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Memória Roda Viva

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Fernando Henrique Cardoso

21/7/1994

"A gente escreveu tanta coisa, então é cobrado sempre pelo que escreveu”: esta teria sido a frase de FHC, e não a famosa "Esqueçam o que escrevi"

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[programa ao vivo]

Heródoto Barbeiro: Voltamos aqui nesta série especial do programa Roda Viva. Estamos entrevistando os candidatos à Presidência da República. Nosso convidado agora é o senador Fernando Henrique Cardoso. Filho, sobrinho, neto e bisneto de generais, Fernando Henrique Cardoso tem 63 anos, nasceu no Rio de Janeiro e, ainda na infância, mudou-se para São Paulo. Fez mestrado e doutorado em ciência política na Universidade de São Paulo. Publicou 24 livros e, no ano passado, recebeu o título de professor emérito da USP. Perseguido pelo golpe militar de 64, Fernando Henrique esteve quatro anos exilado no Chile, França e Estados Unidos. De volta ao Brasil em 68, ganhou por concurso a cadeira de ciências política da USP, mas no mesmo ano foi aposentado pelo Ato Institucional Número Cinco. Em 1980, ingressa no MDB, pelo qual é eleito suplente de senador por São Paulo. Assume em 83 na vaga de Franco Montoro, eleito governador. Já filiado ao PMDB, perde em 1985 para Jânio Quadros a eleição na prefeitura de São Paulo. No ano seguinte, é eleito novamente senador. Em 1988 funda o PSDB, uma dissidência do PMDB. Foi líder do governo no Congresso, escolhido por Tancredo Neves e mantido por Sarney. No governo Itamar, foi ministro do Exterior e, em seguida, da Fazenda. Idealizou o plano de estabilização econômica, o Plano Real, que culminou com a troca de moeda há três semanas. Para entrevistar o nosso convidado, senador Fernando Henrique Cardoso, o jornalista Fernando Mitre, do Jornal da Tarde; Josemar Gimenez, do jornal O Globo; Clóvis Rossi, da Folha de S.Paulo; José Paulo Kupfer, do Zero Hora; Rui Xavier, do jornal O Estado de S. Paulo; e Ibsen Spartacus, do Jornal do Brasil. Senador, boa noite.

Fernando Henrique Cardoso: Boa noite, Heródoto.

Heródoto Barbeiro: Senador, inicialmente a nossa primeira pergunta ao senhor, que foi feita aos demais candidatos: o senhor vem aparecendo melhorando nas pesquisas; isso muda a estratégia do senhor em direção ao segundo turno, em direção aí à conquista da Presidência da República do Brasil?

Fernando Henrique Cardoso: Não, eu não diria que muda, porque nós já tínhamos feito uma programação, desde o início da campanha. Você sabe, esta campanha para mim é muito curta; comecei realmente a me apresentar como candidato no mês de abril e, na verdade, organizando e tudo, começamos a sair um pouco mais em maio, junho e agora julho, e a campanha tem suas regras, você tem que fazer, percorrer o Brasil, tem certos pontos fundamentais e tal. Eu acho o seguinte, a pesquisa é um indicador, mas a gente não pode se firmar só nisso. Se você ficar só olhando número, você não faz a campanha, você tem que fazer a campanha. Às vezes sobe, às vezes desce, raramente você tem uma campanha só ascensional ou só descensional, há sempre um certo ziguezague. A gente não deve embarcar no entusiasmo porque subiu, tem que continuar trabalhando. Basicamente, no caso do Brasil, você tem hoje uma população muito informada, essa que é a verdade; eu tenho a impressão de que a população sabe muito mais do que a gente pensa, do que a gente imagina, aprende mais depressa. Eu parti disso, porque senão eu não seria nem candidato, não daria tempo, e eu acho que a gente tem é que expor o que pensa e, enfim, apresentar suas convicções e tem que demonstrar o que fez e o que vai fazer com o país. Eu acho que não tem que mudar de estratégia porque teve tal resultado [nas pesquisas]; é óbvio, você vai mal numa região, você tem os dados ali, você tenta articular mais, vai lá, visita mais, isso é o natural, não é?

Ibsen Spartacus: Senador, a sua campanha é intimamente relacionada ao Plano Real; me parece que uma depende muito do outro. E hoje ocorreu um fato que pode ter algum impacto no desenvolvimento do Plano Real, que foi a saída do secretário da Receita Federal, Osiris Lopes Filho. Eu queria saber como o senhor avalia esse episódio que resultou na saída do secretário.

Fernando Henrique Cardoso: Bom, eu não sei qual é a relação entre a saída e o Plano Real, aí eu não vejo... O Osiris trabalhou comigo lá no Ministério da Fazenda; eu tenho uma impressão muito positiva sobre o Osiris. Eu acho que ele fez o que tinha que ser feito na Receita... não fui eu quem designou o Osiris. Quando o presidente Itamar Franco me designou para o Ministério da Fazenda, eu estava nos Estados Unidos como ministro do Exterior [entre 5/10/1992 e 20/5/1993, Fernando Henrique foi ministro das Relações Exteriores do Brasil], e ele me designou de madrugada, eu só soube dos detalhes na manhã seguinte, e o presidente me disse na manhã seguinte que já havia, na véspera ou na antevéspera, designado o secretário da Receita, que era o Osiris Lopes. Eu não o conhecia; me informei, quando voltei ao Brasil, e as opiniões que ouvi a respeito dele era de que era um homem honesto, correto. Ele foi a minha casa, nós conversamos e eu disse: olha, eu quero só duas coisas: primeiro, que não haja perseguição política através da Receita; segundo, que não haja proteção. Porque eu tinha sido membro da comissão de evasão fiscal no Senado, e tinha informações, estava bastante informado sobre a situação da Receita, inclusive as deficiências; a Unafisco, outros sindicatos, a Sindifisco, todos eles haviam prestado seus depoimentos, eu sabia do que se tratava lá, e eu devo dizer que o Osiris fez isso exatamente.

José Paulo Kupfer: Se o senhor fosse ainda ministro, senador, o senhor daria a ordem que foi dada para se liberar a bagagem dos jogadores, da comissão técnica e de seus amigos? [Após a Copa do Mundo de 1994, o secretário da Receita Federal, Osiris Lopes Filho, pediu demissão depois da liberação da bagagem do vôo da Seleção Brasileira, sem o devido pagamento das taxas de importação]

Fernando Henrique Cardoso: Quanto eu saiba... eu não tenho informações, eu realmente não... estava no Rio de Janeiro, eu não acompanhei isso de perto, mas alguns amigos me disseram que o que foi feito foi o seguinte: teria havido muita pressão de massa, pessoas...

José Paulo Kupfer: [interrompendo] Essa é a versão nova que surgiu agora para dar um jeito nessa história.

Fernando Henrique Cardoso : Não, não, eu fui informado disso [...], não sei se é versão nova, se não for a versão, você me dirá a correta. Acredito que anotaram lá as bagagens e liberaram, mas anotaram as bagagens. Eu acho o seguinte, para ser claro e direto...

José Paulo Kupfer: [interrompendo] Houve um telefonema [...]. Não houve ligações telefônicas para o [aeroporto do] Galeão? Não houve?

Fernando Henrique Cardoso: Eu só quero dizer minha opinião, com toda clareza. Eu acho que quem traz alguma coisa [do exterior] que não está dentro da Lei tem que pagar. E vou dar um exemplo, de que o Osiris é testemunha... testemunha não, ele pode reconhecer... Houve muita pressão, pressão menor, de quando o Osiris estava lá e eu também, que foram abertas bagagens de parlamentares e de familiares de parlamentares etc. E uma vez a minha mulher foi à Europa, foi a trabalho e voltou, e chegou em São Paulo, abriram a bagagem dela, e ela não disse nem que era minha mulher, passaporte, nada disso; abriram, viram que não tinha nada, fecharam. E eu telefonei para o Osiris e pedi que ele cumprimentasse a Alfândega, porque tem que abrir; o fato de ser mulher do ministro não tem nada...

José Paulo Kupfer: [interrompendo] Se eles não sabiam que era a dona Ruth [Cardoso (1930-2008) - ver entrevista com Ruth Cardoso no Roda Viva], não era preciso que o senhor ligasse.

Fernando Henrique Cardoso: Ela não disse, ela tem o passaporte vermelho [passaporte para serviços diplomáticos]. Eles não pararam por causa do passaporte vermelho, e nem ela alegou nada, naturalmente. Eu acho isso correto. Portanto, eu acho que se os jogadores vieram e trouxeram alguma coisa que não podiam, têm que pagar. Agora, acho que não se deve fazer disso um cavalo de batalha, agora, a respeito disso. Eu repito, não sei dos detalhes, mas acho que não precisamos também transformar isso em um anticlímax da festa da vitória [refere-se à vitória do Brasil na Copa do Mundo de 1994], não é isso, isso é um outro episódio, eu não sei dos detalhes, eu não vi a carta de demissão do Osiris, eu não participei do episódio.

Fernando Mitre: Acabou sendo um mau exemplo, não é, senador?

Fernando Henrique Cardoso: Acabei de dizer minha opinião.

Fernando Mitre: É claro, mas eu queria lhe fazer uma pergunta que é a seguinte. O Plano Real é evidentemente o maior estímulo da sua campanha, isso é óbvio; ele está indo bem, mas ele corre riscos. Amanhã, por exemplo, é um dia que pode ser difícil para o Plano Real. O presidente Itamar convocou uma reunião onde ele deve decidir sobre essa questão do aumento do funcionalismo, incluindo os militares, aumentos que, diga-se de passagem, são muito justos, eles ganham muito mal e precisam mesmo desse dinheiro. Só que parece que não há esse dinheiro para dar para eles. O presidente Itamar está tendente a concordar com a reivindicação, que, como eu disse, é justa. Mas, se o senhor fosse ministro da Fazenda, que conselho o senhor daria ao presidente Itamar nessa reunião de amanhã?

Fernando Henrique Cardoso: A mesma coisa que eu fiz sempre e que o ministro [da Fazenda Rubens] Ricupero está fazendo: não pode haver aumento que não seja em função de uma receita. Isso porque, se não tiver receita, não deu aumento, todos se enganaram, porque isso vai ter uma pressão inflacionária e esse aumento é fictício, porque vai desaparecer pela pressão inflacionária.

Fernando Mitre: E essa idéia de vender estoques de café e acelerar privatizações?

Fernando Henrique Cardoso : [...] desde que haja receitas... não sei se é por aí.

José Paulo Kupfer: Mesmo que seja a venda de café, ministro, venda de ativos para pagar a folha de pagamento, ministro?

Fernando Henrique Cardoso: Olha, eu não estou defendendo isso, mas os argentinos fizeram isso em quantidade.

José Paulo Kupfer: Ah, bom, pensei que o senhor estivesse defendendo.

Fernando Henrique Cardoso: Não, mas o Plano Cavallo foi feito assim, foi mantido no primeiro ano graças à venda de ativos para manter a inflação...

José Paulo Kupfer: Mas para pagar a folha de pagamento?

Fernando Henrique Cardoso: É, foi o que eles fizeram; eu não concordo, mas foi o que eles fizeram e ninguém reclamou, porque o efeito prático sobre o plano é o mesmo. Agora, não é essa a questão. Você tem a reivindicação, como você acabou de dizer, Mitre, que é justa; é justa, isso é antigo, desde que eu estava lá; o governo está empurrando com a barriga, não há outra razão a não ser esta, não ter recurso. Agora, eu não creio que o governo, nessa altura, vá fazer ou tomar uma decisão que ponha em risco o plano...

[sobreposição de vozes]

José Paulo Kupfer: O governo ajudou pequenos bancos, enfim, corretoras e distribuidoras, numa solução que não foi a chamada de mercado, reduzindo às pressas os juros no redesconto e fazendo reuniões e tudo mais, corretoras que tinham apostado em papéis cambiais, papéis em dólar que, obviamente, é aposta de jogador, porque todo mundo sabia, foi dito, foi falado que era pouco provável que o dólar fosse negócio. E o governo ajudou, fora de uma solução de mercado, saneadora e clara, para apostadores. O senhor não estava no governo, mas o senhor concorda com essa decisão?

Fernando Henrique Cardoso: Eu não sei, eu não sei quais são os efeitos, eu não estou no governo, eu não tenho as informações. Quanto eu saiba, o que houve foi diminuir o juro, que vai ser muito alto, de toda maneira, que eles vão ter que pagar no redesconto, não é isso? Agora, eu não sei qual é a dose e essa matéria...

José Paulo Kupfer: Caiu para metade.

Fernando Henrique Cardoso: Metade, eu sei que caiu pela metade, mas eu não sei qual seria o efeito, e o efeito em cadeia que isso ocorreria. Mais de uma vez, nós socorremos o Banespa [Banco do Estado de São Paulo, privatizado e vendido para o Grupo espanhol Santander].

José Paulo Kupfer: Como conceito, ministro, ajudar empresas que fazem apostas...

Fernando Henrique Cardoso: Não, como conceito eu sou contra, mas eu não sei qual é o efeito no conjunto do mercado, eu não tenho as informações. E aí você sabe que o ministro da Fazenda ou o presidente do Banco Central têm que examinar quais são as conseqüências. Você vê, se for para às vezes apertar, você quebra os bancos estaduais, [mas] não pode quebrar, para quê? Tem que ter limite nisso; agora, o [presidente do Banco Central] Pedro Malan, que deve ser a pessoa que sabe disso, terá de explicar as razões, ele deu lá algumas razões... na verdade, baixou a taxa de juros, o que no fundo é a penalização.

José Paulo Kupfer: Sim.

Fernando Henrique Cardoso: Mas, veja, o que está por trás é outra coisa, que é importante, é que vai ser penalizado, coisa que não era, e vai haver o redesconto de novo. Quer dizer, eles vão ter que ir para UTI, ao invés de o governo acobertar, de modo que o caminho é correto. Pode ser que no caminho eles tenham resolvido não botar um obstáculo muito grande no ponto de partida para não provocar um desassossego maior no sistema financeiro, mas o caminho é esse mesmo e tem que ir por aí.

Clóvis Rossi: Senador, eu queria ficar numa questão de conceito também sobre esse caso da Seleção, bagagem, para não fazer um "cavalo de batalha".

Fernando Henrique Cardoso: Não, não foi isso que eu disse. Eu disse para não contrastar isso, não confundir a vitória, o tetra, o fato dos jogadores etc com esse episódio. Episódio limitado e errado. Eu acho que têm que pagar. Minha opinião, eu dei de cara. Dei até um exemplo muito pessoal do que eu acho que tinha que ser feito.

Clóvis Rossi: Pois é, mas eu não acho que seja tão limitado assim, senador, porque o senhor mesmo no ministério fez da questão do equilíbrio fiscal, do equilíbrio das contas públicas, um cavalo de batalha, para usar sua expressão...

Fernando Henrique Cardoso: Aí foi um tremendo "cavalo".

Clóvis Rossi: Pois é.

Fernando Henrique Cardoso: Exatamente, vamos pegar o seu ponto aí.

Clóvis Rossi: Na medida em que...

Fernando Henrique Cardoso: Compare uma coisa com a outra; não tem comparação, não é, Clóvis?

Clóvis Rossi: Como não tem? O exemplo é importantíssimo, os símbolos são fundamentais, senador. Na medida em que o senhor não se incomoda com a liberação de uma arrecadação possível...

Fernando Henrique Cardoso: Não, não, não...

Clovis Rossi: ...seja ela de um dólar ou de cem dólares, se nós estamos falando de conceito...

Fernando Henrique Cardoso: Não, não fale isso. Em primeiro lugar, não fale “na medida em que você não se incomoda”, porque eu me incomodo.

Clóvis Rossi: Não, eu não falei que o senhor não se incomoda. Na medida em que não se incomodam...

Fernando Henrique Cardoso: Alguém, mas não eu, alguém. Vamos devagarinho. Eu me incomodo, eu acho que isso é importante, mas uma coisa é o equilíbrio orçamentário, outra coisa é uma bagagem. É grave, porque é simbólico, tudo bem. [Mas] não é por causa do simbólico, [é] por outra razão, é que todo cidadão é igual perante a Lei. Essa é a questão, o que está em jogo aqui é fim de privilégios, e eu sou contra privilégios.

Clóvis Rossi: Pois é, mas não é o caso de se fazer um cavalo de batalha em cima do.... e não de tratar como mera separação de que a Copa é outra coisa?

Fernando Henrique Cardoso: Eu não estou tratando como mera coisa nenhuma, eu estou dizendo minha opinião, eu sou contra privilégios. Agora, eu não sou ministro, não me tratem como ministro porque eu não sou, ainda bem.

Rui Xavier: Senador, toda discussão em torno do Plano Real e a sua candidatura, isso aí às vezes é falado até em tom de crítica, que a sua campanha, o estímulo, para usar uma palavra do Mitre, enfim, a associação da sua campanha com o Plano Real é muito grande, então parece que o PSDB pensa da seguinte maneira: se o Plano Real der certo, o senador Fernando Henrique está eleito. O senhor não teme esse tipo... e chamam o Plano Real de eleitoreiro etc. Ainda há pouco, o senador Esperidião Amin falava que o calendário é eleitoreiro, não é o plano que é eleitoreiro, o calendário é eleitoreiro. A minha pergunta é a seguinte: o senhor não teme que, mesmo o Plano Real dando certo, não dê tempo, as pessoas não consigam associar o Plano Real ao seu nome para sufragar o seu nome?

Fernando Henrique Cardoso: A ligação, vamos por partes.

Heródoto Barbeiro: Senador, antes de o senhor responder, eu quero dizer que a maioria esmagadora das perguntas que estão chegando aqui são exatamente em cima do Plano Real, alvo da pergunta do Rui.

Fernando Henrique Cardoso: Perfeito, essa pergunta é boa. Vamos lá. Em primeiro lugar, é o seguinte: eu jamais considerei que a candidatura dependesse do Plano Real. Além do mais, tem o seguinte: o meu desempenho, pelo menos medido pelas pesquisas, começou a se movimentar antes do Real. É outra coisa, esse plano nós estamos fazendo, não é um plano, é uma tentativa de estabilização da economia que vem há um ano. Nem o discurso que eu fiz de posse do Ministério da Fazenda, eu fiz o que eu disse lá, em maio. Eu era candidato? Não era. Eu era candidato a não me queimar como ministro da Fazenda. Qualquer ministro da Fazenda responsável, com uma inflação tendente à hiperinflação, toma medidas e passa a trabalhar com seriedade. Por que não foi feito antes? O senador Amin era senador. Porque puseram todos os obstáculos possíveis à revisão constitucional, ao Fundo Social de Emergência, e nós nunca quisemos fazer o que foi feito agora, que era fácil fazer porque a reserva era muito elevada, e não faltou quem quisesse que se fizesse isso, nós nos recusamos sempre, a equipe econômica e o presidente da República e eu, a fazer uma magia. Não, vamos primeiro preparar o terreno; então o terreno levou tempo sendo trabalhado, sendo preparado, isso independentemente de candidatura. Candidatura veio depois. Bom, agora, se o Plano Real não tiver sucesso, ou não tivesse tido uma aceitação, claro que isso afetaria negativamente a minha candidatura. Ao ter aceitação, afeta positivamente. Agora, a sua pergunta, se eu temo que não haja ligação. As pesquisas feitas mostram que, até com injustiça, porque muita gente trabalhou nisso, uma equipe econômica, muitos ministros, o Congresso, não fui eu sozinho, até com injustiça a população acha o oposto, acha que esse plano de estabilização está ligado a minha atuação.

Josemar Gimenez: Eu vou mudar um pouquinho o assunto aqui, acho que depois pode voltar à questão do Plano Real. O senhor tem dito freqüentemente que não aceita conchavo político e tal, e o senhor está coligado agora com o PTB e o PFL, que são partidos que, nos últimos dez anos, vêm aí apoiando os últimos governos. Eu gostaria de saber do senhor: eleito, como o senhor vai trabalhar com esses partidos como presidente da República, principalmente na distribuição de cargos públicos?

Fernando Henrique Cardoso: Olha, o que eu tenho dito não é que eu não aceito negociação política, porque isso tem que haver. Eu disse outra coisa. O que eu digo é o seguinte: na minha experiência, aí nessa biografia que leram [no início do programa], eu tenho participação como líder, não só do governo, líder de oposição também, do PMDB, duas vezes, do PSDB; eu vejo o seguinte: a formação dos governos no Brasil, na medida em que ela é feita por negociações entre partidos que dão às bancadas ou aos partidos o direito de indicar pessoas para cargos, isso não tem trazido um bom resultado. Por que não tem trazido um bom resultado? Porque muitas vezes o presidente da República nem quer saber daquele ministro, mas vem a bancada e coloca o ministro. Então, ou é o ministro, ou não tem o apoio. Aí o que acontece? O presidente recebe pouco o ministro, não dá força ao ministro, as bancadas se esquecem que apoiaram o ministro e fica uma equipe que não funciona. O que eu tenho dito, com toda a tranqüilidade, é o seguinte: o regime é presidencialista, eu não sou, eu sou parlamentarista, mas as regras estão aí, o regime é presidencialista, a responsabilidade do ministério é do presidente da República, que terá que tomar em consideração, obviamente, as realidades políticas, mas a construção da equipe deve obedecer a uma confiança no desempenho administrativo e uma confiança nacional. Eu digo isso a todo mundo, aos partidos, nos comícios, onde seja, que eu não tenho compromisso nenhum, nem com o meu partido, de aceitar indicações para cá ou para lá. Como eu não nasci ontem, evidentemente existe uma circunstância política, você tem que, havendo possibilidade de escolher boas pessoas nos partidos, muito bem. Os partidos têm que apoiar um programa, esse programa existe, esse programa de estabilização está aí, eu disse que eu faria, nunca deixei de fazer o que disse que faria e acho que devemos caminhar por aí. E é melhor você ter uma articulação prévia do que depois, porque também eu vi muito governo que ou faz, aí sim, o conchavo para poder aprovar um projeto, ou então não aprova nada, porque não tem maioria no Congresso. Eu acho que, num regime democrático, você deve procurar mudar a orientação política nessa direção: vamos ter uma aliança para realizar tal programa. Agora, para esse programa, não para outro, e os ministros têm que ser competentes para realização desse programa.

Josemar Gimenez: O senhor pretende governar com partidos fora da coligação, por exemplo, se for eleito?

Fernando Henrique Cardoso: Não tenho problema nenhum com isso, não, se houver necessidade. Eu propus ao PT isso.

José Paulo Kupfer: Eu queria voltar aqui e lembrar que realmente o senhor tem razão quando diz que, quando fez o plano, não pensava nessas coisas, porque na época – novembro do ano passado –, o senhor falava que a moeda seria conversível, por exemplo, que faria um esforço para que o Banco Central tivesse, senão toda, algum tipo de autonomia, e alguns outros itens que, por causa do calendário eleitoral, não constam do Plano Real e, de certa forma, transformam o plano num plano de transição. Era um plano definitivo, com o senhor [como] ministro, a idéia [...] acabou e se transformou num plano de transição a ser completado – isso o senhor mesmo diz, todos os candidatos dizem – após as eleições, com um novo round de mudanças infra-estruturais. O que o senhor me diz sobre isso? É verdade?

Fernando Henrique Cardoso: Eu digo o seguinte...

José Paulo Kupfer: A sua saída, para ser mais preciso, do ministério para concorrer fez mal ao plano?

Fernando Henrique Cardoso: Não, [minha saída] viabilizou o plano, porque todos os demais candidatos eram contra, e são até hoje, alguns até estão calando a boca, mas são [contra]. Então, se eu ficasse lá, eu ficaria, a essa altura, com todos os candidatos, nenhum defendendo o plano, não teria mais plano, era politicamente inviável. A minha saída viabilizou o plano, claro. Se todos são contra, se você sabe que vai mudar o governo, se precisa de uma continuidade, o ministro não tem mais força. Nem o presidente aceitaria isso. É o contrário. Agora, o que eu disse sempre foi o seguinte: hoje, a inflação se enraizou no Brasil. Não há um “dia D”...

José Paulo Kupfer: [interrompendo] Mas o plano estava aprovado, perdão, a URV [Unidade Real de Valor] estava já aprovada e o senhor ainda negava que fosse candidato. Não sei se era só pro forma .

Fernando Henrique Cardoso: Não, não era só pro forma não; os que me acompanharam de perto viram que eu tentei...

José Paulo Kupfer: [interrompendo] Tinha uma dúvida, um problema, tinha uma angústia.

Fernando Henrique Cardoso: Não, mais que isso. A questão da solução política: quem vai?

José Paulo Kupfer: E a outra MP já estava aprovada.

Fernando Henrique Cardoso: Quem vai? O problema é saber quem vai ser o candidato. Não encontrei; tentei até o [Antônio] Britto, que era de outro partido [PMDB], para ver se eu poderia apoiá-lo. Então, a questão é que não tinha mais viabilidade política para um plano. Se todos candidatos são contra, um deles vai ser presidente, nenhum defende o plano, o plano acaba. A inflação não acaba em um dia, é um processo, isso é uma luta continua, não é uma coisa assim. Esse processo vem de longe, nós começamos a trabalhar nisso no ano passado, e vai indo e vai indo e vai ter que continuar nesse processo, e você vai ter que pilotar o processo de acordo com as condições. Isso não é uma coisa de laboratório, a sociedade não é um laboratório, e as condições ótimas que todo mundo fica imaginando, você tem que ir criando essas condições, nem sempre consegue. Nós imaginávamos o ano passado que teríamos a revisão constitucional, e nós não tivemos a revisão constitucional. Nós imaginamos depois que, até dezembro, teríamos aprovado o Fundo Social de Emergência. Nós só conseguimos aprová-lo em fevereiro. Nós queríamos começar com a moeda nova em 1º de janeiro, [mas] não conseguimos. Isso não foi plano, não foi cálculo, não foi estratégia para chegar perto de eleição nem nada, foi circunstância, impossibilidade. E eu lutei com todas as forças para conseguir isso.

José Paulo Kupfer: Começar com a moeda em 1º de janeiro?

Fernando Henrique Cardoso: Claro, se nos tivéssemos já feito antes...

José Paulo Kupfer: Sem a URV, ministro?

Fernando Henrique Cardoso: Podia fazer a URV. Nós começamos a lutar isso o ano passado. Quando é que refizemos o orçamento?

José Paulo Kupfer: Quando o senhor nasceu com o plano e as etapas era novembro, ministro.

Fernando Henrique Cardoso: Quem é que sabe disso, sou eu ou é você? Pergunte à equipe se era assim ou não era assim. As discussões havidas...

José Paulo Kupfer: Eu peço desculpas, mas não é público isso. É a primeira vez que o senhor está contando isso.

Fernando Henrique Cardoso: Não, não, a [revista] Veja diz isso. Vou dar um depoimento a você, se você quiser como depoimento. Por volta de setembro, quando nós fomos aos Estados Unidos, já havia a discussão sobre a URV, chamava-se Ufir [Unidade Fiscal de Referência], ufirização, não é isso? E nós queríamos, em novembro, já ter feito o ajuste do orçamento, [mas] não conseguimos. Nós imaginamos [...] novembro e imaginávamos uma transação rápida.

José Paulo Kupfer: De um mês, ministro?

Fernando Henrique Cardoso: Ora, o [economista Mário Henrique] Simonsen [1935-1997] queria fazer de um mês com a URV; nos aconselhou a fazer em maio, 1º de maio. Então, eu acho que a vida é mais complicada vista de perto do que vista de longe, quer dizer, os esforços são grandes, os obstáculos são grandes, mas tem que vencer um, vencer outro, tem que ter persistência. Tudo tem que ser feito com muita motivação e seriedade. Não é para ser candidato. Isso é pobre.

Heródoto Barbeiro: Senador, antes de fazer a pergunta, só para registrar que o senhor acabou de responder aos nossos telespectadores: Eliana Nakajima, de São Paulo; senhor Mário Reinaldo, também de São Paulo; o senhor Felício Valter, de Araçatuba, interior de São Paulo; senhor Renê Aligueira, da cidade de São Paulo; o senhor Luciano, de Belo Horizonte; e o senhor Danúbio Saraiva de Souza, de Fortaleza, que pergunta ao senhor o seguinte: se os bancos estaduais quebrarem, o senhor vai permitir que isso aconteça no seu governo?

Fernando Henrique Cardoso: Esta é uma pergunta que eu não posso responder assim, porque o objetivo não é quebrar banco estadual, o objetivo é que eles não quebrem. Quer dizer, o objetivo do governo não é desorganizar a economia, mas tem que ver qual é o preço disso. O Banco Central proibiu três bancos estaduais o ano passado. Depois, recompuseram alguns bancos; hoje eles estão se ajustando razoavelmente, [mas] o objetivo é que eles não quebrem.

Fernando Mitre: Parece que o Banco Central está começando a socorrer alguns bancos.

Fernando Henrique Cardoso: É a função dos bancos centrais.

Fernando Mitre: Mas, senador, eu queria lhe perguntar o seguinte: quando o senhor deixou o ministério, a idéia – o senhor mesmo dizia – era o senhor ir para o Congresso para defender a revisão, defender firmemente a revisão, mas isso não foi visto. Isso não apareceu, pelo menos não apareceu. O senhor desistiu, achou que não dava mais, deixou para campanha eleitoral? Não tinha mais jeito?

Fernando Henrique Cardoso: Não é que eu desisti, não tinha mais jeito. E outra coisa que eu acho que é preciso deixar claro aqui, que muita gente cobra sem conhecer as realidades: uma coisa é você ter uma função institucional, você é líder do governo, ou líder de um partido, ou presidente do Congresso, ou ministro, outra coisa é você ser um senador, você não faz a máquina andar, e naquela altura, o que eu percebi? Que nenhum partido efetivamente estava com disposição de fazer a revisão.

[...]: Mas o governo estava, senador? O governo estava com disposição? O próprio governo não se mobilizou.

Fernando Henrique Cardoso: Não, uma parte só [do governo estava com disposição].

Rui Xavier: Eu acho que, quando tiver o primeiro debate, vai ser curioso, porque a gente vai poder ver algumas coisas que uns candidatos falam e outros falam também. Ontem, por exemplo, o ex-governador Leonel Brizola [ver entrevistas com Brizola no Roda Viva] esteve aqui e sobre o senhor ele falou o seguinte: o senhor não tem experiência.

Fernando Henrique Cardoso: A dele eu não tenho [ri].

Rui Xavier: O senador Esperidião Amin há pouco acusou o governo e o PSDB de não participarem da Constituição, de não fazerem nenhum esforço para a revisão constitucional, e disse que o partido dele fazia. O senhor está falando exatamente o contrário.

Fernando Henrique Cardoso: Não, eu não falei do partido dele.

Rui Xavier: Desculpe. Ele pediu inclusive para chamar o painel do dia quatro de maio, onde ali pode se ver claramente que o PSDB não participou e não queria revisão constitucional.

Fernando Henrique Cardoso: Que votação era essa? Que votação era essa de quatro de maio?

José Paulo Kupfer: Pelo que eu entendi, era do capital estrangeiro [...].

Fernando Henrique Cardoso: Ah, claro, o senador Amin quer [...], porque naquele dia tinha havido uma combinação da liderança que não ia haver votação, e o presidente do Senado designou a mim, ao Mário Covas e ao Eduardo Suplicy para virmos ao enterro do [piloto Ayrton] Senna [1960-1994]. Ele está usando isso, isso não tem sentido. Naquela altura... o que é verdadeiro é o seguinte: não houve... o PSDB, através do deputado [José] Serra e do senador José Richa, eles queriam antecipar a revisão, porque temiam que houvesse uma precipitação de discussões no momento eleitoral. O PSDB se jogou por isso, tentou e não conseguiu. Bom, sempre houve uma dúvida sobre se haveria condições políticas ou não. Não foi a minha posição e nem foi a posição do senador Mário Covas, que era o líder do Senado, que achávamos que a Constituição obrigava a haver a revisão naquele momento e que, fora disso, não haveria como fazer posteriormente na regra de maioria simples. Então, nós queríamos. Eu mandei, enquanto ministro, [...] ao presidente um livro de emendas à Constituição, que estão lá no Congresso, dizendo tudo, no meu entender, quais eram as emendas necessárias, e me esforcei, como ministro, para isso. Consegui a única que teve efeito, que foi o Fundo Social de Emergência. Agora, na verdade, deixando de lado se é o partido tal ou qual, houve – eu já disse isso, já fui criticado por isso – uma minoria que obstruiu porque tinha convicção de que não valia a pena fazer a revisão ou que achava que poderia fazer mais tarde. PT e PDT foram a espinha disso. Isso pegou um pedacinho do PMDB e também um pedacinho do PSDB; não havia disposição por razões políticas, respeitáveis, mas contrárias ao espírito da Constituição e que tem um preço alto. E uma maioria, e aí inclui todos esses partidos, outros que não os aqui citados, uma maioria que, embora vocalmente fosse favorável e alguns segmentos bastante favoráveis, na verdade essa maioria nunca se organizou efetivamente para fazer a revisão. Logo, politicamente não havia condições.

Heródoto Barbeiro: Nós faremos um pequeno intervalo aqui no nosso Roda Viva especial. Nós estamos conversando hoje com o senador Fernando Henrique Cardoso, que é candidato do PSDB e da coligação à Presidência da República.

[intervalo]

Heródoto Barbeiro: Voltamos aqui com o Roda Viva especial. Estamos ouvindo os candidatos à Presidência da República do Brasil. O nosso convidado de hoje é o senador Fernando Henrique Cardoso, da coligação liderada pelo PSDB. Senador, antes de passar a palavra para o Clóvis Rossi, gostaria que o senhor respondesse ao telespectador Eduardo Orlando Siqueira, de São José do Rio Preto, interior de São Paulo. Ele pergunta ao senhor o seguinte: por que o senhor aceitou a indicação do senador Guilherme Palmeira [do PFL de Alagoas] como seu vice, mesmo com claros sinais de que isso prejudica seu desempenho eleitoral junto às bases tradicionais?

Fernando Henrique Cardoso: Veja, quando se faz uma coligação, não dá para estar vetando todo mundo; o senador Guilherme Palmeira foi indicado pelo PFL. O senador Guilherme Palmeira teve apoio do PFL e de setores do PSDB. Não havia razão, não havia uma razão específica para dizer não. Ao contrário, ele é uma pessoa que tem um bom desempenho, já foi governador, foi senador várias vezes, tem muita popularidade em Alagoas, tanto assim que imediatamente eu passei ao empate logo em Alagoas. É um homem do Nordeste; tem uma porção de características que nós achamos no PSDB que estava tudo bem.

Clóvis Rossi: Eu volto a pedir desculpas por estender um pouquinho a pergunta, mas precisaria rememorar um pouquinho a história do PFL e sua nos últimos trinta anos.

Fernando Henrique Cardoso: Trinta anos? Aí não dá tempo [ri].

Clóvis Rossi: No regime militar o PFL, com outra roupagem partidária, evidentemente, apoiou o regime militar e o senhor ficou contra. Volta a democracia, na primeira eleição direta para prefeitura [de São Paulo], o PFL apóia o Jânio Quadros, o senhor é candidato e é derrotado. Em 86 o PFL apóia Antonio Ermírio de Moraes [para o governo de São Paulo], o senhor apóia Orestes Quércia. Em 89 o PFL, no segundo turno, apóia Collor, o senhor apóia o [Luiz Inácio] Lula [da Silva] e é derrotado. Em 90 o PFL de São Paulo já havia se tornado uma linha auxiliar do quercismo e chegava a chamar o seu candidato a governo do estado, com perdão da expressão que não é minha, mas do Orestes Quércia, de bundão, e é de novo derrotado. Eu queria saber o seguinte: não é inquietante um homem público demorar tanto tempo, estamos falando de trinta anos, para descobrir que escolhia os aliados errados, ainda mais que o senhor certamente, ou muito provavelmente, não terá trinta anos na Presidência da República para corrigir eventuais erros de escolha desse gênero?

Fernando Henrique Cardoso: Veja você, se a premissa de tudo o que você disse fosse certa, a resposta estaria contida nela, então não tinha nem o que responder. Só que não é assim. O que não é assim? Eu não estava errado, eu estava certo. Agora, ou a gente entende que há um processo, e que tanto a história muda como as pessoas mudam nas circunstâncias, ou não se entende de política. Se entende de ideologia, de dogmática, e aí você julga, faz a soma: esse é bom, esse é ruim; foi bom no passado, vai ser bom no futuro. Não é assim que se faz política. Depois tem outra coisa: quem está apoiando a mim é o PFL, não sou eu ao PFL. Isso que é um fato interessante de anotar: o PFL, sendo um partido maior que o PSDB, não tendo, por razões que eu não quero analisar agora, encontrado uma solução política outra, apóia o candidato e o programa do PSDB. Esse é um fato interessante; por que aconteceu isso? Porque as circunstâncias mudaram. E no quê que mudaram? Eu vou dar um exemplo com o Chile, que você conhece. Quando eu morei no Chile, o que aconteceu? Quando eu estava por lá, o presidente era o [Eduardo] Frei [Montalva, que presidiu o Chile entre 1964-1970], a maior parte do tempo em que eu morei lá. Bom, e o Partido Socialista, que era do Allende [Salvador Allende], era um partido de núcleo marxista... o Allende não, o Allende era do setor chamado radical, que não quer dizer radical, era o setor do partido radical chileno e tal, mas tendente a alianças. Mas havia um núcleo marxista, havia um setor guerrilheiro, o senador [Carlos] Altamirano [1922-] era desse setor, e o Partido Democrata Cristão era um partido de cunho falangista, dos anos 30, liberal-conservador. Eles se odiavam. Quando houve a redemocratização, eles se uniram, fizeram a Convergencia. E hoje governam juntos. E eles se odiaram no passado. Por que mudaram? Ou não mudaram? Ou é a mesma coisa, a mesma ideologia? Ou a gente entende que a história existe ou a gente não entende nada.

Clóvis Rossi: [interrompendo] No Chile mudaram pela...

Fernando Henrique Cardoso: A gente julga os outros, condena: “queima esse, crucifica aquele”.

Clóvis Rossi: Eu não condeno ninguém.

Fernando Henrique Cardoso: Eu defendo perfeitamente tudo o que fiz, nas circunstâncias em que fiz. Lutei contra [a ditadura militar]. Agora, o PFL não foi o mesmo PFL que se desgarrou da Arena para apoiar o Tancredo? Não foi para começar...

Clóvis Rossi: O PFL sempre se desgarrou dos governos [...] para apoiar o governo seguinte.

José Paulo Kupfer: Por que o senhor mandou esquecer tudo que o senhor tinha escrito?

Fernando Henrique Cardoso: Essa frase eu nunca disse, perdão, essa frase eu nunca disse.

José Paulo Kupfer: Então é um bom momento para [desmentir].

Fernando Henrique Cardoso: Mas eu já disse um milhão de vezes que eu nunca disse isso. Já escrevi que eu nunca disse isso e desafio quem diga a quem eu disse isso, quando e como. Nunca disse, isso é um absurdo.

Heródoto Barbeiro: Mas, senador, é bom o senhor repetir porque tem perguntas nesse sentido. O senhor Luis Carlos Simões, do Itaim, fez exatamente essa pergunta. Foi até bom o senhor repetir para que as pessoas...

Fernando Henrique Cardoso: Então eu repito: esta frase: “Esqueçam tudo o que eu escrevi” é simplesmente... isso é o papel da infâmia na política, é uma infâmia. A quem eu disse isso? Quando? Já perguntei sempre: em que circunstâncias? Nunca disse, nunca disse, [mas] repetem, repetem. Aí é a técnica do [líder nazista Joseph] Goebbels [1897-1945]: repete, repete até parecer que é verdade.

Clóvis Rossi: A Folha de S.Paulo disse que o senhor teria dito isso...

Fernando Henrique Cardoso: Teria, olha o “teria”. Onde, para quem? Quando?

Clóvis Rossi: Não sei se eu trouxe aqui, vou ver se eu acho aqui.

Fernando Henrique Cardoso: Não vai achar nunca, eu já disse isso a eles um milhão de vezes.

Clóvis Rossi: Está aqui: “Ao sair de um almoço com empresários do restaurante Rubayat, em São Paulo, dia 5 julho de 1993”.

Fernando Henrique Cardoso: Eu que disse a ele, eu que disse ao menino essa coisa. Eu contei de onde é que poderia sair de alguém que não assistiu... Eu disse outra coisa, eu já expliquei isso um milhão de vezes, mas é a mesma história: quando a gente julga dogmaticamente as coisas, não têm solução. Vão repetir sempre isso.

José Paulo Kupfer: O que o senhor disse, afinal?

Fernando Henrique Cardoso: O que eu disse foi o seguinte, se é que eu me lembro, se é que se refere a isso. Eu estava tentando explicar ao rapaz de onde é que alguém poderia ter tirado isso. Eu disse: eu estava em uma reunião, logo que fui nomeado ministro da Fazenda, eu creio... da Gazeta Mercantil, estava presente o [jurista] Celso Lafer, que, como eu, é intelectual e escreveu livros. Alguém perguntou alguma coisa e eu disse ao Celso: “Olha, Celso, a gente escreveu tanta coisa, então é cobrado sempre pelo que escreveu”. Essa foi a frase. Daí saiu uma versão de terceira mão, e agora a imprensa, me desculpe, tem o hábito de botar entre aspas, [e] ouviram de mim. Aspas, a gente põe quando cita por escrito. Não ouviram, [mas a imprensa] põe aspas. E você vai fazer o quê? Nada.

Rui Xavier: Senador, queria fazer uma pergunta para o senhor, mas antes eu queria revelar uma notícia que vai sair amanhã, agora já deve estar na rua, no Estadão e no Jornal da Tarde, que eu acho que vai criar um impacto grande nesta disputa eleitoral, neste momento pelo menos, que são os números da pesquisa do Instituto Gallup, que anunciam o empate do senhor com o Lula, empate técnico. O Lula, segundo o Gallup, teria 30,5% – caiu para 30,5% –, o senhor foi para 30,1%, e depois vêm os demais candidatos: o Brizola, com 6,5%, o Quércia, com 4,9%, o Amin, com 2,2%, o Enéas [Carneiro], com 1,8%, o [...], com 0,3%, e os demais não aparecem na pesquisa. Eu queria perguntar ao senhor, quer dizer, eu imagino que essa deva ser uma notícia boa para o senhor.

Fernando Henrique Cardoso: Certamente.

Rui Xavier: Isso já é resultado, porque essa pesquisa terminou praticamente ontem, quer dizer, pegou o Real e pegou um pedaço ainda da euforia da Copa etc. Você acredita que isso é realmente já reflexo do Real?

Fernando Henrique Cardoso: Olha, é possível que o Real tenha um papel nisso aí, porque eu tinha, digamos, há um mês, no mínimo dez pontos a menos. Aliás, no Gallup eu tinha 23%, então tem sete [de diferença]. Não dá para comparar uma pesquisa com outra, são metodologias diferentes. Isso significa que, pelo Gallup, o Lula teria caído até mais do que eu [teria] subido. Como isso está se repetindo em várias pesquisas, deve estar ocorrendo. Agora, eu repito o que disse no início, pesquisa é pesquisa, a gente tem que ganhar no dia três de outubro. Até lá, tem "muita água [para rolar]", tem que trabalhar.

Fernando Mitre: No Nordeste, você está perdendo...

Fernando Henrique Cardoso: Pois é, então a gente tem que trabalhar, tem que trabalhar com muito empenho, tem que explicar o que deseja fazer, tem que convencer a população, o eleitorado, com tranqüilidade, nada de salto alto por causa de pesquisa, porque não vale a pena.

Josemar Gimenez: Agora, a sua estratégia daqui para frente é o Nordeste, senador?

Fernando Henrique Cardoso: Bom, não sei, você aí tem dois pontos...

Josemar Gimenez: Tem alguns estados do Nordeste em que o senhor não tem palanque ainda, não é? Paraíba, Rio Grande do Norte, parece que o senhor ainda não tem palanque.

Fernando Henrique Cardoso: É possível. Sabe que essa coisa de palanque, de que se fala tanto, é muito relativa. Você vê esses dados aí, não são por causa de palanque. Tem estados em que nem fui lá, as forças políticas não estão apoiando tanto e a gente sobe... a opinião pública se forma.

Rui Xavier: Mas a que o senhor atribui então esses dados, senador? Esse crescimento do senhor e a queda do Lula...

Fernando Henrique Cardoso: Eu acho que no que diz respeito a mim... no caso do Lula, deixa lá para o Lula explicar e brigar lá no PT, caiu por isso ou por aquilo, eu não sei. Agora, no caso meu, o que eu acho é o seguinte: o que me surpreendia era o fato de muito antes do Real, com a inflação muito alta, tendo eu sido ministro da Fazenda e os jornais... os adversários dizendo: assumiu com 20%, deixou com 45%. Bom, e a população não era hostil, ao contrário, e logo eu fui para o segundo lugar, com perspectiva do segundo turno, por quê? Porque acreditaram, porque viram que eu lutei muito para fazer as coisas, e que eu fiz o que tinha que fazer. Eu não enganei, não é meu jeito. Eu digo as coisas, eu brigo a toda hora, eu dou detalhe, a minha assessoria manda um bilhetinho [dizendo]: não entre no detalhe, [mas] eu entro no detalhe porque eu acho que, no fundo, eu sou professor, meu jeito, meu estilo, então eu não consigo não tentar explicar, tentar convencer. Eu acho que isso pesou, isso pesa porque senão... antes do Real. Agora, com o Real evidentemente a população percebe que houve uma melhoria. A dificuldade maior foi a URV, o que foi difícil foi fazer a URV, porque naquela altura havia o temor de que, dada a pressão sindical, alguns setores sindicais...

[...]: E a incompreensão também.

Fernando Henrique Cardoso: ...a incompreensão, falavam de perdas salariais, e eu banquei o negócio até o fim. Banquei, banquei dentro do governo, banquei no Congresso, banquei na televisão [dizendo]: não tem perda. Eu até pensei que tivesse uma categoria que perdesse, [mas] depois o Dieese viu que não tem perda, não houve perda.

Fernando Mitre: Mas esse assunto vai voltar bravo aí em setembro. Setembro é o mês dos petroleiros, é o mês dos bancários.

Fernando Henrique Cardoso: Isso, mas aí não é perda, aí é outra coisa, é reivindicação salarial.

Clóvis Rossi: Prevista inclusive na medida provisória.

Fernando Henrique Cardoso: Tem na medida provisória. Se houver reposição...

Clóvis Rossi: É um problema para o plano...

Fernando Mitre: Claro que é.

Fernando Henrique Cardoso: É um problema para o Brasil.

Clóvis Rossi: Até pelo eventual mau exemplo do aumento do funcionalismo acima das possibilidades.

Fernando Mitre: Há inclusive governadores com mesmo problema com seus funcionários; vão querer dar o aumento.

Fernando Henrique Cardoso: Sem dúvida, mas veja o seguinte: nós não estamos fazendo um plano de estabilização em si mesmo, não é só para ter a moeda saudável. A moeda tem que ser saudável, é necessário, para que se possa em seguida melhorar a condição de vida do povo. Então, eu não sou em princípio contra que haja [aumento], mas tem que mensurar isso, não fazer um aumento que prejudique.

José Paulo Kupfer: Isso tem que ser feito separadamente? Tem que crescer primeiro o bolo?

Fernando Henrique Cardoso: Não, não, não. Não é crescer o bolo.

José Paulo Kupfer: Não é possível fazer junto isso?

Fernando Henrique Cardoso: A estabilização... eu não vi em nenhum lugar do mundo você, ao estabilizar... A estabilização, o que é? No caso do Brasil, é uma conversão monetária apenas, não é isso? O que nós fizemos foi evitar que, nessa conversão, houvesse perdas.

José Paulo Kupfer: Eu não falo nisso, eu falo em desemprego...

Fernando Henrique Cardoso: Entendi, isso depende de investimento. O liame, qual é? Com a moeda estável, você vai ter mais investimentos, vai ter mais gente acreditando na economia do Brasil. E isso é que vai gerar a possibilidade...

José Paulo Kupfer: [interrompendo] Isso já não é possível já?

Fernando Henrique Cardoso: Eu acho que em pouco tempo.

José Paulo Kupfer: Tanto quanto o povo percebe, pelas pesquisas, que o Real está dando certo? O investidor não percebe também?

Fernando Henrique Cardoso: Aí o problema é a eleição, aí é a eleição. A preocupação do investidor é a eleição. Quem vai ganhar? Está a favor do plano ou contra o plano? Se estiver contra o plano, não tem plano, ele não vai investir. Aí não tem emprego, não tem aumento, não tem nada.

Ibsen Spartacus: Senador, só para mudar um pouquinho de assunto, mas talvez gire em torno do tema. O presidente Itamar Franco não tem partido e, quando terminar este governo, ele também não tem emprego. Eu queria saber se o senhor gostaria de contar com ele na sua equipe e que cargo o senhor ofereceria ao presidente?

Fernando Henrique Cardoso: De brincadeira, eu digo a ele o seguinte: olha aqui, assim como você me fez ministro da Fazenda, que é o pior cargo da República, eu vou lhe fazer a mesma gentileza [ri]. Mas é brincadeira, o presidente Itamar Franco terá sido ex-presidente, é um homem experiente, eu não sei quais são os projetos dele, mas certamente ele terá projetos políticos.

Ibsen Spartacus: Mas o senhor o convidaria para fazer parte da equipe?

Fernando Henrique Cardoso: Eu acho que se eu o convidasse, eu faria um [...], ele foi presidente da República, vai ser o quê? Vai ser ministro?

[sobreposição de vozes]

Josemar Gimenez: Só aproveitando um pouquinho a carona nessa pergunta, porque tem tudo a ver com essa pergunta, eu gostaria que o senhor avaliasse qual é o peso na sua candidatura do apoio do presidente Itamar.

Fernando Henrique Cardoso: Em primeiro lugar, a minha candidatura não teria existido se não fosse o apoio político que o presidente Itamar me deu. Vamos ser claros, não é isso? Deu sempre, deu quando me designou como ministro do Exterior, quando me prestigiou como ministro do Exterior, quando me levou para o Ministério da Fazenda arriscadamente, para ele e para mim, e quando ele apoiou o plano com todas as dificuldades havidas. Então, não teria havido candidatura se eu não tivesse o apoio político do presidente Itamar Franco.

Josemar Gimenez: E hoje?

Fernando Henrique Cardoso: Hoje eu acho importante manter o apoio dele, como cidadão.

Rui Xavier: Senador, uma pergunta que a gente fez ao senador Esperidião Amin... O Osiris Lopes vai ter emprego no seu governo?

Fernando Henrique Cardoso: Eu considero o Osiris um funcionário exemplar. Se eu tiver a possibilidade de dar uma posição para o Osiris que ele possa desempenhar, eu não tenho dúvida em oferecer.

Clóvis Rossi: Senador, jogando para 95, já que o senhor revela uma extraordinária capacidade de perdoar os que considerava pecadores na véspera...

Fernando Henrique Cardoso: Até você considera isso.

Clóvis Rossi: Eu?

Fernando Henrique Cardoso: O Teotônio [Vilela (1917-1983), senador pela Arena entre 1967-1979; em 1979, filiou-se ao MDB] e o Severo [Gomes (1924-1992) - ver entrevista com Severo Gomes no Roda Viva]...

Clóvis Rossi: Não, são casos diferentes.

Fernando Henrique Cardoso: Como casos [diferentes]? Não assinaram a minha cassação?

Clóvis Rossi: Está bom...

Fernando Henrique Cardoso: Não foram amigos e lutadores juntos?

Clóvis Rossi: ...não vamos polemizar sobre os mortos, vamos polemizar com os vivos. Enfim, com essa capacidade de perdão que o senhor revela agora, eu pergunto o seguinte...

Fernando Henrique Cardoso: Agora não, sempre.

Clóvis Rossi: ...mesmo na hipótese de um segundo turno Fernando Henrique e Lula, e o senhor ganhando, o senhor tomaria a iniciativa de propor ao PT ou um governo de coligação, uma aliança, enfim, qualquer tipo de acordo?

Fernando Henrique Cardoso: Eu disse, depois de ter visitado Dom Luciano Mendes de Almeida, eu disse isso: eu acho que o Brasil, do jeito que o Brasil está com tantas possibilidades que nós temos de dar um salto adiante... E qual é o salto? Agora, é a estabilização da moeda, depois é a dívida social, vamos ser claros. Nós vamos ter que ter investimentos, vamos ter que dar emprego para a população, vamos ter que aumentar o investimento na agricultura, resolver as questões de base, de educação e de saúde. Isso precisa de convergência. O PT é um partido importante, e eu não tenho dúvidas de que, se houver condições para criar um clima que permita uma cooperação... O Brasil hoje tem que reposicionar o sistema internacional; ele precisa de um Estado reformado; ele precisa de um Estado capaz de ser interlocutor no mundo; ele precisa introduzir nessa interlocução não só o setor privado nacional como o internacionalizado, que aqui é muito forte, como o setor sindical trabalhista. Isto é fundamental, não é só o PT, que ele não tem o monopólio disso, mas ele é parte disso. Então, eu não tenho dúvida...

Clóvis Rossi: O senhor não corre o risco, já que está aliado ao PTB e ao PFL, que certamente de alguma forma farão parte do governo, não sei como, chamando também o PT para algum tipo de entendimento, de cair na mesma paralisia de outras enormes frentes que se formaram?

Fernando Henrique Cardoso: De novo, você me desculpe, mas é preciso raciocinar em movimento, em processo. Como é que foi o governo Itamar Franco? Ele tinha PT – [Luiza] Erundina –, PDT – Maurício [José Corrêa] –, PTB, muito PFL, PMDB e PSDB. O tom foi dado pelo PSDB. Por quê? Por minha causa? Não. Porque nós temos uma proposta viável, tínhamos uma proposta. Quem tiver a proposta viável, leva. Democracia implica nisso. Você tem que ter rumo, liderança, comando, capacidade de energia, dizer sim, dizer não e somar ao mesmo tempo. Agora, não dá para pensar estaticamente o tempo todo: esse é bom, esse é mau, esse está comigo, esse está contra mim. Ou você muda, tenta mudar através de uma proposta e com força, ou você não faz política, você faz uma adulação do Estado [...].

[sobreposição de vozes]

Fernando Mitre: Tradicionalmente, já se comprovou que o presidente, logo depois de eleito, nos seus primeiros movimentos, como presidente, ele tem uma força enorme no Congresso. O Collor, se tivesse mandado aquele projetão dele, aquele emendão, que aliás incluía até um projeto do senhor, o imposto sobre grandes fortunas, se ele tivesse mandado no começo, teria passado, porque antes passou coisas...

Fernando Henrique Cardoso: Passou coisas do "arco-da-velha", ao arrepio da Constituição.

Fernando Mitre: Exatamente . Então, o senhor deve estar se preparando, caso seja eleito, para mandar na primeira semana, nos primeiros dez dias uma série de medidas que o senhor prega como fundamentais e necessárias para estabilização da economia. É isso mesmo? Quais são essas três ou quatro medidas básicas?

Fernando Henrique Cardoso: Eu continuo achando o que sempre achei nessa matéria. Nós não temos condições de seguir adiante sem uma revisão de alguns pontos da Constituição. Por exemplo: reforma tributária, isso tem que ser feito, não só para simplificar os impostos, para permitir uma arrecadação mais equilibrada, mas também para resolver um grande problema nosso que são a Saúde e a Previdência. Eu fui ministro da Fazenda e sei como é isso. O que mais dá dor de cabeça e, ao mesmo tempo, dor de consciência, se a pessoa tem consciência, ao ministro da Fazenda, é que ele tem que dizer não a reivindicações corretas, porque não tem dinheiro. A saúde não tem um financiamento adequado, além de ter mil outros problemas estruturais, não é isso? Isso tem que ser resolvido, porque o imposto da seguridade, que era para a saúde, para a Previdência e para assistência social, hoje ele é todo consumido só pela Previdência. A Previdência teve aumentos grandes. No governo Itamar Franco, nos dois anos, deve ter tido uma transferência de cerca de uns oito bilhões de dólares a mais... [ou melhor] oito bilhões de cruzeiros reais a mais para o setor de previdência. Houve melhoria efetiva nisso aí, que era necessário, mas isso limitou, porque não houve um aumento de arrecadação suficiente, limitou a ação na saúde. E por mais que o governo dê dinheiro à saúde, é insuficiente. Isso depende de uma revisão; isso requer também uma divisão de funções entre o estado, município e a União, que é uma maneira que tem que ser pactuada, isso tem que ser feito. Então [...] saúde, reforma tributária, revisão das funções dos três níveis de administração, Previdência, que são coisas essenciais que têm que ser feitas. Não há dúvida nenhuma, eu acho, que talvez até no embalo da eleição, qualquer que seja o presidente eleito, mesmo antes do novo Congresso, deve começar a discutir esses assuntos, porque o Brasil não pode ficar em suspenso nessas matérias, tem que fazer.

José Paulo Kupfer: Ministro, como é que o senhor explica que neste governo, do qual o senhor fez parte ativa, tenha aumentado a mortalidade infantil; que no Ceará, que é um governo do PSDB, haja uma crise de epidemias? Como é que o senhor explica isso? Foi um fracasso de algum... foi alguma política?

Fernando Henrique Cardoso: Veja o seguinte, o governo Itamar Franco pegou o Brasil em frangalhos, em frangalhos, sem recursos, sem organização, sem a mínima capacidade de decisão; a reforma administrativa feita pelo governo anterior foi uma coisa desastrada, uma inflação galopante; claro que isso teve efeito. Agora, no caso do Ceará, o Ceará não tem culpa nenhuma, as epidemias são de responsabilidade federal, não é estadual. Não foi o governador do Ceará o responsável. Quanto à mortalidade infantil, embora esses números tenham de ser revistos, não se pode assinar embaixo, porque...

José Paulo Kupfer: Não são absolutos.

Fernando Henrique Cardoso: ...e a metodologia é outra, não dá para comparar, o que foi dito não é tanto assim. Pode ter havido um aumento, por quê? Pelas razões que eu já disse, a situação do povo é ruim. Imagine se eu vou dizer que a situação do povo é boa, conhecendo, como nós todos conhecemos, qual é a situação. A situação do salário mínimo é lamentável, é isso, agora...

José Paulo Kupfer: Eleito, o que o senhor vai fazer com o salário mínimo? O senhor vai aumentar?

Fernando Henrique Cardoso: Não, depende da revisão constitucional. Sabe qual é a questão do salário mínimo? É que quem paga salário mínimo é a Previdência; são 11,5 milhões de pessoas que recebem benefícios da Previdência em salário mínimo, dos 14 milhões de pessoas que recebem salário mínimo; 11,5 [milhões] são da Previdência e o resto são as prefeituras...

Heródoto Barbeiro: [interrompendo] Senador, isso quer dizer que para o pessoal da Previdência, para o aposentado, o salário mínimo vai continuar lá embaixo e na iniciativa privada fica liberado, ou não?

Fernando Henrique Cardoso: O que eu estou dizendo é o seguinte: é farisaico pensar em aumentar o salário mínimo e não propor a reforma da Constituição, porque todo mundo sabe que, para poder aumentar o salário mínimo, tem que haver a reforma da Previdência. Então, quando não se faz a reforma da Previdência...

Heródoto Barbeiro: A reforma significa deixar o salário mínimo da Previdência, o piso mínimo, nos 65 dólares atuais e permitir que o outro suba, ou não?

Fernando Henrique Cardoso: Não, não. Eu acho que tem que subir, agora veja o seguinte: para subir, eu vou dar um dado, porque a gente tem que ver número: para passar de 64 reais para 70, isso significa um dispêndio da Previdência de 450 milhões de dólares adicionais. Se quiser passar para cem reais, são 2,75 bilhões de reais necessários, e como não tem, isso é inflação. Ou então se faz a revisão da Previdência: aumenta a contribuição, altera como se faz isso, altera os que ganham muito...

Fernando Mitre: [interrompendo] O senhor privatizaria uma parte da Previdência?

Fernando Henrique Cardoso: Uma parte sim, como [...] Constituição, uma parte sim.

Clóvis Rossi: Evidente que uma revisão constitucional vai demorar um certo tempo, sei lá, dois meses, três meses. A minha pergunta é a seguinte, o senhor assume com esta Constituição, a revisão dela demora um determinado tempo, enfim, o Congresso ainda não terá iniciado as suas atividades, então o senhor vai certamente governar por medidas provisórias no início. Eu queria saber quais são elas?

Fernando Henrique Cardoso: Não, eu não estou no governo, por enquanto eu quero ganhar a campanha. Eu não estou fazendo programa de governo, de execução de governo, eu tenho que ganhar a campanha eleitoral primeiro, não estou com essa pretensão. Programa é outra coisa, eu estou dizendo que é indispensável haver uma revisão da Constituição, porque senão voltar a falar de aumentar o salário mínimo é hipócrita, porque quem não faz a revisão sabe que...

[...]: O novo Congresso faz essa revisão, senador?

Fernando Henrique Cardoso: Eu acho que vai depender muito do novo presidente. Vai depender muito do novo presidente e da forma que ele for eleito, que grau de apoio ele terá, que capacidade ele vai ter de aglutinar forças para fazer a revisão.

Rui Xavier: O senhor que tem vivido tanto no Congresso acredita que esse novo Congresso vai ser melhor do que este que rejeitou a Constituição?

Fernando Henrique Cardoso: É, mas este fez uma porção de outras coisas quando a opinião pública se centrou sobre ele; [o Congresso] depende do estado da opinião pública, depende do estado da sociedade e da capacidade de liderança, não só do presidente, mas o presidente tem um papel no regime presidencialista, depende disso. Agora, eu insisto, eu acho que esse salário mínimo é vergonhoso e que é hipócrita dizer que ele é vergonhoso e não tomar as medidas para ele ser melhor, medidas essas que requerem uma mudança na Previdência.

Josemar Gimenez: Senador, mudando um pouco de assunto, os seus adversários o chamam muito de candidato das elites, principalmente dos banqueiros, como é o caso de Lula e Quércia. O senhor tem um dos donos de um grande banco no Brasil, que é o José Eduardo [de Andrade Vieira - ver entrevista com Andrade Vieira no Roda Viva], do Bamerindus, que é coordenador da sua campanha. Como é que o senhor rebate essas acusações?

Fernando Henrique Cardoso: Com muita tranqüilidade. Em primeiro lugar, elite, é bom ser da elite; o Lula é da elite, elite sindical. Eu sou, eu pertenço à elite cultural, não nego esse fato, e acho bom, bom porque eu trabalhei, eu me esforcei, eu estudei, eu dei duro para ser o que sou. E o Lula deu duro para ser o que ele é, líder sindical importante. É bom? Elite quer dizer isso, são os melhores nas suas categorias. Outra coisa é elite econômica, a qual eu não pertenço. E a política que eu sustentei é contra os bancos... não é contra os bancos, é contra o ganho do capital financeiro desbragado como foi no Brasil. Nós é que fizemos isso, essa política aí do Real vai desinflar os bancos, eles vão ter... Agora está havendo dificuldade de alguns bancos já, então na prática nós sustentamos uma política que era favorável ao povo, porque o povo é que sofre mais com a inflação, porque a inflação é um grande elemento de concentração de renda no Brasil, em benefício de quem? Do capital financeiro, dos especuladores e do governo. Então, a política que eu sustentei é o oposto disso, o resto é palavra de candidato, demagogia, mas não tem força nos fatos. Nós lutamos a favor de uma política econômica e de uma situação para o Brasil na qual o capital financeiro é penalizado na prática. Não é modo de dizer, na prática fizemos isso, é isso. Agora, quanto ao senador José Eduardo, que é presidente do PTB, o senador José Eduardo é um dos pouquíssimos banqueiros – hoje ele não está em função de banqueiro – que sempre lutou contra os juros altos, que tem idéias chamadas heterodoxas no meio financeiro, é isso, hoje ele é um senador, é um político, e as idéias que ele defende não são em função do interesse do banco; e se for, e se o interesse do banco contrariar algum interesse do Brasil, eu fico com o interesse do Brasil e não com o interesse de quem saiu defendendo alguma coisa contrária ao que vale a pena para o povo. Isso para mim é tranqüilo, eu não tenho nenhuma ligação, nenhuma responsabilidade, nenhuma promessa, nenhuma ligação efetiva de fazer política tal ou qual, diferente daquela que eu estou dizendo que vou fazer e já fiz como ministro. Não é que vou fazer, já fiz, claramente a favor da redução do lucro do sistema financeiro. O que os candidatos dizem, dizem cada um aquilo...

Heródoto Barbeiro: [interrompendo] Senador, hoje o deputado Roberto Freire [ver entrevista com Freire no Roda Viva], que é candidato a senador por Pernambuco e faz parte do PPS, está na oposição ao senhor, está em outro partido político, lá na Frente Brasil, ele disse que a Frente Brasil deveria passar a defender o Plano Real. O senhor acha que é uma tentativa de tomar essa bandeira do senhor?

Fernando Henrique Cardoso: Não consegue. Ele deveria ter defendido quando ele era líder do governo.

Josemar Gimenez: Mas ele defendeu.

Fernando Henrique Cardoso: Não, ele se opôs a muita coisa, a muita coisa porque não era favorável... Mas o Roberto Freire é um homem inteligente, um homem inteligente, um homem correto, mas o que ele está dizendo é que ele sentiu que o povo dá valor e que o plano é bom. Eu fico feliz de ele ter dito isso, eu só lamento que ele não esteja do meu lado como devia estar.

Heródoto Barbeiro: Bom, senador, nós queremos então agradecer a sua presença, a sua participação aqui no nosso Roda Viva especial. Obrigado, senador. Bom, nós estamos encerrando nosso Roda Viva de hoje e amanhã nós vamos estar, na nossa seqüência, entrevistando mais dois candidatos à Presidência da República. Amanhã é a vez de Enéas Carneiro e de Luiz Inácio Lula da Silva. Nós queremos agradecer a presença do telespectador através do telefone, através da sua audiência em casa, do fax, e dos jornalistas que participaram deste programa. Nós voltamos amanhã às dez e meia da noite. Boa noite, muito obrigado.

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