me parece extremamente relevante na idéia do imposto único, independente desse aspecto social, é o fato de que ele está provocando um repensar do sistema tributário nacional. Antes de o Marcos e de o Flávio terem lançado essa idéia... a própria emenda constitucional feita pelo Flávio, ele pediu para que eu a redigisse, a idéia não é minha, eu fui apenas o escriba da emenda constitucional dele, reconhecíamos que a provocação que o imposto único estava trazendo para os meios acadêmicos, para os governos já justificava plenamente a sua função social nesse momento, por estar permitindo esse tipo de discussão. Eu queria também acrescentar o seguinte, Kanitz, eu não estou convencido de que determinadas idéias que sempre foram tabus no meio tributário, a justiça social pelo tributo, a progressividade pelo tributo sejam idéias úteis no campo tributário. Eu diria até que, ideologicamente, os ideais são muito superiores aos resultados, enquanto que com a não progressividade, a não seletividade, os resultados são superiores aos ideais. Todos os países da Comunidade Econômica Européia, todos os países, na década de 80, reduziram o nível de progressividade. Os Estados Unidos, na reforma do Reagan [Ronald Reagan], reduziram a progressividade, porque a progressividade é desestimuladora de investimento e de poupança. A pessoa sabe que quanto mais produzir, mais vai ser tributada, [então] ela passa a investir em países onde há paraísos fiscais. E é evidente que é uma forma de ficar com ideais sem resultados. E o que nós precisamos no Brasil são resultados, mesmo que à custa de ideais, em matéria tributária.

Stephen Kanitz: Mas o ponto a que eu queria chegar é o seguinte: pular de 56 [impostos] para um talvez seja um exagero, melhor seriam cinco ou seis bem pensados impostos, e aí sim nós teríamos...

Ives Gandra Martins: Essa é a minha proposta...

[...]: Qual é a proposta do senhor?

Ives Gandra Martins: A minha proposta é de reduzir, quer dizer, não mudar o sistema existente. Nós temos no sistema brasileiro, de rigor, cinco fatos geradores clássicos. Um fato gerador que seria o imposto sobre a renda, aquilo que todos nós ganhamos, as empresas ganham, isso é um fato gerador do qual o Estado deve participar. O outro fato gerador clássico é a circulação de bens e serviços, então nós poderemos ter o segundo imposto sobre circulação de bens e serviços. O terceiro fato gerador clássico é a contribuição social, nós poderemos ter uma única contribuição social. O quarto fato gerador clássico, aliás é a origem da tributação, são os tributos sobre comércio exterior, quer dizer, importação; desse nós poderíamos ter um regime único para isso. E o quinto é o patrimônio, que é um outro fato gerador clássico; nós poderíamos ter um único imposto sobre patrimônio e, em minha opinião, deveria ser só o imobiliário, representando a propriedade territorial urbana e a propriedade territorial rural num único regime. Com isso, o que nós teríamos? Se tivéssemos um único imposto sobre a renda, eliminaríamos os quatro regimes de imposto sobre a renda que temos, os três federais e o estadual. Se tivéssemos um único imposto sobre a circulação de bens e serviços, nós eliminaríamos o IPI e o ICMS, o ISS [Imposto sobre Serviços], o IVV [Imposto sobre Venda a Varejo], o Fim Social, tudo aquilo que incide sobre faturamento. Se tivéssemos uma única contribuição social, nós eliminaríamos o PIS [Programa de Integração Social], o Fim Social, naquilo que diz respeito a contribuições: contribuições previdenciárias, contribuições sociais e toda essa parafernália de tributos que incidem e complicam a vida do empresário. Se tivéssemos um único imposto sobre o patrimônio, eliminaríamos quatro impostos da Constituição: o IPVA, o IPTU, o ITR [Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural] e o imposto que ainda não foi adotado, mas que este ano pretendem adotar, que é o imposto sobre grandes fortunas. E, por fim, se nós tivéssemos um único regime de comércio exterior, não teríamos dois impostos com regimes assemelhados mas não idênticos, que são o imposto sobre importação e o imposto sobre exportação. O que eu proponho é o seguinte: é deixar... nós podemos acrescentar uma taxa, que seria de serviços públicos, para eliminar esse mundo de taxas existentes e poderíamos eventualmente ter um imposto de natureza regulatória, que para mim não precisaria haver se tivéssemos um regime razoável de Imposto de Renda, que seria o IOF [Imposto sobre Operações Financeiras]. Porque hoje, se nós analisarmos, e o Tamer sabe muito bem disso, o Imposto sobre Operações Financeiras, o IOF no sistema financeiro, tem a mesma natureza do Imposto de Renda na Fonte. O Imposto de Renda na Fonte que incide sobre o sistema financeiro é um percentual como o IOF é um percentual. Por que razão dois impostos que têm a mesma base de cálculo? Nós poderíamos compactar num só. Ora, a simplificação do sistema que, aliás, o Kanitz está apresentando, com essa simplificação do sistema, as empresas iriam gastar muito menos na sua assessoria tributária, muito menos na manutenção de escrituração para todo o número de tributos existentes, e o governo iria gastar muito menos na fiscalização. E se nós fizéssemos uma partição automática de receita tributária, vamos dizer: 40% vão para a União, 35% para os estados, e 25% para os municípios, já quando se pagasse para os bancos, os bancos já fariam a separação dos cinco tributos. Dá uma única contribuição social e dos outros quatro impostos. Como arrecadar? Nós arrecadaríamos os impostos de vocação federal, comércio exterior, renda e contribuição social, que seriam arrecadados pela União e, evidentemente, talvez a contribuição social fosse a única que, por ser destinada à seguridade, não entraria no regime. Mas o renda e o comércio exterior, dividido em 40%, 35% e 25%...

Jorge Escosteguy: [Interrompendo] Professor, desculpe, o senhor falou em assessoria tributária e há um comentário aqui de Osmilton Muniz, de São Caetano do Sul, que disse que, no fundo, os que são contra o imposto único, no caso o senhor se incluiria entre eles,...

Ives Gandra Martins: Não, não.

Jorge Escosteguy: ...o são porque isso tiraria o serviço do tributarista, eles ficariam com pouco trabalho [risos]. Mas o que eu queria lhe perguntar é outra coisa, o senhor falou em reduzir os impostos, mas no fundo a grande questão é mais, de repente, do outro lado, a sonegação de impostos. Quer dizer, pode ter só cinco e o pessoal sonega os cinco, o ICMS, eles sonegam à toa. A vantagem do imposto único seria a dificuldade da sonegação. Porque o senhor citou, por exemplo, o tijolaço na Argentina, do jeito que vai a inflação, o tijolaço vai ficar cada vez maior. No fundo, o sujeito que for sonegar imposto vai passar vergonha, porque num dia em que encontrar um sujeito na rua com um pacote desse [enorme] tamanho, vão dizer: “Olha, lá vai um sonegador” Ele vai com um monte de dinheiro para comprar alguma coisa...

Ives Gandra Martins: Quando a inflação é muito grande e a moeda perde a confiança, os tijolaços passam a ser tijolaços de dólar, e portanto diminuem. Agora um outro dado: eu não sou contra o imposto único, acho que precisa ser estudado. O exemplo que eu dei não é de sonegação, é de redução das operações financeiras...

Jorge Escosteguy: Sim, seria “sonegação” entre aspas.

Ives Gandra Martins: Não, não é. Porque a sonegação é a utilização de processo fraudulento. Esse não, seria uma economia legítima de tributos. Agora, eu não sou contra o imposto único, acho que no momento o imposto único está provocando essa discussão, mas da forma como está, é ainda extremamente prematuro que se possa adotar, porque como estão os projetos, encontram-se perfeitamente formas de contestar. E na maneira que eu estou apresentando o meu esquema, eu estou convencido que vai permitir a redução sensível da sonegação, por quê? Já respondendo lá, por uma razão muito simples, hoje nós temos 60 e poucos tributos, com cinco mil entes tributantes, quase 4,9 mil municípios, 26 estados e a União, e mais o Distrito Federal. Como as operações circulam no Brasil inteiro, nós temos uma dificuldade enorme de controle, por exemplo, a seguridade. Por que o governo, correndo o risco de o fim social vir a ser considerado inconstitucional, resolveu vincular à Receita Federal o futuro fim social? Porque ele tem receio de que, entrando na seguridade, ele não tenha como controlar. No meu esquema, reduzindo para cinco, o controle, com a mesma máquina administrativa, passa a ser muito melhor.

Denise Campos de Toledo: Mas doutor Ives, haveria uma redução muito grande da arrecadação do governo, pelo menos no primeiro momento, não haveria?

Ives Gandra Martins: Não acho, porque era só calcular e quantificar em computador quais são as alíquotas necessárias. E essas alíquotas...

Denise Campos de Toledo: O ideal é haver uma manutenção da carga tributária?

Ives Gandra Martins: Ah, mas eu quero a manutenção, porque se não houver manutenção da carga tributária, Denise, o que vai acontecer? A pressão de União, Estado e o Distrito Federal torna inviável a aprovação...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Quer dizer, no fundo o senhor não defende...

Ives Gandra Martins: Eu defendo a simplificação do sistema.

Jorge Escosteguy: O senhor não acha que o brasileiro paga muito imposto, o senhor acha que...

Ives Gandra Martins: Não, eu acho que o brasileiro paga muito imposto, mas nós estamos procurando uma forma viável de fazer a aprovação...

Denise Campos de Toledo: [interrompendo] E economizar na simplificação.

Ives Gandra Martins: O que representaria? As empresas hoje gastam uma verdadeira fortuna para controlar todos os tributos existentes. O que elas economizariam em nível de despesa... Eu considero os dados que eu vou dar agora dados que eu não posso comprovar, mas a pessoa que me deu, e que todos conhecem, foi secretário da Receita Federal, o Ivanir Silva, e ele calcula que hoje um terço da arrecadação fica entre a máquina administrativa e o custo da empresa, o que vale dizer: da carga tributária nacional, nós teríamos um custo de administração que não rende nada para ninguém, a não ser para aqueles que estão lá trabalhando, mas não em nível nacional. Com o meu sistema, sem alterar os fatos geradores clássicos, sem provocar grandes injustiças, compacto de tal maneira e simplificado de tal maneira, que a manutenção da carga tributária já é compensada pela redução brutal de custos nas empresas. E o próprio fisco, podendo fiscalizar melhor, vai sentir que pode aumentar a sua arrecadação. E daí será possível à sociedade pressionar para que caia o nível da carga tributária. Mas como isso tem que ser testado, o que eu proponho, numa primeira etapa, é a manutenção da carga tributária com a simplificação do sistema.

Denise Campos de Toledo: Mas as empresas é que sairiam ganhando nesse primeiro momento.

Ives Gandra Martins: Já sairiam brutalmente...

Denise Campos de Toledo: A pessoa física não?

Ives Gandra Martins: A pessoa física também...

Jorge Escosteguy: O telespectador que está em casa preocupado porque tem que pagar o IPTU, aqui em São Paulo, que subiu muito e tal, ele quer saber como a carga tributária dele reduz. Ele quer comprar um automóvel, o automóvel está muito caro, tem muito imposto...

Ives Gandra Martins: Veja o seguinte: São Paulo é um caso à parte. Eu diria o seguinte: uma das coisas que mais me impressionam, e talvez o telespectador não saiba, com tudo isso que tem se colocado sobre o IPTU, e as declarações de que se prevalecer a liminar – corretíssima, jurídica, não há uma liminar tão bem dada em nível de fundamentação jurídica como essa dada pelo desembargador Odir Porto –, o que nós encontramos? O governo vem dizendo que não vai ter receita, quando na prática, se não se arrecadasse um centavo de IPTU, o que o governo municipal vai receber, os 85% da sua programação, já seria superior ao que recebeu o ano passado. Mas mais do que isso, o governo municipal não contava com o IPVA que o governador [Luiz Antônio] Fleury [Filho, que governou São Paulo entre 1991-1995] lançou, e talvez o telespectador desconheça que 50% do IPVA vêm para o município de São Paulo. Quer dizer, como o município de São Paulo tem praticamente metade dos carros do estado de São Paulo, o IPVA cobrado no estado de São Paulo é mais do que suficiente para cobrir parcela daquilo que a prefeitura deixará de receber do IPTU. Isso não tem sido apresentado e nem foi previsto, porque quando a prefeita [Luiza Erundina] mandou o orçamento para a Câmara, não sabia do aumento que, no fim do ano, o governador Fleury iria fazer e que iria dar um benefício maior do que o do estado, porque no estado o governo tem que trabalhar para cobrar, enquanto que a prefeitura vai receber 50% de mão beijada, porque ela não tem nenhum trabalho na arrecadação. Dentro disso, o que eu entendo é que efetivamente o contribuinte tem direito de reclamar. E, aliás, o que nós vimos ontem na torcida do Corinthians, que todos os senhores devem ter lido nos jornais, que não é gente que eu chamaria, como diz a prefeita, gente de elite. Quer dizer, gente do povo reclamando contra o IPTU significa que a carga tributária na cidade de São Paulo é altíssima. Não seria alta se nós tivéssemos um alto padrão de vida, mas é altíssima pela deterioração do padrão de vida do paulistano desde 78 até agora.

Milton Abrucio: Professor, eu queria saber se, talvez até em conseqüência desse número tão grande de impostos, não se criou o efeito contrário, quer dizer, a impressão que se tem é que o rico brasileiro e a elite não gostam de pagar imposto. [Cito] só alguns dados que eu tenho aqui: 47% dos trabalhadores brasileiros trabalham sem registro em carteira. O Imposto Territorial Rural, que é o correspondente ao IPTU para área rural, arrecada anualmente apenas 14 milhões de dólares, que é uma arrecadação ridícula, é talvez um dia da arrecadação da prefeitura de São Paulo com o IPTU. O Imposto sobre Grandes Fortunas que o senhor citou, parece que foi mais uma vez adiada a sua votação, talvez [fique] para o ano que vem – quem sabe? Enfim, eu queria saber se não se criou um efeito oposto, quer dizer, essa grande grita que ocorre contra o IPTU, acredito que existam casos bastante justos, talvez dos aposentados, mas a gente vê até o governador criticando o seu próprio imposto, eu queria saber se não há um efeito contrário. Quer dizer, não se quer pagar imposto, “há imposto, eu sou contra”.

Ives Gandra Martins: Veja, a minha tese de doutoramento na universidade foi sobre isso. O tributo é uma norma de rejeição social, nós temos que colocar isso na cabeça. Estudando a história da tributação, dos seis mil anos de história narrada, sempre que o contribuinte pode, ele encontra formas de não pagar. Eu cito um exemplo aqui: vamos admitir – adotando um exemplo que me parece claro para o telespectador compreender – que houvesse uma lei no Brasil que declarasse o seguinte: quem assassinar pessoas não será condenado a nada. Eu estou convencido que todos os que estão na sala, apesar de não haver punição nenhuma, não sairiam matando pessoas por aí, por quê? Porque o direito à vida é um direito que é uma norma de aceitação social. Agora, se eu dissesse a mesma coisa: que a prefeitura baixou a lei [dizendo que] só pagará tributos quem quiser, eu pergunto: quem é que pagaria nesta sala os tributos? É que a tendência nossa é de perceber que é uma carga tributária desmedida. O que eu chamo de carga tributária desmedida? E a tese minha de doutoramento foi exatamente essa: nós tínhamos no passado a chamada carga tributária indevida, que os italianos defenderam no século passado, quer dizer, o tributo sempre precisa ser sonegado porque é sempre injusto. Daí, no início deste século [XX], passou-se a discutir que o tributo era para o Estado, que o Estado é um ente ético, que o Estado representa a sociedade e o tributo seria sempre devido. Até que, depois da Segunda Guerra Mundial [1939-1945] se evoluiu para o que eu chamo de carga tributária nem indevida nem sublimada, mas desmedida. Todos nós nesta sala, todos, todos, sem exceção, nós sabemos que nós pagamos mais do que devemos para que o Estado devolva em serviços públicos o que nós pagamos e para sustentar o poder. E a parte que representa a sustentação dos detentores de poder faz com que a sociedade tenha a nítida consciência de que paga mais do que deve para receber uma parte em serviços e para a outra parte sustentar o poder. E este problema não é brasileiro, isso acontece em todos os períodos históricos e em todos os espaços geográficos, e é por isso que, por ser uma norma de rejeição social, a tendência do contribuinte, não [só] no Brasil, [mas] no mundo inteiro, é sempre se proteger contra essa carga tributária desmedida. Agora, no caso concreto da sua pergunta, na verdade, os impostos patrimoniais estão em franca decadência no mundo inteiro. E por quê? Porque o imposto patrimonial é aquele que incide sobre algo que se adquiriu depois de já se ter pagos todos os tributos. São poucos os países que mantêm, por exemplo, um imposto semelhante ao das grandes fortunas. Na França é desmoralizado; na Espanha é praticamente inexistente, porque o imposto sobre o patrimônio é também uma forma de desincentivar. Vamos ver, por exemplo, o IPTU que foi lançado este ano é elevadíssimo sobre diversas residências, [então] é evidente que muitas construtoras vão deixar de construir aqui em São Paulo, porque esse imposto, se fosse mantido nesse nível, não é só neste ano, ele vai ser cobrado em todos os anos... e nós soubemos, não fui eu, outro dia, num debate...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] E vai ser reajustado todos os anos?

Ives Gandra Martins: Todos os anos. O ano passado o IPTU subiu, segundo declaração do secretário de Finanças, que é um homem absolutamente idôneo, correto, meu particular amigo, gosto muito do Amir [Khair], embora divirja completamente da forma como ele está [...] ele corrigiu 160% sobre a inflação! Então, se nós mantivéssemos só a correção monetária da inflação, nós teríamos, sobre o ano de 90, 160% a mais. Ele acrescentou 32% agora. E como eu dizia, é muito fácil dizer: no papel, nós temos 50 mil contribuintes, [mas] isso é no papel, é no computador. Quem vai ao meu escritório, quem me telefona, quem se encontra comigo na rua é gente de carne e osso, é o aposentado que comprou sua casa, que tem há 40 anos, que agora já não tem fonte de subsistência e que está numa rua que foi superavaliada. Ou então é um desempregado, é a classe média. Quando se vê, e isso me pareceu sintomático, a torcida do Corinthians contra o IPTU, eu estou convencido de que eles não estavam apenas para fazer folclore, é que muitos deles sentiram na própria carne isso, no momento em que muitos estão desempregados. Agora, eu também reconheço, por exemplo, o ITR... O ITR, para mim, era um imposto que deveria ser utilizado, no sistema clássico, como um imposto de reforma agrária. Quando fui presidente do Instituto dos Advogados [de São Paulo], o que eu sugeri? Em vez de fazer reforma agrária conflitual, isto é, de pôr fazendeiro... etc, utiliza-se o imposto progressivamente para desestimular a manutenção de propriedades improdutivas. Essa foi a proposta do Instituto dos Advogados em 1986 para a Constituinte. Nós não precisaríamos ter conflito nenhum: estabeleceriam critérios, a propriedade produtiva seria beneficiada e da propriedade improdutiva, necessariamente, a pessoa procuraria se livrar. E procurando se livrar dela, ou ela venderia para quem poderia explorar gerando empregos, ou o próprio governo poderia, com o próprio ITR, ir gradativamente assumindo essa propriedade. Esse ITR, no Brasil, eu reconheço, é um imposto que tem sido sempre uma espécie de vaca sagrada dos hindus, ninguém toca.

Milton Abrucio: Professor, o IPTU, por acaso, não é mais justo, por exemplo, que os impostos sobre consumo? O Brasil é um dos países onde os impostos sobre consumo ocupam uma parcela muito maior do que em outros países, não é?

Ives Gandra Martins: Mas hoje é interessante um dado: na década de 80 houve uma série de desmistificações, uma delas foi a de que o Estado é um bom redistribuidor de riquezas, provou-se que o Estado é um mau redistribuidor, ele tira da sociedade e não devolve para a sociedade. Segundo, [dizia-se] que a progressividade era extremamente positiva. A Suécia está mudando todo o seu sistema tributário porque a progressividade levou a um desestímulo, a um desincentivo brutal na sua economia. E a outra tese era exatamente a tese apresentada de que os impostos diretos são justos e os impostos indiretos são injustos. E de repente se percebeu o seguinte: é muito mais fácil fazer política tributária com os impostos indiretos do que com os impostos diretos, e por quê? Porque a psicologia humana faz com que não se critiquem aqueles impostos que estão embutidos nos preços dos produtos, mas, ao contrário, todos sentem quando têm que pagar o seu imposto sobre a renda, o seu imposto sobre patrimônio, e principalmente o patrimônio. Porque o imposto sobre patrimônio é um imposto despatrimonializante. O que é um imposto despatrimonializante? Eu tenho um patrimônio que todo ano ele perde uma parcela para o Estado, na medida em que eu sou obrigado a pagar. E nem se pode alegar que, nesse caso, por exemplo, a prefeitura tem gastos com aquele patrimônio, porque ela cobra todas as taxas correspondentes ao serviço público que presta ao cidadão. Por esta razão, não é verdade que esses impostos diretos, hoje, em nível de política tributária, deveriam ser mais tributados. O que o mundo está demonstrando é que os governos estão partindo para os indiretos, por exemplo, o IVA, que hoje é o Imposto sobre Valor Agregado, que se utiliza em toda a Comunidade Econômica Européia, é uniformizado, e [há] uma tendência a reduzir o imposto sobre o patrimônio e sobre a renda, por quê? No momento em que os países, que estão numa concorrência brutal, reduzem o imposto sobre o patrimônio e reduzem o imposto sobre a renda, nessa medida eles atraem investimentos. E como todo mundo está atrás de investimentos, não vale a pena olhar demasiadamente os investidores da poupança.

Stephen Kanitz: A questão não é a carga tributária, mas o que o Estado está devolvendo em termos de bens e serviços, que é ridículo comparado a outros países.

Ives Gandra Martins: E mesmo assim, Kanitz, com certo desestímulo, por exemplo, na Suécia, o Estado praticamente devolve o que recebe. E de repente percebe que o povo não quer trabalhar mais porque o Estado prepara tudo, quer dizer, há um desestímulo natural à criatividade, à poupança e ao investimento. Então, tem que haver um nível de equilíbrio.

Raimundo Pereira: Eu queria fazer uma pergunta de palmeirense, eu estou com a caneta aqui...

Ives Gandra Martins: Eu sou são-paulino [risos].

Raimundo Pereira: Pois é. De palmeirense, porque meu time, embor um time muito popular há muito tempo, a sua direção nem sempre o é, então uma faixa que aparece no estádio, é preciso ver quem está por trás dela. A minha avaliação é diferente da sua nessa questão do IPTU. Mas a minha pergunta tenta se voltar contra o que me parece um princípio do seu modo de pensar, pelas ações nas quais o senhor se envolveu, ou pela notoriedade que o senhor tem em função delas, que é o seguinte, o senhor expôs rapidamente, o senhor acha que o Estado, em todas as épocas, como o senhor diz na famosa carta ao Collor [Fernando Collor de Mello], em todas as épocas, em todos os lugares, ele é mau patrão, o ideal é trabalhar para conter o crescimento do Estado etc. E o senhor citou como exemplo, ao falar inclusive das mudanças no imposto para reduzir a progressividade, citou a reforma do Reagan [Ronald Reagan]. Por uma série de circunstâncias, tenho estudado um pouco mais essa questão do que foi a reforma do Reagan nesses anos recentes. E eu queria que o senhor me explicasse, como o senhor fala em Estado mínimo, um Estado como o americano que, nesse orçamento enviado ao Congresso agora, nos últimos dias, tem 400 bilhões de dólares de pagamentos de juros a quem lhe empresta dinheiro, basicamente os grandes capitais, não existe trabalhador, embora seja possível comprar títulos do Tesouro americano, lá no Federal Reserve, esse pagamento é fundamentalmente ao grande capital. Então, que Estado mínimo é esse que tem um peso tão brutal para transferir renda de impostos para os grandes monopólios?

Ives Gandra Martins: Sobre o problema do Estado americano, eu coloco o seguinte: eu defendo o Estado mínimo, [mas] eu não digo que o Estado americano seja mínimo...

Raimundo Pereira: [interrompendo] Sim, mas que Estado mínimo é esse?

Ives Gandra Martins: Não, mas me dê licença...

Raimundo Pereira: Porque todos os Estados europeus também têm esse mesmo nível de dívida pública...

Ives Gandra Martins: Nem quero adotar os Estados Unidos como exemplo. Os Estados Unidos têm alguns problemas que podem se transformar em problemas seriíssimos no futuro. Primeiro lugar...

Raimundo Pereira: Eu só queria fazer uma correção.

Ives Gandra Martins: Pois não.

Raimundo Pereira: Não pense que são os Estados Unidos; todos os grandes Estados capitalistas hoje têm dívidas internas monumentais pelas quais pagam quantidades de juros monumentais basicamente aos grandes monopólios.

Ives Gandra Martins: Veja o seguinte, na verdade, há determinados Estados hoje na Comunidade Econômica Européia que estão numa situação melhor do que a dos Estados Unidos ou do que a Itália, que são os dois grandes exemplos de Estados que têm uma dívida interna muito grande. Mas o que acontece é o seguinte, o que aconteceu em relação aos Estados Unidos? Se não houvesse aquela redução, aquela simplificação tributária, nós tivemos dois choques de petróleo, o de 73 e o de 79 [crises do petróleo], que num determinado momento levou, inclusive, a inflação americana a dois dígitos e quase chegou em nível de 18%, 20%, digamos, a inflação real americana. O que aconteceu? Naquela época, a tentativa de recuperação teria que fazer com que houvesse investimentos internos maiores, nos Estados Unidos, com uma vantagem e uma desvantagem: ele tinha que manter toda uma estrutura de estamento com um inimigo potencial, que seria a União Soviética, que representava gastos menos reprodutivos do que o gasto, por exemplo, de uma Alemanha ou de um Japão, que não tinham que manter forças militares, e em segundo lugar os Estados Unidos tinham a moeda universal. Quando se dizia: por que no Brasil, com a dívida americana, que é maior teoricamente que a dívida brasileira, percentualmente, os Estados Unidos...

Raimundo Pereira: [interrompendo] Muito maior.

Ives Gandra Martins: ...Eu sei. Eu estou falando em percentuais, não estou falando em valores, porque o Produto Interno Bruto americano está em torno de quase seis trilhões, enquanto que o nosso Produto Interno está em 350, 360 bilhões, o oficial, porque com a economia informal isso deve ser muito maior. Mas, então, o que acontece? Nesse período, os Estados Unidos evidentemente jogaram com a reforma tributária, e com isso eles conseguiram sobreviver uma década de 80 em que já havia sinais evidentes de que os países sem estrutura militar maior estavam ganhando o domínio do mundo. Na prática, o Japão e a Alemanha, que desde a Segunda Guerra Mundial passaram a ter gastos menores de manutenção de status e de poder, de status de Estado, esses foram os países que mais se desenvolveram e são hoje, digamos, países mais evoluídos tecnologicamente. A Itália conseguiu uma solução admirável, porque a Itália, em 79, quando todos viviam a síndrome da Tokyo Round, em que o protecionismo do comércio internacional voltava, e da reunião de Viena, de junho em Viena, em que o petróleo ia de 12, 13 dólares o barril para 30 ou 32 dólares, que foi o segundo choque do petróleo, eles deram à economia informal um tratamento inteligente. Dizem os italianos, e essa frase é do Alcides Jorge Costa [professor de direito tributário da USP], eu acho notável, que o italiano é o povo mais inteligente do mundo, porque eles sabem que o Estado é imprescindível, mas dão-lhe a devida importância, ou seja, pouca. Como havia muita economia informal, eles, com a microempresa, formalizaram a economia informal e passaram a administrar razoavelmente a década de 80 com essa simplificação do sistema tributário, com essa isenção dada à microempresa, não como existe no Brasil, [mas] a reais microempresas, e passaram a ter uma evolução que fez com que seu PIB chegasse a ser superior ao PIB da Inglaterra. Mas, à evidência, com todo aquele custo que vinha da idéia de que o Estado poderoso era o Estado que deveria solucionar, eles passaram uma redução. E se nós compararmos hoje os Estados que hoje são considerados desenvolvidos, quer dizer, os grandes Estados, na década de 80, isto é, em 1980, o tamanho dos Estados Unidos, o tamanho da França, o tamanho da Itália e o tamanho da Alemanha, e nós analisarmos em 92, não a Alemanha, mas apesar de ainda serem estados grandes, o seu tamanho foi contraído, e na Inglaterra também.

Raimundo Pereira: Mas o senhor teria que levar em conta nessa questão...

Ives Gandra Martins: O que vale dizer: está havendo uma contração não dramática, mas está havendo uma contração. [Esses Estados] são menores do que eram há 12 anos.

Raimundo Pereira: Esse ajuste que os americanos fizeram, que correspondeu basicamente à elevação brutal...

Ives Gandra Martins: Ele permitiu a recuperação interna da sociedade.

Raimundo Pereira: Uma certa recuperação, mas elevou a taxa de juros...

Ives Gandra Martins: Senão ia entrar num colapso brutal semelhante a 29 [crise de 1929].

Raimundo Pereira: ...enormemente nos Estados Unidos, foi esse ajuste de juros que levou o Estado brasileiro hoje a ser um Estado que é exportador de capitais para pagar esses juros.

Ives Gandra Martins: Sim, mas veja, o que os americanos estão fazendo agora? Apesar de uma crise...

Raimundo Pereira: Não [vamos] esquecer que o ajuste, o último, foi um ajuste recomendado pelo Fundo Monetário.

Ives Gandra Martins: ...Mas apesar de uma crise interna ainda existente nos Estados Unidos, eles estão conseguindo manter duas coisas impressionantes: redução da carga tributária, proposta do Bush, e juros baixos, o que vale dizer que eles estão com instrumental, apesar da dívida alta, um instrumental capaz ainda de fazer política monetária e política fiscal.

Fernando Rodrigues: O Bush já aumentou impostos algumas vezes, não é?

Ives Gandra Martins: Aumentou, mas agora todo o jogo para o ano de 92, a proposta dele, o discurso dele é de redução de tributos...

Fernando Rodrigues: Sim, ele fez esse discurso, mas aumentou impostos.

Ives Gandra Martins: Como?

Fernando Rodrigues: Ele aumentou os impostos. Ele fez exatamente o contrário, aliás, a grande cobrança que os democratas fazem hoje é exatamente isso.

Ives Gandra Martins: Sim, mas qual é o discurso do Bush agora? Quando eu falo agora é de 15 dias atrás...

Fernando Rodrigues: Mas agora é idêntico ao de antes da eleição, só que antes da eleição também fez esse discurso e aumentou...

Ives Gandra Martins: O Reagan fez esse discurso, eu não estou aqui para defender o governo americano, mas apenas para dizer: o discurso do Reagan, também antes das eleições, quando derrotou o [Jimmy] Carter [em 1981], eu estava nos Estados Unidos na época, foi um discurso semelhante e ele aplicou.

Fernando Rodrigues: Eu acho até ilustrativo falar dos Estados Unidos, porque a política reaganista, me parece, não sou um estudioso, mas até enquanto o senhor discutia com o Raimundo, eu tirei alguns dados. Tem 33 milhões de pobres nos Estados Unidos, pessoas que não conseguem ganhar para comer, hoje, que é mais de 10% da população. Esse número se avolumou exatamente no período de redução de impostos da era Reagan, esse número foi divulgado no ano passado. Parece-me que quando a gente diz que os Estados unidos conseguiram manter um certo desenvolvimento à custa da diminuição de impostos, não sei se é exatamente isso que aconteceu.

Ives Gandra Martins: Eu estou convencido de que sim pelo seguinte: quando se estava lá em 80, isto é, antes da fase, quando o Carter... nós estávamos com uma inflação elevada e com grande desemprego. Então, se nós analisarmos não só a fase Reagan, mas aqueles anos que levaram o Carter a perder a eleição sendo presidente, nós estávamos com um índice também elevadíssimo de desemprego, porque havia uma crise interna brutal nos Estados Unidos e se tinha a sensação que, com aquela inflação, os Estados Unidos poderiam a qualquer momento, com a dívida interna, entrar num processo quase colapsial semelhante àquele que antecedeu o New Deal, e foi graças a isso que se permitiram investimentos internos. O grande problema hoje dos Estados Unidos é que eles se tornaram um pouco obsoletos para concorrerem com japoneses, de um lado, com os tigres asiáticos, de outro lado, que têm alguns problemas, e principalmente na Comunidade Econômica Européia, que formou um bloco altamente protecionista dos seus próprios interesses e evidentemente com uma potencialidade muito grande.

Alberto Tamer: Eu queria só rapidamente lembrar duas coisas. Primeiro, com relação aos Estados Unidos – eu acho que nós deveríamos trazer o assunto mais para o Brasil, que nos interessa aqui, o IPTU da prefeitura, a reforma tributária do governo –, mas só lembrar que no caso dos Estados Unidos, 12% do PIB, e isso é oficial, um PIB de mais de cinco trilhões, são gastos nos serviços de saúde médica, assistência médica...

Ives Gandra Martins: Que é boa.

Alberto Tamer: ...e [no setor] militar, apenas 300 bilhões de dólares, que são o orçamento aprovado do Pentágono agora. Então, na verdade, grande parte do dinheiro volta para a assistência médica, que é o problema americano hoje: o que fazer com o seu serviço de assistência médica que, segundo eles, está doente. Mas acho que o importante é a gente voltar aqui para o Brasil num ponto muito básico. O senhor acha que deve se reduzir o número de impostos, mas parece que esse é o projeto do governo. O [ministro da Fazenda] Marcílio [Marques Moreira] tem dito que ele quer, no máximo, oito impostos na reforma tributária que está aí. E segundo...

Ives Gandra Martins: [interrompendo] Tamer, apenas quero lhe dizer o seguinte: a minha proposta já tem dois anos e meio. E o governo adotou a sua proposta agora. E o governo, até agora, felizmente com o Marcílio mudou, mas o governo até agora estava querendo aumentar, porque pela emenda constitucional do “ emendão”, que está lá no Congresso Nacional, eles aumentam em três impostos o sistema já existente, que é o imposto sobre os mutuários, o imposto sobre os combustíveis...

Alberto Tamer: [interrompendo] Mas eles estão prometendo mandar um projeto novo agora em março, de reforma tributária.

Ives Gandra Martins: O que eles estão pretendendo, Tamer, é o seguinte: outro dia eu conversei longamente com o Ariosvaldo e quarta-feira agora nós vamos fazer uma reunião na Federação só para analisar as quatro propostas de emenda constitucional que estão no Congresso Nacional. O que eles estão pretendendo...

Jaime Martins: [interrompendo] A do senhor está no Congresso?

Ives Gandra Martins: A minha, foram dois deputados que adaptaram a minha, que foi o deputado [...], ele diz claramente que é lastreada da minha proposta, e a do deputado Vitor Faccioni, que é a outra proposta que lá está e que também, na justificação, ele diz que ele procurou fazer uma união entre a proposta do Marcos Cintra e a minha proposta. Além disso, existe a proposta do Marcos Cintra e essa proposta do governo federal.

Jaime Martins: Tem a do [economista] Roberto Macedo também para cinco impostos.

Ives Gandra Martins: O Roberto fala nos cinco, e os cinco de que ele fala, quatro dos cinco impostos são exatamente os da minha proposta. Agora, o que o Ariosvaldo está pretendendo fazer, que me parece extremamente inteligente...

Jaime Martins: Ariosvaldo, para o telespectador, quem é?

Ives Gandra Martins: O Ariosvaldo é o coordenador da reforma tributária do governo federal. Ele pretende ouvir todas as correntes e não pretende forçar... Ele está com uma equipe trabalhando permanentemente. Depois de ouvir todas as correntes, [ele vai] levar como mera sugestão ao Congresso, porque o poder efetivo que vai decidir é o Congresso Nacional. Para não se fazer algo laboratorial em que duas ou três pessoas se reúnem e pensam ter a solução do país e pretendem implantar isso no país, o que ele está pretendendo é ouvir, inclusive está correndo o Brasil, ouvindo todos os tributaristas, todos os especialistas, pondo o pessoal a trabalhar. Isso vai facilitar, porque eu acho que hoje o problema é que todos nós sabemos o que nós queremos pagar e o que nós queremos receber em troco desse pagamento. E isso não tem sido feito adequadamente.

Alberto Tamer: Então, este ano deveremos ter uma reforma tributária de qualquer maneira?

Ives Gandra Martins: Eu não sei se virá este ano, pelo seguinte: eu estou acreditando que eles vão trabalhar este ano, mas acho que dificilmente, porque nós vamos ter a revisão constitucional... o plebiscito, que deverá ser no dia 21 de abril do ano que vem, porque é quase certo que vai haver uma antecipação e que me parece também extremamente interessante para afastar...

[...]: [interrompendo] Tem reunião amanhã...

Ives Ganira Martins: Reunião às 10 horas amanhã. Falei com o deputado Ulysses Guimarães, amanhã vai ser essa reunião às 10 horas, e por que eles vão pretender? Para ficar distante das eleições futuras, porque um plebiscito praticamente a um ano da outra eleição, ele pode ser influenciado pelos candidatos. A partir do plebiscito até o dia 5 de outubro, eles também vão alterar a redação da emenda das exposições transitórias, que diz: “Após 5 de outubro”, quer dizer, [...] 5 de outubro, no ano que vem, daqui a três anos. E a revisão [dirá]: “No dia 5 de outubro vai se começar a discutir...”. E mais do que isto, eles estão pretendendo, o que me parece também extremamente útil, do dia em que houver a revisão constitucional até o momento em que for instalada a Assembléia Constituinte derivada, ter uma comissão do Congresso trabalhando. E acho que será muito difícil que haja qualquer aprovação antes.

Jorge Escosteguy: Professor, antes do intervalo, uma pergunta do Antônio Félix, por favor, para completar a roda.

Antônio Félix: Algumas pessoas têm me perguntado, preocupadas, quanto a essa ameaça da Receita Federal de quebrar o sigilo bancário. É possível isso?

Ives Gandra Martins: Eu tenho a impressão que não. Eu tenho uma velha Constituição [pega um pequeno exemplar da Constituição], é velha porque eu manuseio muito, mas se nós analisarmos o artigo 5º da Constituição, no que diz respeito aos direitos e garantias individuais, ela não pode entrar. E se nós utilizarmos este artigo 5º, com os diversos incisos, nós vamos verificar que uma lei complementar, que eles puseram na lei do fim social, não permitiria a quebra do sigilo bancário. Na minha opinião, eles teriam que mudar a Constituição e não fazer via lei complementar, embora o Código Tributário Nacional permita que, havendo processo, se possa obter as informações que terão que ser sigilosas. Mas sem processo, indiscriminadamente, chegar para um banco e dizer: “Me dê a relação de todos”, [contra] isso há uma garantia no artigo 5º da Constituição. Então, nos diversos incisos que tratam do problema de que os bens não podem ser revelados, que a casa não pode ser invadida... o inciso 11 do artigo 5º é claríssimo...

Jorge Escosteguy: Mas todas essas coisas já aconteceram no Brasil, não é professor?

Ives Gandra Martins: Acontecem. O que eu estou dizendo é que, pelo direito, não poderiam acontecer [ri].

Jorge Escosteguy: Nós voltaremos em seguida a esse assunto. Vamos fazer um rápido intervalo, o Roda Viva volta daqui a pouco entrevistando hoje o professor de direito constitucional e tributarista Ives Gandra Martins. Até já.

[intervalo]

Jorge Escosteguy: Voltamos com o Roda Viva, que hoje está entrevistando o professor de direito constitucional e tributarista Ives Gandra Martins. Professor, aqui há várias perguntas, várias questões de telespectadores relacionadas ao malfadado IPTU da prefeita Luiza Erundina, aqui em São Paulo. Então, eu vou ler mais ou menos as perguntas para o senhor e eu queria que o senhor desse a sua opinião sobre essa questão no geral. Valentina de Souza, do Paraíso: “Por que o IPTU para apartamento aumenta mais do que para casos de terrenos vazios? A liminar de 40 dias é válida também para quem não entrou na Justiça?”. Oséias das Dores, de Moema: “Por que os clubes não pagam IPTU?”; Mônica Ramos, do Ipiranga: “É possível contestar esse aumento da prefeita Luiza Erundina?”. Jairo da Silva, de Suzano: “Por que o IPTU não é equivalente à inflação do ano?”. José André da Silva, da Freguesia do Ó: “A prefeitura fez algum estudo para o IPTU levando em conta os milhares de desempregados?”. E Alice de Farias, de Santa Cecília: “Se o proprietário do imóvel pagou a taxa única, a inquilina pode pagar parcelado?”

Ives Gandra Martins: Bem, em primeiro lugar, a decisão do Tribunal é válida para todos os contribuintes da cidade de São Paulo, o que vale dizer: aqueles que pretendessem entrar com ação devem esperar a decisão do Órgão Especial do Tribunal que vai examinar o recurso da prefeitura. Por enquanto, ninguém mais está obrigado a pagar o carnê, só 0,2% do valor venal real. Porque no carnê está o valor venal, que é o valor venal abstrato, mas há um índice de obsolescência que tem que ser aplicado. Qual é o critério que eu dou para facilitar o cálculo?

Jorge Escosteguy: [interrompendo] O senhor falou “índice de obsolescência”. Já pensou no telespectador que está em casa com o seu carnê do IPTU dizendo: “Onde é que eu vou achar o índice de obsolescência aqui?” [risos]

Ives Gandra Martins: O que representa? O imóvel mais velho tem um fator de redução do seu valor. Então, como o contribuinte deve fazer? Não aplicar 0,2% pura e simplesmente sobre aquilo que está escrito de valor venal, ele tem o IPTU que foi lançado pela prefeitura, e está do lado ali... Vamos admitir que ele tenha um IPTU para pagar de 60 mil cruzeiros, está uma alíquota de 0,4; como alíquota aplicável é de 0,2, não deve fazer nenhum cálculo com o valor venal, ele pega os 60 mil e divide por dois, ele vai ter que pagar 30 mil, porque o IPTU já está com este fator de redução, apesar do valor venal que a prefeitura colocou, que foi o valor venal em abstrato, sem este fator de redução. Dessa maneira, e tenho a impressão de que é isso que a prefeitura vai orientar quarta-feira a todos os bancos, mas estão todos garantidos na liminar. Por outro lado, o que a prefeitura fez? Ela pediu um aumento médio de 32%, mas real, para a grande maioria, de mais de 100% sobre a inflação. Dizer de valor médio de 32% é algo interessante pelo seguinte, eu me lembro da história do cidadão que sabia que um rio tinha um fundo médio de meio metro, foi e morreu afogado, porque o trecho que ele pegou tinha 2 metros e meio e ele não sabia nadar. Os 32%, na verdade, para a maior parte daqueles que estão reclamando, representa mais de 100% sobre a inflação, e aí é que está a grande grita: enquanto todo o povo de São Paulo perdeu o seu padrão de vida, teve o seu padrão de vida diluído, a prefeitura, apesar de ter aumentado o ITBI, que foi o imposto sobre as transmissões imobiliárias, que foi para 6%; tem 50% do IPVA; ter aumentado de rigor todos os tributos e todas as taxas, ainda pretendeu mais correção monetária, além da inflação, sobre o IPTU.

Jorge Escosteguy: A proprietária pagou a taxa única, o inquilino pode pagar parcelado?

Ives Gandra Martins: Bem, acontece o seguinte, depende do contrato. Se o contrato declarou que ela teria que pagar de imediato, eu acho muito difícil.

Jorge Escosteguy: Por que os clubes não pagam IPTU? Quer saber o Oséias das Dores.

Ives Gandra Martins: Por uma razão, eles são imunes. E a imunidade constitucional para entidades de assistência social, esportivas etc, então...

Jorge Escosteguy: O que o senhor acha dessa imunidade?

Ives Gandra Martins: Acontece o seguinte, é que também, nessa parte de clubes, grande parte dos clubes... os clubes têm um sentido social também, principalmente os clubes de periferia etc.

Jorge Escosteguy : O Jockey Club não paga, por exemplo?

Ives Gandra Martins: O Jockey Club também não paga. Agora...

Jorge Escosteguy: O Clube Harmonia...

Ives Gandra Martins: O Clube Harmonia não paga também. É interessante, mas é um problema de imunidade, embora a prefeitura tenha entendido que o problema não seja de imunidade, mas seja de isenção, e sendo de isenção pode ser inclusive revogado.

Alberto Tamer: E se eu tiver um só imóvel e não pagar o IPTU, o que acontece?

Ives Gandra Martins: Na minha opinião, a pessoa que tiver um só imóvel e não tem mais nenhum bem, não tenha nem caderneta de poupança, ela não precisa pagar, por quê? Apesar de a lei 8.009 [de 1990] declarar que, do IPTU, a pessoa seria obrigada a pagar, há dois artigos na Constituição que não permitem a prefeitura cobrar. O primeiro é o artigo 150, inciso 4, que diz que o efeito de confisco do tributo não pode existir. Se eu só tenho um imóvel, [se] ela penhorar o meu imóvel, no momento em que ela mandar meu imóvel para o leilão, eu sou obrigado a sair; se eu não tenho nenhum outro bem, eu vou morar debaixo da ponte. Ora, o efeito de confisco, a Constituição proíbe. E o outro é o artigo 145, parágrafo primeiro, que declara que qualquer tributo tem que ser lançado com base na capacidade contributiva. Ora, se o cidadão demonstra que está naquele imóvel e não tem outro meio, a sua capacidade contributiva está esgotada, então não tem que pagar.

Alberto Tamer: Então, a ordem é não pagar e colocar o dinheiro no nome do filho? [ri]

Ives Gandra Martins: Aí, se ela provar que foi feito dessa forma, daí efetivamente isso é uma fraude, isso pode gerar inclusive o crime de sonegação.

Jorge Escosteguy: O senhor acha que, de repente, é possível ocorrer um grande movimento de desobediência civil? Afinal, deve haver milhares de brasileiros que só têm um buraco para morar e moram lá. De repente, não pagam o IPTU e...

Ives Gandra Martins: Há um dado interessante: a tendência da pessoa de menores recursos é exatamente não discutir, fazem esforços... O que eu senti, e pela primeira vez eu senti a impossibilidade de atender a todos que telefonavam para o escritório, assalariados, aposentados, é que a pessoa procurava se endividar para poder pagar, com medo, porque a pessoa de menores recursos tem a impressão de que, se não pagar, vai chegar um policial lá...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Vai tomar a casa.

Ives Gandra Martins: ...e o resultado é que o sacrifício está sendo brutal, porque há casos que me relataram em que as pessoas iam sacrificar na alimentação para poder pagar. Por isso, aquilo que a prefeitura declara agora de que teve uma receita muito grande, a receita, por incrível que pareça, foi daqueles mais necessitados, com medo, do que dos outros que resolveram discutir. Agora, felizmente para esses que pagaram uma prestação, com a decisão do Tribunal, eles poderão deixar de pagar as próximas até completar alíquota de 0,2%, até descontar...

Jorge Escosteguy: Agora, o que o senhor acha dessa... vamos trabalhar um pouco com essa hipótese, se de repente viesse algum tributarista ou alguém como o senhor e dissesse: “Olha, todas as pessoas que têm só um imóvel, não têm outras posses, não têm outros bens, não têm caderneta de poupança, moram ali, não pagam IPTU, não precisam pagar IPTU”?

Ives Gandra Martins: Isto me parece que, em primeiro lugar, poderia ser algo que a Câmara dos Vereadores poderia fazer de imediato. Porque é evidente que, se alguém disser isso, vai depender também de prova. Então, cada contribuinte que estiver nesta situação ganha a ação, mas as ações terão que ser individuais. Então, o ideal seria que a Câmara dos Vereadores, percebendo que isso é uma realidade, fizesse uma lei nesse sentido. Porque a Câmara não pode fazer lei para aumentar tributos neste exercício, mas ela pode fazer uma lei para reduzir. E aqueles que dizem que a iniciativa terá que ser necessariamente do poder executivo, no momento em que a própria Câmara está procurando apenas aplicar um dispositivo da Constituição Federal que proíbe o confisco, ela estaria podendo legislar por entender que a legislação anterior seria inconstitucional. Então me parece que, para que não se tenha que discutir em cada caso concreto, e realmente as pessoas teriam muita dificuldade para discutir, porque ainda não existe um órgão que está na Constituição, que é a Defensoria Pública...

Jorge Escosteguy: Caímos no problema de que a Justiça não funciona?

Ives Gandra Martins: Não, caímos no problema que os governos não criaram a Defensoria Pública. O que é Defensoria Pública que os constituintes colocaram? É um departamento jurídico gratuito mantido pelo Estado para atender esses casos. Isso é algo extremamente urgente, porque iria lá, reclamaria e cada um poderia discutir, mas esse órgão não existe. O que se faz? O Ministério Público faz em parte, a advocacia dos estados, mas na prática nós não temos esse órgão. Agora, se a Câmara dos Vereadores fizer uma lei, erga omnes, [vale] para tudo, contra todos, essa lei passaria a hospedar essa hipótese, e no momento em que fizesse dessa forma, à evidência, estaria se corrigindo uma profunda injustiça social na lei do IPTU.

Jorge Escosteguy: Ou seja, quem quiser arrostar o poder público, como diria o general Golbery [do Couto e Silva], pode ir tranqüilo que não corre o risco de perder a sua casa se não pagar o IPTU?

Ives Gandra Martins: Mas terá que discutir cada caso concreto e fazer a prova.

Jorge Escosteguy: Sim. Vai discutir na Justiça.

Jaime Martins: Doutor Ives, o senhor, além de tributarista, atua em outros campos do direito também. Eu sei, inclusive, que o senhor está com uma ação de inconstitucionalidade contra a lei resultante do acordo que levou à rolagem da dívida dos estados. Em que pé está essa ação?

Ives Gandra Martins: Eu vou amanhã cedo para Brasília e devo estar à uma hora com o governador [do Paraná] Álvaro Dias e com o ministro Sydney Sanches, presidente do Supremo [Tribunal Federal]. Porque nós entramos com a ação, mas também o professor Miguel Reale Júnior entrou, pelo PSDB, com uma ação semelhante. Nós estivemos conversando, os fundamentos das duas ações são idênticos, eu não pedi liminar na minha, ele pediu liminar na dele, então nós vamos fazer um adendo ao nosso pedido para que também seja levado, que as duas ações sejam julgadas juntas. O que nós estamos pretendendo? É algo moralizador. Só para se ter noção, nós estamos discutindo [o reajuste de] 147% aos aposentados – alguns estados dão a favor, outros contra e não temos uma solução. O governo diz que não tem dinheiro. Ora, o que o governo fez com a dívida da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios e das empresas estatais do Distrito Federal, dos estados e dos municípios com a seguridade? Rolou em duas vezes, pela Lei 8.212 [de 1991], rolou por vinte anos. Essas empresas pagam aos seus funcionários a aposentadoria que eles têm direito por vencimentos integrais, mas não pagam a seguridade. E vão pagar aquilo que devem em vinte anos. E essa última lei de rolagem de dívida, de novo, as empresas estatais foram beneficiadas de tal forma que elas vão poder pagar em vinte anos o que devem hoje e que seus funcionários recebem hoje. É evidente: quando o governo dá o mau exemplo de não pagar a Previdência, não tem dinheiro para pagar os aposentados. Isso me parece absolutamente incorreto. Por outro lado, se o governo federal recebesse o que devem os estados, o Distrito Federal, os municípios, porque a rolagem foi condicionada à aprovação da reforma tributária, o governo poderia utilizar um instrumento de política monetária que não tem. O artigo 160, parágrafo único, da Constituição declara que o governo não é obrigado a repassar o IPI e o Imposto de Renda para estados e municípios que lhe devem, então com esse dinheiro ele poderia ter até meios de pagar aqueles aposentados que o governo não está pagando. O que nós estamos fazendo? Aqueles dois estados que não precisaram da rolagem da dívida, porque pagaram tudo, porque foram bem administrados, eles estão protestando por um argumento rigorosamente jurídico, é que dívida de estado só pode ser decidida por resolução do Senado Federal. O artigo 52 da Constituição diz: “É competência privativa”. Isso foi feito por uma lei, na minha opinião, não ordinária, mas ordinaríssima, porque na prática saiu de um poder de que não poderia ter saído, foi aprovada pelo Senado como segunda casa, quando é indelegável o poder do Senado, e aprovado pelo presidente da República, que não tinha outra solução, porque se não aprovasse, é evidente que não teria a reforma tributária aprovada. Então, me parece que todo esse jogo político foi contra a Constituição. E nós estamos pedindo apenas que seja reposta a Constituição, que a competência seja do Senado com iniciativa do presidente da República, como manda o artigo 52.

Raimundo Pereira: Doutor Gandra, o senhor não opera, ao formular esse conceito, com dois pesos e duas medidas?

Ives Gandra Martins: Pois não.

Raimundo Pereira: Veja, o senhor defende que se traga dinheiro do exterior, que são bilhões de dólares, que os grandes capitalistas, os monopólios mandaram para fora, o senhor defende que esse dinheiro deve vir, ser anistiado, e a lei e o governo ainda devem dar incentivos para esses capitalistas aplicarem no país. Uma sangria de recursos brutal, no seu entendimento deve ser premiada dessa forma. E um imposto que está incidindo sobre os mais ricos, evidentemente, isso é uma coisa indiscutível, numa situação em que grande parte do povo empobreceu, mas alguns enriqueceram muito, enriqueceram muito, não é verdade como o senhor disse que todo o povo tenha perdido o seu padrão de vida. Alguns melhoraram muito o seu padrão de vida. Não é um absurdo o senhor defender uma proposta desse tipo?

Ives Gandra Martins: Vamos por etapas na sua colocação. Em primeiro lugar, eu acho que o grosso do povo perdeu. E é evidente que em todos os momentos de depressão, de recessão etc existem aqueles que se beneficiam...

Denise Campos de Toledo: [interrompendo] Mas a camada mais pobre da população [...].

Ives Gandra Martins: Eu não estou generalizando, mas apenas reconhecendo...

Raimundo Pereira: O senhor está defendendo que não se pague o IPTU.

Ives Gandra Martins: Não, não. Eu estou defendendo que se pague o IPTU como manda a Constituição. Eu vou ler a Constituição para o amigo...

Raimundo Pereira: O senhor interpreta a Constituição.

Ives Gandra Martins: Eu vou exatamente interpretar como fez o desembargador Odir Porto. [Pega a Constituição] Vamos ler juntos porque assim fica fácil: “É facultado ao poder público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos de lei federal” – que não existe até agora – “do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I – parcelamento ou edificação compulsórios; II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo”. O que vale dizer: a progressividade foi colocada como uma pena, e tanto é verdade que no artigo 156, parágrafo primeiro, volta a Constituição a dizer o seguinte, que acho importantíssimo esse dispositivo: “O imposto previsto no inciso I” – que é o IPTU – “poderá ser progressivo, nos termos da lei municipal” – depois do plano diretor – de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade”. Isto representa o quê? Representa que o imposto só pode ser utilizado progressivamente para aqueles imóveis que não cumprem a sua função social. Para os imóveis que cumprem a sua função social, bem ou mal, como a Constituinte colocou, eu não posso interpretar a Constituição diferente daquilo que está. E é dentro dessa linha de raciocínio que o que se está aconselhando não é não pagar o IPTU, é pagar o IPTU como manda a Constituição. Segundo lugar, o IPTU, neste caso, é um dos tributos que a prefeitura tem. A prefeitura, por exemplo, de todas as transmissões imobiliárias de quem tem dinheiro, vai cobrar 6%... de todas não, da grande maioria, 6%, quando na legislação anterior, até o ano passado, eram 2%. Quem quiser vender, os telespectadores que quiserem vender seus imóveis sabem que vão ter uma surpresa “agradável” este ano, porque vão pagar daquilo que estão vendendo, por valores que foram inclusive corrigidos e bem corrigidos com valores venais, não 2%, mas 6% na sua maioria. Então, o que eu defendo é que a tributação seja justa, porque o IPTU é um dos 60 e poucos tributos que incidem sobre todos. Sobre o outro aspecto, em vez de os nossos dólares que saíram por causa de políticas errôneas neste país estarem gerando empregos nos outros países, eu gostaria que esses empregos fossem gerados no Brasil. Então, quando eu digo anistia, é porque o governo não tem outra forma de pegar as pessoas que estão lá fora. Mas, ao contrário, se der garantia para que esse dinheiro volte e seja aplicado nas indústrias, gerando empregos no Brasil, eu prefiro viver não com ideais, neste particular, que representem desemprego e recessão, que é o pior que pode existir no país, mas ao contrário: que com esse dinheiro eu possa gerar novos empregos e possa tirar o país da crise. Não estou, evidentemente, defendendo o ato de muitos que remeteram... até porque estou convencido que muitos remeteram pela política irracional que fez com que não houvesse interesse de investimento no Brasil. E mais do que isso, eu estava na Alemanha no ano passado, fazendo uma palestra sobre o sistema tributário, exatamente na fundação do partido do chanceler Helmut Kohl, e quando eu falava das possibilidades do Brasil etc, sobre o sistema tributário, que eles acharam interessante o meu sistema, inclusive para a Alemanha, um deputado alemão levantou-se e disse: ”Desta simplificação nós estamos precisando aqui, porque o nosso sistema é mais simples do que o dos senhores, mas também é complicado”. Daí, quando eu falei da potencialidade do Brasil, levanta-se um deputado e diz: “Como é que os senhores querem que nós enviemos dinheiro para o Brasil se os senhores mandam dinheiro para fora?”. É evidente que se nós trouxéssemos dinheiro brasileiro para cá, seria um sinalizador excepcional para que entrasse dinheiro de fora para cá. E hoje, como todo mundo está atrás de capitais, todo mundo, todos os países estão lutando para atrair capitais, seria uma sinalização de atração. E no momento em que isso entrasse aqui gerando empregos e permitindo o desenvolvimento, eu prefiro efetivamente ver os brasileiros empregados do que os brasileiros com ideais gerando o nosso dinheiro e emprego para fora.

Denise Campos de Toledo: Doutor Ives, o senhor mesmo citou a questão dos serviços que são prestados pelo governo que não são, de forma alguma, compatíveis com o que o governo arrecada. Agora no caso do IPTU, por exemplo, se houver uma decisão global que atinja a todos os contribuintes reduzir no tributo, não existe o risco de a prefeitura ter comprometido ainda mais esse serviço?

Ives Gandra Martins: Eu não vejo como...

Denise Campos de Toledo: Porque ela garante que o aumento do IPVA não compensa.

Denise Campos de Toledo: Não, eu vejo o seguinte, eu não sei por que eles não mostraram ainda os dados que ele deram. Eles dizem que não compensa, eu queria ver por que é que não compensa em números. Mas o aspecto que eu coloco e me parece impressionante é o seguinte: a Folha de S.Paulo, este ano, no mês de janeiro, publicou qual foi a receita tributária da prefeitura no ano passado, comparada nos três primeiros anos com a receita tributária que o governo Jânio Quadros [em seu mandato como prefeito entre 1986-1989] e que o governo Mário Covas [entre 1983-1986] tiveram. Com a receita do ano passado, que sem o IPTU deste ano ainda é menor do que a receita sem IPTU deste ano do governo municipal, a prefeitura de São Paulo tinha arrecadado mais do que o governo Jânio Quadros e o governo Mário Covas. Em compensação, ela tinha prestado menos serviços, por aquela publicação da Folha, do que os dois governos. Em compensação, tinha contratado mais funcionários públicos do que o governo Jânio Quadros e do governo Mário Covas. Então, o que eu estou sentindo é o seguinte – e eu me sinto muito à vontade porque não pertenço a nenhum partido político, pertenci no passado e tive uma discussão, e pertenci mais por uma questão de ideal, não para ser candidato a nada, porque nunca quis, não tenho vocação, só [para] advogado etc e quero morrer advogado [como] primeiro, único e último amor profissional –, o certo é o seguinte: é que eu não tenho nada contra o PT, tenho inclusive grandes amigos no PT. Só que, na verdade, eles jogam dentro daquilo que representa o seu ideal. Eles jogam que eles precisam tirar dos ricos para dar para os pobres, os ricos e os pobres colocados em computador, sem perceber que há pessoas de carne e osso; eles entendem que eles têm que remunerar bem os funcionários públicos, mesmo que a sociedade em si esteja sendo mal remunerada; e eles entendem que essa contratação e a prestação de serviços é decorrencial, que eles não podem reduzir o padrão de vida dos seus funcionários.

Denise Campos de Toledo: Mas a Câmara tem uma participação nisso também, doutor Ives, porque a Câmara aprovou tanto a elevação do tributo quanto o orçamento.

Ives Gandra Martins: Denise, eu vou chegar lá. Então, o que acontece? Com tudo isso, o que eu quero mostrar é que esse retrato, essa fotografia levantada pela Folha de S.Paulo no mês de janeiro é uma fotografia real que representa a filosofia de governo, isto é, aumentar o quadro funcional para poder prestar no futuro maiores serviços, reduzir o número de obras e aumentar a carga tributária. O que acontece se cair o IPTU? Se cair o IPTU, eles vão ficar, mesmo assim, com uma receita superior à do ano passado. Só que a sociedade de São Paulo está mais pobre do que no ano passado. Quando se fala dos 50 mil maiores imóveis, os imóveis comerciais são de empresas que estão fechando portas, que não estão vendendo, que estão pondo empregados na rua. Certas empresas pequenas, por exemplo, na Consolação, dizem: “A Consolação é uma rua de valor”, mas se as lojas não vendem nada, é evidente que aquele IPTU é repassado no preço, gerando mais inflação, e não vai ter comprador, ou isso vai ter que ser à custa de alguns empregos das pessoas que lá estão, quando não fecharem. Então, o que eu quero dizer é que eu não aceito terrorismo de propaganda, dizendo o seguinte: nós temos 100%; se nós não arrecadássemos um centavo, ficaríamos com 85%, e 85% mais o IPVA seria mais do que 85%, já seria suficiente para ter mais receita que no ano passado. Ora, eles vão arrecadar 0,2% de todos os imóveis, menos os isentos, e com isso, é evidente que eles têm receitas mais do que suficientes para fazer em uma sociedade empobrecida o que qualquer governo poderia fazer, e creio que eles podem fazer. Esse argumento não me convence.

Denise Campos de Toledo: Mas em época de crise aumenta a demanda pelos serviços, não é?

Ives Gandra Martins: Como?

Denise Campos de Toledo: Em épocas de crise, normalmente aumenta a demanda de serviço de hospital público, escola. Nós tivemos até uma corrida da classe média para a escola estadual.

Ives Gandra Martins: Mas eu estou convencido que, por essa razão, é que deveria [...] deixar as obras de lado...

Denise Campos de Toledo: Mas o senhor acha justo uma decisão global?

Ives Gandra Martins: A decisão é uma decisão que a prefeitura está sabendo que há muito tempo está sendo discutida. A progressividade, o 0,2%... há um outro dado: a decisão do desembargador Odir Porto é uma decisão jurídica, ele não é administrador, ele tem que examinar... O poder judiciário, a função do poder judiciário não é examinar se está certa ou incorreta a política, o poder judiciário tem que aplicar a lei. Muitas vezes, o poder judiciário pode achar injusta a lei, mas a sua função é a aplicação da lei. O que ele aplicou foi exatamente o princípio da igualdade como está na Constituição Estadual, porque a progressividade é uma mera decorrência do princípio da igualdade, do princípio da isonomia. Então, o que ele fez? Ele aplicou [a lei]. O que a prefeitura sabia é que isso está na Constituição, já se discutiu no passado, eles tiveram algumas vitórias no judiciário, talvez até mais em primeira instância, mas já sabiam que em Salvador isso já acontecera. O Tribunal de Justiça da Bahia, por unanimidade, declarou a progressividade inconstitucional. Então, na prática, projetar na certeza de que, apesar de haver decisões contrárias e poder perder, eles considerarem que o inconstitucional seria constitucional, no momento em que o desembargador Odir Porto foi provocado, ele não podia decidir de outra forma que não aquela de decidir de acordo com a Constituição. E, na minha opinião, de forma rigorosamente correta.

Jaime Martins: A questão tributária e problemas regionais. Quais seriam as responsabilidades da carga tributária ou da distribuição da renda daí decorrente nas recentes manifestações de separatismo? [ver entrevista com Aspásia Camargo no Roda Viva que aborda a questão dos movimentos separatistas da década 1990].

Ives Gandra Martins: Veja, esse é um problema, aliás, muito bem colocado. Outro dia eu estava fazendo uma palestra em Recife, no dia 16 de dezembro – eu sei porque, na data, se comemoram 100 anos da Secretaria da Fazenda do estado de Pernambuco – e um pernambucano se levantou e declarou, dizendo que os estados do Sul do país eram estados que viviam à custa do Norte e do Nordeste, que nós, na verdade, explorávamos o Norte e o Nordeste porque nós vendíamos os produtos para eles e, na prática, vivíamos à custa do que eles forneciam para cá. Eu levantei, e esse dado foi fornecido pelo Amir Khair... dos tributos federais, não os estaduais, dos tributos federais arrecadados em São Paulo, eu disse para esse cidadão – estava o lá Gustavo Krause, que é o secretário da Fazenda, controlando [o debate], eu disse, com dados do Amir Khair: “Dos tributos federais arrecadados em São Paulo, 99,7% vão para fora de São Paulo, só ficam em São Paulo 0,3%. São Paulo se compensa com os tributos estaduais e com os próprios tributos municipais, tem o IVV, o ICMS etc, mas dos federais, que são aqueles redistribuídos para o resto do Brasil, São Paulo fica com praticamente nenhum”. Eu digo: isso não é diferente com outros estados, com outros municípios grandes, o que vale dizer: se os senhores desejam efetivamente considerar que nós vivemos à custa dos senhores, os senhores é que estão provocando a separação, porque, na prática, nós os sustentamos com os nossos tributos. E vou mais longe, eu não acho justo politicamente que dois terços do eleitorado brasileiro mantenha um terço no Congresso, e que um terço do eleitorado brasileiro mantenha dois terços no Congresso. Um terço do eleitorado dos estados do Norte e do Nordeste mantém dois terços do Congresso. E nós do Sul, nós temos apenas um terço. Nós não conseguimos fazer aprovar nada que possa, num determinado momento, poder representar uma recuperação de determinados setores do Sul do país. Então, eu compreendo que o movimento separatista – eu não sou separatista, eu acho um absurdo o Brasil, [que é] uma nação continental e tem que ser preservada como uma nação continental –, mas decorre muito de nós sentirmos que nós mantemos economicamente o país, mas não temos o controle político do país, porque qualquer analfabeto do estado do Acre, que tem 393 mil habitantes, isto é, menos que o bairro de São Miguel Paulista [na cidade de São Paulo] vale mais do que 30 e poucos professores universitários de São Paulo em nível de densidade eleitoral.

Stephen Kanitz: Existe um princípio de que [não há] nenhuma tributação sem representação. Então, a saída é fazer que os tributos coincidam com a carga de impostos, quer dizer, eles vão pagar dois terços e nós um terço. Mas eu gostaria de usar a sua medicina contra o senhor. O artigo primeiro da Constituição diz o seguinte: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos”. Só que Collor não foi eleito por vinte anos, para ele poder rolar a dívida em vinte anos. A Erundina fez um contrato com a Shell de vinte anos, apesar de ela não ser eleita por vinte anos. Deputados fazem funcionários públicos estáveis vitaliciamente, apesar de não serem vitalícios. Isso faz com seu filho não terá poder na próxima eleição, porque já está tudo decidido. Economistas endividam o país por 15 anos e nós perdemos a capacidade de decidir o futuro. Não dá para cercear o poder dos representantes de nos endividarmos, de cercear o futuro?

Ives Gandra Martins: A Constituição atual tem muitos defeitos, mas ela tem algumas qualidades, e dentre as grandes qualidades estão, primeiro, os direitos e garantias individuais; segundo, um capítulo de orçamento muito bem colocado. Se nós pegarmos os artigos 163 a 169, inclusive com a possibilidade de termos um Banco Central autônomo, eu estou convencidíssimo de que a mera aplicação rigorosa desses dispositivos evitaria muito dessas colocações. Porque hoje nós temos três orçamentos na Constituição: temos o plano plurianual, a lei de diretrizes orçamentárias e a própria lei orçamentária. E no plano plurianual teria que ser discutido pela Constituição, desde 88, toda a projeção que transcendesse aquele mandato de representação, o que vale dizer: é plurianual dentro daquele governo. Acontece que, apesar de estar na Constituição, infelizmente, as leis orçamentárias, a de diretrizes e o próprio plano plurianual não têm sido apresentados. Então, quando você lê o artigo 165: o estado do Brasil exige essas três leis, que são as leis orçamentárias, nós sabemos que, na prática, a teoria é outra.

Milton Abrucio: Eu queria unir duas questões que foram colocadas aqui. A primeira sobre essa ação de inconstitucionalidade que o senhor está impondo contra o acordo da rolagem e a segunda, a questão do IPTU. [Gostaria de] fazer um pouco uma amarração com as duas coisas. Quer dizer, o senhor está contestando esse acordo que foi feito pelos estados com o governo federal de rolagem de suas dívidas. Que dívidas são essas? Fundamentalmente, os estados gastaram muito o ano passado, em ano eleitoral, quer dizer, havia uma coisa prevista em orçamento, ajudou que a arrecadação caiu com a recessão. Gastou-se, enfim, para eleger seus candidatos se gastou, gastou. Aqui em São Paulo, houve o contrário: foi apresentado um orçamento, os vereadores discutiram esse orçamento, no qual se previa inicialmente, se eu não me engano, um aumento de 80% acima da inflação para o IPTU. E no final os vereadores, por maioria, aprovaram um aumento de 32% médio, acima da inflação. E foi aprovado ao mesmo tempo o orçamento, quer dizer, vai se tirar daqui e gastar aqui. Nesse momento, como o senhor mesmo disse, falar em não pagar impostos é sempre muito simpático, se o senhor propuser aqui, ninguém vai querer pagar. Existe aí um momento que eu diria até de muita demagogia. Eu queria propor essa questão para o senhor: não se pode, ao se cortar um imposto importante para a prefeitura, como o IPTU, voltar-se a épocas passadas? Em 1978, 20% do orçamento vinham do IPTU; isso baixou depois de seguidos anos de demagogia, ou seja, os vereadores não aprovavam o IPTU porque era impopular, então se caiu para até 5% do orçamento com o IPTU. Agora, volta-se a ser 10% do orçamento. Não se pode voltar para a política do pires na mão, quer dizer, botar o prefeito para pedir dinheiro federal?

Ives Gandra Martins: Não vejo isso. Eu quero primeiro dizer o seguinte: no governo Jânio Quadros e Mário Covas, o que tinha a prefeitura de São Paulo? Tinha dois impostos. Ela tinha o ISS, com 63 serviços, e tinha o IPTU. Além disso, ela tinha uma participação no ICM, que era pequeno, não era o ICMS alargado, de 20%, que ficavam para São Paulo, de rigor, 15%, que eram só três quartos garantidos. E a participação nos tributos federais, embora fosse menor que a atual, ainda hoje é muito pequena, então eu vou esquecer os tributos federais, vou trabalhar com os municipais e os estaduais. O que aconteceu com a prefeita Erundina quando ela foi eleita? Ela pegou a reforma tributária. Além do ISS, que passou de 63 serviços para 103 serviços, ela teve o aumento do ICMS, em que a participação municipal de 20% foi para 25%, e o ICMS incorporou cinco impostos federais: os três impostos únicos e o de comunicações e de transportes. O que vale dizer: a percentual ficou maior e o ICMS alargado, como diz o José Serra, o ICMS ficou engordado. Pois bem, além disso, ela ganhou o IVV, o imposto sobre todos os combustíveis que se consomem aqui, e ganhou o Imposto sobre as Transmissões Imobiliárias Onerosas, o que vale dizer: São Paulo, que é um centro de negociações imobiliárias, isto passou para a prefeitura de São Paulo, que ela aumentou agora 6%. Então, é evidente, no momento em que ela alarga a sua receita, que o IPTU, que antes era 20%, teria que cair, porque ela passou a ter o dobro de capacidade tributária sobre os mesmos contribuintes que são os paulistanos. Então, o que fez o secretário de Finanças? Aquilo que caía logicamente, porque tinha que cair, porque ela passou a ter dois impostos mais e participação maior no IPVA e maior no ICMS, porque ela passou a ter 50% sobre o IPVA, é claro que o IPTU teria que cair. Se eu tenho dois, 20% de dois, ou tenho seis, é evidente que, se eu mantiver a mesma coisa, aquilo cai. O que ele fez? Aumentou de 89 para 90, de 90 para 91, aumentou 160% acima da inflação. E em vez de se contentar, porque ia ter um aumento de todo o resto, resolveu aumentar neste ano, que é eleitoral. Por que não aumentou nos anos anteriores? E no momento em que a recessão é evidente em São Paulo. Ninguém pode... nós estamos vendo os desempregados; a Federação das Indústrias toda semana mostra que está havendo de desemprego... Resolveu, além disso, sobre os 160% acima da inflação, aumentar mais 32%. É evidente que é isso que provocou a grita generalizada. O que eu sinto, quando eu converso, porque eu disse e gosto muito, repito aqui, eu tenho bons amigos dentro do PT e acho que o PT tem boas cabeças, mas eles estão no caminho errado: primeiro querendo jogar rico contra pobre, e não é esse o discurso, o que nós estamos procurando é desenvolvimento. Segundo lugar: querendo colocar que são 50 mil imóveis de milionários e de ricos, quando nós sabemos que, por exemplo, todas as lojas dos inquilinos, essas lojas alugadas, eles é que vão ter que suportar num momento em que não conseguem vender produtos. Eu disse: Amir, vocês trabalham com o quê? Com dados. Eu trabalho com gente de carne e osso. Quer dizer, quando a pessoa me liga, quando eu vejo uma freira que chega lá, um colégio da Alameda Itu, esse colégio teve – ele é imune de IPTU – 10 milhões de taxas, com a correção, 12 milhões. É uma escola que mantém órfãs, que não tinham o dinheiro, precisaram fazer cotização para que elas pudessem pagar. Então, na prática, o que eu quero dizer é que esse dinheiro foi colocado a mais por quê? Porque além desse trabalho que a Denise coloca muito bem, qual é o trabalho? O trabalho é fazer escolas, hospitais, que eu acho útil, se pretende fazer mais obras do que São Paulo pode se beneficiar nesse momento. Porque São Paulo está pobre nesse momento. Isso, se vier afetar, e vai afetar, na minha opinião, muito pouco e muito menos do que a prefeitura está dizendo, vai afetar algumas obras, mas não o grosso. Até porque, em funcionalismo, desse orçamento, parece que 47% irão para o funcionalismo, e do resto ainda sobraria quase 45%, mesmo que não se recolhesse um centavo, para poder fazer todo o resto. O que iria reduzir um pouco eram as obras. E acho que, num ano eleitoral, até é bom que se pense mais no povo do que nas obras.

Jaime Martins: Doutor Ives, uma questão federal. O senhor já disse num artigo que o presidente da República é, de certa forma, pai da nação. O senhor, que votou em Fernando Collor para presidente da República, acha que ele está correspondendo ao título, ou à metáfora?

Ives Gandra Martins: [ri] Eu acho o seguinte, eu vejo no presidente Collor três etapas. Ele passou a fase do que eu chamo da adolescência política na Presidência. No primeiro ano, com uma equipe de jovens, ele teve os arroubos dos jovens e nós tivemos um mundo de inconstitucionalidades. Desde o primeiro dia, eu vinha denunciando economicamente o Plano [Plano Collor] e vinha denunciando também o que havia de violência à Constituição. Esta Constituição também não me agrada em muitos pontos. No momento em que eu tenho essa Constituição... eu fui um dos que mais atacou a Constituinte quando ela estava produzindo. [Mas] no momento em que vem a lei, a nossa função é procurar conviver dentro da lei e respeitar, porque a garantia do cidadão é a lei. Então, na adolescência política, eu acho que o presidente Collor cometeu inúmeros erros, na área econômica e na área jurídica. Reduziu o tamanho...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] O senhor sabia que estava votando num adolescente?

Ives Gandra Martins: É que eu não tinha alternativa, porque a outra [candidatura, de Luiz Inácio Lula da Silva] era uma mensagem ideológica, e como eu acredito mais na sociedade do que no Estado – e tenho muito respeito, como eu disse, pelo outro candidato –, o outro candidato acreditava mais no Estado do que na sociedade, [acreditava] que o Estado é um bom redistribuidor de riquezas, e eu não acredito. Mas naquela ocasião eu não votei no primeiro turno e votei no segundo turno. Então, vem a segunda, que eu chamo da fase da adolescência para a juventude, em que se continuam cometendo erros, a manutenção de uma equipe que não estava à altura dos desafios do país, mas em que já reduz-se o nível das inconstitucionalidades. E acho que agora ele parece – eu não estou garantido – que deve entrar na maturidade política. Está com uma equipe de maior nível. Em dois setores-chave, tem dois homens extremamente competentes, que é a educação com o [físico José] Goldemberg e a saúde com o [médico] Adib Jatene. Na economia, o que teve que administrar o ministro Marcílio, que é um grande intelectual, da massa falida recebida por força dos jovens que administraram a economia do país, ele está fazendo o possível com problemas seriíssimos, porque na prática eu estou convencido que a Federação Brasileira, com cinco mil poderes executivos, cinco mil poderes legislativos e 27 poderes judiciários, não cabe dentro de um PIB reduzido. A Federação Brasileira não cabe no PIB nacional, isso nós temos que pôr na cabeça. Então, enquanto não se fizer uma contração para que a Federação esteja na altura da sociedade, nós vamos viver esse problema. Acho que ele vai ter muitos problemas ainda, mas a essa altura já é mais respeitador da Constituição, ele já começa a ter a preocupação de consultar as pessoas. E, em segundo lugar, ele está procurando levar gente com mais densidade, com mais peso. Vamos saber se realmente nós entramos numa fase de maturidade ou ainda estamos com uma juventude adolescente. São os próximos meses que dirão.

Fernando Rodrigues: São duas coisas. Primeiro uma observação ao professor Stephen Kanitz: acho que não se aplica nesse caso os quatro anos para que são eleitos as pessoas, no caso os cinco anos do presidente, porque senão o governante estaria impedido de fazer uma ponte que durasse dez anos para fazer e ter que deixar para o outro. Eu só queria fazer essa observação, porque achei que não se aplica nesse caso esse artigo da Constituição. No caso da rolagem da dívida, o problema seria outro, seria o acordo que foi feito para que fosse aprovada a reforma tributária, que acho que deve ser o grande tema deste ano. Gostaria de perguntar para o senhor o seguinte: o senhor acha que deve reduzir os tributos, que são 60 mais ou menos, para cinco ou seis, alguma coisa assim. Conhecendo o governo, será que o senhor não deixaria por menos? Não tem um meio do caminho, não? Porque eu acho que não vai chegar em cinco ou seis. Não tem uma...? [risos]

[...]: Mas o próprio governo já chegou a oito.

Fernando Rodrigues: Pois é, mas chegou a 2% de inflação em dezembro, também sabemos que não vai chegar...

Ives Gandra Martins: Eu estou convencido... eu tenho justificativas, eu tenho inclusive uma emenda articulada, para o deputado que quiser apresentar, do primeiro ao último artigo, para a minha emenda, [...] aquelas em que houve o aproveitamento. Agora, é evidente que, numa discussão, eu tenho a impressão de que, numa primeira etapa, nós podemos ter uma redução sensível, mas não chegar nem ao [imposto] único do Marcos Cintra e do Flávio Rocha, nem à minha de cinco ou seis. Eu duvido de que o governo abra mão do IOF; ele não vai querer utilizar o Imposto de Renda na fonte, quer dizer, no regime da fonte, como seu instrumento no sistema financeiro. Ele acha que é um imposto regulatório. Eu tenho a sensação de que, em relação aos empréstimos compulsórios de emergência, o governo gostaria de manter isso como uma possibilidade. Nas contribuições sociais, é possível que ele reduza para uma, nisso o governo está disposto a reduzir toda a série, mas é possível que mantenha uma contribuição de intervenção no domínio econômico, e até o que se chama de contribuição no interesse das categorias. Acho muito difícil que os sindicatos operários, os sindicatos patronais etc abram mão daquilo que têm como contribuições no sistema tributário. Eu estou convencido de que, em matéria das taxas, há dois tipos de taxas, que são na verdade brutalmente multiplicadas. Há no Brasil uma tendência: você cria um tributo e depois esse tributo não desaparece mais. Vou citar um caso que é divertidíssimo...

Jorge Escosteguy: [interrompendo] Desculpe, o senhor pode terminar? Tenho que fazer uma última pergunta.

Ives Gandra Martins: ...era um tributo para, exclusivamente, a importação de borracha. O que acontece? Não houve mais necessidade, porque era regulatório do mercado de borracha durante um período em que havia escassez, não houve mais, e eles continuam cobrando como se fosse um imposto de importação. Desapareceu o órgão que cobrava, daí fizeram uma reunião no governo Sarney e chegaram à conclusão: bem, borracha [está associada à] Amazônia, quem deve cobrar esse tributo é o Ibama [risos], e continua o tributo sendo cobrado, apesar de não ter mais função. Então, creio que vai haver uma taxa de serviços e possivelmente possa ser [...] apenas no exercício de poder de polícia.

Jorge Escosteguy: Professor, eu vou lhe fazer uma última pergunta. O senhor falou com muita ênfase, defendeu muito os seus pontos de vista, às vezes quase como candidato, tanto que cinco telespectadores telefonaram, o Sérgio Fernandes, aqui de São Paulo, da Pompéia, [diz] “Não acha que essa gritaria toda em torno do IPTU não passa de campanha eleitoral do PDS?” E [pergunta] se o senhor seria o candidato; Osmar Rodrigues Toalhar, aqui de São Paulo, também pergunta se isso tudo não é em função do ano eleitoral; o Paulo França, do curso de telejornalismo da Cultura, que está aqui na platéia, pergunta se o senhor não é candidato pelo PDS; José Pereira dos Santos, de Santo André, pergunta se o senhor não é candidato, até como eleitor, sendo o senhor uma pessoa tão inteligente etc, se o senhor não pretende se candidatar. E o Rogério Taiar, também de São Paulo, menciona inclusive o ex-governador Paulo Maluf e pergunta o que o senhor acha da sua candidatura.

Ives Gandra Martins: Olha, eu quero dizer o seguinte, eu faço até uma proposta para...

Jorge Escosteguy: O senhor sabe que o programa é gravado [risos].

Ives Gandra Martins: Eu sei. Eu faço uma proposta para todos os amigos, e uma proposta que nós vamos cobrar no dia posterior em que se encerrarem os prazos de candidatura. Eu entregarei a cada um dos senhores uma caixa de uísque escocês se eu for candidato, e os senhores, perdendo, vão todos juntos comprar uma única garrafa de uísque para tomarmos em casa para comemorar. Não sou candidato, nasci advogado, só amo a advocacia, não pretendo nunca [ser candidato] e fiz uma promessa quando estudante, quando me formei em direito: defender os meus clientes e as instituições do país. E posso, como advogado, morrer defendendo os dois.

Jorge Escosteguy: O senhor sabe que um bom candidato sempre tem bons apoiadores, que até podem comprar caixas de uísque à vontade, de repente...

Ives Gandra Martins: [ri] Esteja tranqüilo, porque eu vou tomar o uísque que os senhores vão me levar para minha casa um dia depois [risos].

Jorge Escosteguy: Nós agradecemos então a presença esta noite aqui no Roda Viva do professor Ives Gandra Martins. Agradecemos também aos companheiros jornalistas e aos telespectadores, lembrando que as perguntas que não puderam ser feitas ao vivo serão entregues após o programa ao professor. O Roda Viva fica por aqui e volta na próxima segunda-feira às nove horas da noite. Uma boa noite a todos e até lá. Muito obrigado.

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