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Memória Roda Viva

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Roberto Freire

24/5/2004

O líder do PPS, embora da base de sustentação do primeiro governo Lula, apresenta nesta entrevista muitas críticas ao poder executivo federal

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[programa ao vivo]

Paulo Markun: Boa noite. Ele faz parte da base de sustentação do governo federal, mas não fica quieto quando o presidente Lula toma uma decisão, a seu ver, equivocada. Deixa sempre claro que o seu partido está no governo, mas que isso não significa abrir mão de críticas necessárias e coerentes com a linha do PPS, um partido que, para ele, é formulador e propositivo. Agora está empenhado em levar à Presidência da República propostas para o desenvolvimento do país, reunindo vários setores da sociedade com alternativas que permitam a criação de empregos, o combate às injustiças sociais e a consolidação da democracia no Brasil. É o que o PPS está chamando de um amplo acordo para sair da crise. Esta noite o Roda Viva entrevista o deputado federal Roberto Freire, presidente nacional do Partido Popular Socialista. Antes da entrevista, vamos saber um pouco mais da vida de uma das principais lideranças políticas do país.

[inserção de vídeo]

Narração de Valéria Grillo: Pernambucano de Recife, Roberto Freire nasceu no dia 20 de abril de 1942. É advogado formado pela Faculdade de Direito do Recife. Desde jovem, participava dos movimentos sociais e políticos. Foi do Partido Comunista Brasileiro; em 1972, candidatou-se à prefeitura de Olinda, pelo Movimento Democrático Brasileiro. Seis anos depois, já era líder do então MDB na Assembléia Legislativa de Pernambuco. Em seguida, foi eleito deputado federal. Foi líder do PCB na Assembléia Nacional Constituinte, que fez a atual Constituição do país. Nas eleições de 89, foi candidato do Partido Comunista Brasileiro à Presidência da República. Em 93 e 94, já como um dos fundadores do Partido Popular Socialista, o PPS, foi líder do governo Itamar Franco na Câmara dos Deputados; depois, foi eleito senador por Pernambuco. Em 96, disputou a eleição à prefeitura do Recife. Nas eleições presidenciais de 98, foi o vice na chapa de Ciro Gomes. Em 2002, foi eleito deputado federal e, ao mesmo tempo, foi o grande articulador da candidatura de Ciro Gomes à Presidência da República.

[fim do vídeo]

Paulo Markun: Para entrevistar o deputado Roberto Freire, nós convidamos Germano de Oliveira, chefe da sucursal de São Paulo do jornal O Globo; Kennedy Alencar, repórter especial do jornal Folha de S.Paulo; João Domingos, coordenador da sucursal de Brasília do jornal O Estado de S. Paulo; Luiz Rila, editor da sucursal de Brasília da revista Época; Luciano Suassuna, diretor de redação da revista IstoÉ Gente; e Rui Nogueira, diretor da sucursal de Brasília do site da revista Primeira Leitura. O Roda Viva é transmitido em rede nacional pela rede pública de televisão para todos os estado brasileiros e para Brasília também. Boa noite, deputado.

Roberto Freire: Boa noite.

Paulo Markun: O seu partido vai discutir ou está discutindo um documento que é apresentado como uma espécie de proposta econômica alternativa à proposta do governo Lula. O que consta desse documento e quando ele vai estar efetivo e viável para ser...?

Roberto Freire: Bom, primeiro, o partido tem uma posição crítica em relação à política econômica que vem sendo adotada pelo governo Lula desde o governo Fernando Henrique Cardoso.

Paulo Markun: Aliás, o governo Lula também tinha [críticas à política econômica] do governo Fernando Henrique...

Roberto Freire: Por isso mesmo que, no segundo turno, nós apoiamos o Lula, que imaginávamos que iria mudar essa política macroeconômica, [mas] não mudou. E aí a posição nossa é uma posição crítica e interessante porque ela foi feita em junho de 2003, quando o governo estava no auge da popularidade e ninguém mais ou menos contestava. Admitia que a coisa ia bem, ou imaginava que, em algum momento, poderia ter alguma correção de rumo, mas ali em junho a gente já dizia que aquilo que foi prudente quando da posse, em função da crise cambial, do surto inflacionário, da necessidade de demonstrar que o governo deveria ter o respeito, porque era um governo sério e não iria fazer nenhuma ruptura, aquela prudência, em junho já começava a ficar demonstrado que era uma adesão [à política econômica anterior]. Bastava ver a equipe econômica e quem formula, seja na secretaria econômica, seja no Tesouro, seja no Banco Central. Os formuladores tinham uma mesma concepção, mesma visão econômica, uma mesma cultura de economia, que é continuidade a essa ortodoxia; não tinha por que vislumbrar-se que isso iria mudar. Então, nós ali tínhamos alertado, e olha que ali, quando apontamos, o acordo com o Fundo Monetário estava iniciando a discussão. Aquilo que poderia ser revisto nos próprios termos do acordo com o Fundo Monetário poderia ali o governo brasileiro, e naquele momento tinha força política interna, tinha até respeito internacional para discutir mudanças que eram fundamentais ali, até para se aproveitar o bom momento que existia na economia mundial.

João Domingos: Mas, deputado, o senhor está dizendo que, no segundo turno, o PPS apoiou o governo Lula porque o candidato Lula era contrário à política econômica do Fernando Henrique...

Roberto Freire: [interrompendo] Não... um dos aspectos, claro.

João Domingos: Acontece que esse documento que os senhores estão fazendo aí, que vai ser entregue ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tem colaboração de tucanos, como o [engenheiro e economista] Luiz Carlos Mendonça de Barros [que foi presidente do BNDES entre 1995-1998 e ministro das Comunicações em 1998]. Isso quer dizer o quê, que vocês estão considerando que o governo Lula está mais conservador que o governo Fernando Henrique?

Roberto Freire: Não, tem também alguns petistas que estão ajudando.

João Domingos: Quem são os petistas que estão ajudando?

Roberto Freire: Por exemplo, o [economista] Ricardo Carneiro... evidentemente que eu analiso sempre o que ele está escrevendo, o que ele está dizendo e levo em consideração quando estamos elaborando. Tem o [economista Paulo] Nogueira Batista, que também é alguém que informa análises críticas, e tem mais.

[...]: Mas o Paulo Nogueira não é mais do PT faz tempo.

Roberto Freire: Sim, mas eu estou querendo dizer que eu estou ouvindo todos. Acho que é importante, por exemplo, e eu não pude ouvir porque não tive oportunidade, mas seria bom inclusive conversar com o José Serra [PSDB-SP], até para que ele também pudesse ajudar a formular a sua crítica e eu aceitar ou não. Até porque o PPS não tem esse problema de ser tucano ou petista, até porque o documento será do PPS, para não se ficar pensando que vai ser de alguém que possa ter conversado comigo, alguém que se julgue autor de algumas das idéias, mas a partir do momento que sair o documento, o documento é do PPS e acabou.

Germano de Oliveira: Esse documento é basicamente o que vocês concluíram em um congresso [XIV Congresso Nacional do PPS] que vocês realizaram recentemente em São Paulo, Mudar o Brasil é Possível [documento elaborado a partir deste congresso], não é? Eu tenho até cópia aqui. Basicamente, os senhores pedem juros menores, o fim de acordos com o FMI... Eu só queria saber o seguinte: esse documento em que vocês formularão as suas propostas vai ser mais um documento como o PL já soltou, como um monte de gente... o próprio PT já soltou, e vai ficar só por isso, ou se o governo não atender às suas propostas vocês deixam a base aliada?

Roberto Freire: Você está me perguntando se eu vou dar algum ultimato. Não, isso não se faz, é uma relação respeitosa com o governo. Eu vou apresentar nossas sugestões, e não é que o governo tenha que aceitar e, se não aceitar, eu vou embora. Eu acredito que é mais uma contribuição de vários outros, a única coisa que tem que ficar clara é que tem que ter um tratamento respeitoso. Não se pode tratar, até porque não vamos admitir que se trate, por exemplo, como trataram algumas lideranças do PL. Ao invés de estar discutindo o que um líder do PL disse ou não disse, se foi agressivo ou não foi, se o vice-presidente estava bem naquela postura ou não estava, é importante saber e discutir o conteúdo do documento.

Kennedy Alencar: Mas todas essas alternativas até agora apresentadas ao governo caíram no vazio. O Lula tem dado reiteradas amostras de que ele não vai mudar esse rumo econômico. Então, o senhor, que é um político vivido, inteligente, deve estar prevendo o próximo movimento, ou seja, vocês vão apresentar um documento cujo destino é provavelmente cair no vazio.

Roberto Freire: Não... então nós estamos discutindo algo metafísico. Nós temos que discutir a realidade política do país. Você não queira interpretar hoje como fosse o ano de 2003, a lua-de-mel com o governo do PT.

Kennedy Alencar: O que o senhor quer mudar, então? O que tem que ser mudado?

Roberto Freire: Não tem muita margem de manobra; todos são acordes nisso, até porque o processo de integração internacional, da globalização, tem muito pouco espaço para o chamado Estado nacional estar definindo políticas econômicas.

Paulo Markun: Ainda mais se deve o que o nosso Estado deve.

Roberto Freire: Sim, mas isso é um processo que você tem que enfrentar e são exatamente alguns dos estrangulamentos, esse é um deles, que você tem que enfrentar. Por exemplo, a margem de manobra é pequena, é verdade, mas eu quero saber por que é que nós não temos, e hoje parece que até o governo começa a falar isso... mas nós queremos que comece a agir. Não é possível você ficar imaginando... em lugar nenhum do mundo você teve meta inflacionária e pura e simplesmente importa-se, estamos ou não dentro dessa meta. Não levam em consideração nenhuma outra variável da economia que corresponda muito mais às pessoas humanas que aqui vivem, as pessoas físicas que aqui no Brasil trabalham e que estão buscando emprego, que estão buscando aumentar a sua renda, porque foi comprimida nesses últimos anos...

Kennedy Alencar: Como é que você vai atingir isso? Você quer aumentar a meta de inflação, por exemplo? Diminuir o superávit primário?

Roberto Freire: Isso pode ser discutido, e daí?

Kennedy Alencar: Mas é isso que o documento defende?

Roberto Freire: Não sei se diminuindo o superávit primário... mas, por exemplo, eu tenho que começar a discutir, inclusive uma cultura que ainda não chegou aqui, mas vou antecipar: quando se propõe qualquer mudança, [dizem que] isso pode ser um golpe populista, vamos correr o risco, ou seja, temos uma cultura de que qualquer alternativa que se apresente aí é populismo. Sabe o que é populismo? Populismo é uma política de cesta básica, de política compensatória, de programas assistencialistas, isso é que pode gerar populismo. Uma outra política econômica não, necessariamente não será populista.

Kennedy Alencar: Mas o que é o senhor muda nela, deputado, o que no detalhe muda?

Roberto Freire: Vamos, por exemplo, [dizer] o que pode mudar. Você tem na política cambial, você pode ter uma política de que esse é um caminho, e que tem sustentado minimamente este país para não ir para um buraco mais profundo, que são as exportações e o nosso agronegócio. Isso pode ser incentivado, até porque ele pode gerar superávits, que são importantes até para enfrentar o Fundo Monetário com a cabeça um pouco mais erguida. Se eu tiver um superávit maior, a nossa balança comercial... ou seja, com isso eu posso incentivar a exportação, posso ter uma política cambial diversa da que hoje no Brasil se pratica, por quê? Porque isso interessa, e você faz até disso marketing de que vamos bem se houver uma valorização cambial.

João Domingos: Mas o agronegócio já é muito incentivado no governo Lula. Quem o ataca é o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra] [...].

Roberto Freire: Espere aí, por favor, aí você está me ajudando. É muito incentivado por uma banda do governo, porque uma outra banda diz até que isso é questão de satã, numa visão meio religiosa de que... até uma utopia regressiva de que a gente tem que se preocupar apenas com o mercado interno, como se voltássemos ao feudalismo. A Via Campesina, que é em grande parte a concepção ideológica que está nas maiores lideranças do MST, é contrária ao agronegócio.

João Domingos: A CPT [Comissão Pastoral da Terra] também.

Roberto Freire: Sim, mas isso está dentro do governo. Ou não está? Isso tem inclusive atrapalhado o governo – repare, são coisas que eu estou dizendo e não é de hoje –, tem atrapalhado o governo numa discussão concreta do incentivo às inovações tecnológicas para essa área, que foram fundamentais para trazer o Brasil para o que ele é hoje. E aí nós tivemos problemas com o quê? Com toda uma discussão em que a Embrapa foi, senão sucateada, paralisada, gerou uma inércia. A questão da biossegurança, a questão dos transgênicos, então toda a questão de inovação tecnológica ficou mais ou menos contestada.

João Domingos: O senhor não acha que a partidarização atrapalhou a Embrapa também?

Roberto Freire: Não é partidarização, isso é coisa mais grave, é uma certa ambigüidade de que os grupos de trabalho interministeriais são a representação concreta, ou seja, não se decide, então vai para um grupo ministerial e fica um debate, que é muito bom quando você prepara um governo, mas governar com isso gera inércia...

João Domingos: O senhor está dizendo que há grupos de trabalho em excesso do governo, para tudo se cria um grupo de trabalho?

Roberto Freire: [...] porque grupo de trabalho é bom. Ele cria porque é uma forma de ele adiar uma decisão que ele não toma por causa de suas contradições. Essa é uma discussão que eu acho que é importante [...] temos tempo até para discutir. Não adianta dizer que um governo pode estar convivendo... e eu não quero saber o que o governo vai fazer como opção, eu saberia o que fazer como opção, mas o governo tem que decidir, ele não pode estar convivendo ao mesmo tempo com alguém que acha que a grande propriedade, mesmo que ela seja altamente produtiva, que gere o que está gerando no país, uma atividade econômica dinâmica... que é dinâmica não apenas na exportação, é dinâmica no mercado interno também, porque isso significa um incentivo [...] um crescimento de equipamentos, maquinários voltados para a agricultura. Esse processo... gerando a necessidade de o governo enfrentar os problemas de infra-estrutura, seja rodoviária ou portuária, a logística para exportação. Então, esse processo não pode estar convivendo num o governo com aqueles que satanizam essa atividade e que geram problemas para o seu desenvolvimento. E tem mais, da parte do governo, a convivência com o movimento dos sem-terra [refere-se ao MST], que tem que ser uma convivência democrática, também não tem que criminalizar esse movimento, mas tem que ter limites, que são limites legais, limites constitucionais e limites de uma opção que eu tenho que fazer de que investimentos no campo é uma coisa importante.

Luciano Suassuna: Você acha que o MST passou dos limites este ano, ou neste governo?

Roberto Freire: Não, eu acho que o governo não impôs o limite, até porque o MST está na sua atividade.

Kennedy Alencar: Está faltando autoridade ao presidente? É isso que o senhor está dizendo?

Roberto Freire: Não é autoridade, faltou ao governo impor qual era o limite. Por exemplo, você tinha uma medida provisória que, bem ou mal, indicava que o processo de reforma agrária é por uma definição do governo, e o governo dizia: invadir ou ocupar propriedade, isso não ajuda a reforma agrária. Ele até pode fazer, mas eu tinha como meta que eu tenho que organizar esse processo. No momento em que eu digo que não vou respeitar esse processo de que, ocupada a terra, ela fica guardada, mas eu vou dar prioridade àquilo que eu defino como importante no processo, e não porque foi ocupada, eu até a congelo...

Kennedy Alencar: [interrompendo] [A posição do governo deveria ser] Terra ocupada eu não vou desapropriar, é isso? Não ajo sob pressão.

Roberto Freire: Claro, até porque a pressão é democrática, mas o governo tem que saber reagir a isso. E eu acho que o governo, num momento em que, no Ministério da Reforma Agrária, permitiu que isso poderia ser feito, eu não vou ficar aqui criminalizando o movimento sem-terra...

João Domingos: O senhor não acha que o grande problema é porque o governo cooptou as lideranças do MST e botou as lideranças do MST no governo, quer dizer, nesse momento, descaracterizou o movimento social? Porque o MST, como movimento social, é uma coisa, mas ele não pode estar dentro do governo. No momento em que se dá a direção do Incra para o MST, você também está cooptando o movimento social, você arrisca acabar com ele.

Roberto Freire: Mas nós estamos discutindo aqui exatamente até se o movimento dos sem-terra extrapolou, então não foi cooptado.

João Domingos: Mas no momento em que deu para ele cargos de direção, você está cooptando.

Roberto Freire: Mas dentro do governo [...] o presidente da República sofre esse tipo de injunção. Há setores que acham que há uma extrapolação. Então é isso que eu estou querendo dizer: faltou no governo, e falta em alguns aspectos... quando se fala da gestão, gestão, a dificuldade não é a incapacidade individual, não é isso, até porque você tem evidentemente capacidades individuais. O que você tem dificuldades... por exemplo, será que nós vamos chegar agora, no final do ano, e vamos ter que tratar de novo de uma safra em que se usam organismos geneticamente modificados, no caso da soja, e vamos ter que renovar uma medida provisória, por quê? Porque não tivemos uma lei para tratar disso?

Luciano Suassuna: Isso vai ter que ser feito...

Roberto Freire: Sim, mas há quanto tempo o governo está aí? Começou errado, até porque já tínhamos uma lei. O que nós temos de dificuldade com a soja, no caso a soja da Monsanto [indústria multinacional de agricultura e biotecnologia], era porque você tinha uma liminar da Justiça. A questão estava sendo discutida na Justiça; a lei você tinha. E é bom que se frise: uma lei que não veio do executivo. A Lei de Biossegurança, que trata dessa questão dos organismos geneticamente modificados, é de iniciativa do atual senador Marco Maciel e foi relatada na Câmara dos Deputados, e foi dessa forma que foi aprovada pelo companheiro, grande brasileiro, falecido, Sérgio Arouca [(1941-2003) médico sanitarista e político]. E é uma lei que serviu de referencial para vários países do mundo quando tratam dessa questão, fomos até uma certa vanguarda nesse debate [...]. O que estava em julgamento era o uso desse organismo geneticamente modificado, a soja da Monsanto, eu não sei direito como dizer essa questão, mas essa que tinha sido liberada pela CTNBio, e foi contestada na Justiça e foi concedida uma liminar, suspendeu-se o plantio. Então, era uma questão que estava sub judice, mas tinha uma legislação que tratava e tratava bem. Aí, isso foi tudo levado de roldão por conta da disputa de que queriam mudar essa lei, porque era uma lei que estava caminhando, inclusive para o Brasil ser moderno a ponto de também interpretar a questão das células-tronco, do problema do uso de embriões, toda uma discussão fundamental para o mundo futuro. Ou seja, nós estávamos avançando e tivemos um problema pela ambigüidade dentro governo de posições antagônicas, inclusive de movimentos que dizem que o Brasil tem que ser um país livre de transgênicos.

Kennedy Alencar: Como é que se resolve esse antagonismo, essa crise de paralisia? Pelas palavras do senhor, o senhor está dizendo que tem confusão administrativa no governo, tem paralisia, tem assembleísmo, o senhor também diz que quer mudar algumas coisas na política econômica, mas não está claro o que o senhor quer mudar. O que tem que mudar na política econômica para este governo ser diferente do que o senhor está dizendo?

Roberto Freire: Eu falei do problema de uma desvalorização cambial.

Kennedy Alencar: Mas o que o senhor defende? O senhor defende aumentar o dólar, deixar um valor ainda mais alto para o dólar?

Roberto Freire: Sim, porque o que foi que aconteceu...

Kennedy Alencar: Mas provoca inflação.

Roberto Freire: Não, espere aí, depende, depende. Está agora a 3,20 [reais um dólar] e não está provocando inflação, por favor.

Kennedy Alencar: Mas o senhor defende, então? O dólar está barato a 3,20?

Roberto Freire: Não, deixe-me explicar. Tem um problema que, sem nenhuma justificativa, no Brasil se fez [...] de fé de que era fundamental se discutir o risco Brasil [risco-país], que é uma J.P. Morgan que diz que pode estar especulando ou não, e então isso passa a ser um paradigma fundamental, para se dizer: “O risco Brasil diminuiu”. É algo importante do ponto de vista do mercado financeiro dos nossos títulos, mas evidentemente não pode ser interpretado por ninguém como uma questão básica da economia brasileira. Essa é uma variável que deve ser levada em consideração...

[...]: E a inflação?

Roberto Freire: A inflação não tem nada com isso, por favor...

Kennedy Alencar: Tem um pouco, deputado, uma valorização excessiva do dólar tem impacto no...

Roberto Freire: Eu quero discutir com você que eu tenho que saber no Brasil se eu vou estar preocupado apenas com a meta da inflação [...], mas o PPS não está só preocupado com isso, está preocupado com a taxa de desemprego, com a diminuição da renda neste país, com a falta de perspectiva de crescimento. Então, eu tenho que ter políticas que possam orientar ou corrigir rumos...

[...]: Ainda que haja um pouco mais de inflação?

Kennedy Alencar: O problema é como fazer para resolver esses problemas. O Lula está preocupado com a taxa de desemprego? Deve estar, mas como é que resolve? O que o senhor propõe para resolver?

Roberto Freire: O problema não é de intenção, eu estou querendo propor concretamente ações políticas. Não adianta dizer que eu, por exemplo, como o Lula disse, “Olha, eu me emocionei, fiquei constrangido, porque só pude dar 260 [reais] de salário mínimo”. Olha, a sociedade pode até olhar para ele e dizer: “Que pena”, mas o que a sociedade precisa é de um presidente que saiba que isso pode ser um dos bons instrumentos para distribuir renda. É mais importante, talvez, você destinar recursos para garantir um salário mínimo maior, inclusive para os nossos aposentados, do que estar distribuindo 50 reais para Guaribas [município do Piauí considerado o mais pobre do país]. Isso é populismo...

[...]: [interrompendo] O PPS defende quando para o salário mínimo?

Roberto Freire: ...isso é populismo. E quem está falando é um nordestino que sabe que esse populismo foi utilizado durante toda a nossa existência como República e não resolveu nenhum problema. Sabe por quê? Porque você não dá 50 reais a nenhuma Guaribas desse sul do país. São poucos os bolsões de miséria. Como nós temos muitos bolsões de miséria, os 50 reais, sabe o que vão fazer? Perpetuar a miséria, porque é isso que acontece. Então, nesse sentido é que eu digo, em vez de gastar nisso, talvez fosse muito mais importante dar um bom salário mínimo, isso [...] aposentadorias rurais e esse foi um grande programa social deste país de inclusão, talvez você pudesse estar melhorando a economia, dando mais renda e, talvez, melhorando inclusive a atividade econômica.

Paulo Markun: Nós vamos fazer um rápido intervalo e voltamos em instantes.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o presidente nacional do Partido Popular Socialista, o deputado Roberto Freire. Deputado, para provocar um pouco mais, eu vou ler duas perguntas de telespectadores, mas com a seguinte observação: eu acho que o discurso que você faz é extremamente pertinente, o que está difícil de entender para os telespectadores é como que se faz esse discurso e, ao mesmo tempo, continua sendo da base do governo. O Antônio Carlos Matias, de Pereira Barreto, em São Paulo, pergunta o seguinte: “Quem fala pelo PPS? O senhor, como presidente do partido, ou o ministro do governo Lula, Ciro Gomes?”.

Roberto Freire: Essa é fácil de responder. Quem fala pelo PPS sou eu, e ele pode falar e tem falado muito pelo governo.

Paulo Markun: O Luiz Caldeira, do Rio de Janeiro, que é consultor, pergunta se o ministro Ciro Gomes concorda com as suas opiniões e com a sua proposta de política econômica.

Roberto Freire: Olha, não sei se chegaremos a tanto, mas se a gente der seguimento ao que o nosso candidato a presidente disse em campanha, a gente poderia ser muito mais contundente na mudança dessa política econômica.

Kennedy Alencar: [...] Antonio Palocci Filho, do Ministério da Fazenda, é um dos signatários do documento Agenda perdida [produzida em 2002 por 17 importantes economistas brasileiros, liderados por José Alexandre Scheinkman, com a finalidade de oferecer idéias para serem aplicadas na política econômica brasileira]…

Roberto Freire: Que nós do PPS não aceitamos.

Kennedy Alencar: Mas o candidato do senhor tirou muitas idéias daquele documento. O Ciro Gomes está participando da confecção desse documento? Já foi ouvido ou não?

Roberto Freire: Não, se ele…

Kennedy Alencar: Como é que o senhor faz um documento do PPS e não ouve o Ciro Gomes?

Roberto Freire: Mas ele é da executiva; a executiva é que vai... não sou eu que estou fazendo sozinho.

Kennedy Alencar: Mas ele não foi ouvido até agora.

[sobreposição de vozes]

Roberto Freire: Muitos, por exemplo, vários companheiros da executiva, Miro Teixeira, que é vice-presidente como ele, a senadora Patrícia Saboya também ainda não foi ouvida, [mas] será ouvida, isso não vai sair com eu assinando. Saiu, eu assinando, em junho de 2003, agora será do PPS.

Kennedy Alencar: Sai quando?

Roberto Freire: Esse é o problema, nós não podemos dar publicidade a isso sem antes entregarmos para o presidente da República, vamos aguardar. Nós podemos discutir aqui idéias gerais, agora o documento vai ser elaborado, mas tem que aguardar quando o Lula marcar. Porque também tem uma coisa, nós queremos entregar esse documento ao Lula, não ao oficial de gabinete.

Rui Nogueira: O senhor já disse, até para encaixar nesse segmento de perguntas, que o PT não tem nem projeto estratégico e o governo Lula não tem programa de governo; o senhor acabou de dizer que, em junho de 2003, quando o presidente estava no auge, já estava criticando o partido; começou o programa dizendo que o senhor achava que o PT ia fazer mudanças, mas não fez nenhuma. Muitas pessoas se perguntam, eleitores do PPS, por que o PPS continua na base do governo. Por quê?

Roberto Freire: Olha, porque seria muito cômodo se a gente fosse fazer essa crítica sem maior responsabilidade. Eu tenho, de qualquer forma, que dizer à sociedade... temos um ministro lá, e a gente não pode simplesmente dizer: vou-me embora. Eu sou presidente de um partido que participou da campanha, alguns setores ainda acham que é possível discutir, porque tem também uma coisa, o problema das contradições que podem existir no governo, tem contradições também na questão da condução da política econômica. Não vamos ficar pensando que lá é tudo homogêneo, que está todo mundo pensando... não, ao contrário.

Kennedy Alencar: Pode haver contradição no debate, mas na execução da política econômica até agora tem prevalecido a linha do Palocci.

Roberto Freire: Mas é evidente, porque se não tivesse prevalecido, talvez eu não estivesse aqui com nenhum discurso crítico. Podia até já estar fazendo muito daquilo que eu estava achando que tinha que fazer, não é verdade? Estou querendo discutir. Claro que lá dentro tem pessoas que começam a duvidar se o país terá bom futuro com essa política. E o que é importante é dizer que ele afirma que não vai mudar, mas o mundo a sua volta, a sua vida, a vida de todos nós, estão colocando para ele pelo menos a possibilidade que ele tem de refletir. O PPS está falando, está todo mundo falando. Isso está para o governo, para o próprio presidente da República, é evidente que são pressões e pressões democráticas. Não vamos ficar... não pode ninguém dizer que está sabotando, até porque não é sabotagem. Essa linguagem é que foi excessiva, porque é muito agressiva. [...] está no Banco Central está sabotando? Foi agressivo isso, descabido, agora, discordar, isso é fundamental para o país, nós estamos em uma democracia.

Luiz Rila: Mas em termos práticos, deputado, o senhor é então a favor de um pouquinho mais de inflação, desde que isso garanta momentaneamente crescimento, emprego? Um pouquinho mais de folga nas metas de inflação, é isso?

Roberto Freire: Não, até porque não precisa, porque a própria meta, quando bem definida, tem uma área de freqüência que você não precisa necessariamente ter uma única meta. Por exemplo, se eu ficar com 5% ou 6% de inflação dentro da meta, um pouquinho acima, se eu posso ir até o limite, mas com isso eu garanto uma certa reativação econômica, se com isso eu garanto uma maior oferta de emprego, eu melhoro renda neste país, é claro que eu tenho que trabalhar com isso. Claro, não é mudar isso, até porque não estamos querendo dar aqui nenhum chute no pau da barraca, nem cavalo-de-pau, não é nada de populismo. Agora, é evidente que nós não estamos com essa política gerando nenhuma perspectiva, e isso é mais grave. Não é apenas um problema de não estarmos gerando emprego agora, não estarmos distribuindo renda, pelo contrário, estamos aí diminuindo a capacidade de consumo da família brasileira, isso é um dado dramático, não é isso aí. É de que não temos, e aí é algo que estamos começando a perceber, e todos os economistas dizem, que não temos nenhuma perspectiva de desenvolvimento sustentado com essa política. Não temos. Isso é algo que pode ter um surto qualquer de um certo crescimento, mas é evidente que, como está se apresentando, não tem nenhuma grande perspectiva de que este país retome o desenvolvimento. Nós vamos ficar com esse crescimento pífio, se tivermos esse crescimento. E não vamos atender a nenhuma das grandes exigências que este país tem que ter.

Luciano Suassuna: Nessa questão econômica, o senhor falou já da desvalorização cambial, que o senhor acha necessário exportar mais, um pouco mais de inflação, desde que dentro da meta, dentro da elasticidade...

Roberto Freire: Um pouco mais de inflação, não. Porque com isso a gente cria um certo problema: vamos aplicar a meta da inflação, sabendo que tem essa margem. Vamos juntar a meta de inflação com metas de crescimento, seja do emprego, seja da renda, seja do crescimento da economia. Por que não colocar isso?

Luciano Suassuna: Eu gostaria que o senhor falasse de três pontos que estão em discussão e sobre os quais o senhor não falou ainda: impostos. O senhor acha que tem impostos demais e que precisariam ser reduzidos? FMI: era preciso acabar com o acordo? E esse superávit: não é elevado demais, 4,25%, para um país que precisa de gasto público para se desenvolver?

Roberto Freire: O problema não é diminuir superávit ou aumentá-lo, não está por aí. O problema é você enfrentar a questão da dívida, esse que é o problema. Até porque se você melhor equacionar a dívida... inclusive em algo que foi feito até no finalzinho do governo Fernando Henrique, em que o [economista] Armínio Fraga [presidente do Banco Central entre 1999-2003] até fez algumas intervenções, alongando o perfil da nossa dívida. Ele fez algumas intervenções aproveitando alguns nichos de mercado... Qual é o nosso drama hoje? É que a vulnerabilidade da economia brasileira, face à perspectiva do aumento da taxa de juros nos Estados Unidos, o problema que a China pode ter uma política de tentar diminuir o ritmo de crescimento da sua economia, são variáveis que estão aí no nosso horizonte. O que isso está provocando? É que, ao invés de ampliarmos o prazo, ou alongarmos o perfil da dívida, continuamos até sofrendo pressão para diminuir, isso é o que está acontecendo.

Kennedy Alencar: [interrompendo] No governo Lula, até agora [...].

Roberto Freire: Sim, só que agora aumentou a pressão para diminuir, e já conseguiram isso, porque senão [a dívida] não está rolando.

Kennedy Alencar: O senhor defende então a renegociação da dívida. É isso?

Roberto Freire: Pronto, por quê? Porque eu não posso ficar ao sabor do mercado. Até porque esse mercado não pode aqui estar determinando nem mesmo a política econômica, muito menos a soberania de um país. Sabe o que está acontecendo...?

Kennedy Alencar: Como se faz a renegociação, deputado, sem explodir o país? Ou seja, avisa aos credores...

Roberto Freire: Olhe, o que eu acho é que você está dentro de uma cultura que só admite essa política, qualquer outra que for...

Kennedy Alencar: Eu estou perguntando para o senhor como é que o senhor vai fazer essa renegociação. Admito a tese do senhor, agora como que você aplica essa renegociação na prática, sem afugentar investimentos?

Roberto Freire: Na prática... O investimento vai ser [...] necessariamente se eu ficar apenas esperando que o mercado resolva. Porque se os Estados Unidos aumentarem a taxa de juros, haverá, evidentemente, um fluxo para ganhos na economia americana e não para compra dos nossos títulos. Vai ter esse problema, já teve. Simplesmente porque [se] anunciou que, como tendência, poderia aumentar a taxa de juros. Não é verdadeiro isso?

Rui Nogueira: O economista [Luiz Gonzaga] Belluzzo defende a renegociação da dívida, de forma evidentemente responsável...

Roberto Freire: Claro, como vários economistas, e qual é o problema? Eu não sou nenhum criminoso de lesa-pátria porque digo isso. Talvez eu possa estar lesando a pátria se continuar com essa política, porque eu vou pagá-la no futuro talvez muito caro. Este país está há pelo menos vinte anos entrando em um processo grave de degradação econômica. Precisamos levar isso em conta. O Brasil vem há vinte anos crescendo a menos de 2% em média, gerando bolsões cada vez maiores de miséria, de pobreza. Isso está atingindo a economia como um todo, vamos ter coragem de dizer isso. Eu pensava que este governo ia ser uma reversão, agora, como realizar isso como mecanismo de política econômica, é evidente que eu vou levar sugestões. Não significa que... se eu fosse o governo, claro, eu tinha que ter aproveitado o momento importante, quando estava no auge da popularidade, para fazer as mudanças. Agora é mais difícil. Inclusive, diminuiu margem de manobra. Teve até nesses últimos dias, o José Dirceu falou de um pacto, um pacto para [enfrentar] uma crise externa... Eu quero dizer que eu fui talvez o único que disse que era correta aquela posição, não é um objetivo restrito de uma crise externa, [mas] um pacto nacional para o crescimento. Vamos começar a discutir, vamos retomar, por exemplo, uma base que deu sustentação ao Lula. Os nossos empresários, os empresários nacionais, e grandes, não são os pequenos, que deram apoio ao Lula e que estão hoje com uma certa decepção, um certo desalento, vamos tentar retomar com eles uma discussão, vamos saber que políticas... Então pacto é isso, não é dizer: olha, você vai ter que dispensar, [...] estabilidade do trabalhador, não ter lucro... Não, não é isso, não. É de uma política que tenha sustentação até para enfrentar uma renegociação. Eu não posso ter um país que vai ficar subalterno a humores de mercado. Esse mito e esse fetiche...

Rui Nogueira: Onde é que o senhor acha que eles perderam? Havia [...] de empresários; o Lula foi eleito com 53 milhões de votos, tinha esse cacife todo; onde foi que eles se perderam? Qual é a gênese dessa perdição? É o passado que pesa muito, as contradições?

João Domingos: Você não acha que ele abandonou esse setor empresarial para se dedicar ao Congresso, por exemplo, e daí a levar a fazer aquela base tão ampla daquele jeito para tentar aprovar as reformas?

Roberto Freire: Aí é uma outra discussão, que a gente pode iniciar depois, mas eu não estou querendo muito, senão daqui a pouco vai virar um programa só crítico. Seria interessante a gente falar um pouco [...], até porque essa base de sustentação, eu acho que o governo cometeu um grave equívoco. E está pagando por isso.

[...]: Qual equívoco?

Roberto Freire: O equívoco de até fazer com que ressurgissem algumas oligarquias que estavam caminhando celeremente para o ostracismo, o que seria bom para o país.

[...]: O senhor pode dar os nomes das oligarquias?

Kennedy Alencar: O [ex-presidente José] Sarney, o [senador] ACM [Antônio Carlos Magalhães], o senhor está se referindo a eles?

Roberto Freire: Não, não vamos personalizar, porque não é uma coisa só. Eu posso dizer a você que eu imaginava que, se chegássemos ao governo, uma discussão séria seria [sobre] um orçamento imperativo e com emendas que fossem programas federais, e começássemos a discutir que as transferências, descentralizando recursos para os estados e municípios, eram para que eles se valessem das suas capacidades em definir suas prioridades, e não vir buscar, com o pires na mão, numa troca que muitas vezes não é benéfica para a democracia e é reprodutora de oligarquias, através das emendas que não significam nenhuma prioridade nacional. E qual é o drama? É que você está com um país fazendo contingenciamento, você está com um país que pratica, pelo menos na execução orçamentária, uma certa austeridade, embora em outros aspectos isso seja completamente esquecido, e ao mesmo tempo você fica liberando emendas por conta dessa base que não tem nenhuma definição do que é prioritário. É um desperdício [...] pulverização...

Luiz Rila: O senhor não vê nada de positivo no governo Lula? Aponte alguma coisa positiva do governo que o seu partido está apoiando.

Roberto Freire: Uma coisa positiva? Por exemplo, a discussão que o PT começou a colocar, inclusive para a esquerda, superando uma interdição em que nós inclusive sofremos muito, em algum tempo até desqualificando: “Não, não é nem de esquerda, é neoliberal”. Por quê? Porque nós falávamos da questão da reforma do Estado. Algo que, bem entendido, a gente vai remontar, por exemplo, a uma reforma que foi feita, e aliás a única reforma do Estado e muito bem feita, porque toda a esquerda dela participou, e que foi um grande programa social deste país: a universalização do sistema de saúde, que precisa de ajustes, mas o Sistema Único de Saúde é um grande avanço, descentralizando, universalizando. Quem é mais velho conhece bem o que significava o atendimento da rede pública de saúde... Era aquele que era de um sindicato, tinha uma carteira assinada e que tinha um instituto. Então, esse desenvolvimento, depois do período ditatorial de privatizações no sistema de saúde...

João Domingos: Mas isso não é do governo Lula, não...

Roberto Freire: Não, não foi do governo Lula, isso é muito anterior ao governo de Fernando [Henrique], de Lula e de tudo mais. É da Constituinte. Mas eu estou falando da reforma do Estado, essa primeira reforma. Então, outras reformas são necessárias e fundamentais. Não é porque algum neoliberal quis, ou é alguém que é contra a esquerda, ou contra as corporações, ou os servidores, não. É porque o mundo é outro.

Luciano Suassuna: Quais reformas são fundamentais?

Roberto Freire: São reformas do Estado. Uma delas, da saúde, foi feita; se você quiser mais, da Previdência é necessária, por conta de toda uma mudança; a reforma administrativa...

Luciano Suassuna: Mas para fazer o que na reforma da Previdência e fazer o que na reforma administrativa?

Roberto Freire: Previdência, a primeira coisa, nós não fizemos... lamentavelmente, o governo iniciou, algo foi feito, mas daqui a pouco vai se reduzir a um ajuste, um ajuste de combate a déficit. Mas você não mudou substancialmente aquilo que era fundamental. Não é tirar direito de ninguém, é saber como eu vou financiar esse direito. E eu não posso pensar em financiá-lo com repartição simples. [Com] isso eu não vou chegar a canto nenhum, pelo contrário, eu vou chegar a estrangulamentos. Eu tinha que começar a pensar no que significa mercado, por exemplo, com os fundos de pensão das estatais brasileiras. É um bom exemplo, mesmo com algumas distorções de mau uso, má gestão desses fundos de pensão, isso é um instrumento importante porque garante direitos dos trabalhadores das nossas estatais, estão lá. E, ao mesmo tempo, são grandes instrumentos de poupança e de investimento. Então, era necessário discutir dessa forma. [Mas] não, recuamos imediatamente e fomos para um ajuste. A reforma tributária, alguém perguntou dos impostos, claro que tem que fazer a reforma. O governo vem agora propondo, discutindo, por exemplo, não cobrar, não mais incidir sobre o salário mínimo contribuição para o INSS, também passar mesmo para os outros uma diminuição [...] entrando no faturamento das empresas, até para dar uma certa maior justiça. Empresa que muito emprega, paga muito INSS, é muito taxada na folha, [ao passo que] aquele que tem intensivo em capital paga pouco, então [é preciso] tentar encontrar essa partilha de faturamento...

Luciano Suassuna: Mas em cada reforma de impostos que tem, parece que há um pacto político para se tirar mais do setor produtivo. Sempre se aumenta imposto e se divide entra várias esferas do poder público...

Roberto Freire: Não, não é isso, não se divide.

Luciano Suassuna: É isso que tem acontecido nos últimos oito anos. A negociação da Cide [Contribuição sobre Intervenção no Domínio Econômico] claramente foi isso. Parece que falta coragem ao Congresso para aprovar impostos menores ou para limitar o aumento.

Roberto Freire: Não é verdade. Olha, essa política macroeconômica necessita de ajustes cada vez maiores porque ela precisa ter arrecadações também cada vez maiores. E tanto é verdade que a União precisa disso até para a sua política, que ele inventa toda uma série de tributos que não são do bolo das transferências constitucionais. É por isso que os estados e municípios estão gritando. Porque, na Constituição, eles têm um percentual e se aplica esse percentual. Só que, com o crescimento da arrecadação que a União tem, cada vez a União tem para si maior volume de recursos e arrecadação e é cada vez menor para os estados e municípios, da arrecadação como um todo. Mas isso é feito porque o ajuste que você tem que ter... cada vez mais receita, você tem que diminuir gastos para exatamente gerar superávit. Essa é a lógica, que não é nova. Infelizmente, o governo continua aplicando...

Luciano Suassuna: [interrompendo] Mas não houve diminuição de gastos. A reforma não passa por diminuição de gastos, é por isso que só passa para mais impostos. Em nenhuma reforma que foi feita passou diminuição de gastos, só aumentaram os gastos.

Roberto Freire: Sim, mas eu não estou aqui dizendo que... A lógica é essa, e o que ele anuncia é isso. Só que criou 32 ministérios...

Luciano Suassuna: Mas parece que falta coragem ao Congresso de falar: “Olha, governo, vamos parar de gastar e vamos diminuir a carga tributária”.

Roberto Freire: Sim, mas toda vez que o governo acena com algum contingenciamento a briga que você tem é o contrário. Porque daí ele está contingenciando emendas de bancada, emendas individuais, e aí começa uma rebelião, porque a relação que o governo fez é a relação mais atrasada, clientelista e fisiológica. E aí vem a pressão e o governo se perde com isso. E o governo tinha tudo – esse que é um dado importante... e aí perdemos uma oportunidade que eu imaginava que iríamos ganhar - de ter uma relação diferenciada com o Congresso, em respeito ao Congresso, começar a cortar um pouco essa necessidade de eu ter base se eu libero emendas ou se eu nomeio...

João Domingos: Mas está assim.

Roberto Freire: Sim, está, e por isso que estamos criticando. E não é nenhuma novidade. Infelizmente, é uma continuidade de uma prática política...

João Domingos: E quem negociava as emendas lá era o Waldomiro Diniz, que acabou entrando...

Roberto Freire: Mas eu não sei ele criou algum problema por conta dessa negociação. Pelo menos não se sabe... [...], financiamentos de campanha, que é uma das coisas boas para este país, financiamento público. Agora, é difícil convencer a sociedade de que isso daí evita, inclusive, esse nível de [...].

Germano de Oliveira: Deputado, nós estamos em um sistema presidencialista, e o presidente disse que não muda, que a política é essa; já disse isso até para membros do PT que queriam mudanças, e disse que não muda, que a política está correta e está no caminho certo, o país vai crescer em breve e tal. É por isso que o seu partido insiste na tese do parlamentarismo? O senhor acha que o presidente, no sistema brasileiro, é incompetente e tem que se resolver com o parlamentarismo, retomar o parlamentarismo?

Roberto Freire: É, eu sou favorável ao parlamentarismo, mas não é por causa disso, até porque o presidente muda.

Germano de Oliveira: Ele disse que não vai mudar essa política que vocês querem mudar agora, como já disse para todos os aliados.

Roberto Freire: Não sei se vai ajudar a mudar alguma coisa, mas já que estamos aqui em São Paulo, o PT municipal não quer mudar a sua chapa, é puro-sangue petista [nas eleições municipais de 2004, o PT lançou a candidatura de Marta Suplicy, tendo Aldo Rebelo (PCdoB) como vice]. Eu acho que depois dessa pesquisa aí, alguém não está lá discutindo que talvez tenha que mudar? Você admite que pode?

Germano de Oliveira: Não sei, o senhor está com um candidato aqui em São Paulo...

Roberto Freire: Não, não, não. Meu candidato está aqui comigo, o Arnaldo Jardim... [O PPS acabou lançando a candidatura de Soninha Francine]. Não é isso, eu estou querendo dizer do PT. Depois dessa pesquisa...

Paulo Markun: O senhor está dizendo que o PT não é [...]?

Roberto Freire: Claro, depois de uma pesquisa dessa, será que não tem ninguém lá... pode até não mudar, mas claro que agora tem gente pensando que pode mudar.

João Domingos: O presidente Lula disse claramente para eles que eles têm que mudar.

Roberto Freire: Não mudou, mas pode começar a mudar, não pode? E não é por causa do Lula, porque o Lula já fez e não mudou. Mas, agora, o que o Lula disse antes face à nova realidade que a pesquisa está indicando, um novo cenário que, com a entrada de Serra [como candidato ao governo municipal], se colocou aqui em São Paulo, isso pode funcionar. Então, o que eu quero dizer é que as taxas de desemprego, o IBGE dizendo que a renda familiar está caindo, então os protestos cada vez maiores, o governo tendo que entrar por porta lateral, todo um quadro político que evidentemente pode, em um determinado momento, [levar a ponderar]: “Olha, vamos sentar e vamos ver o que nós vamos fazer”. O que eu não posso é fugir dessa discussão. E eu acho que ainda a responsabilidade que o PPS tem, tanto que fizemos um congresso e dissemos isso, temos que ser responsáveis e não adianta dizer: “olha, eu não estou gostando da política do governo, vamos embora”. Não, vou tentar lutar lá para tentar falar em nome de quem apoiou o Lula e que não está satisfeito. Até porque eu não tenho outra fórmula de fazer isso. E eles ele não podem fazer nada comigo, porque não podem me expulsar de coisa alguma. Eu não sou do PT, então eu posso dizer, e posso tranqüilamente afirmar a nossa posição...

João Domingos: Podem expulsar o senhor da base.

Roberto Freire: Sim, mas aí eu não tenho também nenhum problema, até porque estamos na base por livre e espontânea vontade. Eu quero aqui afirmar que o ministro está lá por convite do Lula, não foi por pedido do PPS.

Paulo Markun: Deputado, nós vamos fazer um rápido intervalo, e só queria lembrar que o presidente Lula fez toda a sua história no movimento sindical entrando pelas assembléias e sentindo o que os seus associados pensavam para depois ir lá e fazer o discurso, quer dizer, evidentemente que ele acompanha e percebe o que se passa.

Roberto Freire: Pronto, então você está me ajudando [risos].

Paulo Markun: Nós vamos para um rápido intervalo e voltamos já, já.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o presidente nacional do Partido Popular Socialista, deputado Roberto Freire. Canoas Neto, de São Paulo, aqui da capital, pergunta o seguinte: “Dentro da reforma do Estado, está a criação das agências reguladoras. É a principal novidade da máquina pública ocorrida nos últimos anos. Para o senhor, qual é o melhor modelo de agência reguladora para o Brasil?”. Porque o governo Lula mudou significativamente o sistema de operação dessas agências.

Roberto Freire: É, num primeiro momento... o que ele está dizendo é um dado importante para a compreensão de qual é o novo Estado. Você não pode imaginar uma sociedade onde as mudanças são profundas, eu diria até revolucionárias, usando uma certa concepção marxista, marxista que sou, você tem um modo de produção hoje completamente diverso, e mudando de forma acelerada, onde as inovações tecnológicas têm um papel fundamental, o conhecimento é hoje, talvez, a grande alavancagem econômica do mundo no futuro, tudo isso. Essa mudança, evidentemente que está mudando relações de trabalho, relações sociais, mudando as instituições, e daí crise dos sindicatos tradicionais, crise da indústria tradicional. Isso, todos nós estamos vendo, o mundo do futuro que está se apresentando. E o Estado, iria continuar com sua mesma estrutura que tinha quando no auge da sociedade industrial, ou ele terá que se adaptar até para poder ter um papel ativo, seja de regulação, seja de intervenção, fiscalização e controle dessa sociedade, como forma organizada de uma sociedade que muda? Então, o Estado tem que mudar. A reforma do Estado não é uma invenção de alguma mente maquiavélica neoliberal, não, os neoliberais aproveitaram a experiência derrotada do socialismo real para afirmar a sua capacidade de fazer o Estado à sua imagem e semelhança, ao seu interesse: Estado mínimo ou qualquer outra coisa. Essa disputa, a esquerda no mundo começou a fazer, participou desse debate. No Brasil, essa discussão foi interditada. Por quê? Porque o PT preferia se opor a toda e qualquer reforma, e até à sua discussão, para garantir velhas concepções. Não é que dentro do PT não tivesse a nova... ou a tentativa de entender a mudança. Mas o PT, hegemonicamente, tentava sustentar a oposição. E era oposição independente da ênfase, juntava tudo. No governo, tem que enfrentar a dura realidade. Então, você tem lá aqueles que até imaginavam um processo de reestatização da economia; tem aqueles que querem entender o que é a agência reguladora, que não é apenas uma agência que vai tratar dos setores privatizados, porque num primeiro momento havia esse idéia. Mas é que essas agências podem começar a ser, pela sua capacidade de maior flexibilização, de maior intervenção, da sua agilidade, elas também podem ser em atividades que são típicas do Estado. O Brasil está experimentando essa nova estrutura estatal para os dois setores, não apenas para o setor privatizado, mas o setor típico do Estado. A Anvisa é um exemplo disso, que é típico de Estado e que foi criada a agência para dar uma maior agilidade. Tem as outras das telecomunicações, que são de setores privatizados. Então, esse quadro é um quadro que, dentro do governo e dentro do PT, gera debates. Num primeiro momento, eu me recordo que algumas inovações iriam ser colocadas interessantes, do ombudsman, uma maior participação dos conselhos, mais efetiva participação. Mas depois se começou a ter receio de que houvesse uma tentativa de manietá-la e voltar ao velho sistema do ministério. Vamos lembrar, por exemplo, a primeira agência, no primeiro setor privatizado de comunicações. Eu me lembro que o Sérgio Motta [(1940-1998) ministro das Comunicações entre 1995-1998] dizia: “Não tem por que ter Ministério das Comunicações”. Por quê? Porque você retirou as atribuições do Ministério, e restou ao Ministério apenas tratar, não mais, nem mesmo da concessão ou permissão de rádio, de televisão, dos meios de comunicação, por quê? Porque isso passou a ser leilão, não era mais a simples e pura concessão ou permissão. Ficou apenas com os comunitárias, que era muito pouco para você justificar a existência do Ministério. Então, essa coisa, essa dualidade gerou problemas, discussão de tarifas, qual era o papel... Ainda hoje tem. Eu quero apenas dizer que a nossa visão é de que esse é um instrumento importante de uma nova conformação estatal, desse Estado com capacidade de intervir regulando, ou intervir inclusive para executar, porque isso também não tem preconceito... é desse novo mundo que está aí, com maior capacidade de intervir.

João Domingos: O senhor está dizendo que o Ministério das Comunicações poderia ter até acabado, citando o Sérgio Motta, mas o Ministério das Comunicações acabou, neste governo, se tornando poderoso novamente, a ponto de ter sido negociado como um dos principais trunfos com o PMDB e o governo acabou criando 32 ou 35 ministérios. O que o senhor acha desse tanto de ministérios que o governo tem?

Roberto Freire: É um grande erro, um grande erro. É ruim para o governo, até porque ele tinha tanto ministro, superpondo-se um ao outro, alguns sem nenhum significado, e ele viu que aquilo ali era só atropelo. Lamentavelmente, não teve a capacidade, na reforma ministerial, de imaginar que a reforma ministerial era de estrutura também, não era só de mudar pessoas.

João Domingos: Criou mais um, não é?

Roberto Freire: Mas daí foi uma escolha que ele fez e deve estar pagando um pouco por isso. Está pagando. É uma dificuldade tão grande que ele tem um governo que parece que conversou duas ou três vezes com alguns desses ministros durante um ano.

Luiz Rila: O senhor conversou quantas vezes com o Lula desde a posse? O senhor tem contato com ele? O senhor é presidente de um partido aliado...

Roberto Freire: Eu estive com ele poucas vezes. Eu não sou ministro, não. Provavelmente, Ciro deve [tê-lo encontrado mais vezes]...

Kennedy Alencar: Deputado, vira e mexe se lê no noticiário que o senhor e o presidente têm uma relação ruim. Para além da fofoca, o que tem nessa relação pessoal ruim entre o senhor e o [presidente]? Vira e mexe, a gente lê: “O Lula não gosta do Roberto Freire”, “O Roberto Freire também não gosta do Lula”, “Eles não se dão”. Houve algum ruído nessa relação? Teve algum arrependimento? Como começou isso?

Roberto Freire: Olha, você sabe qual é o problema? O problema é o seguinte. Eu não gosto de ser muito aberto nas minhas relações. O problema da relação de nós comunistas com o PT nunca foi muito fácil, nunca foi muito fácil.

Luciano Suassuna: [interrompendo] O senhor sempre achou que o PT sufocava os partidos de esquerda.

Roberto Freire: Não é que sufocava, teve uma época em que não sufocava, porque não era tão grande para sufocar, porque nasceu pequeno...

Luciano Suassuna: Mas agora, com todos os instrumentos do Estado...

Roberto Freire: Tem alguns problemas, por exemplo, a luta contra a ditadura, esse é um dado interessante: quem indicou qual o caminho político, junto com os democratas e liberais deste país, para derrotar a ditadura? Vamos começar... não foi quem foi para a luta armada, não. Até porque isso, o governo e a repressão diziam: “Isso já está acabado, vamos matar comunista, porque esses caras é que estão com uma política que vai criar problema para nós”. E aí criaram, inclusive, um grupo de sicários que assassinou 12 companheiros nossos do comitê central. Isso eu não estou dizendo... estou dizendo isso agora com essa indignação porque eu só vim a saber isso com o livro do [jornalista ítalo-brasileiro] Elio Gaspari [autor de quatro livros sobre a ditadura militar brasileira]. Ele descobriu lá os documentos e a revista IstoÉ publicou até o nome desses sicários [...]. Estão aí... assassinos, não tem outro termo para isso. E fizeram porque a política de frente democrática, a política da luta da anistia [Lei da Anistia], da campanha das diretas [Diretas Já], fomos nós. Quando não deu diretas, nós que eu digo, os comunistas do MDB, eu sou um fundador do MDB, porque o partido não foi para o voto nulo, o partido resistiu e não foi para luta armada. O partido disse que o caminho era a luta de massa, a luta democrática, e fomos. Isso criou um grande movimento e nós não paramos no meio, não. Não deu diretas, tem que derrotar o governo, a ditadura, onde for. No Colégio Eleitoral [que elegeu Tancredo Neves à Presidência, derrotando Paulo Maluf, em 1985], e fomos, fomos lá; a Constituinte tem que vir, não tem que ser Constituinte exclusiva, não, venha de qualquer forma para tirar o entulho. Não tiramos totalmente, até porque um entulho ficou lá e Lula usou de forma inadvertida, equivocada e antidemocrática para expulsar um estrangeiro [refere-se ao caso Larry Rohter]. O último estrangeiro expulso tinha sido [...]. Com essa lei, que é um entulho... eu estou apresentando até porque eu participei disso, eu apresentei o projeto, eu, Marcelo Cerqueira, Aírton Soares, apresentamos um projeto contra essa lei de estrangeiro. Eu vou reapresentar, para acabar com esse entulho, vou reapresentar.

Rui Nogueira: O senhor acha que o presidente Lula e o PT ainda podem ter ainda alguma...

Roberto Freire: Eu estou querendo dizer, e o PT teve dificuldades, não participou do Colégio Eleitoral, o PT votou contra o processo de anistia. É bom que se saibam: o PT e alguns que estavam na formação do PT. Porque [segundo o PT] a Constituição era burguesa...

Germano de Oliveira: Anistia não; o senhor falou que o PT trabalhou contra a anistia...

Roberto Freire: Votou contra; se você quiser, eu tenho um livro que eu publiquei junto com Teotônio Vilela que tem uma declaração de voto, não foi só ele. O próprio Teotônio Vilela votou contra, porque a anistia não era ampla, geral e irrestrita. Então, é toda uma política que não era uma política da frente democrática. Cometemos erros tremendos, eles [do PT] souberam e entenderam bem, por exemplo, a criação da CUT [Central Única dos Trabalhadores], e nós ficamos naquela de não [...], não vamos. Houve uma série de erros que cometemos, mas sempre teve atritos. Sempre foi algo... bom que a esquerda sempre teve isso, o problema é que, em algum momento, o PT ficou imaginando que a esquerda surgiu no Brasil a partir das greves aqui do ABC de 78, [mas] não é [verdade]. Eu estou querendo dizer isso, e disse recentemente, quando essa questão do Haiti, tropas brasileiras no Haiti, isso não é missão de paz, não. São tropas de intervenção, de estabilização; o Haiti não está em guerra. O Haiti está com problemas internos; se você quer resolver, vamos discutir de formas humanitárias e não de mandar tropas. Sabe como fizeram isso? Sob o patrocínio não da ONU, mas da OEA, que naquela época existia um tratado interamericano [...] na República Dominicana. Que negócio é esse? Um governo de esquerda ser subalterno dessa política da [...] americana; aqui entre nós, o que é isso?

Luiz Rila: Mas o governo Lula é um governo de esquerda? Ele tem sido um governo de esquerda?

Roberto Freire: Todo mundo imaginou que era. Agora eu posso dizer que é um governo mais conservador do que de esquerda, isso eu já posso afirmar.

Luciano Suassuna: A sua decepção é com o governo, é com o presidente ou com os dois?

Roberto Freire: Eu não quero usar [o termo] “decepção”, porque eu não me decepciono.

[...]: O senhor tem arrependimento de ter apoiado?

Roberto Freire: Não, não, até porque, naquela oportunidade, você não pode fazer a política como se fosse um ato de contrição pessoal. Ali, naquele momento, o PPS agiu...

[...]: Entre Lula e Serra...

Roberto Freire: Naquele momento sim, pelo que representava, não pessoalmente; se fosse pessoalmente, eu já disse, talvez Serra tenha uma capacidade de pensar e de formular bem mais avançada.

Rui Nogueira: O senhor já disse isso publicamente...

Roberto Freire: Já disse isso publicamente, sem nenhum problema. Agora, o seu projeto político era uma continuidade [do governo Fernando Henrique] que eu queria mudar.

Rui Nogueira: O senhor conheceu o PT na oposição, o senhor mesmo já descreveu aqui qual era o papel [deles]; eles hegemonizavam qualquer... era voto contra qualquer coisa. O que o levou, na campanha eleitoral, a acreditar que o PT seria o PT da mudança? Onde estava a substância para o senhor acreditar nisso?

Roberto Freire: Porque em algumas experiências que o PT teve em administrações municipais – no estado não tanto, no estado já com mais dificuldade –, mas algumas experiências são experiências mais ou menos exitosas, e eu imaginava que, claro, toda campanha de tentar uma abertura eles tiveram. A dificuldade é de que eles fazem um governo de coalizão, mas é um governo com muito hegemonia ainda. Um governo com um negócio de núcleo duro, não dá. O governo é o presidente da República, até porque nesse núcleo duro eu não votei nele, nem a sociedade votou. Agora, isso é muito crítico? É, mas eu acho que está chegando um momento, não adianta, de dentro fica difícil ver, é preciso um distanciamento, para dizer o quê? Vamos discutir, é possível ainda corrigir rumos, enfrentar alguns problemas. Até porque não vamos pensar, e o áulico tem essa propensão de dizer que está tudo bem... eu sei o que é ambiente palaciano; a tendência é que isso só chegue dizendo: “Não é bem assim”, aí um dado qualquer da economia passa a ter uma dimensão bem maior, nada de sustentável, mas... E essas coisas são ditas dentro de um palácio. É necessário que a crítica não venha só da oposição, que venha também de alguns dos setores... Eu fui a uma reunião do conselho político do presidente; eu não fui ali para aplaudir, e posso até aplaudir. Por exemplo, quer que eu aplauda? Uma ação tremendamente polêmica do governo: eu sou favorável às cotas. E eu sei que é polêmico, mas eu vou enfrentar isso, eu acho que é um aspecto positivo, isso é uma questão democrática. O governo, na questão do desarmamento [...], no desarmamento o governo tem uma postura democrática, ótimo.

João Domingos: Mas essa posição não é do governo Lula, ela era também uma posição do Fernando Henrique.

Roberto Freire: Está certo, mas, por favor, que bom que o Fernando tinha isso também, qual é o problema? Eu acho até que o Fernando teve alguns... não é uma passagem que você tem que apagar, não é nada disso.

Kennedy Alencar: A herança não é maldita, então?

Roberto Freire: Eu não acho, não. É em um aspecto, naquilo que é muito bem-vindo para o governo, isso para mim é que é maldito, não tem nada por que ter uma política econômica dessa.

Kennedy Alencar: Essa é a herança maldita?

Roberto Freire: Para mim. Para o governo, infelizmente, não, porque está adotando. E não é maldito, não, até porque eu não gosto desse...

Luciano Suassuna: Reforma trabalhista, você se assusta?

Roberto Freire: Reforma trabalhista? Não, não. Vou dizer por quê. O partido está fazendo o fórum dos nossos sindicalistas para discutir; precisa acabar com esse negócio de que não pode mudar, ou que não tem que mudar. Claro que tem; as relações de trabalho não são as mesmas. Vou dar um exemplo: há algum tempo estamos discutindo, por que eu tenho que ter dissídios coletivos numa grande empresa fatiados... por [...] categorias? Por que eu não faço por setores econômicos, formas de organização sindical?

[...]: Contrato coletivo.

Roberto Freire: Claro, por que não? Isso pode ser uma nova forma de você agir frente a isso. Até porque a empresa, hoje, mudou tanto as suas relações que você não pode ficar pensando em ter estruturas de conflitos por categorias. Até porque, em categorias, você tem uma diferenciação muito grande hoje em toda e qualquer empresa, você não consegue coesão; talvez por setores econômicos você tenha capacidade disso. Eu estou aqui dando um exemplo, porque é um debate que tem que ser feito.

Kennedy Alencar: Direito de greve do funcionalismo, o que o senhor acha?

Roberto Freire: Eu votei favorável na Constituinte e sou favorável.

Kennedy Alencar: O senhor não acha que tem que ter alguma restrição? O presidente Lula já sinalizou, por exemplo, que ele avalia que algum tipo de restrição tem que ter para algumas categorias do serviço público.

Roberto Freire: Tem; uma primeira delas: ninguém pode, no serviço público, primeiro, entrar em greve por tempo indeterminado; [para] alguns desses setores, greve sem ter aviso prévio para a sociedade – não é para o governo –, para a sociedade se prevenir, [ela] não pode ser surpreendida por greve em qualquer serviço público, alguns deles essenciais. Então, são mecanismos que você tem que usar, e o entendimento do próprio movimento, de saber que algumas dessas greves, ao invés de ajudar, atrapalham. Agora mesmo parece que a Polícia Federal entendeu que deram um tiro no pé, é uma imagem, tem umas metáforas... o governo gosta muito de metáforas, e essa não é futebolística, mas de qualquer forma usa-se o pé.

Paulo Markun: Só não deram [um tiro no pé] porque faltou bala. Nós vamos para um rápido intervalo e voltamos daqui a instantes.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o presidente nacional do Partido Popular Socialista, o deputado Roberto Freire. Duas perguntas de telespectadores sobre eleições municipais: Marco Scapucim, aqui de São Paulo, pergunta se é firme e definitiva a posição do PPS de lançar candidatura majoritária nas próximas eleições na capital. E se a chapa encabeçada por Arnaldo Jardim, Romeu Tuma Jr. e os candidatos a vereador do PPS é para chegar. Ele acha que sim. E Sidney Reagan, da Vila Mariana, diz o seguinte: “Com o racha do PPS em São Paulo, existe a possibilidade de ter dois candidatos para prefeito ou o partido não ter candidato próprio para prefeitura de São Paulo?”

Roberto Freire: Olha, não é bem racha que existe aqui. O que o partido decidiu, inclusive por um acordo interno de antecipar aquilo que a legislação só permitiria formalmente em 10 de junho, ou até 30 de junho, que é o prazo da convenção, alguns partidos... e o PPS fez isso aqui em São Paulo, antecipou em uma convenção, uma pré-convenção, uma prévia, e com os dois candidatos, o Arnaldo Jardim e João Hermann disputando, e ganhou o Arnaldo Jardim. É evidente que a gente espera que isso seja referendado, até porque senão desmoraliza acordos internos e isso não é próprio de quem quer ter uma relação respeitosa de companheiros, de militantes de um mesmo partido. Então, eu espero que não tenha nenhuma discussão; o João Hermann pode estar falando isso, mas eu acho que vai baixar um pouco de sensatez de que ele não pensa em estar imaginando que faz pré-convenção e depois não respeita. Se fizer assim, quem pode começar a acreditar mais que o que ele diz será depois cumprido? Normalmente, as pré-convenções... e nós tivemos uma em Minas, o candidato próprio do partido, de forma até para nós estranha... não gostamos dessa decisão, mas foi decidido e aqueles que foram derrotados se integraram na opção majoritária, que ganhou, que é o apoio ao candidato do PT em Belo Horizonte. Então, isso é o que se espera da militância do partido. Então, não vai ter essa discussão. Eu acho que a candidatura é a do Arnaldo Jardim; claro que isso causou um certo terremoto em que a discussão política voltou com todo peso. A entrada de Serra – é uma avaliação que se faz – mudou não apenas o cenário, mudou substancialmente o cenário político eleitoral aqui em São Paulo, mas mudou no Brasil. O fato de Serra ter aceito ser candidato gerou um processo interno no PSDB em todo Brasil, de maior coesão, de afirmação, possibilidade da candidatura do Almir Gabriel em Belém, Eduardo Azeredo voltou, ninguém sabe se vai ter, mas... E o PSDB se articulou nacionalmente, isso mudou em alguns estados; algo que já estava mais ou menos consolidado em função de uma candidatura que não competitiva do PSDB aqui em São Paulo. Se imaginava que eram favas contadas da vitória de Marta. Isso mudou politicamente...

Rui Nogueira: No segundo turno, você fica com Serra ou com Marta?

Roberto Freire: Quem vai ficar não sou eu, eu não voto aqui em São Paulo.

Rui Nogueira: Se votasse, o senhor ficaria com quem?

Roberto Freire: Não sei. Agora, não tenha dúvida, o partido não tem nenhum preconceito em relação ao PSDB. Ao contrário.

Luciano Suassuna: E não existe um alinhamento automático com as esquerdas? Com o PT, com...

Roberto Freire: Nunca teve. Nós nunca nos alinhamos automaticamente a nenhum partido. A capacidade de fazer aliança com o PT não é de hoje. Nós votamos em Lula no segundo turno em 89 [no primeiro turno, Roberto Freire foi candidato pelo PCB]; em 94 apoiamos Lula desde o primeiro turno; [em] 98 e [em] 2002 tivemos o nosso próprio candidato [Ciro Gomes, pelo PPS]. E no segundo turno agora votamos no Lula. Então, não temos nenhum problema de votar no PT, fizemos isso como opção consciente, como também, se amanhã desejarmos fazer aliança com o PSDB... Nós consideramos o PSDB um partido do campo democrático de esquerda.

Kennedy Alencar: O senhor está abrindo a porta para uma aliança com o PSDB. O senhor já falou muito do Fernando Henrique, elogiou bastante o Serra, ou seja, tem aí um jogo para uma aliança no segundo turno, hein?

Roberto Freire: Não, não sei, pode até ter. Eu quero dizer a você que eu tenho em alguns estados, em alguns municípios importantes, aliança com o PSDB, e quero e tenho lutado por isso. Brigamos muito para que [José] Fogaça, em Porto Alegre, recebesse o apoio do PSDB. O problema é que o PSDB fez tanta trapalhada lá, de prévias, e demorou tanto, que não esperamos, fomos buscar aquele que é lá uma boa seccional partidária, que é do PTB no Rio Grande do Sul.

Kennedy Alencar: O senhor concorda com a afirmação de que a entrada do Serra na eleição em São Paulo é uma espécie de terceiro turno da eleição de 2002, ou de primeiro turno já da de 2006, ou seja, vai nacionalizar mesmo, vai ser mais intenso esse debate de PSDB e PT?

Roberto Freire: Vai ser mais intenso, evidente. Agora, cuidado com esse negócio de pensar que 2004 está resolvendo 2006, nada disso. Até porque, em 2005, ninguém sabe o que vai acontecer com a economia. O PT pode se recuperar, isso pode, numa marcha batida de crise, e aí será grave, então toda a discussão de 2006 será diferente. Eu acho que, se tiver bom senso, não queira fazer de 2004 trampolim para coisa alguma. Queira em 2004 afirmação política. E claro que o debate aqui [em São Paulo] terá, e teria de qualquer forma, uma componente nacional mais forte do que em outros estados. Aqui, de qualquer forma, é a grande capital brasileira, pelo peso que tem. Agora, também não esqueça, a eleição é municipal, são questões que podem ter uma referência nacional e isso ter influência, mas ela vai ser decidida por questões locais.

Paulo Markun: O córrego Tiquatira pesa, a avenida Sapopemba [ambos na cidade de São Paulo] pesa, as coisas locais...

Roberto Freire: Claro, isso vai ter tanto que estão imaginando... fazer um pouco uma crítica já, uma coisa meio absurda... eu não conheço bem São Paulo, mas por onde eu ando, de vez em quando eu me assombro de ver em São Paulo algumas pessoas morando em casas de papelão. Eu vejo algumas ruas, numa capital como São Paulo, que é o terceiro orçamento da República, sem esgoto, sem asfalto, com problemas grave de transporte, uma série de problemas dessa periferia de São Paulo, onde já foram constatados altos graus de pobreza em alguns bolsões de miséria. Pois bem, aí você vai para um embelezamento da cidade, que tem muito mais um aspecto de dizer que está embelezando e trabalhando, talvez com algumas justificativas de alguns, mas que evidentemente poderiam esperar um determinado outro momento e enfrentar as questões básicas.

João Domingos: O senhor está dizendo que a Marta embelezou a cidade e não enfrentou...

Roberto Freire: Não é que embelezou, eu quero dizer que é inadmissível que São Paulo não tenha um grande programa habitacional com o terceiro orçamento da República.

Paulo Markun: Agora, não é estranho também o PPS fazer propaganda para a cidade de São Paulo, como eu vi recentemente na televisão, do Arnaldo Jardim e do Romeu Tuma Jr., falando em guarda municipal, em segurança da cidade, quando todo mundo sabe que essas não são questões a serem resolvidas no plano municipal?

Roberto Freire: Mas é que essas questões começam a ser preocupações, e no futuro não tenha dúvida de que vai se começar a discutir... Vou dar um exemplo: eu estive hoje em Santo André... Santo André não, São Caetano, e estivemos lá com o prefeito, [Luiz Olinto] Tortorello, e é uma das cidades em que se tem o melhor nível, não apenas de desenvolvimento humano, mas um dos melhores níveis de segurança, o menor grau de violência, por uma série de circunstâncias, mas também por uma boa parceria, que lá sempre existiu, de uma guarda municipal com a polícia do estado de São Paulo. Eu estive lá e inclusive tive esse contato. Qual é a discussão? Nós estamos falando aí, do ponto de vista institucional, o Brasil é o único país no mundo que tem duas polícias, uma militar e uma civil. Um país do tamanho que tem o nosso, a descentralização talvez seja algo fundamental; é fundamental do ponto de vista democrático e de algumas intervenções do poder público. Na questão da segurança, quem é que diz que não será algo mais eficaz você ter uma polícia municipal? Como tem nos Estados Unidos. Então, nós estávamos errados nas discussões anteriores, em outras campanhas, de que o poder municipal não tinha nada a ver com segurança, com saúde, com... com saúde não, porque o SUS já tinha vindo... mas com salário, emprego, e tem. Ai do Brasil se não tivesse alguns bons administradores municipais, que em períodos graves e de crise que tivemos... nós tivemos até alguns municípios com capacidade de investimento, e importante. Então, não é nada estranho que se comece a discutir questões de segurança – vai ter que ser discutida [a segurança em eleições municipais]. Agora com parceria, mas no futuro até como atribuição e competência própria constitucional.

Germano de Oliveira: O senhor defenderia o governo Lula no palanque agora, na eleição municipal, como aliado do governo? O fato de ser aliado do governo não vai pesar muito no seu partido defender, por exemplo, uma política salarial de 260 reais?

Roberto Freire: Eu não sei se o partido vai defender.

Germano de Oliveira: O senhor vai votar a favor da proposta do governo Lula?

Roberto Freire: Não sei, a bancada ainda não decidiu, mas a bancada está muito refratária a isso. Isso é uma questão de bancada, não é uma questão do partido. Não dá para eu chegar lá e dizer...

Germano de Oliveira: Não vai pesar contra o partido nessa eleição...?

Roberto Freire: Não, vamos fazer muita oposição ao PT por aí... em São Paulo vamos, lá em Recife também, ou seja, então não vai ter nenhum problema. E essa crítica que eu estou fazendo aqui, provavelmente em algum palanque essa crítica será feita.

[...]: [...].

Roberto Freire: Não, não é rompimento, não. Até porque rompimento... a não ser que o governo queira dizer que não vai mais nos receber. Se quiser criar, e eu não acredito que vai ter...

Kennedy Alencar: Mas há uma divisão no próprio partido do senhor; dizem que não há esse rompimento porque tem uma ala que quer ficar com o ministro Ciro Gomes, apóia o governo, e que o senhor... Não é colocado justamente porque tem esse cabo-de-guerra, não é?

Roberto Freire: Não, porque não tem cabo-de-guerra, até porque não há um certo equilíbrio. Se quisessem romper, romperiam, só que não tem nenhum sentido, porque essa coisa não é... eu não estou fazendo nenhum cabo-de-guerra. Eu estou querendo discutir politicamente e quero esgotar a capacidade... até porque, se eu tenho responsabilidade de ter votado, eu quero saber até onde podemos ir, encontrando algum caminho. Eu posso dizer a você, e aqui você disse, estava até perguntando se eu não tinha nada a elogiar... eu elogio muito naquilo que é polêmico, a questão da reforma do Estado, mesmo com alguns problemas. O PPS tem um dado interessante, tem toda essa crítica, mas vocês que são lá de Brasília procurem ver lá nos anais a votação. O único partido que votou unido na reforma da Previdência foi o PPS; não foi o PT e nem outro partido da base. Não é interessante isso? Bom, a gente pode fazer crítica, mas...

[...]: Mas o Ciro não vai querer perder cargo no governo...

Roberto Freire: Ah, não, se a gente ficar com isso, então não precisa fazer política... deu um cargo, nomeou, liberou um emenda, [se for só isso] eu não faço mais política. Aí não tem muito a ver. Se a gente fez política [...] na repressão, imagine no campo democrático, não tem problema...

Rui Nogueira: Na vida do PT, tem agora o caso Celso Daniel, que é um caso nebuloso, o caso Waldomiro [que deu origem à CPI dos Bingos], que é um caso em que o chefe não sabia o que fazia o subordinado íntimo; e agora tem o caso do Ministério da Saúde, onde um homem de confiança do ministro está preso. Enfim, o próprio ministro Humberto Costa se disse surpreso. E o PT fez aquele discurso de que a coisa remonta o tempo do PC, do Collor e tal. Você acha que está havendo algum problema com o PT, se isso são ecos da campanha eleitoral [...], o que é?

Roberto Freire: Esse último episódio do Ministério da Saúde, evidente que não é algo que a gente possa dizer inédito, porque nas licitações brasileiras já houve momentos muito piores, muito piores. Até porque não se tinha nem capacidade de coibir períodos inflacionários, e isso era uma loucura, você não tinha preço relativo nenhum na sociedade, então não é nada inédito. Então, isso aí pode remontar, e remonta até antes, até porque não remonta essa questão dos hemoderivados porque esses fatores não existiam lá naquela época do governo Collor, então não é bem isso [...]. Eu não responsabilizo, pelo menos pelo que eu conheço, o ministro Humberto Costa, pelo que eu o conheço de Pernambuco, não o responsabilizo. Isso é algo que pode ter ocorrido, tal como diz a polícia, foi cooptado...

Germano Oliveira: O secretário do ministro também é da sua terra, é pernambucano.

Roberto Freire: Parece que é de lá, mas eu não o conheço. Ele, pessoalmente, eu não conheço; eu conheço o Humberto, e não tem nada que...

Germano Oliveira: O senhor acha que o ministro não tem culpa nisso.

Roberto Freire: Não, pelo que eu o conheço, não tem. Isso pode ter até acontecido... não tem. Eu não vou partir para dizer que tem. Temos que ter um certo cuidado com isso, até porque essas gangues, essas quadrilhas podem estar em outros setores, não vamos ficar pensando que... esse é um dos pontos, respondendo a sua pergunta rapidamente, é um dos problemas do PT. É que ele foi tão vestal que agora qualquer problema é um problema muito maior. É a questão do moralista, ou do falso moralista. Quando você é moralista e é pego em alguma traquinagem, aquilo destrói muito mais do que alguém que relativiza, que tem pelo menos uma melhor compreensão, que não quer ser udenista [refere-se à UDN, partido que se opunha ferozmente a Getúlio Vargas], vamos usar uma linguagem política, já que estamos aqui, não é o udenismo. É necessário combater a corrupção, mas não fazer disso nenhum cavalo-de-batalha. O PT fez muito, e cresceu muito com isso, com um patrimônio ético muito grande. Então, qualquer coisa que acontece no seu governo tem um peso muito maior do que com qualquer outro governo. Não intrinsecamente, mas pela própria retórica, ação, então para eles é muito mais grave. O que está acontecendo é um pouco isso.

Germano Oliveira: E esse caso do [...]? Na época do [empresário Carlinhos] Cachoeira, o senhor defendeu a CPI para o caso específico do Waldomiro.

Roberto Freire: Eu era favorável à CPI, mas o partido foi contra - até porque também não adianta a gente fugir desse problema de que somos base de sustentação - e a bancada resolveu não fazer, e eu também não...

Germano de Oliveira: No caso dessa ONG Ágora, o senhor acha que tinha que ter uma CPI? O PSDB acha que deveria.

Roberto Freire: É, pode ter uma CPI e pode também acompanhar o Ministério Público, só que não pode alguém imaginar que vai resolver nenhum desses dois problemas, mesmo o do Ministério da Saúde, com auditorias internas. Isso tem que ser público. Vamos ter cuidado, até porque aquele inquérito interno do Waldomiro, aquilo ali é conversa para boi dormir. Aquilo ali, o governo não tinha que ter patrocinado aquilo. Não ouviu ninguém, não tem nenhuma perícia, não tem nada, e esse negócio do Waldomiro está mal parado. Não é bom para o governo manter dessa forma.

Kennedy Alencar: O que o senhor acha que o governo deveria fazer? O que é estar mal parado?

Roberto Freire: Mal parado... você, por exemplo, nós discutíamos e conversávamos sobre problema de gravações, o crime organizado se moderniza, usa tecnologias, mas também a polícia está começando a usar, está tendo instrumentos importantes, consegue quebra de sigilo telefônico e tudo mais, e muitas vezes as pessoas estão sendo investigadas e não estão sabendo. E depois você consegue ter provas... Aqui, a operação Anaconda... A Polícia Federal está muito interessante, inclusive muito criativa nas suas operações, mas está tendo uma certa eficácia, [o que é] bom para o país, é claro. Então, essa capacidade de você estar colhendo provas, isso é importante que tenha um determinado momento, quando você for fazer a investigação, que seja público. Eu não sou favorável a lei de mordaça de forma nenhuma. Tem que ser público. Eu sou favorável, inclusive, em discutir que a Justiça não pode ter nenhum segredo de Justiça quando ela estiver usando a sua corregedoria. Talvez essa seja a melhor forma de você ter controle público, sem ter nenhum órgão de controle, só dando publicidade quando você tiver investigando qualquer problema para o qual a corregedoria seja chamada. Não tem por que nenhum desses escândalos aí terem inquéritos internos ou algo que sejam auditorias que não sejam públicas. Tem que ser públicos, todos eles, até para que não causem nenhum problema.

Paulo Markun: Eu tenho certeza de que os jornalistas aqui assinam embaixo desse seu ponto de vista. Eu queria agradecer a sua entrevista...

Roberto Freire: Só uma coisa, essa coisa também tem um pouco de todos nós da esquerda brasileira um pouco de hora da verdade. Eu não podia combater a ditadura em nome da liberdade e, no momento em que eu vivo em liberdade, imaginar que eu posso usar instrumentos da ditadura. Não dá. Essa é uma hora da verdade que a esquerda tem que enfrentar. Infelizmente, o governo pisou em um princípio básico com esse último exemplo. Ainda bem que resolvemos tranqüilamente, mas vai ficar marcado, infelizmente, esse atentado à liberdade de expressão [...] no país.

Paulo Markun: Muito obrigado por sua entrevista, deputado Roberto Freire, e aos nossos entrevistadores e a você que está em casa. Nós estaremos aqui na próxima segunda-feira com mais um Roda Viva. Uma ótima semana e até lá.

 

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