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Memória Roda Viva

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Baltasar Garzón

21/10/2008

Alvo de ameaças de morte, o juiz espanhol, responsável pela prisão do ex-ditador chileno Augusto Pinochet, diz: "Estou onde estou porque quero. Acredito que o juiz é um servidor público que deve atuar em defesa da legalidade e servir os cidadãos."

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Lillian Witte Fibe: Boa noite. O mais conhecido e polêmico juiz espanhol abriu investigação sobre os desaparecidos durante a Guerra Civil [Guerra Civil Espanhola (1936-1939)] e a ditadura do general Franco [Francisco Franco Bahamonde (1892-1975), ditador espanhol e regente do Reino de Espanha de outubro de 1939 a novembro de 1975, quando de sua morte]. Durante a guerra, de 1936 a 1939, e depois no franquismo [regime ditatorial comandado pelo general Francisco Franco, instaurado na Espanha após o término da guerra civil, que durou até 1975, quando houve uma transição democrática], que começou em 1939 e foi até 1975, milhares de pessoas foram presas, torturadas, assassinadas ou, simplesmente, consideradas desaparecidas. Entre as autoridades acusadas de tantos crimes, 35 estão mortas, inclusive - como se sabe - o ditador Franco. Mesmo assim, optou-se pela investigação por crimes contra a humanidade. Há décadas, as famílias das vítimas esperavam por isso. De qualquer forma, o Ministério Público espanhol vai recorrer. Motivo: alega que a instância indicada para esse tipo de decisão não é a do tribunal do juiz. O juiz, no caso, é Baltasar Garzón, que está no centro do Roda Viva de hoje. Durante a entrevista gravada em agosto, você vai ver que, perguntado sobre o tema, ele ressaltou que ainda não havia decisão sobre a investigação oficial. Baltasar Garzón, presidente de uma das mais altas instâncias judiciais da Espanha, ficou conhecido no mundo como o juiz que mandou prender o ex-ditador chileno Augusto Pinochet. Chegou a ser indicado para o Prêmio Nobel da Paz, já mandou gente poderosa para a cadeia, colecionou inimigos e está ameaçado de morte. Você vê a entrevista daqui a trinta segundos.

[Vinheta do programa]

Lillian Witte Fibe: O juiz Baltasar Garzón é a personalidade espanhola mais citada nos jornais internacionais, nas televisões e na internet. Implacável com traficantes, corruptos e terroristas, persegue também a defesa dos direitos humanos. Para ele, qualquer ditador, não importa a nacionalidade, deve ser submetido às regras do direito internacional.

[Vídeo] [Imagens de Baltasar Garzón, Augusto Pinochet, Henry Kissinger, Silvio Berlusconi, George Bush, manifestações nas ruas etc] [Narração de Valéria Grillo]

Desde 1988, Baltasar Garzón atua na Audiência Nacional da Espanha. Ele é um dos seis juízes do país que investigam crimes internacionais, inclusive aqueles ocorridos fora do território espanhol, baseado no princípio de Justiça Penal Universal, que considera que, a partir de 1985, todos os crimes dessa natureza devem ser punidos. A Audiência Nacional atua no combate ao narcotráfico, ao terrorismo, à lavagem de dinheiro e à delinqüência econômica organizada. Mas foi com um caso polêmico que Baltasar Garzón tornou-se conhecido em todo o mundo. Em 1998, ele ordenou e conseguiu a prisão do ex-ditador chileno Augusto Pinochet, sob a acusação de tortura e morte de cidadãos espanhóis. O ex-general estava em Londres, em tratamento médico, quando recebeu a notícia. Defensores dos direitos humanos comemoraram, enquanto simpatizantes de Pinochet saíram em defesa do ex-general. A prisão de Pinochet projetou o nome de Baltasar Garzón e mostrou sua trajetória ao mundo. Ele também trabalha em um processo em que acusa de genocídio diversos militares argentinos, investigados pelo desaparecimento de cidadãos espanhóis durante a ditadura Argentina, entre 1976 e 1983. Baltasar Garzón chegou a demonstrar interesse de investigar o ex-secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger, por sua relação com a Operação Condor, que atuou na América Latina durante regimes autoritários. Em 2001, envolveu-se em outro caso polêmico ao pedir permissão ao Conselho da Europa para processar o primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi [(1936-), fundador e líder do partido Força Itália, foi presidente do Conselho de Ministros no período de 2001 a 2006, considerado o homem mais rico da Itália e o 15º do mundo, é empresário de comunicações, bancos e entretenimento]. Baltasar Garzón declarou-se contra a Guerra do Iraque. Em janeiro de 2003, criticou o governo dos Estados Unidos de violação dos direitos humanos pela detenção ilegal, na base de Guantánamo, em Cuba, de suspeitos de pertencerem ao grupo terrorista Al-Qaeda. Na Espanha, ele é ameaçado de morte. Influente na política nacional, já determinou o fechamento do partido separatista basco Batasuna, com a alegação de ser o braço político do grupo armado ETA [sigla de Euskadi Ta Askatasuna (Pátria Basca e Liberdade), organização que pratica o terrorismo como meio de alcançar a independência da região do País Basco, de Espanha e França]. Mas foi ele também quem comandou as investigações ao grupo paramilitar que torturou e matou supostos membros do ETA durante a chamada Guerra Suja Espanhola [ações de grupos antiterroristas de libertação realizadas na Espanha de 1983 a 1987, durante o governo socialista de Felipe González, entre as quais assassinatos, sequestros e torturas a supostos membros da organização terrorista ETA, bem como cidadãos espanhóis e franceses sem nenhuma relação com a organização]. Garzón foi eleito deputado em 1993, pelo Partido Socialista, e em seguida assumiu o Programa Nacional Antidrogas, mas renunciou ao cargo logo depois, ao acusar o governo de ser tolerante com a corrupção. Garzón tornou-se juiz provincial aos 23 anos, e aos 32 já estava na Corte Suprema de Madri. Uma carreira meteórica para um jovem que sonhava em ser padre, jogador profissional ou toureiro.

[Fim do vídeo]

Lillian Witte Fibe: Para entrevistar o juiz Baltasar Garzón, convidamos Carlos Marchi, analista de política do jornal O Estado de S.Paulo; Cláudia Antunes, editora do caderno O Mundo, do jornal Folha de S.Paulo; Jan Rocha, jornalista, ex-correspondente da BBC e do jornal inglês The Guardian no Brasil, e uma das fundadoras do grupo de direitos humanos Clamor; Walter Maierovitch, desembargador aposentado e presidente do Instituto Giovanni Falcone, que pesquisa o crime organizado. A Carmen Amorin, que é repórter aqui da TV Cultura, traz para a entrevista as perguntas enviadas antes e por e-mail pelos telespectadores, porque este programa está sendo gravado. E temos também aqui conosco o nosso cartunista Paulo Caruso. Boa noite, doutor Baltasar Garzón. Obrigada pela sua presença. Os primeiros Tribunais de Direito Internacional estão completando um pouco mais de 15 anos. O seu Tribunal Penal Internacional, do qual o senhor é praticamente um padrinho, já está funcionando há cerca de dois anos, mais fortemente etc. Eu lhe pergunto: será que a globalização ajudou na conscientização do direito internacional? Que os direitos, especialmente os direitos humanos, são de todos? Mais ou menos como a consciência do meio ambiente: o ar que respiramos também é de todos?

Baltasar Garzón:  Boa noite. É um prazer estar aqui. Em primeiro lugar, gostaria de dizer que a denominação do tribunal a que pertenço não é o Tribunal Internacional e sim a Audiência Nacional. Desde 1985 existe uma competência para investigar crimes internacionais com amparo no que se conhece como o princípio da justiça penal universal, com caráter geral, que o legislador espanhol considera que precisam ser investigados, incluindo aqueles ocorridos fora do território espanhol. Em resumo, esses crimes são os delitos de terrorismo, narcotráfico, corrupção de menores e escravidão sexual, ablação do clitóris em prevenção da delinquência de gênero e aqueles outros crimes incluídos nos tratados, entre os quais a tortura e o desaparecimento forçado de pessoas e outros crimes de lesa-humanidade. Como resposta à sua pergunta, as ações na área do direito penal internacional, seja de qualquer parte, de um juiz nacional, ou de um juiz nacional que aplica as normas da justiça internacional, ou de tribunais internacionais, são sempre bem recebidas, porque envolvem uma resposta que qualquer juiz em qualquer instância deve dar àqueles crimes que mais gravemente atacam a comunidade internacional e às vítimas.

Carlos Marchi: Juiz Garzón, para ficar mais claro, pelo o que o senhor disse, não é necessário, pela legislação espanhola, que haja um envolvimento de espanhóis, que haja cidadãos espanhóis como vítimas dessas situações que o senhor citou para que esses crimes sejam investigados na Espanha. É assim?

Baltasar Garzón: É assim, de fato. Essa é a interpretação que eu mantive inicialmente, em 1986, quando se começaram as investigações do caso Argentina e Chile, o caso Pinochet, e depois no caso Guatemala sobre os crimes durante a ditadura guatemalteca, principalmente contra a etnia maia. O Supremo Tribunal Espanhol restringiu o conceito, exigiu o princípio de personalidade, que houvesse vítimas espanholas. Porém, posteriormente, o tribunal constitucional, em uma sentença já histórica de 26 de setembro de 2005, anulou a sentença da Corte Suprema, determinando que o princípio de justiça universal, segundo a lei espanhola, não está sujeito ao limite imposto pelo Supremo Tribunal, pois se trata do princípio de justiça puro, e a limitação fica ao critério, ponderação e atuação do juiz em cooperação internacional com outros países e outros juízes.

Jan Rocha: Doutor Garzón, eu estava em Londres quando o general Pinochet foi preso. Eu lembro muito bem da euforia dos chilenos lá e da incredulidade dos ingleses. Então, eu queria perguntar para o senhor sobre os bastidores. As autoridades inglesas sabiam, tinham algum aviso do senhor que ia fazer esse pedido de extradição, ou os pegou completamente de surpresa? Quando o senhor resolveu fazer o pedido, o senhor tinha certeza de que ia funcionar ou era uma espécie de risco calculado, uma jogada, vamos dizer?

Baltasar Garzón: Começando pelo final, calculado ou não, era um risco. Foi um risco porque, naquele momento histórico, em outubro de 1998, o tribunal do qual dependo não tinha ainda estabelecido a doutrina que eu estava postulando. Eu estava aplicando o princípio de justiça universal pela primeira vez na Espanha. Porém, naquele momento, o critério ainda não tinha sido confirmado. Quando emiti a ordem de detenção de Augusto Pinochet, eu não sabia se três dias depois o tribunal da Audiência Nacional iria me dizer: "O senhor não sabe do que está falando. A sua interpretação é uma barbaridade, é nula. E o Pinochet fica em liberdade, e o senhor fica não sei onde.". Realmente, era um risco, mas um risco que valia a pena correr e, de qualquer jeito, eu tinha que correr esse risco, pois são os atos que demonstram quem você é, e já fazia dois anos que eu estava investigando, sob o amparo do princípio de justiça universal, e tinha decretado a ordem de busca e captura internacional contra o general Galtieri [Leopoldo Fortunato Galtieri Castelli (1926-2003), general e ditador Argentino entre dezembro de 1981 e junho de 1982. Promoveu a invasão das Ilhas Malvinas, território sob ocupação britânica desde o século XIX, originando assim a chamada Guerra das Malvinas. A Argentina foi derrotada e a guerra teve o saldo oficial de 649 argentinos mortos e 258 britânicos],da Argentina, por exemplo. Eu não podia deixar de fazer o que fiz em um caso que apresentava a possibilidade legal de fazê-lo, sabendo que não foi o êxito que me guiou, pois estava quase certo de que não iria prosperar. Em relação à primeira parte da pergunta, a minha decisão foi conhecida pelas autoridades inglesas quando aconteceu o que aconteceu. Naquela época, outro juiz, um colega meu, estava à frente da investigação principal sobre o Chile, enquanto eu fazia a Argentina; pediu informação das autoridades inglesas para interrogar Pinochet. E eu, sem estar presente na notícia do dia, também indaguei em relação à Operação Condor que eu estava investigando. Então solicitei essa informação às autoridades britânicas e, primeiro, me disseram que não era do meu interesse o que estava acontecendo lá com a presença de Pinochet. Depois, o adido da embaixada britânica na Espanha, John Dew, que tinha se tornado um bom amigo após uma grande polêmica em relação à falta de cooperação das autoridades britânicas e de Gibraltar relacionada à lavagem de dinheiro, me ligou e disse que a resposta das autoridades britânicas fora incorreta e que iriam me responder corretamente. Então me informaram que Pinochet estava em Londres e queriam saber por que eu estava interessado nele. Respondi que queria interrogá-lo em relação aos eventos da Operação Condor. Eles me disseram que iriam fazer tramitar a minha petição. Porém, no dia 16 de outubro de 1998, fui informado de que, devido ao fato de que a imprensa estava anunciando que o meu colega iria a Londres, Pinochet decidiria partir e já tinha o avião preparado, e viajaria no sábado. E eu tinha que tomar uma decisão, pois eles não podiam detê-lo. Foi assim que, numa sexta-feira, às 2h30 da tarde, havia apenas um funcionário no tribunal, a quem eu disse: "espere um momento que vou ditar uma resolução.". Meia hora depois, escrevi à mão a ordem de detenção de Pinochet, que redigi de memória, pois me dei conta de que o funcionário que cuidava do dossiê tinha ido embora e eu não tinha a resolução em mãos.

Jan Rocha: Então, realmente, para as autoridades inglesas, o pedido de prisão foi uma surpresa total?

Baltasar Garzón: Sim, no momento, eles me disseram que não podiam detê-lo. E que a única forma seria se eu pedisse a detenção, senão o deixariam partir. Quando solicitei a detenção, eu não sabia o que iria acontecer quando as autoridades inglesas recebessem a minha petição. Fui sendo informado por John Dew, o adido da embaixada britânica em Madri, que me ia contando o que estava acontecendo naquela tarde, enquanto eu viajava para a minha terra, a Andaluzia: "Já chegou a sua ordem. Já está sendo levada ao juiz. Já está nas mãos do juiz. O juiz disse que sim.". E aí quase comecei a tremer, porque naquele momento é que se materializou a possibilidade da detenção, assim como a tensão da situação na Espanha. Pois nesse momento eu me dizia: "agora, tenho que esperar o tribunal me dizer se o que fiz foi bom ou ruim.". Se tivessem dito que não, não haveria problema, mas se dissessem que sim, aí começava o problema.

Wálter Maierovitch: O senhor deixou a Espanha e está aqui entre nós. Eu vou usar uma imagem. O senhor deixou uma bomba pronta para ser implodida no momento em que o senhor já estava aqui entre nós. Isso nos revela a imprensa internacional. O senhor acabou de requisitar a abertura dos arquivos com relação à Guerra Civil Espanhola, de 1936 a 1939, com um milhão de vítimas, e mais a abertura de todos os arquivos durante a ditadura de Franco. A ministra da Defesa, Carme Chácon, já deu o seu apoio a toda essa iniciativa. Daria para o senhor nos resumir o que vai significar isso? O que a opinião pública já está pensando? Isso é notícia de toda a imprensa internacional.

Baltasar Garzón: Lidero uma investigação que me é designada. É importante mencionar o sistema de distribuição de assuntos, porque uma das acusações que sempre são feitas nesses casos complicados de justiça internacional ou de crimes de lesa-humanidade é que os juízes espanhóis, e eu, em particular, escolhemos o caso; e não é assim. A lei não nos permite escolher o caso. Em toda a Espanha somos seis juízes com competência para esses tipos de crimes: terrorismo e crimes de lesa-humanidade ocorridos dentro e fora da Espanha, narcotráfico, grandes crimes econômicos, falsificação de dinheiro e outros mais. Os casos são rigorosamente distribuídos na presença de secretários judiciais e o sorteio é feito por computador. Um desses casos foi a iniciativa das vítimas da Guerra Civil Espanhola para a investigação desses eventos como crimes de genocídio e lesa-humanidade acontecidos a partir de 18 de julho de 1936, que, na época, não puderam ser investigados. Estou trabalhando nessa investigação, e não puderam ser investigados. A lei me proíbe de entrar em detalhes sobre o seu conteúdo. Porém, posso comentar o que já é público. E há dois meses solicitei ao Ministério da Defesa e ao Ministério do Interior a entrega de informações sobre o número de pessoas desaparecidas, lugares e qualquer informação ou documentação que provasse a existência desses desaparecidos. Pois não basta o que está sendo veiculado pelos meios de comunicação ou estudos históricos, para o juiz se pronunciar sobre esse assunto. Há a necessidade de uma contestação oficial, e essa resposta oficial está pendente. Como eu estava fora da Espanha, acredito que essa questão está sendo redigida, assim como provavelmente em relação à lei conhecida como Lei de Memória Histórica [O parlamento espanhol aprovou em 2007 a Lei da Memória Histórica, em reconhecimento às vítimas do franquismo (em especial as da Guerra Civil de Espanha) e condenando esse regime como anti-democrático e usurpador do poder legítimo], aprovada em 26 de dezembro de 2007, e que está sendo desenvolvida neste momento.

Wálter Maierovitch: Daria para o senhor...

Lillian Witte Fibe: [Interrompendo] Doutor Maierovitch, desculpe, nós vamos fazer um intervalo, e depois do intervalo nós vamos começar a fazer as perguntas também dos telespectadores. São perguntas que foram enviadas antes, por e-mail, porque o programa está sendo gravado. No nosso site tvcultura.com.br/rodaviva, você pode se informar sobre os próximos programas, mandar e-mails, perguntas, críticas e sugestões. A gente volta já, já.

[intervalo]

Lillian Witte Fibe: Nós voltamos com o Roda Viva, que hoje recebe o juiz espanhol Baltasar Garzón, conhecido no mundo por ter mandado prender o ex-ditador chileno Augusto Pinochet. Polêmico, ele já foi indicado para o [prêmio] Nobel da Paz, mas fez inimigos - claro - durante a sua carreira, e está ameaçado de morte. Eu vou pedir agora para que a Cláudia Antunes faça a sua pergunta. Cláudia, por favor.

Cláudia Antunes: Vou até retomar o tema ali, falar um pouco do caso espanhol. No Brasil, o Pacto de Moncloa é sempre citado ali como um exemplo de transição bem resolvida de uma ditadura. Mas também eu acho que, por causa do pacto, a discussão toda sobre as reparações e os crimes da Guerra Civil, obviamente, também demorou para acontecer. Eu queria que o senhor falasse um pouco, então, das conseqüências do pacto para... enfim, para esse acerto de contas da memória espanhola sobre o que aconteceu durante a ditadura franquista, e durante a Guerra Civil e a ditadura franquista, e explicasse então, retomando a pergunta ali do Wálter, o que é essa Lei da Memória Histórica, afinal.

Baltasar Garzón: Infelizmente, antes eu podia falar mais sobre o assunto. Mas agora tenho que falar menos, por ser o juiz que investiga esses fatos. Posso dizer que o modelo da transição espanhola, que é reconhecido internacionalmente como um dos modelos exemplares, foi bom nos âmbitos político e social. Conseguiu que o velho regime ou o regime ditatorial e seus representantes se dissolvessem e pedissem a lei da reforma política, que é um caso muito específico, porém deixou uma pendência não resolvida, que foi a questão da ação da justiça em relação aos crimes da ditadura. Isso não quer dizer que não tenha havido respostas judiciais concretas em alguns casos de violação de direitos fundamentais durante o franquismo. O Supremo Tribunal tem se pronunciado, através do chamado recurso de revisão. Porém, não houve uma ação da justiça. E por isso é um capítulo incompleto. E agora se apresentou perante a jurisdição da Audiência Nacional, o meu tribunal, e estamos encarregados de decidir sobre a continuação dessa investigação, se é possível superar os obstáculos legais da passagem do tempo, da falta previsível de responsáveis vivos e, portanto, da extinção da responsabilidade, da qualificação jurídica de crimes de lesa-humanidade ou contra a humanidade, numa época em que essa categoria não existia como crime aceitável internacionalmente, o caráter e a aplicação da anistia decretada em 1986, o caráter de delito permanente ou continuado do desaparecimento de pessoas etc. Podemos transpor essas questões ao Brasil e ver que se parecem bastante com as que estão sendo levantadas atualmente e que continuarão a ser levantadas por aqui. Em relação à Lei da Memória Histórica, esse é o nome pelo qual é conhecida, porque se refere à lei que deveria ter sido a Lei de Reparação e Memória Histórica. Essa lei ficou muito limitada. Acho que é uma pena que todas as políticas não tenham entrado em consenso em relação à lei. Houve duas ausências, por razões opostas: uma do partido conservador, o Partido Popular, que se desvinculou da lei, e outra do partido Esquerra Republicana de Catalunya, que considerou que a lei era muito limitada. No fim das contas, essa lei estabelece a reparação ético-moral das vítimas, a reparação econômica que já vinha sido realizada em seu momento, a possibilidade de recuperação da nacionalidade espanhola por parte dos filhos e netos, nascidos no exterior, de espanhóis que foram exilados da Espanha. A declaração da ilegitimidade dos julgamentos do franquismo não significa a anulação. É importante frisar esse matiz, e também a abolição dos símbolos do franquismo que ainda existirem em ruas, praças, edifícios públicos, a não ser que tenham um conteúdo histórico artístico, que deverá ser decidido pelas autoridades administrativas. E também um tema mais simbólico de criar um espaço de memória coletiva no Valle de los Caídos [memorial franquista erguido entre 1940 e 1958, a cerca de 40 km de Madrid, em memória dos mortos na Guerra Civil Espanhola], onde se reconheçam aqueles que contribuíram para erguer esse monumento, que por mais de quarenta anos foi o símbolo do fascismo e da repressão, e que reconheça que foi dos caídos de ambos os lados. A lei poderia ter ido mais longe, mas não foi o caso.

Lillian Witte Fibe: Carmen, quais são as perguntas? O que os nossos telespectadores querem saber?

Carmen Amorin: Então, eu tenho uma pergunta de uma telespectadora do Rio de Janeiro, a Elza Neves Moraes. Ela pergunta o seguinte: "O senhor acha que crimes de torturas e assassinatos de dirigentes políticos, cometidos por agentes do Estado, devem ser considerados imprescritíveis?".

Baltasar Garzón: Teríamos que determinar se é um crime individual, isolado, e responderia como um crime comum cometido por qualquer cidadão. A única diferença seria quando é cometido por uma autoridade do Estado em função da sua categoria, que seria julgado em um tribunal de acordo com o seu foro. No caso de crimes sistemáticos cometidos pelo poder ou com a aquiescência do poder por agentes de corpos militares ou policiais, ou para-policiais ou para-militares, patrocinados, mantidos ou estimulados por um Estado repressor, evidentemente, esses crimes entrariam na categoria de crimes de lesa-humanidade ou crimes contra a humanidade, ou de desaparecimento forçado de pessoas. Em tais casos, temos que estabelecer primeiro se o critério da legislação interna os considera prescritíveis ou não-prescritíveis. Mas, de qualquer jeito, no nível internacional, a comunidade internacional, ou seja, o corpo de convênios de direitos humanos que prevêem e sancionam delitos como genocídio, tortura, desaparecimento forçado de pessoas etc, estabelece claramente a imprescritibilidade desse tipo de crimes. Portanto, a questão seria de estabelecer qual interpretação prevalecerá. Do meu ponto de vista, deve prevalecer a do direito penal internacional, pois é a que mais proteção outorga às vítimas. Nesses tipos de crime, a proteção das vítimas deve primar sobre a impunidade dos perpetradores, o que não significa privá-los de seus direitos. Terão todos os direitos que devam ter, mas nada mais além.

Carlos Marchi: Juiz Garzón, no Brasil, agora, nos últimos tempos, tem-se discutido muito essa questão da imprescritibilidade de alguns crimes. E se fala objetivamente nos crimes de ocultação de cadáver. Há cerca de 140 brasileiros, dos quais não se sabe onde estão os seus corpos. Hoje, mais cedo, antes de vir ao programa Roda Viva, o senhor fez uma palestra ao lado do secretário de Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, e ele defendeu nessa palestra que esse tipo de crime é um crime continuado, uma vez que as pessoas que determinaram a morte daquele cidadão sabem perfeitamente onde estão seus túmulos, onde eles estão enterrados, seus túmulos clandestinos, e não revelam. Portanto, eles estariam reincidindo no crime. O senhor concorda com essa observação do doutor Paulo Vanucchi?

Baltasar Garzón: Vou um pouco mais longe, no sentido de que, para mim, a denominação de crime continuado não é errônea, é adequada. Porém acredito que se trata mais de um crime permanente. A figura do delito permanente significa que, desde o momento em que ocorreu o evento que motivou o desaparecimento, se foi um desaparecimento forçado e há indícios de que os aparatos do Estado estavam implicados, esse crime está ocorrendo momento a momento e durante o tempo todo, até o exato momento em que se encontra o corpo ou em que o Estado, ou quem tenha propiciado o desaparecimento, ou, se a forma de Estado mudou, os representantes atuais desse Estado digam ou indiquem onde está ou pode estar essa pessoa. Isso envolve facilitar toda a documentação, todos os dados que tenham para encontrar essa pessoa. Até esse momento, o crime continua sendo cometido. A partir desse momento começaria o princípio de prescrição, se for admitida a prescritibilidade. Como disse antes, do meu ponto de vista, tratando-se de crimes internacionais, não seria possível essa prescrição. Porém, em todo caso, até que essa solução de continuidade não ocorra, o crime continua sendo cometido. Portanto, a partir desse momento pode ser investigado e deve ser investigado.

Carlos Marchi: Quer dizer, no Brasil, nós tivemos a Lei de Anistia [Lei de Anistia Brasil]. Então o senhor diria que a Lei de Anistia não cobre esse tipo de crime?

Baltasar Garzón: Não é coberta nessa interpretação dos crimes de lesa-humanidade, por duas razões: uma, sendo um crime internacional, e, portanto, a leis de anistia não vigoram, não são válidas, nem alegáveis, como diz muito claramente a Corte Interamericana de Direito Humanos ao resolver o caso Barrios Altos, no Peru. A sentença de 14 de fevereiro de 2002, se não me engano, estabelece que as anistias e as autoanistias não podem impedir a investigação e sanção de crimes de lesa-humanidade. O caso de Barrios Altos e o da Universidad de La Cantuta, foi em torno da atuação do chamado Grupo Colima [esquadrão da morte que operou no Peru durante o governo de Fujimori no início da década 1990, eliminando suspeitos de pertencerem ao grupo terrorista Sendero Luminoso. Foi responsável por numerosas violações contra os direitos humanos], e está se decidindo neste momento se Alberto Fujimori estimulou essa repressão. Ele está sendo julgado por isso. E o promotor está pedindo muitos anos de prisão por esses fatos. Portanto, é um precedente. Existem muitos mais, mas esse é um precedente claríssimo de que as leis de anistia, quando se referem a crimes de lesa-humanidade, não são aplicáveis. Portanto, trata-se de um argumento. O segundo argumento é que, mesmo se fossem aplicáveis, sendo o delito de caráter permanente, que continua sendo cometido, continua ocorrendo após a lei de anistia. E o terceiro argumento é que a lei de anistia, em princípio, implica ou exige que se aplique a crimes cometidos por pessoas que estão identificadas como tais, mas não como um caráter genérico, aberto, indefinido, para que aqueles que propiciarem essa lei continuem impunes. Seria uma desnaturalização do instituto de direito de graça ou perdão que em nenhum caso pode ser geral nem constitucional, porque iria contra os princípios como o que ninguém pode ser torturado, ninguém pode ser desaparecido, ninguém pode ser objeto de tratamentos desumanos e degradantes. Não podemos esquecer que, por serem esses crimes internacionais, qualquer país que esteja no sistema de direito internacional deve cumprir com os direitos, caso contrário, podem ser aplicados a partir de outras instâncias, em virtude do princípio de justiça universal.

Jan Rocha: O senhor ainda tem esperança de que o senhor Henry Kissinger [ex-secretário de Estado norte-americano], no banco dos réus, por sua parte na Operação Condor?

Baltasar Garzón: Tenho que dizer que ele nunca foi acusado, nunca foi objeto de denúncia, nem houve uma querela contra ele. Nunca houve uma iniciativa contra ele pela sua suposta participação na Operação Condor. Estou ciente do que se tem escrito. Cada um de nós temos a nossa opinião a respeito. Seria impossível eu manifestar a minha opinião, pois estaria inabilitado para atuar perante uma eventual petição. Conheci Henry Kissinger nos Estados Unidos, na Universidade de Nova York, falando de outros temas. A opinião pública tem sido bastante crítica em relação à intervenção de Henry Kissinger nesses casos como secretário de Estado. Porém, minha resposta é que, até o dia de hoje, não se produziu uma petição. E tenho por norma, como juiz, não fazer ajuizamentos do futuro. Eu seria um mau juiz - não sei se sou bom ou mau -, mas seria pior se eu fizesse ajuizamento político do que poderia acontecer. Como o termo político implica, está mais para os políticos e os meios de comunicação fazerem esses julgamentos. Nós juízes precisamos atuar com base em fatos, com base em uma petição. E uma vez feita esta, analisar o que temos e continuar.

Lillian Witte Fibe: Doutor Wálter, o senhor tem alguma pergunta?

Wálter Maierovitch: Tenho sim. Eu gostaria de saber do senhor o seguinte: nós aqui no Brasil temos a Lei da Anistia, [Lei de Anistia Brasil] que é que 1979, feita, portanto, durante o regime militar ditatorial. Essa lei estabelece, no seu parágrafo, de uma maneira expressa, que não caberia a anistia nos crimes de terrorismo. Isso diz a nossa lei. Eu lhe pergunto: nos regimes ditatoriais não existe terrorismo de Estado?

Baltasar Garzón: Teria que responder que sim, que, se a lei de anistia diz isso, para mim, a solução seria muito fácil, se fosse uma lei espanhola. Porque, para mim, os crimes de terrorismo em determinadas formas e facetas podem adquirir a natureza de crimes de lesa-humanidade. Portanto, se for assim, os crimes de lesa-humanidade poderiam ser incluídos nessa exceção. Porém, acredito que, se essa exclusão for estabelecida, não pode impedir julgamento quando a natureza do crime é ainda de maior gravidade e os crimes de lesa-humanidade, como o genocídio, como a guerra, são conceituados como os crimes mais graves contra a comunidade internacional. Portanto, se uma lei estabelece exceções, essa outra exceção está acima dessas exceções, pois do contrário estaria atuando contra o princípio conhecido como jus cogens, que diz que não se pode ir contra o costume estabelecido no nível internacional, e nos casos de crimes de lesa-humanidade, como já é o caso constante desde 1946, balizado e reconhecido em convênios como um princípio que existe e é inatacável, juridicamente falando.

Lillian Witte Fibe: Nós vamos fazer um intervalo, lembrando que a memória do Roda Viva está disponível no nosso site tvcultura.com.br/rodaviva. Ali, você pode pesquisar o conteúdo do nosso arquivo e também mandar e-mails com críticas e sugestões. A gente volta já, já.

[intervalo]

Lillian Witte Fibe: Nós estamos entrevistando o juiz espanhol Baltasar Garzón, conhecido pela postura implacável contra traficantes, corruptos, terroristas e quem quer que seja que viole os direitos humanos. Doutor Garzón, há muitos brasileiros na Europa em situação ilegal ou não regulamentada. Eu li algumas das suas opiniões sobre as leis da imigração na Europa e gostaria de ouvi-lo a respeito.

Baltasar Garzón: Daria para opinar durante muito tempo. Mas eu gostaria de fazer uma reflexão. O fenômeno da imigração ilegal é certamente um dos fenômenos mais problemáticos, apesar de os políticos gostarem de dizer que a imigração não é um problema e sim um fenômeno. Acredito que seja um fenômeno problemático para os governos, em particular para os governos europeus. O governo espanhol é provavelmente o governo mais progressista no tratamento dos imigrantes e, em particular, no tratamento da imigração ilegal. Os limites dos períodos temporários em que se podem manter pessoas em detenção não passam de quarenta dias, e se postula até sessenta, enquanto a nova diretiva da União Européia sobre o retorno de imigrantes, que gerou muita polêmica, estabelece um limite de até 18 meses. Parece-me claramente inadequado e pode, inclusive, violar direitos fundamentais. Atitudes como as do atual governo italiano me parecem completamente descabida, xenófobas e até racistas em alguns casos particulares. Foram enormes as ações ocorridas em Roma, também instigadas pelo próprio prefeito de Roma. E em Nápoles, concomitantemente com uma ação da Camorra napolitana [organização mafiosa da Itália, nascida na cidade de Nápoles no início do século XIX, que pratica diversas ações criminosas, como extorsão, agiotagem e tráfico de dorgas] obrigando um estado de força contra o governo na crise do lixo. Além de aproveitar para responsabilizar os imigrantes, especialmente membros da etnia rom, os ciganos, pela insegurança, a reação xenófoba foi cruel. Portanto, isso não é uma boa notícia. Acredito que a política da União Européia deve ser repensada e ir pelo caminho da integração, diversidade e multiculturalismo, com uma análise profunda das causas, com uma política acordada com os países de origem. Porém, eu gostaria que nessa política acordada com certos países, refiro-me a países subsaarianos onde o nível de corrupção é absoluto. Até o ponto de membros da família presidencial de um desses países controlarem as organizações que estimulam a imigração ilegal e o tráfico de seres humanos, seja exigido que esses países cumpram e não somente afirmem o apoio ao desenvolvimento. O princípio da justiça universal para lutar também contra as máfias é absolutamente fundamental. Na Espanha foi introduzido, em virtude de uma lei aprovada em novembro de 2007, que é um caminho adequado. Eu acho que é preciso estabelecer esse consenso com os países emissores, para que a imigração deixe de ser um fenômeno problemático. A minha opinião, evidentemente não compartilhada por muitos, é que ninguém tem mais direito a um território, a um lugar na terra pelo fato de ter nascido nessa terra.

Lillian Witte Fibe: Carmen, vamos fazer uma pergunta de telespectador, por favor.

Carmen Amorin: Tem uma pergunta do Gustavo Tostes Gazinelli, que é de Belo Horizonte, Minas Gerais. Ele pergunta o seguinte: "A questão da punição dos torturadores no período militar, no Brasil, veio a público recentemente. O que fazer com relação aos empresários e agentes civis que patrocinaram tais tipos de ações militares ou paramilitares?".

Baltasar Garzón: Acredito que se deve começar uma obra, uma construção, pelos alicerces. E então, após diversos andares, diversos níveis, chegamos à parte final, que é o telhado. Na Espanha, temos um ditado que diz "Não comecemos a obra pelo telhado.". Podemos avançar iniciativas que compatibilizem as investigações e os fatos delitivos. Na descrição dos fatos delitivos, seja qual for o fato delitivo, sempre há aqueles que induzem, os autores morais, intelectuais, os autores materiais, os cúmplices e os encobridores. Portanto, não é diferente para esse tipo de crimes. O fenômeno já foi observado em outros países, como na Argentina, onde foi excluído da Lei de Obediência Final e da do Ponto Final, hoje anuladas. Na época também foram excluídos os delitos de espólio e de seqüestro de crianças. Agora, o que acontece com aqueles que propiciaram e estimularam essas atividades, dando apoio econômico? Primeiro teríamos que estabelecer que tenha ocorrido assim. Não se pode afirmar sem provas que isso foi assim. Qualquer crime precisa ser provado. E, uma vez provado, deve-se atuar. É uma das críticas feitas, e que eu também tenho feito em âmbito internacional, como por exemplo nos crimes de genocídio que aconteceram na zona central da África: Ruanda e especialmente o caso do Congo. A ONU [Organização das Nações Unidas] emitiu em 2004 um informe que era muito esclarecedor sobre o que você falou, dizendo que Uganda foi considerada como um exemplo por ter eliminado a sua dívida externa como conseqüência da exploração das minas de coltan. O coltan é um mineral que torna possível a existência de celulares. É com ele que se fabricam os microchips. Porém, o problema é que não há minas de coltan na Uganda, e sim no Congo. As explorações por um total de trinta empresas do Primeiro e Segundo Mundos haviam obtido benefícios imediatamente relacionados com os crimes de genocídio e lesa-humanidade. Portanto, é uma obrigação investigar tanto os que propiciam tal situação como os que a executaram. Essa teoria geral é aplicável a qualquer tipo de delito e em qualquer parte do mundo.

Lillian Witte Fibe: Cláudia.

Cláudia Antunes: Eu queria que o senhor falasse um pouco sobre a relação entre a justiça e o poder. Quando tem uma divergência interpretativa entre a justiça internacional e a justiça nacional, determinar se a justiça nacional é que vai prevalecer não é uma questão de poder? Por exemplo, os Estados Unidos executaram na semana passada vários presos condenados à morte, imigrantes - um mexicano, um guatemalteco, um ondurenho -, contra uma decisão da Corte Internacional de Justiça. A justiça americana disse que a lei americana é superior a qualquer legislação internacional. Pela mesma razão, os Estados Unidos não são signatários do Tribunal Penal Internacional, assim como a China não é, Israel não é, vários outros países não são. Eu queria que o senhor falasse um pouco se a perspectiva mundial é realmente só existir a justiça para os vitoriosos. Vitoriosos se impõem à justiça. Mesmo os Tribunais Penais Internacionais julgam pessoas de países que foram as partes derrotadas em conflitos, né? Os vitoriosos raramente são levados a julgamento. Eu queria que o senhor comentasse um pouco isso e aproveitasse e falasse também se é... se o senhor vê a possibilidade de os atuais dirigentes americanos, por exemplo, serem levados a tribunais internacionais por causa do memorando contra a tortura. O senhor sabe que, na interpretação do governo Bush, aquele tipo de tortura de afogamento não é considerado tortura. Então... mas é em outras interpretações. Eu queria que o senhor falasse um pouco sobre a justiça internacional dentro dessa perspectiva de poder no mundo.

Baltasar Garzón: A sua pergunta não é fácil, especialmente pelo contexto, e contém várias partes. Você menciona o caso da pena de morte aplicada no caso chamado Medellín. Este caso Medellín está intimamente ligado a outro caso, o caso Avena. E consiste da denúncia do México perante a Corte Internacional de Haia, que não deve ser confundida com o Tribunal Penal Internacional. O caso era a falta de assistência consular a um total de noventa presos condenados à pena de morte, que eram mexicanos. Porque os Estados Unidos tinham infringido o convênio de assistência consular de Viena. A Corte Internacional de Justiça deu razão ao México e instava os Estados Unidos a cumprir com essa resolução e oferecer assistência consular com a qual se poderia chegar a uma anulação das sentenças. O governo dos Estados Unidos inicialmente decidiu que a resolução deveria ser cumprida. Porém, o estado do Texas declarou que uma decisão de uma Corte Internacional de Justiça não era vinculante para o Texas. Essa decisão foi ratificada pela Corte Suprema do Texas e depois pela Corte Suprema dos Estados Unidos, o que é particularmente grave, já que o caso foi decidido contra o critério do governo dos Estados Unidos, que disseram que, se a Corte Suprema decidiu que o tribunal do Estado do Texas tem prevalência sobre a Corte Internacional, não há nada que eles possam fazer. Eles estão tratando de mudar a lei, o protocolo. Isso me parece uma barbaridade. Pois a prevalência da Corte Internacional de Justiça, que é uma jurisdição voluntária, porém aceita pelos estados, deve ter um critério pelo menos declarativo preferente. Resoluções não foram cumpridas em outros casos, como o do muro de Israel com a Cisjordânia, em que se exigiu que o muro fosse recuado em alguns metros e não o fizeram. Porém, o Supremo Tribunal de Israel depois modificou a situação. Outro tema é a Corte Penal Internacional, em que, para cada um dos casos, os países que tomam parte no Tribunal Penal Internacional têm estabelecido um critério de prevalência: quem intervém primeiro, quem deve intervir, quando o crime pode ser da competência da corte e quando pode ser da competência do país. Existe uma justiça complementar. Quer dizer, primeiro o país tem que atuar. Se não o fizer, porque não quer ou não pode, passa a ser a vez do Tribunal Penal Internacional. E, se ele não o fizer, qualquer país que disponha do princípio de justiça penal universal poderá atuar. Então, vários cenários podem ocorrer nas duas últimas esferas, que são o Tribunal Penal Internacional e a justiça local que aplicar o princípio da justiça penal universal. Na primeira, essa acusação é correta, porque está no sentimento universal de que o Tribunal Penal Internacional aplica justiça para países pouco poderosos e não para os responsáveis de países poderosos. Isso é relativamente certo. Acontece que os Estados Unidos, China, Rússia, Israel, Iraque e muitos outros países não fazem parte desse tribunal. E, portanto, não são regidos pela normativa dele. Com o tempo, eles entrarão no Tribunal. Por outro lado, existem outros países poderosos, os da União Européia, e, portanto, se ocorresse um crime, que precisa ser um crime pessoal, que não seja responsabilidade do Estado e sim de pessoas, poderiam ser submetidos ao Tribunal Penal Internacional, se a sua justiça local não fizesse nada. E, no último caso, no da justiça penal internacional, pelo princípio da justiça penal universal, ao ser justiça entre iguais, de um Estado a outro, não se pode quebrantar o princípio da Carta das Nações Unidas de igualdade entre os Estados. Portanto, se o responsável é uma alta autoridade do Estado, como um chefe de Estado, primeiro ministro, ou ministro de relações exteriores, pela Convenção de Viena protegido por garantias diplomáticas e imunidade diplomática, não pode intervir até que tal autoridade deixe o seu cargo.

Cláudia Antunes: Então, no caso do Sudão, ele não poderia ser preso, mesmo que o Tribunal Penal Internacional aceite a denúncia?

Baltasar Garzón: Sim, está no Tribunal Penal Internacional. Mas, pelo fato de que o Sudão não ratificou o estatuto da corte, existe uma norma no estatuto que estabelece as normas de competência que requer que o Estado faça parte, mas também diz que naqueles casos em que o Conselho de Segurança das Nações Unidas, que, como sabemos, possui cinco membros permanentes, que são a Grã-Bretanha, França, Rússia, China e Estados Unidos, estiverem de acordo, porque se um deles exerce o direito de veto, já não existe um acordo, se eles estão de acordo junto com os outros dez membros, é possível realizar uma investigação de um Estado que não faz parte da corte. Nesse caso, o que aconteceu foi que o Conselho de Segurança, com a abstenção da China e dos Estados Unidos, proferiu a ordem de investigação. Portanto, outorgando competência ao promotor do Tribunal Penal Internacional, que iniciou a investigação e que a terminou provisoriamente há aproximadamente um mês com a acusação contra o atual presidente do Sudão.

Lillian Witte Fibe: Nós vamos fazer um intervalo e eu volto a lembrar que, como o programa de hoje está sendo gravado, as perguntas dos telespectadores foram enviadas antes por e-mail através do site www.tvcultura.com.br/rodaviva. Até já.

[intervalo]

Lillian Witte Fibe: Este, então, é o último bloco do Roda Viva, que hoje está entrevistando o juiz espanhol Baltasar Garzón, conhecido pelo pedido de prisão do ex-ditador chileno Augusto Pinochet, e presente em muitos casos importantes da justiça na Espanha, onde já mandou prender também grandes traficantes, terroristas e políticos corruptos. Doutor Baltasar Garzón, a julgar pelo o que a gente ouviu da sua resposta à pergunta da Cláudia, antes do intervalo, nem pensar, então, em julgamento internacional do que aconteceu no Iraque durante a guerra declarada pelos Estados Unidos com alguns aliados, que o senhor, aliás, é a favor que seja investigada?

Baltasar Garzón: Para mim, a Guerra do Iraque foi uma guerra ilegal e imoral e, portanto, as conseqüências dessa guerra, em muitos casos, são imputáveis àqueles que a declararam. Não havia nenhuma causa objetiva. E, quando digo nenhuma, quero dizer nenhuma - como foi demonstrado posteriormente - que justificasse a invasão do Iraque. Foram usados argumentos conjunturais, na sua maioria falsificados, para propiciar esse ataque que gerou centenas de milhares de vítimas de cidadãos civis. Portanto, essa possível responsabilidade é que algo que precisa ser discutido em algum momento... Não digo que precisa ser no Tribunal Penal Internacional, porque provavelmente alguns desses responsáveis não poderão ser julgados por ele, mas há respostas nos respectivos países. Houve iniciativas, e temos que ser respeitosos com a ação judicial. Quando uma ação da justiça é postulada, precisamos aceitar também os resultados adversos dessa ação judicial. Não significa que toda ação da Justiça leve a uma condenação. O que é preciso é ter uma resposta judicial e um julgamento com uma condenação ou uma absolvição. Também é verdade que já houve resposta judicial nos EUA em muitos casos relacionados com o Iraque. Apesar de ser uma resposta militar e, portanto, reduzida, nos casos de Abu Ghraib. Também é verdade que há responsabilidades exigidas no Iraque a respeito daqueles que perpetraram atos de terrorismo em nome de organizações terroristas que não existiam antes da invasão. Até nesse ponto a realidade foi falsificada, porque a única organização terrorista que atuava na época o fazia na faixa sob controle internacional, e não no Iraque dominado por Saddam Hussein. Estamos de acordo que ele foi um genocida e que foi julgado. Mas não estou de acordo com a pena de morte. E por isso não concordo com essa condenação. Mas houve um julgamento perante o qual ele respondeu. Porém, todas as conseqüências negativas dessa ação militar precisam ser postas na balança da justiça em algum momento.

Lillian Witte Fibe: Carmen, vamos a mais uma pergunta de telespectador, por favor.

Carmen Amorin: Sim. Uma pergunta de caráter pessoal, aqui, do Jorge Oliveira, de São Paulo. Ele pergunta: “Alguma vez o senhor já sentiu, realmente, que a ameaça de morte fosse verdadeira a ponto de mudar rotinas da sua vida? O que isso interfere na sua vida fora dos tribunais?”.

Baltasar Garzón: A segurança e eu somos dois velhos aliados. Porque vivo há mais de vinte anos com segurança permanente. O que altera a sua vida familiar e vida pessoal... todo o sistema familiar está afetado por essas medidas de segurança. Não sou nem a favor nem contra, são os responsáveis pela segurança do Estado que precisam avaliar esse cuidado. Eu faço o que faço porque acredito no que tenho que fazer voluntariamente e, portanto, faria exatamente igual, com segurança ou sem segurança. Tenho recebido ameaças verdadeiras por parte de pessoas dos aparatos do Estado que foram investigadas por ações contra terroristas, assim como por parte dos terroristas, ex-militares argentinos e chilenos, narcotraficantes. Uma história curiosa foi a de um poderoso chefe do tráfico de heroína na Turquia, que, durante mais de seis meses, mandava uma frase dedicada a mim em todos os seus envios de heroína para a Espanha, porque eu tinha desbaratado a sua organização. Quero dizer que as ameaças podem vir de qualquer lado. Mas, concretamente, houve um plano de atentado com disparos a partir de um edifício próximo ao meu escritório, na Audiência Nacional. Mas isso faz parte do trabalho. Estou onde estou porque quero. Acredito que o juiz é um servidor público que deve atuar em defesa da legalidade e servir os cidadãos. É um compromisso pessoal que outros companheiros também fizeram e que perderam a vida dentro da minha organização. Como a promotora do meu tribunal e amiga, Carmen Tagle, que foi assassinada pelo ETA em 12 de setembro de 1989, e alguns juízes que foram alvo de atentados com bomba, e outros companheiros que morreram. Mas cada um de nós assumiu esse risco, e temos que continuar trabalhando

Lillian Witte Fibe: Doutor Wálter.

Wálter Maierovitch: O senhor exerceu, e muito bem, uma função de contraste ao fenômeno das drogas na Espanha, como secretário de Estado. Todos nós sabemos que a Espanha tem altíssimo consumo de drogas, assim como o Brasil. E tem também aquelas atividades mafiosas em rede. E na Espanha, nós temos muita cocaína colombiana. Pois bem, o senhor escreveu um livro muito interessante, com todo o seu brilho, que esse livro tem... na realidade, o título é uma pergunta. Eu gostaria de lembrar o título desse livro, mas lhe enviar essa pergunta, que é o título do seu livro. O seu livro tem a seguinte pergunta como título: “E se meu filho se droga?”.

Baltasar Garzón: É um livro escrito por uma jornalista que colabora comigo e outras pessoas num movimento em benefício da iniciativa Proyecto Hombre, que é uma organização de reabilitação e prevenção da drogadição. Desde 1993, realizamos uma partida de futebol anual contra as drogas, em que envolvemos todos os clubes da primeira divisão da categoria máximo da Espanha. E todos os fundos arrecadados vão para essa organização. E criamos diversos centros de reabilitação e prevenção. Esse livro é um pouco esse resumo. E no prólogo eu fiz uma reflexão sobre os aspectos da prevenção e da educação sobre a saúde pública, espaços de saúde, e como a repressão exagerada do crime de narcotráfico tem se revelado insuficiente e, às vezes, até mesmo inadequada para a erradicação do fenômeno. É um fenômeno muito mais complexo, um fenômeno de educação, de controle da demanda, e não tanto de como sempre foi feito o controle da oferta, através de ações absolutamente sofisticadas que monitoram todas as coordenadas possíveis do Caribe. Eu me lembro que fui convidado em 1993, quando era secretário de Estado, para visitar instalações nos Estados Unidos, e estive em Key West, que é o comando sul do Caribe, e vi todas as instalações que me pareciam ser da Guerra das Estrelas [alusão aos filmes da série Guerra nas Estrelas, escrita por George Lucas, que se passa no espaço e é caracterizado por seus efeitos especiais]. E, no final, perguntei ao general chefe do centro quanta cocaína entra nos Estados Unidos? E ele me respondeu que detectavam apenas cerca de 20%. Ou seja, isso nos dá uma idéia do volume desse tráfico e da ineficiência desse sistema repressivo. Então, a resposta à pergunta seria um sistema educativo, um sistema de prevenção e uma repressão seletiva de algumas das condutas.

Lillian Witte Fibe: Temos tempo ainda para uma rápida pergunta do Carlos Marchi.

Carlos Marchi: O senhor está investigando em sua corte algum caso dos direitos humanos do Brasil? Se sim, como está o andamento dessa investigação? Se não, por que não?

Baltasar Garzón: Não. E a razão é bem clara. Nenhum caso sobre o Brasil foi apresentado ou promovido. É verdade que alguns cidadãos brasileiros aparecem como vítimas dentro da Operação Condor. Mas a investigação é diferente, focada nos possíveis responsáveis chilenos da Operação Condor, apesar de vítimas serem brasileiras. A resposta a essa pergunta deveria vir das próprias autoridades brasileiras. E acredito que não temos que discutir a questão da anistia em relação a esse tema, porque é um tema de estrita cooperação jurídica ou judicial internacional. Portanto, a resposta à petição deveria ocorrer se atualizarmos ou se forem atualizados os pedidos para essa cooperação. Porém, até hoje não houve nenhuma demanda ou denúncia para investigar crimes ocorridos durante a repressão ou ditadura no Brasil e de autores brasileiros. Gostaria de deixar bem claro que a justiça penal, com base no princípio de justiça penal universal, que pode ser aplicada por outro Estado, não é uma justiça de substituição. Trata-se de uma justiça residual, complementar, como o último baluarte para que a impunidade não ocorra. Isso implica que pode e deve haver uma ação interna. E posso lhe dar como exemplo atual o fato de que na Espanha temos diversas investigações sobre casos diferentes, como, por exemplo, o caso Guatemala, o caso do Tibete contra as autoridades chinesas, o do Falun Gong, também contra as autoridades chinesas e o do Saara Espanhol em relação às autoridades marroquinas. Nesses últimos casos, e em particular este último, o que foi feito é perguntar às autoridades marroquinas se estão fazendo algo a respeito, como foi feito com as autoridades argentinas. No momento em que a Argentina começou a investigar através de seus juízes e promotores, o que a justiça espanhola fez foi colaborar, contribuindo com os elementos que dispunha. Em conclusão, trata-se definitivamente de que não haja mais impunidade, que possamos fechar a porta para a impunidade nesses tipos de crimes que têm a natureza de crimes hediondos e de crimes internacionais.

Lillian Witte Fibe: Doutor Baltasar Garzón, muito obrigada pela sua presença hoje aqui, no nosso Roda Viva. Gente, obrigada a vocês, nossos entrevistadores. Obrigada, Carmem. Obrigada, Caruso. O Roda Viva volta na semana que vem, e quero agradecer especialmente à presença sua, a presença aqui com a gente do nosso telespectador. Na segunda-feira que vem a gente volta. Até lá.

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