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Memória Roda Viva

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Jorge Sampaio

8/9/1997

"Os historiadores de hoje poderão ver, alguns políticos muito ortodoxos também, mas nós não vemos o Brasil como uma ex-colônia, vemos como um país admirável", declara o presidente de Portugal

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[programa sem perguntas de telespectadores]

Matinas Suzuki: Boa noite. No centro do Roda Viva especial desta noite está o presidente de Portugal, Jorge Fernando Branco de Sampaio.

[inserção de vídeo]

Narração de Valéria Grillo: Jorge Fernando Branco de Sampaio, atual presidente de Portugal, é conhecido por seu contínuo trabalho em favor dos direitos humanos. Opositor da ditadura desde os tempos de estudante, formou-se em direito em 1961. Como advogado, defendeu vários presos políticos. Candidatou-se a deputado pela primeira vez em 1969. Com o fim da ditadura em 25 de abril de 1975 [na verdade, 1974, como o entrevistado corrige mais abaixo], participou do novo governo como secretário de Estado da Cooperação. No mesmo ano, fundou a Intervenção Socialista, agremiação política progressista. Em 1978, filiou-se ao Partido Socialista Português, sendo eleito no ano seguinte como integrante do secretariado geral do partido. Elegeu-se deputado, sucessivamente, de 1979 a 1991, e foi líder da bancada socialista no período de 1987 e 1988. Entre 1979 e 1984, Jorge Sampaio foi membro da Comissão Européia dos Direitos do Homem. Em 1986, 1987, tornou-se responsável pelas relações internacionais do Partido Socialista. Em 1989, foi eleito secretário-geral do partido. Foi eleito também, pela Assembléia da República, como membro do Conselho de Estado, órgão consultivo da Presidência da República. Jorge Sampaio foi eleito presidente da Câmara Municipal de Lisboa em 1989 e reeleito para o cargo em 1993. Em 1995, apresentou sua candidatura à Presidência da República pelo Partido Socialista, com o apoio de representantes de todas as correntes políticas, culturais e empresariais. Em 14 de janeiro de 1996, venceu as eleições no primeiro turno, com 53,8% dos votos. Em 9 de março do mesmo ano, tomou posse como presidente da República. Ativo igualmente como intelectual, Jorge Sampaio publicou artigos sobre política, em jornais e revistas, e dois livros. Um deles é uma coletânea dos discursos mais significativos de sua carreira política, o outro é uma reflexão sobre temas da atualidade, com o título Um olhar sobre Portugal.

[fim do vídeo]

Matinas Suzuki: Para entrevistar o presidente Jorge Sampaio, nós convidamos esta noite o Alberto Dines, editor do Observatório de Imprensa – o Dines viveu em Portugal por sete anos, de onde voltou em 1995 –; o Laerte Fernandes, editor de Internacional do jornal O Estado de S. Paulo; a Maria Cristina Poli, repórter e apresentadora do programa Vitrine, aqui da Rede Cultura; o Jaime Spitzcovsky, editor de Exterior e ex-correspondente da Folha de S.Paulo em Moscou e em Pequim; o historiador e cientista político Luiz Felipe de Alencastro, que é do Cebrape e é também colunista da revista Veja; e o jornalista Adrian Dickson, correspondente-chefe da agência Reuters. O Roda Viva desta noite está sendo transmitido simultaneamente pela RTPI, Rádio Televisão Portuguesa Internacional. Através de uma rede de oito satélites, o programa está sendo levado a todos os países de língua portuguesa e às comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo, um público estimado em cerca de 200 milhões de habitantes. Nesta transmissão internacional, o Roda Viva de hoje, excepcionalmente, não poderá contar com a participação dos telespectadores. Boa noite, presidente Jorge Sampaio.

Jorge Sampaio: Boa noite.

Matinas Suzuki: Muito obrigado pela sua presença aqui no nosso Roda Viva desta noite. Presidente, até bem pouco tempo atrás, a política externa brasileira acalentava o sonho de poder participar do mercado unificado da Europa, por intermédio de Portugal. Esses tempos aparentemente passaram, pelo menos não são tão mais falados, como foram falados há algum tempo, e a principal, ou a prioridade da política internacional brasileira hoje recai sobre o bloco da América do Sul, sobre o Mercosul. Como o senhor analisa as relações bilaterais de Brasil e Portugal hoje, diante desses novos agrupamentos, diante desses novos blocos que a geopolítica internacional produziu?

Jorge Sampaio: As relações entre Portugal e Brasil, ou Brasil e Portugal, estão num ponto muito alto. Ninguém poderia dizer, há dois, três anos, que no ano passado Portugal foi o sexto investidor externo no Brasil. Ninguém poderia dizer que houvesse um fluxo tão significativo de trocas comerciais, e, sobretudo, de cruzamento de empresas, de investimentos nos dois países. Portugal mudou. Portugal não é hoje aquele país rural, esquecido, que por vezes pensa que ficou perdido na história. É um país que se moderniza, faz parte da União Européia [união econômica e política supranacional firmada em 1992 por 27 Estados-membros; substituiu a Comunidade Econômica Européia e a Comunidade Européia] e teve sempre, está tendo cada vez mais uma visão estratégica em que o Brasil surge como uma das suas prioridades, com uma política externa moderna, não retórica. Nós gostamos todos muito da retórica, naturalmente, da saudade, dos poemas, da história, são coisas comuns, magníficas, [...] uma base para podermos fazer coisas hoje e amanhã. E eu penso que os dirigentes políticos, a sociedade civil, os empresários, os homens de cultura estão a olhar para essa relação, felizmente, de uma forma mais positiva, menos retórica, mais eficaz, e é esse o estado das coisas. Perguntou-me sobre os blocos regionais. Eu penso, quando antes se dizia, a meu ver muito mal, que o Brasil precisava de uma porta para a Europa, eu sempre achei que isso era um pouco ridículo. Porque o Brasil não precisa de portas, tem que abrir as portas que existem, tem força para isso, abre as portas que existem. Mas pondo de lado isso, é verdade que a relação entre os dois grandes blocos, União Européia e o Mercosul, se tem desenvolvido, se vai desenvolver mais, e penso que a maneira como esses blocos poderão... se quiserem estar preparados para tão célebre globalização, vai precisamente da forma como se relacionarem entre si. E a olharmos para dois, três anos do Mercosul, em sua fase atual, verificamos que houve um crescimento de investimento europeu na América do Sul, obviamente dos países do Mercosul. As negociações que estão em curso permitirão, espero eu, alargar o relacionamento entre as duas grandes entidades. Mas isso é altamente promissor. Eu, Portugal, os políticos, a sociedade, a Europa apostamos nisso, e julgo que isso possa ser de grande importância para que isso tudo, para dizer francamente, não fique sempre mono colore. Quer dizer, eu sou para o mundo multipolar, acabou a bipolarização, em 1989, 1990, agora há a unipolarização, [mas] eu prefiro que haja a multipolarização, e os blocos regionais podem desempenhar aí um importante papel.

Maria Cristina Poli: O senhor acha que Portugal sofre do mesmo mal que o Brasil, ou seja, ele se vende muito mal para o mundo?

Jorge Sampaio: Não, eu aqui, como imagina, sou chefe de Estado, não é? Eu só posso falar de Portugal, e portanto eu acho que um problema que nós temos, nós portugueses... Teve com a nossa dimensão, a modernização que é relativamente recente, nós tínhamos que fazer um grande esforço para que, sobretudo, aquilo que fazemos seja conhecido do mundo. Portanto, no que diz respeito a meu país, a mudança desses últimos anos é que começou a ser interiorizada a necessidade de a vida econômica não se circunscrever àquele admirável e glamuroso retângulo, mas que tem que avançar para outros, e isso significa uma internacionalização. Não é possível fazer isso com os métodos de uma economia de 20 anos, ou de 30. E, portanto, estamos a fazer esse percurso, digamos, com algum atraso, mas, nos últimos anos, sem dúvida com dinamismo.

Alberto Dines: Presidente, o senhor falou da retórica, e no nosso passado comum há várias tentativas de projetos geopolíticos, [que] começaram no século XVII. O padre Vieira tinha um projeto, Brasil [e] Portugal, extraordinário; Dom João IV [(1604-1656) rei de Portugal entre 1640-1656] pensou até em transferir-se para o Brasil, em função das alianças todas; e mais recentemente, outros projetos também. Mas existe, além dessa vontade de se aproximar, de aumentar o fluxo de investimentos, algum projeto geopolítico consistente, que possa realmente produzir frutos no campo de cultura, no campo [...] de troca de conhecimentos? Portugal é a qualidade, o Brasil é a escala. Como se pode juntar a qualidade portuguesa com a escala brasileira?

Jorge Sampaio: Se me permite, também aí, digo que o Brasil é qualidade em muitos campos, não é?

Alberto Dines: Sim.

Jorge Sampaio: É pelo menos a visão que um amigo tem, e não digo isto por estar neste programa, é porque acho que é assim, há com certeza muitos contrastes, muitas diferenças, mas há qualidade, enfim...

Alberto Dines: Sim, evidente.

Jorge Sampaio: Eu julgo que há um novo espaço dos países de língua portuguesa. A Comunidade [dos Países] de Língua Portuguesa [CPLP, criada em 1996 por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe] pode ser esse espaço de influência, de concertação diplomática, dinamização cultural. Eu acho que nós temos que perceber a diversidade desse espaço, não temos que dar bengalas uns aos outros, o que é péssimo, não temos que ter uma relação pai e filho, ou filho e pai. Com certeza eu gosto muito do meu pai, mas já não está cá, e portanto eu pessoalmente tenho que fazer o possível. Portanto, a memória para mim do meu pai é uma memória estimulante, não é uma memória passadista, ora bem, seguindo caminhos próprios, mas com identidades que se forjaram através da história. Olhando para as coisas como um quadro cultural, que tem tanto de influências mútuas, a CPLP, como se diz, pode ser, penso eu, que com a nossa vontade, um projeto de futuro, de concertação diplomática, desde que nós possamos ter idéias, vontade, não ter receio de estar junto com este ou com aquele, fazendo um projeto em outro país – penso que há muito espaço para isso – e fazer da língua, como instrumento aglutinador e de sua diversidade, uma mais-valia gigantesca, que é o que ela é. Eu lembro-me, quando foram os primeiros anos de independência em Moçambique [ex-colônia de Portugal, conquistou a independência em 25 de junho de 1975], eu estive participando naqueles dois ou três meses de negociação, que conduziu à independência de Moçambique, privei muito com o presidente de então, que todos conhecem ou conheceram, o presidente Samora Machel, e dois anos depois voltei para outras negociações. E ele, um dia, agarrou-me assim no braço, ele tinha muita força, era um homem energético, e disse-me assim: “Sampaio, quando é que você manda para cá médicos portugueses? Estão cá os búlgaros, e os moçambicanos não os entendem, não sabem dizer se dói o estomago ou se dói o nariz...” [risos]. Isso é uma que tem 15 ou 20 anos, mas representa um pouco dessas possibilidades.

Alberto Dines: Presidente, se o senhor me permite, eu acompanhei o nascimento da CPLP, quando o embaixador [do Brasil em Portugal] José Aparecido [de Oliveira (1929-2007)], que foi o seu grande incentivador, estava lá em Portugal, e ela começou muito eufórica, não é? E hoje ela caiu em uma certa... eu não diria marasmo, mas em uma certa regularidade, quase desaparecendo. O senhor não acha que é mais uma experiência que entra no caminho do arquivo, da gaveta?

Jorge Sampaio: Não, não acho, peço licença...

Alberto Dines: Não, eu quero justamente...

Jorge Sampaio: Não acho nada. Se nós formos comparar... Eu também sou acusado, às vezes, de ser retórico e, portanto, se eu estiver a falar muito...

Matinas Suzuki: Por favor.

Jorge Sampaio: ...vocês não deixem.

Alberto Dines: Você está aqui para isso.

Jorge Sampaio: Se nós compararmos a CPLP com a Commonwealth [comunidade britânica de nações, que inclui a Grã-Bretanha e outros países independentes – ex-domínios ou ex-colônias –, que em sua maioria professam fidelidade ao soberano inglês, em um sentido mais histórico e simbólico do que jurídico], com a francofonia etc, verificamos que, em um ano, se fez mais do que em muitos anos nos outros. Mas a CPLP não é um discurso, não é também uma retórica, são iniciativas. E nesse ano que passou, eu assisti, porque recebi dezenas de coisas, de reuniões de pessoas, dos mais diversos campos da sociedade civil: os empresários, os jornalistas, os homens de cultura, os advogados, os juízes, os tribunais constitucionais, ora, isso é o espírito do CPLP. Eu penso que não há melhor espírito que ilustre uma relação bilateral, que depois impulsione a CPLP, do que o convite que o presidente do Brasil me fez para estar presente no dia nacional. Não era possível, entre mais nenhum país, entre os dois países, fazer o que se fez ontem. Não era possível para nós, foram os portugueses que vieram comigo, e para mim próprio foi uma coisa inesquecível, que é ter ouvido a história dos vossos regimentos, perceber a naturalidade com que é dito que foi o imperador que criou aquele regimento. Está cá o presidente da República, que [...] Portugal também dessa altura, donde emergiu essa grande nação...

Maria Cristina Poli: [interrompendo] Quer dizer, o senhor está dizendo que ainda a gente vai ter bastante motivo, e os portugueses também, para comemorar os 500 anos de descobrimento [do Brasil], é isso?

Jorge Sampaio: Eu acho que devemos fazê-lo olhando para frente sempre. Eu vou dizer francamente, eu estou muito orgulhoso da minha história, da história do meu país. Acho que devemos ter cuidado de não querer reescrevê-la, com os conceitos de hoje, quer dizer, se nós hoje aplicarmos os direitos humanos, tais como os vemos hoje, ao que se passou há 500 anos nos vários pontos do mundo, naturalmente ficaríamos um pouco aflitos. E eu, antes de vir para cá, não tinha lido isso, e acho que é uma obra admirável, li o grande livro de Darcy Ribeiro, O povo brasileiro [publicado em 1995], e portanto nós, na solidão dos nossos escritórios, ao lermos aquilo, vemos a história passar em retrospectiva. Mas isso é a história, e é a história que se fez em conjunto. Mas forjou-se uma notável identidade, essa identidade que resistiu a tantas coisas, que é um país continental, com uma língua única, com um estado federal, é certo, mas com uma unidade manifesta. Portanto, os 500 anos têm que ser celebrados com grande dinamismo, o resultado de relações atuais que se desenvolverão, que resultam do encontro do passado, mas que esse encontro tem uma dinâmica.

Maria Cristina Poli: Então, eu gostaria de entender melhor, presidente, qual a importância de organizar os países de língua portuguesa, que falam a língua portuguesa, como bloco?

Jaime Spitzcovsky: Aliás, eu queria, se o senhor me permite, presidente, acrescentar uma pergunta à da Poli: Moçambique, que o senhor mencionou, discute também até a adesão à Commonwealth, em detrimento da CPLP.

Jorge Sampaio: Não, não acho que seja em detrimento.

Jaime Spitzcovsky: O que Moçambique ganha e o que Moçambique perde, se for para a Commonwealth e abandonar a CPLP?

Jorge Sampaio: Não abandona, pelo contrário, já depois de ter dito que aderia à Commonwealth, foi subscrever, e com todo o gosto, a declaração de constituição da CPLP. Nós temos que compreender que esses países estão em espaços diversificados e que obviamente lhes interessa... e eu percebo isso perfeitamente, fui daqueles que disseram, em Portugal, que isso era algo de natural. Não podemos ser exclusivistas.

Jaime Spitzcovsky: O senhor acha natural Moçambique aderir à Commonwealth?

Jorge Sampaio: Acho que foi uma decisão soberana dos seus dirigentes e do seu povo e tenho que aceitar. Não vou modificar nada por isso, pelo contrário, acontece que não só depois disso, é um arauto da CPLP muito firme. Por exemplo, as relações bilaterais entre Portugal e Moçambique desenvolveram-se muitíssimo nesses últimos dois anos. Portanto, essa diversidade, quando eu falava há pouco de diversidade regional, é isso mesmo. Portanto, seria completamente absurdo... Entre Portugal e o Brasil, está a acontecer, as relações frutuosas... [Imagine se eu] começasse agora a chorar porque o Brasil faz parte do Mercosul. Não, pelo contrário, tenho é que descobrir meios de influenciar, com o voto de Portugal na União Européia, que um acordo entre a União Européia e o Mercosul seja o mais forte possível. Esse é o desenvolvimento natural das coisas; há espaço para tudo.

Adrian Dickson: Mas, senhor presidente, acho que ainda é relevante a pergunta da minha colega. Qual é a visão do senhor da CPLP no futuro, nos próximos...?

Jorge Sampaio: Eu acho que é um dos passos de concertação diplomática significativos. Repare bem que pode significar uma batalha que o Brasil vai ter na estruturação das Nações Unidas, sua luta por uma cadeira permanente no Conselho de Segurança, repare bem o que significa: Portugal fez parte do Conselho de Segurança em 1997 e em 1998; o grupo africano é de grande peso em uma decisão de uma assembléia; os países africanos da CPLP, dois deles com o tamanho que têm e os outros também, com sua importância, constituem momentos de influência significativa nesse grupo [para] o Brasil, na sua relação com muitos outros países no mundo. Bem, isso é uma concertação internacional significativa para esse objetivo. Espero que termine bem, que a reforma avance e que o Brasil obtenha essa cadeira. Esse é um exemplo. Mas há outro exemplo: a Argentina está a aprender português, como sabe, é uma língua que se ensina hoje. Em África, a mesma coisa; na Europa, a mesma coisa; e portanto há aqui um espaço unificador que tem que passar para a ciência. Temos que nos preocupar com a necessidade de a dimensão não ser apenas puramente cultural no sentido estrito, mas no sentido maior e, portanto, eu vejo na concertação diplomática, no desenvolvimento da língua, nas parcerias a fazer, na troca de experiência, na influência em geral, vejo futuro, se nós tivermos isso como preocupação. Mas, para responder às duas perguntas, eu direi um pouco mais: é que isso é compaginável... diz-se assim aqui, “compaginável”?

Maria Cristina Poli: Não é comum [ri].

Jorge Sampaio: É articulável, pode-se fazer ao mesmo tempo do que a pertença a outros blocos. E é isso que eu acho que é a vitalidade possível da comunidade dos povos...

Maria Cristina Poli: Mas fortalece Portugal dentro da União Européia?

Jorge Sampaio: Ah, eu não tenho dúvida que fortalece. Portugal apresenta-se na União Européia com uma posição estratégica muito significativa, porque, primeiro, nunca prescindiu dela. Diz-se sempre, desde o princípio, que, como um país europeu, desejaria pertencer à União Européia. Conseguiu realizar esse objetivo, mas diz-se sempre que tinha uma vertente Atlântica no seu relacionamento, e que isso implicava as Américas, e nomeadamente a relação privilegiada com o Brasil e a relação privilegiada com os países africanos de expressão oficial portuguesa. Nós temos uma condição única, e quando se... Ontem e anteontem em Brasília, o senhor presidente do Brasil e eu próprio falamos em coisas, em relações trilaterais, em vértice, como eu disse no meu discurso, esses três vértices são cruciais: europeu, brasileiro e africano, de ligação e de projetos futuros que podem ser um contributo muito importante, até para o desenvolvimento desses países, e nomeadamente daqueles que estão hoje mais carenciados desse desenvolvimento.

Luiz Felipe de Alencastro: Senhor presidente, eu creio que há uma série de mal-entendidos nas relações bilaterais que vêm, às vezes, de falta de informação. Eu lembro, por exemplo, na época em que o presidente Fernando Henrique visitava Portugal, se alegou que não era em Portugal que ele fazia a primeira visita oficial, que o primeiro-ministro [de Portugal] António Guterres tinha vindo ao Brasil antes e logo na primeira visita oficial. Ora, os senhores são dois, o primeiro-ministro António Guterres e o senhor mesmo, a fazerem visitas oficiais, enquanto que o presidente Fernando Henrique é um só. Quando ele sai para ir ao Mercosul, ele é o chefe de governo e o chefe de Estado. E isso se alastrou durante uns dias pela imprensa também. E há esse mal-entendido grande sobre as relações bilaterais. Não seria mais interessante que nossos diplomatas, nossos jornalistas, nossos professores explicassem que as coerções e os compromissos do Tratado de Maastricht e [o Acordo de] Schengen [convenção de 1985 entre países europeus sobre uma política de livre circulação de pessoas na Europa] limitam a margem de manobra de Portugal, no que se refere a acordos bilaterais, como já aconteceu com a Inglaterra, com relação à Austrália e ao Canadá? Que, entretanto, são muito mais unidos à Inglaterra do que Portugal jamais foi ao Brasil, dado que se bateram nas duas guerras mundiais os australianos e os canadenses do lado dos ingleses? Não seria melhor que se explicasse: o passado conta, a estima também, mas os acordos bilaterais nessa questão de nacionalidade e tal estão condicionados por uma aposta que Portugal faz no mercado comum, na União Européia e restringe a nossa margem de manobra?

Jorge Sampaio: Não estou de acordo consigo. Aí, aliás, na sua pergunta, há seguramente, desculpe que lhe diga, há [umas] 40 perguntas. E, portanto, poderíamos estar aqui toda a noite nessa matéria.

Luiz Felipe de Alencastro: Pois não.

Jorge Sampaio: Primeiro que nos [...] compromissos internacionais dificulte o que quer que seja. O que eu tenho verificado, sinceramente, é que há um, vamos dizer assim, uma falta de informação muito importante sobre certas coisas que não se passaram de todo, e que aqui se pensa que se passaram. Primeiro [no início dos anos 90] foi o problema dos dentistas [brasileiros, cujos diplomas não eram reconhecidos para o exercício da profissão em Portugal], que vai a caminho de solução, como se a única coisa que houvesse entre Portugal e o Brasil fosse o problema dos dentistas. O problema dos dentistas é importante, sem dúvida, merecem toda a consideração, mas nós não podemos resumir as relações entre Portugal e Brasil ao problema dos dentistas. Depois, a CPLP e depois há, consagrado dos dois lados, o princípio de reciprocidade. E eu acho que esse princípio existe, estavam a dizer por aí que o princípio tinha desaparecido, não é verdade, até estavam a dizer que eu é que tinha tirado esse princípio, como se eu pudesse, primeiro, tirá-lo – nunca se faria uma coisa dessas –, e, segundo, eu não tinha poder para isso, mesmo que quisesse, e não queria, como é óbvio. E, portanto, estamos em uma fase em que calmamente poderemos desenvolver em que é que se pode solidificar mais esse princípio na prática da reciprocidade. Eu, sinceramente, em Portugal, não vejo o mais pequeno mal-entendido com o relacionamento entre portugueses e brasileiros. Fico muito surpreendido quando ouço isso aqui como um fato que vos traz, às vezes, como alguma emoção.

Maria Cristina Poli: Mas Portugal é um país atraente para os brasileiros?

Jorge Sampaio: O Brasil também é um país atraente para os portugueses...

Maria Cristina Poli: Mas eu perguntei se Portugal é.

Jorge Sampaio: Acho que isso é com os brasileiros. Eu não posso fazer aqui propaganda do meu próprio país, porque não sou do Instituto de Propaganda Nacional, que não existe já felizmente, isso era em outros tempos. Mas acho que sim, acho que tem sido atrativo, mas naturalmente isso não é sempre assim, quer dizer, depende das [...] econômicas de cada país. Mas tem a porta aberta, quer dizer... agora, às vezes, diz-se bem que os países têm restrições no mercado de emprego que afetam todos, e que é preciso fazer essas coisas. É preciso distinguir – isso é que eu quero fazer um apelo à opinião pública brasileira, tão qualificada como esta que está aqui –: uma coisa é a reciprocidade, que existe rigorosamente nas duas constituições da mesma maneira. Outra coisa diferente, que não está em discussão neste momento, é saber se há livre circulação, e há, mas se há autorização de trabalho ou se não há. É outra coisa completamente diferente. E hoje, neste momento, não vejo que nós possamos, a partir do incidente dos dentistas, fazer disto um incidente [...] que está em vias de solução. E eu espero que os ministros de educação dos dois países, que se vão encontrar agora em novembro [...], uma das preocupações do ministro português e do ministro brasileiro é encontrar um esquema de comparação dos diplomas entre os dois países, e fazer aplicar entre o Brasil e Portugal, e Portugal e o Brasil, aquilo que Portugal tem com a União Européia, e o que é? É que um estudante de arquitetura, por exemplo, pode ir no Programa Erasmus, fazer o quarto ano de arquitetura em Barcelona, e Portugal admite esse quarto ano que ele fez em Barcelona; ou pode o estudante alemão vir a Portugal fazer o terceiro ano de medicina, e a Alemanha admite esse terceiro ano. Nós temos isso tudo para fazer a nossa frente, e é esse trabalho fecundo, que tem a extraordinária virtude: ninguém precisava aprender língua nenhuma, que eu acho que é preciso fazer agora, e não ficarmos fixados no tempo, a falar sobre uma coisa, quando a gente tem um imenso caminho a fazer as realizações concretas.

Laerte Fernandes: Presidente, um dos empenhos do senhor, na chefia do Estado português, parece ser o combate à lamúria [...], um certo espírito pessimista que o senhor localizaria no próprio espírito português, não sei se é lá nos dois lados do Atlântico. Eu queria saber como o senhor, que exemplo o senhor me dá no cotidiano, onde o senhor surpreende esse espírito pessimista do povo português? E como ocorre essa lamúria? O senhor acha, por exemplo, que neste conjunto de perguntas aqui, o senhor surpreende lamúrias, essa lamúria?

Jorge Sampaio: Não, de maneira nenhuma...

Laerte Fernandes: Então, como seria?

Jorge Sampaio: Eu explico. Eu acho que com esses 20 anos de democracia em Portugal, Portugal teve, tem, mas teve, sobretudo, atrasos históricos muito grandes, estruturais, econômicos, culturais, sociedade ditatorialmente fechada, isolada por causa da Guerra Colonial [(1961-1974) período de confrontos entre as Forças Armadas Portuguesas e os movimentos de libertação de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique], mas isso tudo caiu, como caiu também o Muro de Berlim, no dia 25 de abril de 1974, eu ouvi aqui 1975, na peça inicial, mas é em 1974 [risos], de modo que caiu o muro, quer dizer, aquele regime tão forte, de [...] política etc caiu em 12 horas, e o povo foi para a rua. Bom, mas nós temos um espírito crítico muito aceso. Em muitas vezes, não se conhece [e se diz]: “Ah, mas isto corre mal, a isto e àquilo”, mas se esquece que há coisas, que há gente nova, ou gente nova que faz ciência significativa, ou professores que estão em escolas isoladas e que têm um trabalho extremamente meritório, ou centros de saúde e de velhice, que estão em zonas de grandes dificuldades. E é preciso projetar para a opinião pública portuguesa essas realizações de gente das mais variadas idades, com o maior esforço, às vezes sem apoio, e que conseguem fazer – permitam-me a expressão – milagres em relação aos resultados. Eu tenho me preocupado em demonstrar que existe possibilidade de resolver coisas, se nós tivermos iniciativa, criatividade, força e se apoiarmos isso, e não estarmos por vezes, digamos, como o espectador de futebol que critica sempre o seu time e o seu treinador, porque não meteu aquele jogador ao intervalo, devia ter metido etc, aquelas coisas que a gente sabe. É isso o que eu digo [que é] a lamúria, e, portanto, às vezes, sou criticado. Por exemplo: “Ah, mas você, afinal, só quer ver as coisas boas, como se só houvesse coisas boas em Portugal”.

Laerte Fernandes: O senhor, de certa forma, os críticos dizem que o senhor constrói um discurso otimista, e que não incorpora as coisas negativas no caminho, não é?

Jorge Sampaio: Quem foi prefeito de uma cidade como Lisboa, e que conhece, digamos, as dificuldades que existem em alguns casos, pelo menos nas grandes cidades em Portugal, de habitação etc, não precisa ir ver o que já sabe que existe, precisa é de dinamizar a possibilidade de ultrapassar isso. O que interessa agravar a situação de isolamento ou de exclusão? O que interessa é dar uma palavra, não como pregador, mas como político capaz de realizar. Porque nós temos, como políticos, uma responsabilidade muito séria. E que eu falo da Europa e falo do meu país – atenção, isso é preciso dar como ponto prévio –, porque um chefe de Estado não pode falar sobre política interna brasileira, naturalmente. Mas na Europa, isso eu posso, e digo de Portugal, os cidadãos têm certa distância em relação aos políticos, como quando eu era advogado, e os advogados almoçavam uns com os outros no meio dos julgamentos, as duas partes diziam: “Mas, afinal, eles entendem-se, e nós é que estamos zangados”. E, portanto, essa idéia de que a classe política – expressão, aliás, lamentável –, que a classe política está isolada, que se entende sempre entre si, e que o povo está cá embaixo, é uma idéia que é preciso combater, porque a democracia precisa de participação, precisa de vida, e, portanto, nós temos que incutir a pedagogia de que a democracia traz resultados, que a gestão cuidadosa, equilibrada, inovadora, traz consequências positivas e, ao mesmo tempo, apontar os erros e abrir, sempre que possível, um debate sobre as grandes questões.

Adrian Dickson: Senhor presidente, lendo os jornais, eu tenho visto que, nos últimos meses, tudo indica que – falando de coisas positivas – Portugal vai se classificar para ser considerado um dos primeiros países da União Monetária Européia, um fato que realmente é um pouco desconhecido aqui no Brasil e em toda a América Latina. Eu gostaria que o senhor nos explicasse qual é a importância da União Monetária Européia. E qual é a opinião do senhor: Portugal vai ser um dos primeiros países a participar?

Jorge Sampaio: Nós temos hoje, nesse momento, e agora que estamos a preparar o orçamento para 1998, estamos a cumprir todos os critérios do Tratado do Maastricht para podermos entrar. Portanto, tem sido um desafio português muito sério, com bons resultados, e eu julgo que é com muita esperança, porque estamos a cumprir esses critérios, que vamos estar na primeira linha da criação da moeda única. Portanto, [...] da União Econômica e Monetária. A Europa é um projeto político, é um projeto econômico e é um projeto social. São três coisas, se posso dizer assim tão facilmente. A Europa avançou muito no projeto econômico, avançou menos do que eu gostaria em um projeto político e precisa avançar mais em um projeto social. O projeto econômico significa que um instrumento monetário... fixadas as grandes regras, com finanças em ordem, paridade das moedas, significa uma possibilidade muito grande de jogar na cena internacional um papel significativo para além daquilo que, entre os vários países, isso pode dinamizar. É um momento, em meu entender, crucial, vai trazer um fogo novo à União Européia, e eu espero que experimentem então – feito ou realizado esse objetivo –, permita então aliar um pouco também para aquilo que é preciso, posta a casa em ordem, como nós dizemos, em matéria de finanças públicas, possa também ter uma dimensão do desenvolvimento econômico que precisa, obviamente agora, de crescer mais, criação de emprego, desenvolvimento de investimentos etc.

Jaime Spitzcovsky: Senhor presidente, ainda falando de Europa, o senhor ganhou as eleições como candidato do Partido Socialista. Depois, Tony Blair [líder do Partido Trabalhista do Reino Unido entre 1994-2007 e primeiro-ministro do Reino Unido entre 1997-2007]...

Jorge Sampaio: [interrompendo] Não, não. Fala das minhas eleições?

Jaime Spitzcovsky: Sim.

Jorge Sampaio: Não, não, isso é preciso distinguir. Em Portugal, um candidato à Presidência da República precisa ser representado por um conjunto aos milhares de cidadãos. Depois, os partidos apóiam ou não, mas ninguém é efetivamente um candidato do partido tal. É bem verdade que não há candidatos que possam aguentar-se sem o apoio de um partido. Eu tive, entre outras coisas, outros apoios muito significativos, tive o apoio do Partido Socialista, que era o meu partido.

Jaime Spitzcovsky: Mas o senhor é um histórico socialista.

Jorge Sampaio: Histórico, olhe que, se diz isso em Portugal, isso é muito complicado, porque os históricos... [risos]. Os históricos do Partido Socialista não consideram a mim um histórico. Mas é uma discussão interna portuguesa...

Jaime Spitzcovsky: [interrompendo] Ok. O senhor foi secretário-geral do Partido Socialista.

Jorge Sampaio: Isso é verdade.

Jaime Spitzcovsky: O senhor foi secretário-geral do Partido Socialista; o Tony Blair venceu as eleições no Reino Unido; [Lionel] Jospin [pelo Partido Socialista Francês, foi primeiro-ministro entre 1997-2002], na França. O que significam essas vitórias socialistas e que tipo de socialismo é esse?

Jorge Sampaio: Eu penso que é um grande esforço para, depois daquilo que eu acho ser a falência do mais desenfreado neoliberalismo em matéria econômica, que deu muita exclusão e muita superação, significa um esforço de conjugar princípios de solidariedade e de igualdade de oportunidades com o mercado e, digamos assim, com a confiança e a participação de um setor privado forte. Penso que, de uma forma muito resumida, é isso o que se pode dizer e, portanto, se quiser, vamos ver o futuro. A família socialdemocrata européia procura respostas entre aquilo que é exigência da criação do emprego, na adaptação a esses novos momentos de invasão tecnológica tão significativamente rápida. Mas penso que os europeus aprenderam também que a desregulamentação mais completa produziu uma falta de coesão social muito significativa. E há que encontrar novas respostas. E, portanto, nesses dois casos que citou, foram alternativas que surgiram, e o povo exprime-se quando está convencido de que uma alternativa vale a pena ser experimentada, porque tem credibilidade, é isso.

Laerte Fernandes: Presidente, o seu projeto socialista, de governo socialista, está mais perto...

Jorge Sampaio: [interrompendo] Mas eu não sou chefe do executivo, atenção.

Laerte Fernandes: Sim...

Jorge Sampaio: Sou presidente...

Laerte Fernandes: Sim, mas o senhor tem uma idéia de governo socialista e está engajado...

Jorge Sampaio: Eu queria saudar os espectadores da RTP Internacional, que sabem um pouco da Constituição portuguesa, e se pensam que eu agora aqui estou a dizer que sou chefe do governo, abre uma crise política em Portugal... [risos]. [...] evitar que haja crise política [risos].

Jaime Spitzcovsky: Mas o primeiro-ministro [António Guterres] é socialista.

Jorge Sampaio: Claro que é, e eu fiz uma coisa que ninguém tinha feito. Eu disse que, embora o candidato a presidente seja um candidato que aparece com um conjunto de forças, e que tem que manter a posição de arbitragem, de moderação, eu disse que guardava o meu cartão, porque as pessoas não são isentas só porque tenham ou não tenham um cartão, são isentas por suas ações. Mas faça a pergunta.

Laerte Fernandes: Mas, como projeto socialista, de governo socialista, o senhor está mais próximo do Jospin, do modelo francês, ou mais próximo de Tony Blair, modelo inglês?

Matinas Suzuki: Ou mais próximo do presidente Fernando Henrique Cardoso?

Jaime Spitzcovsky: Eu queria anexar uma pergunta ainda...

Jorge Sampaio: Eu queria dizer uma coisa que vão achar estranhíssima. [...] Eu queria – desculpem dizer isto assim –, eu tenho é que ser mais próximo de mim próprio. Eu penso que fui eleito pelas pessoas terem avaliado quem era Jorge Sampaio: um percurso político, que aqui foi bem descrito, um percurso político democrático, um homem que, desde estudante, desde o líder acadêmico, na revolta acadêmica de 62, foi um ponto de encontro de várias confluências ideológicas e políticas; que foi, enquanto prefeito, que foi o seu cargo mais evidente, além de deputado muitos anos etc, foi um homem que procurou consenso, capaz de exercer com moderação os poderes que a Constituição lhe dá. Isso é o que eu quero ser. Obviamente, com preocupações. Quais são? Preocupações de que a democracia seja mais participativa, no meu entender; que as instituições [...] no seu dia-a-dia, dê respostas às ansiedades das pessoas, e que obviamente tudo isso não sejam números, não sejam orçamentos, os cidadãos não sejam algo que está por aí, mas que eu seja uma essência da vida política e que, afinal de contas, haja mais igualdade de oportunidades, esses são os meus princípios.

Maria Cristina Poli: Presidente, foi difícil para o senhor ter como antecessor uma figura tão forte como a do Mário Soares [presidente de Portugal entre 1986-1996]?

Jorge Sampaio: Não foi difícil. Evidente que o doutor Mário Soares, com a força que tem, com a influência que tem, que teve, é uma figura muito importante, que deu conteúdo à Presidência. Mas eu não posso olhar sempre para as sombras que estão atrás de mim, ou para os espíritos que me envolvem, embora os conselhos sejam úteis, as frases também, os percursos da mesma maneira. Eu acho que o povo tem que perceber quem é cada pessoa, sem cosmética, sem [maquiagem], como a gente põe aqui, para não ficar muito mal na televisão. E, portanto, isso dá riqueza à vida política. E as pessoas começam hoje, em Portugal, a perceber quem é o Jorge Sampaio, o que ele pode significar enquanto presidente da República.

Maria Cristina Poli: Mas para fora do país, a cara de Portugal ainda está muito ligada à de Mário Soares?

Jorge Sampaio: Estará sempre, porque é um dos fundadores da democracia portuguesa, um combatente contra a ditadura. Nós não devemos fazer esquecer dos nossos grandes símbolos democráticos. Devemos ter uma vulneração, mas também devemos fazer o nosso próprio caminho, fiéis a essas raízes, esses bons exemplos, colhendo ensinamentos, mas procurando, sobretudo, ser nós próprios, não estarmos sempre afetados por isso. Eu tenho uma excelente relação com o doutor Mário Soares; aprendi muito com ele, nos velhos tempos; tivemos muitos desacordos no mesmo partido, mas tivemos uma coisa que é importante: sempre nos respeitamos mutuamente.

Luiz Felipe de Alencastro: Presidente, o escritor José Saramago disse há pouco tempo: “Nós temos um presidente socialista, temos um primeiro-ministro socialista, seria bom que tivéssemos um pouco de socialismo”. Eu não vou levar em conseqüência a ponto de pedir ao senhor se manifestar sobre a política interna portuguesa, mas o fato é que o senhor, na sua campanha presidencial, falou muito da necessidade de reequilibrar o litoral e o interior, esse era um dos tópicos da sua campanha. E esse ponto é essencial para a consistência da cultura portuguesa, que está ligada a uma presença maciça, considerável de economia camponesa, uma economia rural. Ora, essa economia e esse núcleo forte da cultura portuguesa não estão justamente ameaçados pela integração européia e pelos mecanismos de Bruxelas, que vão destruindo toda essa ecologia para plantar eucalipto e jogar gente para as cidades?

Jorge Sampaio: Eu disse sempre, e é verdade, e até recentemente fiz uma volta pelo interior do país para assinalar a importância do interior. E lá está a fazer, a descobrir no interior os projetos de desenvolvimento que existem, as energias humanas que existem, as coisas positivas que existem e o meu tema de campanha foi a coesão nacional, e a coesão significa também, nesse caso, que as diferenças que existem entre o litoral e o interior se possam atenuar. Bom, não vamos agora aqui, naturalmente, explicar por que muitas cidades do mundo são fatores de atração para as zonas rurais. Penso que o Brasil conhece isso bem, não é? Em Portugal, a sua escala também teve relação: litoral mais desenvolvido, com mais condições, portos, aeroportos, vias etc. Chamou por aquilo que, em outros tempos, nós designávamos por acumulação, chamou outros desenvolvimentos. O interior, portanto, não teve a mesma capacidade, e nem poderia ter, de criar o mesmo emprego, de criar as mesmas estruturas. Eu penso que estamos a começar com as vias que existem, do ponto de vista das infraestruturas, um grande desenvolvimento em infraestruturas que Portugal teve, nós temos que reequilibrar e criar condições para o desenvolvimento do interior. E essa é uma das minhas batalhas. Sem dúvida que penso, quando eu dizia, antes de começar o programa, que as cidades têm o seu limite. Portugal precisa de uma rede de pequenas e médias cidades que fixem populações, e há excelentes exemplos disso. E, portanto, pode crer que essa é uma das minhas batalhas; penso que é uma batalha também do governo; penso que é uma batalha dos vários partidos. Divergimos às vezes sobre... eles divergem, às vezes, sobre a maneira de se fazer. O presidente da República em Portugal tem que chamar a atenção para esse tema, tem que lançar esse tema, porque acha, como eu acho, que não pode haver diferenças de oportunidades entre o jovem que nasce em Chaves ou em Castelo Branco, que são no interior, de um jovem que nasce em Lisboa. Tem que haver cada vez maior proximidade dessas oportunidades, é uma batalha para muitos anos. Não considero, contrariamente ao que sua pergunta implicaria, não considero que a União Européia, nisso, tenha sido negativa. Pelo contrário, evidentemente que há o velho problema da política agrícola comum, que poderemos dizer, e eu posso dizer aqui, e sabe-se lá as conseqüências do que eu digo, mas, enfim, que foi uma política agrícola comum, feita há 30 anos, para certos países, e que os países meridionais se adaptam com dificuldade. A batalha da chamada Agenda 2000, que hoje está em cima da mesa, e portanto significa a discussão de vários desses mecanismos nos próximos dois anos, será uma batalha muito séria, muito séria. Portugal tem que se meter, e estou certo de que se baterá, pela possibilidade de a União Européia consagrar uma certa especificidade portuguesa, relativamente àquilo que pode ainda significar de desenvolvimento do mundo rural, mas não como há 10 anos, ou há 20, com uma população que [...] diminuiu na agricultura, e precisamos de transformar para tornar também mais competitiva. Eu acho, sinceramente, que por mais que por vezes se proteste, algumas coisas ainda são possíveis, porque existe política agrícola comum, porque existe uma política comum de pesca, embora eu admita que isso o que eu estou a dizer, neste ponto, seja muito controverso em Portugal. Mas eu, pessoalmente, penso que um pequeno país que não tenha dificuldade de poder impor uma negociação e impor, digamos, uma forma de dirigir as coisas vai ter que negociar dentro desses quadros um esquema que lhe permita, digamos assim, poder desenvolver, sem quebrar, a tal coesão nacional e a coesão...

Matinas Suzuki: Senhor presidente, nós vamos agora fazer um pequeno intervalo e a gente volta...

Jorge Sampaio: Já passou esse tempo?

Matinas Suzuki: Já passaram 45 minutos.

Jorge Sampaio: Já passou metade do jogo?

Matinas Suzuki: Metade do jogo [risos]. Eu vou apitar aqui o final do primeiro tempo. Nós vamos encerrar então este primeiro bloco, fazer um pequeno intervalo e a gente volta daqui a pouquinho com a segunda parte da entrevista com o presidente de Portugal. Até já.

Jorge Sampaio: Espero não ficar fora do jogo.

[intervalo]

Matinas Suzuki: Voltamos com este Roda Viva especial, que entrevista esta noite o presidente de Portugal, Jorge Sampaio. Vou passar a palavra para o Dines.

Alberto Dines: Presidente, eu estava em Portugal quando foi concedido o Prêmio Nobel da Paz [de 1996] ao [político e jurista timorense] José Ramos-Horta e ao [bispo católico timorense Carlos Filipe] Ximenes Belo. E assisti a sua belíssima e emocionante intervenção em inglês, que deixou a senhora sua mãe muito orgulhosa depois de ler os jornais... [risos].

Jorge Sampaio: Foi ela que me ensinou [risos].

Alberto Dines: Foi ela que ensinou inglês, exatamente. Mas, além disso, a opinião pública brasileira está um pouquinho afastada da questão do Timor; e eu tive talvez o privilégio de trazer pela primeira vez o Zé Ramos-Horta aqui para o Brasil, em 1994, em um congresso de jornalistas [Segundo Congresso Internacional do Jornalismo de Língua Portuguesa, realizado no Rio de Janeiro]. Eu queria que o senhor falasse um pouco sobre o Timor: quais são as possibilidades de se encontrar uma solução que contemple o desejo de auto-emancipação dos timorenses?

Jorge Sampaio: Bom, não vamos talvez começar em 1975...

Alberto Dines: Não, não...

Jorge Sampaio: ...e eu quero lhe agradecer por esse esforço de dar visibilidade, como muitos outros agora, à questão do Timor Leste no Brasil. Portugal foi designado por ter [...] território pelas Nações Unidas, porque as Nações Unidas consideram que não houve um processo de autodeterminação que tenha terminado. Houve, no nosso entendimento e de muita gente, a invasão da Indonésia no Timor Leste, com tudo o que se passou a seguir: os direitos humanos, sofrimento, a resistência heróica de um povo etc. O problema do Timor Leste não é um problema entre nós, Portugal e Indonésia, é um problema da sociedade internacional. E penso que hoje devemos... com o novo secretário-geral das Nações Unidas e com o mandato que ele tem para poder encaminhar a negociação para se encontrar uma solução internacionalmente aceita para o Timor Leste, é o caminho que está aberto. Eu fiz no Congresso brasileiro, hoje de manhã em Brasília, no jantar que a sua excelência, o presidente do Brasil, ofereceu a minha chegada, eu fiz um apelo. Tem sido muito discutida qual é a posição deste ou daquele país...

Matinas Suzuki: A do Brasil, nós mesmos, internamente, o senhor não quer se pronunciar sobre isso, mas consideramos que é uma posição bastante tímida com relação ao Timor Leste.

Jorge Sampaio: Eu, pessoalmente, entendo que, no momento atual, em que a opinião pública internacional, por muitas razões, por razões de sofrimento, das mortes, mas também por causa do Prêmio Nobel, que deu uma visibilidade acrescida, eu penso que devemos, primeiro do que tudo, manter a negociação sob a égide do secretário-geral das Nações Unidas, penso que é fulcral. E, depois, aproveitar o relacionamento dos países que, por si próprios, sensíveis à questão, ou que a conhecem, podem ajudar a encontrar uma solução. Finalmente, todos nós, aqueles que se interessam pela causa, contribuir para que os timorenses tenham também uma plataforma entre si sobre democracia e liberdade no futuro. Eu estou sabendo que se trata de uma questão muito difícil, mas tenho uma profunda emoção quando falo do sofrimento daqueles que lá estão. Eu, há pouco tempo, recebi pessoas que tinham vindo do interior do país, não posso dizer quais, naturalmente, e ouvi as suas descrições sobre o seu cotidiano, um cotidiano de sofrimento, um cotidiano de repressão, o andar de joelhos ao ir pedir que uma criança saia e seja libertada. Tudo isso, que é uma pressão tão grande perante um povo que apenas deseja continuar a ter os seus costumes próprios, a língua que fala, a religião que pratica, que é um grande elemento unificador. E, portanto, eu peço aos países... não peço aos países que se zanguem todos com a Indonésia, seria absurdo, seria irrealista; o que eu digo é que temos que ter uma solução internacionalmente aceitável, que preserve a aplicação do direito à autodeterminação. E que o povo timorense tenha condições para poder decidir do seu destino. A autodeterminação pode dar muitas conseqüências, muitos resultados e muitas aplicações, mas esse princípio não foi verificado. Portanto, promovendo e ajudando a promover as negociações entre Portugal e Indonésia, o secretário-geral das Nações Unidas, sob a sua égide, por um lado, ajudando a promover um diálogo intertimorense, que é muito importante. Os que são contra estão no exterior, os que são a favor é que estão lá dentro da integração; tem que ter lugar entre si, tem que desenvolver o que é o futuro da sua terra. E, portanto, quando Ramos-Horta se desloca ao Brasil, fala com o presidente do Brasil...

Matinas Suzuki: [interrompendo] Vem para o Roda Viva [risos] [José Ramos-Horta foi entrevistado no Roda Viva em 25/11/1996].

Jorge Sampaio: É, ele tem muito jeito... [risos]. Quando, digamos, a CPLP faz a declaração que faz, quando os ministros estrangeiros dos países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, na Bahia, voltam a referir e consagram que Timor é observador, por enquanto, na CPLP, são passos que se estão a dar. E, por isso, o apelo que eu faço é para que os jornalistas, cientistas, universitários, povo, partidos falem desse tema, como um tema que, no fundo, para dizer de uma forma muito simples, não há povos dispensáveis, como dizia um conhecido professor, Adriano Moreira, deputado português, não há povos dispensáveis. E os timorenses foram dispensáveis muito tempo. Mas hoje, felizmente, por um conjunto de circunstâncias, pelo seu esforço, por determinação, pela curiosidade, pelo sofrimento, pelos prêmios Nobel, já é uma causa mais conhecida e, portanto, façamos todos os esforços, uns e outros, de maneira diferente, claro está, para que ela tenha visibilidade e, sobretudo, uma responsabilidade que eu julgo crucial, que é termos o dever de encontrar soluções para cada momento que se está a viver.

Jaime Spitzcovsky: Senhor presidente, eu queria fazer o que nós chamamos aqui no Brasil de “o outro lado”, que eu considero indispensável para o jornalismo. E foi um posicionamento que eu também adotei quando entrevistei o chanceler indonésio Ali Alatas [ministro das Relações Exteriores da Indonésia entre 1988-1999], em junho, em Jacarta. O senhor não acredita que Portugal deva fazer nenhum tipo de autocrítica em relação a sua política para o Timor Oriental? Qual é a responsabilidade de Portugal nesse quadro dramático em que esse povo timorense vive?

Jorge Sampaio: Agora?

Jaime Spitzcovsky: Agora.

Jorge Sampaio: Nenhuma. A descolonização, como sempre, foi o que foi, mas eu não posso, de maneira nenhuma, aceitar o argumento da Indonésia, que justifica 20 anos de repressão por aquilo que foi uma confusão e uma dificuldade de uma descolonização que se não fez, por ventura como todos nós gostaríamos de ter feito. É um argumento inadmissível, porque não se pode justificar o sofrimento, a morte, a denegação dos mais elementares direitos com algo que aconteceu, ou terá acontecido, ou é inventado que tenha acontecido como justificação para uma política que a sociedade internacional completamente repugnou. Nisso, sou definitivo, eu não tenho nada contra este país ou contra aquele, pelo contrário, eu sou uma pessoa pela paz, eu sou também uma pessoa quase que intransigente na defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana. E se há povo sacrificado, povo que quer ir à sua igreja, que quer ter um diálogo sob a égide do seu bispo, que quer continuar a falar português, que fogem, quando podem, os estudantes para irem para Portugal, esse povo tem ao menos esse direito, mínimo, de poder dizer: quero isto ou quero aquilo. Portanto, eu acho que grandes negociadores internacionais... Não me interessa discutir o que foi há 20 anos, porque basta ler o livro do senhor James Dunn [que escreveu East Timor: A rough passage to independence], o grande australiano que acompanhou esse processo, para saber que isso é tudo um pouco diferente do que diz o doutor Ali Alatas. E eu acho que, agora, como sempre: e agora? E agora? O que é que se faz agora? O que é que me interessa a mim dizer que a ditadura em Portugal devia ter feito uma negociação com os movimentos de libertação em Angola? O que é que isso me interessa? O que é que resolve agora o problema angolano dizendo isso? Não resolve nada. Agora é preciso ver se chega à paz. Em Timor é preciso ver se, ao menos, as pessoas podem ter menos pressão por uns tempos, se podem escolher um certo destino, esta é que é a questão.

Adrian Dickson: Senhor presidente, nos últimos meses, o presidente da África do Sul, o senhor Nelson Mandela, tem manifestado interesse em fazer uma mediação para colaborar na liberação do líder rebelde timorense [durante a ocupação indonésia], Xanana Gusmão, e simultaneamente tem havido aparentemente uma confusão entre Portugal e a África do Sul: foi expulso o embaixador de Portugal na África do Sul. Duas coisas: eu queria saber do senhor qual é a opinião sobre a participação do presidente Mandela nesse processo e gostaria que nos explicasse o que aconteceu com o embaixador de Portugal na África do Sul.

Jorge Sampaio: Eu não chamo a intervenção do presidente Mandela [de] uma mediação. O presidente Mandela referiu várias vezes que estava a colaborar com as iniciativas do senhor secretário-geral das Nações Unidas, e acho que é assim que a questão deve ser colocada: o presidente Mandela foi à Indonésia, pediu para falar com o senhor Xanana Gusmão, falou com Xanana Gusmão e eu achei que isso era um ponto significativo para aceitar um convite do senhor presidente Mandela. Eu queria ouvir o que isso significava...

Laerte Fernandes: [interrompendo] Foi retirado da prisão para ir ao palácio...

Jorge Sampaio: Exatamente...

Laerte Fernandes: ...para o encontro com Mandela.

Jorge Sampaio: Isso foi a primeira vez que aconteceu uma coisa dessas em muitos anos. Esse fato é suficientemente importante para que lhe fosse dada atenção. Mas não houve aqui mediação nenhuma, nem poderia haver, mas lá está, é a mesma coisa que eu respondi a um de vós, isto é: bem é bom que haja as mais diversas iniciativas, o que significa que a questão tem visibilidade e que são esforços de colaboração com esse quadro de referência absolutamente insubstituível, que é a posição [...], essa sim, o esforço e mediação do secretário-geral das Nações Unidas. O que vai acontecer a seguir não sabemos, aliás, o senhor presidente da Indonésia desloca-se à África do Sul em novembro, vamos ver se alguma coisa resulta na seqüência desse encontro ao jantar, e vai-se ver. Eu espero que alguma coisa possa efetivamente acontecer. É completamente diferente, eu não queria falar disso, acho que foi um momento muito desagradável para Portugal, que Portugal reagiu com grande ponderação e grande sentido das relações internacionais, e sobretudo pensando na comunidade portuguesa forte que tem na África do Sul. Mas posso lhe garantir que para nós foi uma total surpresa que tenha sido encontrada essa medida, que nada fazia para ver na véspera quando eu saí da África do Sul. Eu preferia, se me permitem, não falar mais desse assunto, não acho que seja uma página que tenha nada de deslustrante para Portugal, muito antes pelo contrário, e por isso, se me permitem todos, eu que sou uma pessoa que gosto das liberdades, sou também chefe de Estado, acho que as coisas devem ficar assim.

Maria Cristina Poli: Presidente, o ano que vem Portugal vai estar como assim como pólo do mundo, com os olhos todos...

Jorge Sampaio: Espero que vá lá [risos].

Maria Cristina Poli: ...voltados para Lisboa, que vai ser a sede da Expo'98, Exposição Mundial [de 1998]. Que proveito vocês portugueses pretendem tirar dessa oportunidade?

Jorge Sampaio: Quando eu era prefeito de Lisboa, se me permite, porque é uma experiência de que gosto, nós fomos sempre a favor de que a parte ocidental da cidade precisava de um grande evento para ser modernizada. Agora já não sou [prefeito], [mas] é um grande acontecimento para a vida portuguesa, para a dimensão de um problema do próximo século, que é o problema dos oceanos, é uma chamada à sociedade internacional para poder olhar, de uma forma científica, na seqüência das convenções sobre o mar, relativamente aos oceanos, e se quiser é um ponto fundamental da afirmação de Portugal, da sua capacidade, e de contato entre todos os países, uma vez que, seja nos oceanos, seja no ambiente, seja no desarmamento, seja onde for, nós só podemos avançar para destruir ou para [...] um desenvolvimento que não existe, ou a exclusão que existe, se pudermos dialogar uns com os outros.

Maria Cristina Poli: Quer dizer, o tema serão os oceanos, é isso?

Jorge Sampaio: O tema são os oceanos, efetivamente, mas é também um momento de grande diálogo internacional, porque os países estarão todos representados, há mais de cem países representados. Esperamos muitos chefes de Estado em Portugal. Vai ser um ponto de grande orgulho para nós, porque, primeiro, vamos ser capazes de fazê-lo; segundo, vamos ser o centro das atenções; terceiro, vamos pôr essa atenção a serviço de grandes causas, como a evolução científica da proteção ambiental e dos recursos que são dos oceanos e, ao mesmo tempo, também naturalmente, cada povo pretende ser o dialogante forte em torno de vários temas. Eu não posso convidar todos deste programa a estar presentes, porque senão dizem que eu estou a ver se não me fazem perguntas difíceis [risos]. Mas, no final, convidá-los-ei para estarem na Expo'98.

Alberto Dines: Presidente, com sua licença, eu queria voltar ao assunto Timor, mas não ao assunto da África do Sul, evidentemente. Como um analista político que o senhor é, o senhor acha possível uma solução pacífica e ponderada para a questão do Timor Leste, com esse regime que está lá em Jacarta, um ditador, um dos mais repressivos regimes duráveis de que nós temos notícia, não é? O senhor acha, sua opinião pessoal, o senhor acha possível que se consiga alguma coisa razoável com esse tipo de regime lá?

Jorge Sampaio: Se me permite, eu respondo. Eu sei que foi muito comentado negativamente, por uma personalidade indonésia, aquilo que [...] meu discurso na CNN, naturalmente porque foi, digamos, uma agressão muito forte em favor da questão do Timor. É evidente que aquilo que acontecer em Timor vai ter relação com a própria evolução da Indonésia, com o jogo de forças que existirá nesse país, como é natural. Mas eu sou otimista, sou otimista não porque queira mais sofrimento, porque isso seria terrível, mas penso que a atenção de gente da sociedade internacional, a forma como todos aqui, em Brasília também... e Brasília é muito importante nisso, todos conhecem ou começam a conhecer esse problema. A Indonésia vai ter que ponderar, julgo eu, o seu desejo de ser uma potência com grande influência e não ter sempre na sua frente esse drama de Timor. Isso é um juízo utópico que eu estou a fazer, é pelo menos a minha vontade que eu gosto de exprimir. Vai ser preciso muito trabalho, muito esforço, muita perseverança, e espero que não muito sofrimento.

Laerte Fernandes: Presidente, só para concluir esse capítulo do Timor, o Estado [de S. Paulo] teve um enviado especial, e os jornais portugueses reproduziram hoje parte dessa matéria que descreve o estado policial no Timor Leste, com a presença de policiais, de controle da vida de todos os cidadãos. É uma certa angústia, sem dúvida, entre os resistentes timorenses em relação à solução negociada, a solução diplomática, e não parece haver outra. Eu acho que é esse caminho da diplomacia e dos acordos, da pressão internacional que vão talvez levar a um acordo. Agora, a dúvida e a angústia dos resistentes é que a Indonésia está fazendo maciços investimentos no Timor, tentando melhorar a vida inclusive...

Jorge Sampaio: Mas, curiosamente, nós temos feito em 20 anos, e temos feito ainda coisas mais difíceis, que é encher Timor Leste de pessoas vindas de outras ilhas, para terminar com essa especificidade de Timor Leste. Não conseguiu até agora...

Laerte Fernandes: Mas o temor é que a comunidade de língua de cultura portuguesa seja uma minoria, e na época desse plebiscito que o senhor espera seja realmente uma minoria que não possa decidir [...].

Jorge Sampaio: Eu não tenho dúvidas, porque, por exemplo, quando eu abri o Estado de S. Paulo e vi esse suplemento, fiquei maravilhado, porque significa que um jornal com a importância do Estado de S. Paulo fez um suplemento, mandou alguém para estudar, para ver, e isso é o que é preciso ser feito continuamente, essa pressão é preciso. E quando se diz: bem, fulanos foram a Jacarta; se fulano escreveu de Jacarta dizendo: nós [...] ir a Timor Leste, como fez há dias o representante do Itamaraty, e que relatou depois.

Laerte Fernandes: Produziu um relatório...

Jorge Sampaio: Um relatório significativo sobre tudo isso. É um movimento importante, mas agora as negociações que estão em curso nas Nações Unidas estão de uma forma que me parece mais ativas do que estiveram nesses últimos anos. Vamos ver se, com a continuada pressão internacional, com essa grande atitude pacificadora, admiravelmente de pastor das almas, que é do bispo [Carlos Filipe Ximenes] Belo; a dinamização internacional que Ramos-Horta dá à causa de Timor; o diálogo intertimorense que pode aparecer; a plataforma que é preciso para que nós todos aqui possamos dizer: eles querem isso dessa maneira; tudo isso são fatos que têm que andar um pouco depressa, sem dúvida, porque corremos, sem dúvida...

Laerte Fernandes: Há uma certa angústia, a angústia é muito clara.

Jorge Sampaio: Mas, repare bem: quem sofreu o que tem sofrido, quem tem as dificuldades que tem tido e quem ainda aspira a ter a possibilidade de se manifestar de maneira diferente é um povo heróico, e os povos heróicos não são derrotados.

Jaime Spitzcovsky: E o senhor acha que a morte do [Hadji Mohamed] Suharto [que assumiu em 1967 a presidência da Indonésia, cargo em que permaneceu até 1998, um ano após esta entrevista] pode ajudar a resolver a questão?

Jorge Sampaio: Ah, não, eu não passo atestados de... Como dizem em Portugal, não passo certidões de óbito a ninguém, nem quero que ninguém morra de maneira nenhuma, não. [...] não quero pronunciar-me sobre isso. Depois do programa talvez eu possa dar a minha opinião.

[sobreposição de vozes]

Laerte Fernandes: Eu queria mencionar uma frase aqui desta reportagem, que eu acho que resume bem: “No tempo dos portugueses, tudo era animado”, quer dizer, muito animado, esse contraste sobre o que era e o que está havendo.

Jorge Sampaio: Houve, há dias no Porto, uma jornada sobre Timor, e pessoas de todo o mundo que têm de cada causa grande interesse, mas houve pessoas também, como eu já disse, que vieram do interior, corajosas, que voltam para lá. Aliás, essa grande figura que é o senhor bispo Belo diz sempre: “Mas eu volto, eu volto, eu é que tenho as almas para cuidar”, e é um ponto importante perceber isso. Mas essas pessoas todas que vieram do interior têm uma profunda confiança de que a sociedade internacional não deixe morrer o seu desejo, não deixe morrer a sua expectativa. E se, neste programa, que é conhecidamente um programa visto em todo o Brasil, e vejo que estou perante pessoas de prestígio, que conhecem tão bem essa questão, aquilo que eu lhes posso pedir, como presidente de um país [...] é que continuem, como vejo, continuem a interessar-se, continuem a perguntar, continuem a observar, continuem a discutir. Isso é uma grande ajuda para esse povo esquecido.

Matinas Suzuki: Presidente, o que o senhor acha que vai acontecer com a língua portuguesa em Macau [colônia portuguesa  desde o século 16 até 20 de dezembro de 1999 quando teve a soberania transferida para a China]?

Luiz Felipe de Alencastro: Que, aliás, é falada por menos de 5% dos habitantes de Macau, 500 anos depois da presença portuguesa.

Jorge Sampaio: Sabe, nós não podemos... por isso é que eu digo que sou contra a lamúria [portuguesa], e digo por quê...

Laerte Fernandes: O senhor já está identificando a lamúria? [risos]

Jorge Sampaio: Eu estou a dizer que tenho pena que... Não me serve de nada, a dois anos do fim da administração portuguesa, dizer: ah, que pena que não falem mais português. Bem, tivemos 500 anos, não é? E, portanto, estamos fazendo um grande esforço... já estou a falar como você: “estamos fazendo”; em Portugal criticam, [preferem que se diga] “estamos a fazer” um grande esforço [risos]. Estamos a fazer um grande esforço, que é significativo neste momento, para localizar quadros que sejam bilíngües; estamos a discutir o estatuto da língua portuguesa a seguir, e estamos obviamente a ampliar... E hoje, em relação aos últimos quatro ou cinco anos, há de fato mais pessoas a falar português. Mas não é só isso. Alguém me perguntava antes de o programa começar; quando fui à República Popular da China em fevereiro deste ano, eu coloquei a questão de Macau no eixo, mas não como exclusivo, do futuro das relações entre Portugal e República Popular da China, entre a União Européia e a República Popular da China. E julgo que Macau – se as coisas em que eu estou confiante possam e continuem a correr bem daqui até a transição – pode ser uma entidade também de diálogo entre a União Européia e a República Popular da China; pode ser uma ponte para aquela região também com significado; tem uma identidade própria, que fez sempre com que tivesse, apesar de tudo, uma posição diferente da grande [...], mas ao mesmo tempo com as situações que conhecemos, tipicamente coloniais, que existiam em Hong Kong. Portanto, vamos ter um período em que vai ser desacelerada a contribuição, para que fique um direito assumido e partilhado, especial, que seja a herança e a continuidade da presença portuguesa, ao nível do direito, e portanto temos muita esperanças de que aquele velho, mas tão importante princípio do país [...], possa também obviamente ter êxito em Macau.

Maria Cristina Poli: Presidente, qual a influência da telenovela brasileira na vida portuguesa?

Jorge Sampaio: Sabe quantas telenovelas passam por dia nos canais portugueses?

Maria Cristina Poli: São cinco, não é isso?

Jorge Sampaio: Doze.

Maria Cristina Poli: Doze? O senhor assiste telenovela?

Jorge Sampaio: Várias vezes. Lembro-me da primeira, que foi Gabriela [adaptada do romance de Jorge Amado, Gabriela, cravo e canela, a telenovela foi produzida pela Rede Globo e exibida no Brasil em 1975]. O país parava...

Laerte Fernandes: Essa abriu o mercado, não é?

Jorge Sampaio: Eu não queria pôr os problemas assim, porque foi a grande surpresa de uma história conhecidamente admirável, de atores admiráveis a quem presto a minha homenagem, sobretudo, que nem todos estão vivos, e devo dizer que eu era deputado nessa altura e o Parlamento parava... [risos]. Parava por uma razão: porque iam saindo para ver a telenovela, depois não ficava ninguém.

Maria Cristina Poli: Mas, certa vez, o Daniel Sampaio disse que a telenovela brasileira ajudava...

Jorge Sampaio: Daniel Sampaio é meu irmão.

Maria Cristina Poli: Seu irmão, que é psiquiatra...

Jorge Sampaio: Exatamente. Pensei que fosse outro... [risos]. Está bem, é meu irmão.

Maria Cristina Poli: Ele disse que a telenovela ajudou a descomplicar as relações, especialmente entre pais e filhos, não é isso?

Jorge Sampaio: É verdade, ajudou várias coisas, se me permite, ajudou a perceber a criatividade da língua portuguesa e a incorporação de várias expressões que, sendo portuguesas, nós não usávamos. E, às vezes, nas semanas seguintes de elas aparecerem pela primeira vez, ouve-se no carro elétrico, ouve-se no ônibus... bom, isso é muito positivo. Depois, ajudou a conhecer o Brasil na sua diversidade. E, finalmente, ajudou a conhecer grandes atores, e isso teve uma influência positiva. Agora, não quero entrar... alguém dizia, brasileiros diziam: “Mas doze não é demais?” [risos]. Eu aí não digo nada, porque eu gosto de telenovela, quer dizer, portanto, não estou a dizer isto por estar aqui...

Maria Cristina Poli: Além da Gabriela, do que mais que o senhor se lembra?

Jorge Sampaio: Ah, eu vi muito, eu fui vendo aos bocados.

Matinas Suzuki: Presidente, o senhor não se preocupe, que os mexicanos estão devolvendo para nós o que nós estão mandando para lá... [risos]

Jorge Sampaio: Pode-se discutir muito do ponto de vista científico ou lingüístico, pode-se discutir isso tudo, se nós não estamos todos a ver a mesma coisa, mas isso se discute em relação à televisão em geral. Agora eu devo dizer que as famílias portuguesas talvez tenham se falado menos, porque na hora do jantar estão a ver a televisão, não é? Mas foi um momento também de congraçamento das pessoas para verem aquele mundo. Dir-se-á: o mundo é irreal, não é o mundo que a gente gostaria, mas explicou tão bem as várias camadas da vida social e política brasileira. Penso que isso foi útil, é o tal espírito da chamada CPLP, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa...

Luiz Felipe de Alencastro: Presidente, esse também pode ter uma outra leitura, pode ser que justamente o sucesso de Gabriela fosse o sucesso de uma descolonização que deu certo, 150 anos atrás, na época em que a descolonização portuguesa estava sendo um desastre. Um Portugal que desaparecia de uma parte do ultramar e que voltava todo empacotado de um outro jeito, do outro lado do oceano, mas o fato é que a língua portuguesa no mundo, que é um trunfo para a inserção portuguesa na Comunidade Européia, como também para a Espanha, e um trunfo para se distinguir da Espanha, é uma arma de dois gumes, porque ao contrário da situação que acontece com a Espanha ou com a França, onde o desequilíbrio é muito grande em favor da metrópole – eu digo desequilíbrio simplesmente de massa, dessa economia nesse tipo de comunicação de mídia e tudo –, no caso de Portugal é muito desequilibrado em favor da periferia ou da ex-colônia, mesmo muito antiga.

Jorge Sampaio: Não temos nenhum sentimento a esse respeito.

Luiz Felipe de Alencastro: O senhor não tem?

Jorge Sampaio: Nenhum. Nós nunca vemos... os historiadores de hoje poderão ver, alguns políticos muito ortodoxos também, mas nós não vemos o Brasil como uma ex-colônia, vemos como um país admirável. Repare, eu tenho certeza que os portugueses, meus compatriotas, acharam magnífico que eu estivesse ontem nas comemorações do dia nacional brasileiro [refere-se à data em que se comemora a Independência do Brasil]. É um acontecimento único, é uma coisa de que somos orgulhosos e, portanto, é esse conhecimento que nos faz sentir em casa. É tão natural, quer dizer, as pessoas são de um lado e do outro, não temos intermediários do nosso conhecimento. Agora, o que temos é que fazer mais coisas, isso é outra questão. E, portanto, eu não sinto nada... alguns dizem: mas isso é uma colonização ao contrário e tal, mas o povo acha isso interessante, acha que tem atores admiráveis, isso teve efeitos: ninguém diria que atores portugueses também já apareciam nas telenovelas brasileiras. Isso é um efeito positivo. E eles ficam muito contentes com isso, ganham outra projeção e, portanto, eu acho que isso nunca pode ir em um sentido só, tem que ir nos dois. E a novidade do momento que estamos a viver é essa, é novidade que nós não estamos hoje a interessarmo-nos pelo Brasil como lugar [...], das várias revoluções e das várias ditaduras, e quero agradecer aos brasileiros terem sempre recebido os portugueses nos mais diversos momentos da história, e tão diferentes eles foram. Mas hoje achamos que isso é uma via de comparação futura, é uma via estrategicamente importante como eu já disse. E, portanto, não temos complexo, eu não tenho nenhum. E por isso gostamos da música brasileira, gostamos do futebol brasileiro, gostamos da cultura brasileira, da ciência brasileira e penso que os brasileiros começam a perceber que também, do outro lado, daquele pequeno país, há muita coisa importante a conhecer e muita coisa de que somos capazes de fazer.

Alberto Dines: Presidente, a morte da princesa [inglesa] Diana [(1961-1997) em acidente de trânsito, em Paris, decorrente, segundo uma das hipóteses, da perseguição feita por repórteres fotográficos] colocou, eu não diria no banco dos réus, mas no divã do analista, nós dizemos aqui, a mídia, vocês dizem, os média...

Jorge Sampaio: Eu já aprendi a dizer mídia [risos].

Alberto Dines: E eu queria uma reflexão sua. A imprensa portuguesa é de altíssimo nível, compenetrada, densa; o senhor talvez tenha algumas queixas, não sei, mas eu queria que o senhor fizesse uma pequena elaboração sobre esse fenômeno da midiatização da sociedade mundial e dos problemas que provocou.

Jorge Sampaio: Difícil [risos]. Difícil. Várias respostas, em primeiro lugar, nós devemos combater todos, aqui e acolá, alguma superficialidade com que as coisas são tratadas. Mas não é possível que a democracia hoje exista sem os média, e portanto faz parte do mundo de hoje. Mas eu acho que, por vezes, esquecemos de alguns códigos. E acho que o debate que foi posto no sentido de dizer que a princesa faleceu por causa dos paparazzi, e os paparazzi respondem, os diretores de jornais respondem, mas há o público que compra, eu penso que isso é uma maneira muito errada de pôr o problema. E penso que em tudo é preciso auto-regulação. Eu sou jurista, as leis resolvem alguma coisa, mas não resolvem tudo. E fazer leis para isso é muito difícil. E penso que acho que é com evolução, porque a qualidade vem sempre ao de cima. E nós vamos percebendo, todos, que quanto maior educação houver, maior qualidade, maior esforço pedagógico; nós vamos separando o trigo do joio e, portanto, eu tenho a noção de que os jornalistas, aqueles que fazem caminho, os cronistas, os colunistas, mesmo aqueles que têm revistas e jornais da atualidade, vão lentamente perceber com certeza que é preciso uma auto-regulação, é preciso criar algum limite. Eu digo isso muitas vezes da seguinte maneira: suponham... eu sou político, fui advogado, gosto muito da minha profissão, eu digo ainda que sou advogado, porque política amanhã acaba, advogado já não. Eu acho que há uma parte da minha vida privada que tem que ser de conhecimento público, porque ela pode influir na apreciação que o público faz da minha conduta ou da minha potencial conduta enquanto homem público. Por exemplo: se eu, todos os dias, bato em não sei quem [poderão concluir]: este homem é perigoso, não pode estar à frente de um país, não é? Agora, há um limite para isso. Eu acho que nós temos momentos de nossa vida que são de natureza profundamente pessoal, profundamente, e isso devia ser efetivamente respeitado. E essa auto-regulação é um trabalho que não é nosso, político, é também, mas é vosso, dos vossos jornalistas, homens de mídia, que são prestigiados, responsáveis etc. Não é pôr as pessoas no banco dos réus, é porque, às vezes, também os políticos se servem de telefonar a alguém para fazer passar uma notícia, depois não se podem arrepender de, às vezes, ser ao contrário que isso aconteça, e portanto é o esforço educativo, é o esforço dos valores, digamos assim. A nossa sociedade toda precisa de ter uma batalha para os valores; não estou a dizer uma coisa dos anos 60, eu estou a dizer...

Alberto Dines: Uma [coisa] humanista, neo-humanista?

Jorge Sampaio: ...estou a dizer alguma coisa do final deste século. Não chega a sociedade de informação, é preciso que a gente se bata por causas, é preciso que a gente se bata, por exemplo, contra a exclusão, é preciso que a gente se bata pela escolaridade das crianças, é preciso que a gente se bata pela forma de podermos desenvolver aquilo que são os grandes valores culturais de uma determinada comunidade. Essas causas, o combate contra a Sida [aids], o combate contra a toxicodependência, contra a droga, isso são causas do nosso tempo. E esses valores é que merecem que a gente se envolva, e depois podemos dar uma ajuda, uns e outros, na discussão sobre esse grande tema que [o senhor] colocou [...]. Mas reprimir com uma lei dá péssimos resultados.

Alberto Dines: Não, ninguém pensa nisso.

Jorge Sampaio: Eu sei, vocês nunca [pensaram nisso], é claro.

Adrian Dickson: Senhor presidente, mas tem um outro aspecto aqui [em relação] ao que aconteceu na semana passada. Os latino-americanos sempre associamos esse tipo de manifestação tão pública de emoções com nós mesmos. Nós vimos isso aqui no Brasil com a morte do [piloto Ayrton] Senna [1960-1994]; há muito mais anos com a morte de Evita Perón na Argentina [em 1952]; mas ficamos surpresos por essa manifestação tão sincera por parte dos britânicos, dos europeus pela morte dessa mulher, o que pareceria incrível, ou difícil de acreditar, se tivesse acontecido 50 anos atrás. Será que mudou alguma coisa na Europa, no espírito dos europeus?

Jorge Sampaio: Eu penso que, cada um com seus motivos, a verdade é que, em relação àquilo que é um certo desejo de um imaginário qualitativo, isto é, um certo profundo de uma imagem que é distinta e que é carinhosa, e que se dedicou a grandes causas, num povo como o britânico, isso faz sempre momentos de grande unidade e de recolhimento nacional. Os britânicos são profundos nisso, contrariamente ao que às vezes as pessoas pensam. E no mundo inteiro foi uma mistura de tristeza, enfim, cada um teve a reação que teve. As pessoas, por vezes tragicamente, aparecem de uma forma mais clara depois de terem desaparecido. E eu acho que essa reação foi natural, porque as pessoas procuram referências, isso está tudo muito neutro, está tudo muito exagerado, ou muito fora daquilo que é uma vida mais qualitativamente rica. E ali viu-se que era alguém que tinha se batido por certas causas que afligem as pessoas, e isso, penso eu, é uma interpretação, [e] pode haver outras...

Maria Cristina Poli: O senhor acha que a gente está carente desse tipo de figura no mundo?

Jorge Sampaio: Não, eu acho que nós temos, se quiser, é que redignificar a política. Eu não digo isto por achar que esta política ou aquela política, ou aquilo, ou aquilo outro são menos dignas. Não, eu acho que, com a dificuldade dos problemas, nós todos temos que ter uma noção de que a política é uma coisa nobre, que nós não procuramos a política para ter uma vida melhor como políticos. Nós procuramos a política, ou somos políticos, para servir determinadas causas, determinados objetivos. E isso é o grande esforço pedagógico que os políticos têm que fazer. A política da proximidade, a política da transparência, a identificação com grandes aspirações coletivas e grandes valores, essa é a nossa função.

Maria Cristina Poli: O senhor acha que é comum os políticos terem essa vocação que o senhor está dizendo?

Jorge Sampaio: Eu digo que é uma necessidade, mas eu não faço juízo de valores... [risos].

Jaime Spitzcovsky: Presidente, eu queria falar um pouquinho mais de geopolítica. Eu queria saber se o senhor é favorável à expansão da Otan, ou da Nato, como vocês dizem em Portugal, e se essa expansão não corre o risco de isolar a Rússia e trazer instabilidade ao continente europeu.

Jorge Sampaio: Eu penso que a negociação com a Rússia... Só sei dizer isto em inglês [...], não sei como se diz agora aqui em português. Penso que todo esse processo que se deu, as decisões sobre o alargamento, foi um processo bem feito, bem negociado, e hoje há uma grande aspiração de paz na Europa, e que é possível, trazendo a Rússia também para um diálogo de segurança pan-européia, e que o alargamento não se faça contra ninguém, mas se faça como o resultado de uma aspiração de estabilidade na Europa, eu penso que isso é possível. Eu fui, aliás, daqueles que [...] disse sempre na Europa que essa negociação não se podia fazer contra a Rússia, mas também não podia ser impedida com o veto russo, e tinha que se encontrar um equilíbrio. Julgo que esse equilíbrio se encontrou agora, vamos ver, ao mesmo tempo com as negociações para a União Européia, com o apoio que se tem que dar ao processo de democracia, de democratização e desenvolvimento da Rússia, significa que estamos na Europa em um momento crucial de estabilização da paz, naquilo que foi e é o pós-Guerra Fria. Eu digo isso porque é decisivo a Europa aparecer como não só zona de paz, mas também zona de um modelo social equilibrado e de um modelo de desenvolvimento. Isso significa ter a Rússia, digamos, também entre nós, e não termos aquele [modelo] este contra aquele, que eu penso que é negativo e já produziu maus resultados.

Matinas Suzuki: Senhor presidente, infelizmente nós estamos chegando ao final do nosso programa...

Jorge Sampaio: Eu não marquei gol nenhum ainda [risos].

Matinas Suzuki: O senhor não marcou, mas nos últimos minutos o senhor pode marcar [risos].

Jorge Sampaio: O empate tem virtudes.

Matinas Suzuki: Eu gostaria de aproveitar para fazer esta pergunta: para que time o senhor torce?

Jorge Sampaio: Onde?

Matinas Suzuki: Em Portugal.

Jorge Sampaio: Ah, é para o Sport, o país inteiro sabe, mas não ganha nada há muitos anos, portanto não tem problema.

Matinas Suzuki: Está certo.

Jorge Sampaio: Espero que ganhe este ano.

Matinas Suzuki: Está certo, nós esperamos também com o senhor. Eu gostaria de fazer uma pergunta simples: se o senhor pudesse levar alguma coisa do Brasil para... se o senhor construísse as duas nações e pudesse tirar uma coisa do Brasil e levar para Portugal, o que o senhor levaria e o que o senhor traria de Portugal para o Brasil?

Jorge Sampaio: Eu, se pudesse, levava o Brasil todo.

Matinas Suzuki: Mas é grande para caber em Portugal, não é? Teria que escolher uma coisa.

Jorge Sampaio: Se pudesse, levava essa imaginação, e essa criatividade, e essa alegria, essa forma de olhar para as coisas, por exemplo. E, por outro lado, se pudesse exportar alguma coisa, eu exportava a nossa paciência perante às dificuldades a que os portugueses resistem.

Laerte Fernandes: O senhor considera os brasileiros impacientes, presidente?

Jorge Sampaio: Não, não, considero-os criativos.

Laerte Fernandes: Ah, [porque] o senhor exportaria para cá a paciência portuguesa.

Jorge Sampaio: Sabe, eu digo sempre esta frase, que resolvo tudo, [...] ouvi outra, digo as duas. Alguém me explicava que, há uns anos atrás, um partido político brasileiro... “Explique-me lá esse partido”; “Olha, tem muito cacique e pouco índio” [risos]. Eu percebi logo, [mas] os portugueses demoravam cinco minutos a explicar isso. E hoje me disseram uma frase em relação àqueles que demoram muito tempo para fazer as coisas, ou querem fazer tudo: “Ele marca o canto e depois cabeceia para a baliza” [risos]. Com isso, digo tudo sobre a imaginação e a criatividade.

Matinas Suzuki: Presidente, muito obrigado pela sua presença no Roda Viva.

Jorge Sampaio: Muito obrigado a todos pela vossa hospitalidade.

[...]: Obrigado ao senhor.

Matinas Suzuki: Eu também gostaria muito de agradecer a nossa bancada de entrevistadores, agradecer aos nossos telespectadores do Brasil, aos eventuais telespectadores de Portugal e dos demais países da língua portuguesa e gostaria de lembrar para o público brasileiro que o Roda Viva volta na próxima segunda-feira, às dez e meia da noite. Até lá, uma boa noite e uma boa semana para todos.

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