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Memória Roda Viva

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Mourid Barghouti

1/1/2007

O poeta palestino diz que sua poesia destina-se, primeiramente, à sua gente e, depois, a todos os grupos oprimidos de seres humanos

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Paulo Markun: Boa noite. Ele nasceu na Palestina e depois da ocupação do território por Israel, viveu um exílio de 30 anos até voltar à terra natal. A experiência de reencontrar pessoas e o lugar onde nasceu virou um livro, até agora sua única obra em prosa, já que, nesses anos todos, ele se fez reconhecer como um dos principais poetas árabes contemporâneos. Nosso convidado desta noite é o escritor palestino Mourid Barghouti, autor de Eu vi Ramallah, o livro que deu mais projeção internacional a seu trabalho por colocar em foco as conseqüências da ocupação israelense da Palestina. O Roda Viva começa num instante. 

Paulo Markun: O escritor palestino Mourid Barghouti veio ao Brasil como um dos principais convidados da Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP 2006. Foi ali que ele fez o lançamento de seu livro no Brasil em meio a debates sobre os conflitos contemporâneos que deram o tom político do encontro literário de Paraty.

[Comentarista]: Mourid Barghouti nasceu em 1944 num vilarejo próximo à cidade de Ramallah. Formado em literatura inglesa, atuou como representante da Organização pela Libertação da Palestina (OLP) no exterior. No livro, Barghouti relata as conseqüências da ocupação israelense na Palestina sob o ponto de vista de quem viveu na pele a experiência de ter que abandonar a região. São as recordações desde o momento em que cruzou a ponte para a Jordânia, no primeiro dia de exílio, até a volta, 30 anos depois. Logo nas primeiras linhas, ele demonstra toda a ansiedade que aguardava ao escrever:"Caminho na direção da ponte num andar normal, num andar que parece normal. Atrás de mim, o mundo, e, diante de mim, meu mundo." O livro de Barghouti só foi possível com o acordo de paz iniciado entre a OLP, de Yasser Arafat, e o Estado de Israel, em 1993. Graças ao encontro entre os líderes, nos EUA, o poeta pode retornar à terra natal, o que só aconteceu três anos depois. Mas a paz ainda estava longe, como o próprio Barghouti deixa claro em seu texto. Eu vi Ramallah, lançado em 1997, foi recebido com grande interesse pelo mundo árabe por mergulhar fundo num tema delicado para toda a região. Aos brasileiros, em língua portuguesa, chegou às livrarias em 2006. Foi lançado durante a FLIP, a Feira Literária de Parati. Barghouti afirmou que "assim, se torna menos estrangeiro". O escritor palestino defende que o livro, após escrito, não precisa mais de seu autor, confiante de que encontrará amigos que irão recebê-lo em casa, em sua reflexão. Barghouti diz que os escritores apenas abrem uma janela e sempre haverá gente que fica do mesmo lado olhando tudo do mesmo ponto de vista. Enquanto outros seguem opostos, em outras janelas, dispostos a ver o que ainda não foi visto.

Paulo Markun: Para entrevistar o escritor e poeta palestino Mourid Barghouti, nós convidamos: Mamede Moustafá Jarouche, professor de literatura árabe da USP e membro do ICA (Instituto de Cultura Árabe); Lázaro de Oliveira, chefe de pauta do programa Metrópolis da TV Cultura; Safa Jubran, professora de língua árabe da Universidade de São Paulo e tradutora do livro Eu vi Ramallah; Beatriz Kouchinir, diretora do arquivo geral da cidade do Rio de Janeiro e professora convidada do Departamento de História da Unicamp; Norma Couri, colunista do Jornal do Brasil e correspondente da revista portuguesa Visão; Ubiratan Brasil, sub-editor do "Caderno 2", do jornal O Estado de S. Paulo e Fábio Santos, diretor editorial do jornal Destak.

O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília. O programa desta noite está sendo gravado e não permite a participação direta do telespectador. Mas você pode entrar em contato com o programa, mandar sua crítica, sua sugestão, propostas, pela página do programa na internet.

Paulo Markun: Boa noite, Mourid. Eu queria começar pelo seguinte. A gente conhece muito pouco, no Brasil, da poesia árabe não só a contemporânea. Eu diria que, talvez, depois do Omar Khayyam [(1048-1131), poeta conhecido como Rubaiyat, matemático e astrônomo iraniano. Seu nome completo era Ghiyath Al Din Abul Fateh Omar Ibn Ibrahim Al Khayyam. Ficou famoso como o matemático e astrônomo que calculou como corrigir o calendário persa] a gente não conhece nada. E o que eu queria saber: o senhor acha que essa entrada pelo campo da prosa - por uma questão que é muito, digamos, interessante para o Brasil, na medida da nossa enorme comunidade árabe, que é a questão do conflito entre palestinos e israelenses, a situação política daquela região - se isso pode permitir, na sua visão, que mais cedo ou mais tarde a gente tenha uma aproximação com a poesia árabe aqui no Brasil.

Mourid Barghouti: Traduzir poesia é difícil, publicar poesia é ainda mais difícil. As editoras sempre reclamam que livros de poesia não vendem. Elas sempre procuram trabalhos em prosa para traduzir. Eu publiquei 14 livros de poesia, mas meu primeiro livro em prosa foi traduzido para 11 línguas. Com a poesia, é diferente. Eu me considero sobretudo poeta, mas a experiência de voltar após 30 anos de exílio ia além da forma do poema. Eu me empolguei e o resultado foi um livro em prosa. Poesia ou prosa, acho que a literatura é uma ponte entre culturas. Culturas no principal sentido da palavra. Ao mesmo tempo, acho que está na hora de tradutores e editoras levarem ao leitor a experiência da poesia em todo o mundo, de uma nação a outra, de um idioma a outro. Também queremos ter uma idéia da poesia brasileira, digamos, mas nossas editoras também dizem que traduzir poesia é difícil. Não é uma estrada de mão única. Todos saímos perdendo. Quer dizer, se mantivermos essa percepção com relação à poesia, todos perderemos muito, porque eu acho que poesia e música constituem a linguagem universal sem a qual ninguém pode viver. Se você falar com camponeses, com pessoas simples em aldeias, elas se expressam usando metáforas. A poesia não é a forma do poema. A poesia está espalhada no lugar em que vivemos, nas cenas que vemos, nos cheiros que sentimos, nos sentidos em sua casa, em seu bairro, na natureza, no trabalho, nas ruas, nas esquinas. A poesia está sob todas as pedras. Acho que ao perder essa chance de nos familiarizar com a poesia de diferentes países, perdemos muita coisa. Perdemos muito mesmo. Esse meu livro que foi traduzido para o português indica o meu estilo de escrever, poesia ou prosa.

Paulo Markun: Ele é um pouco poesia também.

Mourid Barghouti: Sim. Escrevo sempre suavemente, sussurrando, sem excesso de simplificação e sem hipérboles, sem um tom bombástico, sem linguagem heróica. Isso se aplica à minha poesia e à minha prosa. Acho que os leitores brasileiros agora têm a chance de conhecer meu jeito de escrever, quer seja prosa, quer seja poesia. O estilo é quase... Ele vem do mesmo espírito, o meu espírito, que renuncia e resiste a todo tipo de tom bombástico, de hipérboles, exageros e excesso de simplificação e generalização. Procuro ser preciso, procuro fazer como se escrevesse com uma câmera, não com uma caneta. Uso muitas imagens, faço seus olhos trabalharem, ou tento fazer isso. Um vislumbre da minha poesia está nesse livro, que seria uma saída até que alguns poemas sejam traduzidos para o português. Isso seria mais fácil, graças à experiência de ter esse livro.

Norma Couri: Ao contrário do Ferreira Gullar [(1930-), pseudônimo de José Ribamar Ferreira, poeta, crítico de arte, biógrafo, memorialista e ensaísta brasileiro], que participou com o senhor numa mesa lá em Paraty, o Ferreira Goulart disse que sem fantasia não há poesia. E o senhor disse que poesia não é um entretenimento para ser praticado em momentos pacíficos. O senhor vê a poesia como uma arma? Foi o exílio que transformou a sua poesia ou isso é uma concepção sua?

Mourid Barghouti: A poesia não é o poema, a menos que digamos que a arma... A poesia não é uma arma, a menos que digamos que um revólver é um livro de poesias, então... Arma é arma e poema é poema. Misturando os dois, vamos perder as duas funções. De certa forma, para ser preciso, não é arma, mas nem por isso perde importância. Ela é muito importante, mas a poesia funciona lentamente, no campo da cultura, no campo da percepção, no campo da consciência, no campo da memória. Ela age lentamente na História. Geração após geração, as vozes e os sons, os versos, e rimas, e ritmos dos poetas são transmitidos aos leitores de uma geração a outra e eles moldam nossa alma, moldam a condição humana, moldam nosso gosto. Dessa forma, não podemos usar a palavra arma para essa espécie de elemento que reforça nossos sentidos. Então a idéia da poesia como um poema contra os inimigos, contra a ocupação, contra a pobreza...Eu não acredito nisso. Acho que ela atua em outros campos da condição humana e ao mesmo tempo, em momentos de emergência, em guerras, conflitos, batalhas, pode haver poemas escritos rapidamente, palavras de ordem em manifestações, nos muros ou nas rádios, para que as pessoas fiquem mais valentes e fortes, para que sigam em frente. Isso tem um efeito temporário e não é esse o papel que imagino para a poesia. Pode ajudar durante um tempo, quando você está sob pressão, num momento sombrio da História, numa "emergência  prolongada", digamos, que as pessoas estejam vivendo. Mas o papel da poesia, na verdade, é no campo dos sentidos, da vida cultural, do gosto e da consciência humana, a percepção que o homem tem da beleza e da feiúra, do que é justo e do que é injusto, da justiça e da injustiça, da integridade e da opressão. Nesse campo, qualquer literatura age lentamente, ao longo da História, mas deixa suas marcas, como gotas de água numa pedra. Ela deixa uma marca e essa marca é indelével. Ela permanece, é muito forte. É mais forte que a pedra. Nesse sentido, digo que é uma arma, mas não como palavra de ordem, como algo heróico, como palavras de incentivo em tempos de marchas militares, de guerras e batalhas. Existe a música e existe a música militar. A diferença entre elas é a diferença entre Toni Morrison [(1931), escritora norte-americana, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1993 por seus romances fortes e pungentes, que relatam as experiências de mulheres negras nos Estados Unidos durante os séculos XIX e XX] e Tony Blair [Anthony Charles Lynton Blair (1953-), político britânico que ocupou o cargo de primeiro-ministro do Reino Unido de 1997 a 2007].

Ubiratan Brasil: Senhor Barghouti. Apesar dessa força, dessa magnitude da poesia, o senhor não teme que nesses tempos sombrios em que vivemos, de uma certa forma, o ceticismo cada vez maior das pessoas vá, não digo extinguir, mas pelo menos prender, eliminar, ou diminuir cada vez mais a força da poesia?

Mourid Barghouti: A minha atitude? Se uma coisa é forte, um depoimento meu não vai deixá-la menos forte. Se a poesia tem força, nem cem depoimentos vão enfraquecê-la, mas tento mostrar onde a poesia tem força. Não disse que ela não tem força. Eu vivo escrevendo poesia, não faço nada além de escrever poesia. Dediquei minha vida a isso, acho que ela é significativa, é muito importante, mas me recuso a incluí-la em outra batalha que não seja a da própria poesia. A poesia é importante, é significativa, mas quero colocá-la no lugar adequado. Se você achar que um poema é uma bala, você não vai matar ninguém. Se você achar que seu poema é um exército, não vai derrotar nenhum inimigo. E, por exemplo, nossa terra está ocupada. Se os poemas pudessem libertar uma aldeia, teríamos libertado cinco continentes numa luta de 100 anos. Tantas pessoas mortas e feridas, que sacrificaram a vidas, e centenas de poemas foram escritos. Se a poesia libertasse um território ocupado, poderíamos ter libertado não só a Palestina, mas todos os países vizinhos. Quer dizer, a vida é muito cruel. Quando você fala de pessoas numa crise, em território ocupado, é uma questão militar, econômica, social. É física e deve ser enfrentada fisicamente, com força equivalente. Se você enfrentar isso com canções e poemas, não vai chegar a lugar nenhum. Por isso a poesia é importante, mas a organização das pessoas para fornecer a elas as armas, os objetivos, os meios para se manter firmes e continuar lutando, essa é a forma certa de resistir, em vez de uma resistência que dependa apenas da arte. Na resistência, a arte trabalha com ela, ao redor dela, talvez diante dela, como na Revolução Francesa [nome dado ao conjunto de acontecimentos que deu início à Idade Contemporânea (1789-1799) e alteraram o quadro político e social da França. Influenciada pelos ideais do Iluminismo e da Independência Americana (1776), aboliu a servidão e os direitos feudais e proclamou os princípios universais de "Liberdade, Igualdade e Fraternidade"]. A literatura e o pensamento vieram primeiro, mas a revolução não foi resultado da literatura, foi resultado da interação da estrutura social e econômica, de todos os aspectos da vida física.

Fábio Santos: O senhor nunca foi cobrado pelos seus compatriotas por essa posição? Muitos dos palestinos que enfrentaram a ocupação ou fizeram isso fisicamente... Edward [Wadie] Said [(1935-2003), intelectual árabe, crítico literário e ativista da causa palestina], que faz o prefácio do seu livro aqui na edição brasileira, foi muito criticado por ter, durante a Intifada, ido atirar pedras em tanques israelenses. O senhor nunca foi criticado pelos palestinos por nunca ter ido atirar pedras em tanques israelenses?   

Mourid Barghouti: Para começar, Edward Said fez bem em atirar pedras. Gosto muito dele, dei parabéns a ele depois disso. Gosto da sua fotografia com a pedra. Foi simbólico. Um intelectual que não consiga se opor à opressão, que não consiga se opor à injustiça não merece o título de intelectual. A vida de Said podia ser resumida pela representação do intelectual e por sua luta nesse aspecto. Ele criticava seu próprio povo e criticava os outros. Faço parte do coletivo dos palestinos que lutam contra a ocupação. Não sou soldado, mas participo com minha visão crítica. A visão crítica do nosso próprio desempenho, da liderança palestina. Sou crítico da crueldade e dos crimes israelenses, dos massacres israelenses, do contínuo genocídio que vem sendo praticado contra um povo realmente indefeso. Quando você vê os dois lados, os dois campos, referindo-se aos palestinos e israelenses, isso é uma falácia. Só existe um lado poderoso com 200 ogivas nucleares, com o quarto maior exército do mundo, que usa F-16 e Apaches para lançar bombas sobre campos de refugiados. Não temos artilharia antiaérea. Veja o que houve no Líbano. Aviões israelenses decolavam e lançavam bombas fortíssimas. Isso não é guerra. O Hizbollah [fundado no Líbano, em 1982, após a invasão israelense, constitui-se em um dos principais movimentos radicais islâmicos de combate à presença israelense no Oriente Médio. Conhecido também como Resistência Islâmica, utiliza táticas de guerrilha e terrorismo] não tem artilharia antiaérea, não tem. Se você mandar F-16 e F-17 e jogar bombas, pode dizer: "Destruí o Líbano". Destruiu mesmo, mas isso não é guerra. Guerra é enfrentar o inimigo, enfrentar suas táticas, superar suas estratégias, atingir seus objetivos derrotando o inimigo, não simplesmente matando pessoas assim. Faço parte da resistência do meu povo e as pessoas entendem que não estar junto de quem está errado sempre, na política palestina, na política árabe ou na política internacional, já é um crédito para o escritor. Sabe, nosso povo respeita os escritores. Eles têm por nós o maior respeito. Eles não querem que sejamos bombeiros, que façamos pão para eles, ou que sejamos oficiais do exército. Não. Eles respeitam o pintor, o músico, o bailarino, o poeta. Seria ingenuidade pedir aos artistas que mudassem e vestissem um uniforme. Nosso povo é maduro e não nos pressiona nem para escrever palavras de ordem. Porque, sabe, nos anos 1960, os palestinos começaram a fazer músicas bem diretas. Tudo bem, as pessoas gostavam, elas eram um incentivo. Eram transmitidas no rádio com um coro, com tambores, era uma espécie de música militar. Elas faziam sucesso entre os ouvintes, mas depois de um tempo, as pessoas queriam poesia de verdade, romances de verdade, contos de verdade, filmes de verdade, teatro de verdade, quadros de verdade. Hoje, se diante de uma platéia palestina, digamos, você recitar um poema como se fossem palavras de ordem, eles não vão dar nenhum valor a isso, vão apenas achar que você é novato ou algo assim. Gostamos de ter nossa própria platéia com sua maturidade.

Paulo Markun: Mourid, nós vamos fazer um rápido intervalo, lembrando que a entrevista desta noite poderá ser encomendada em DVD como todas as outras da série do programa Roda Viva - são mais de mil entrevistas já - pelo site www.culturamarcas.com.br, ou pelo telefone XX 11 3081-3000. Voltamos num instante com o programa que hoje tem na platéia Marlene Paula Marcondes e Ferreira de Toledo, professora doutora da USP, crítica literária e ensaísta; José Damião Bueno Licarião, engenheiro químico; e Natalie Araújo Lima, assessora de imprensa.

[intervalo]

Paulo Markun: Voltamos com o Roda Viva que esta noite entrevista o escritor palestino Mourid Barghouti, um dos principais nomes da poesia árabe contemporânea.  Com 13 livros já publicados, lançou no Brasil seu único livro de prosa Eu vi Ramallah, um relato de sua experiência de retorno à cidade palestina onde nasceu depois de viver 30 anos no exílio.

[Comentarista]: Ramallah está localizada na montanhosa região central da Palestina a apenas 16 quilômetros de Jerusalém. A cidade cresceu nos séculos XVII e XVIII como uma vila agrícola. Era originalmente cristã mas, com a guerra de 1948, refugiados de outras partes da Palestina assentaram-se em Ramallah. Hoje, muçulmanos e cristãos vivem ali em harmonia. Antes um subúrbio de Jerusalém, a cidade se tornou, nos últimos anos, o centro urbano da Palestina. 40 mil pessoas vivem só em Ramallah. Com as cidades e as pequenas vilas ao redor, a população do distrito chega a 220 mil habitantes. Após a Guerra dos 6 dias e a conquista da Cisjordânia e de Gaza, em 1967, por Israel, os palestinos reiniciaram a batalha por um território independente. Ramallah é geralmente considerada a mais influente, cultural e liberal das cidades palestinas. É a principal opção de moradia para ativistas, artistas, músicos e poetas.

Paulo Markun: Mourid, no seu livro, o único publicado no Brasil, há um início bastante poético até da descrição da sua travessia de uma ponte que o levaria de volta à cidade onde você viveu boa parte da vida e próximo de onde você nasceu, Ramallah, com uma descrição que não tem nada de político. Lá pela página 28, você encontra um soldado israelense e, a partir de então, em vários momentos da sua descrição, a interferência da ocupação, quer dizer, a presença dos israelenses na Palestina torna-se uma presença constante. E não há como, da sua parte, digamos, deixar de lado o sentimento de opressão. Agora, a gente que assiste isso à distância aqui no Brasil, vê com muita freqüência cenas na televisão que são, sim, de um lado, de ataques absolutamente injustos, desumanos e brutais contra a população indefesa da Palestina, dos territórios ocupados, ou dos campos de refugiados, seja qual for o termo que se utilize. Mas vê também ataques terroristas ocorridos dentro de Israel por militantes de organizações palestinas. Isso não corre o risco de equilibrar as coisas, no raciocínio da sociedade global?

Mourid Barghouti: Não [risos], receio que não. Para começar, a ocupação é ruim. A resistência à ocupação é um direito. Agora, o mundo todo insiste em verificar a forma como os palestinos resistem, saber se eles erraram no sábado, se foram bonzinhos no domingo, se esse tipo de resistência é aceitável, se aquele outro tipo não é aceitável, mas ninguém começa por onde deveria. Vamos deixar claro que os ocupantes devem sair. Ajudem-nos a nos livrar da ocupação israelense, então tudo pode ser discutido. Podemos cometer erros na nossa resistência, mas o erro original é a ocupação. O erro original da sociedade é ficar surda e em silêncio diante dos apelos e pedidos do povo palestino. Há muitas resoluções do Conselho de Segurança [órgão da Organização das Nações Unidas (ONU)] a favor dos palestinos, mas são apenas papéis. Retomar essas resoluções? Há uma resolução que cria um estado palestino independente em 1947, Resolução 181. Ninguém está lutando, ninguém está pedindo, ninguém está ajudando a aplicar essa resolução. A Resolução 194 garante o direito de retorno a todo refugiado palestino. Eles podem voltar às casas, aldeias e cidades de onde foram expulsos em 1948, quando o Estado de Israel foi criado. Essas resoluções estão mortas. O processo de paz patrocinado pelos EUA é falso, porque se baseia na injustiça contra os palestinos. Por isso houve tantas etapas nesse processo de paz, tantos enviados dos EUA ao Oriente Médio, tantos acordos assinados, fotos tiradas na Casa Branca, sorrisos, apertos de mão e abraços, mas é tudo falso. Por isso essa luta sempre volta ao começo. Ela não é tratada em sua raiz. A raiz é uma terra que foi ocupada à força. Os israelenses ocuparam a Cisjordânia [território reclamado pela Palestina e pela Jordânia sob ocupação de Israel, situado na margem ocidental do rio Jordão, limitado a leste pela Jordânia e a norte, sul e oeste por Israel] e Gaza [território situado no médio Oriente, limitado a norte e a leste por Israel e a sul pelo Egito; é um dos territórios mais densamento povoados do planeta, com 1,4 milhões de habitantes para uma área de 360 km²] em seis  dias.  Eles podem se retirar em seis dias se desejarem a paz, mas já estão lá há três ou quatro décadas e ninguém nos ajuda a ter o nosso sentido de justiça, já que somos os oprimidos, os civis, as pessoas cujas terras foram tomadas. Agora, ao ver que a comunidade internacional não aplica as resoluções, ao ver que o processo de paz é uma grande mentira e resultou na morte de milhares de palestinos, ao ver que há 11 mil homens, mulheres e crianças palestinos em campos de detenção israelenses neste momento, 11 mil, ao ver que 86 grávidas palestinas deram à luz seus filhos sob os pés de adolescentes israelenses uniformizados nos postos de controle, em 400 postos de controle só na Cisjordânia... Elas não conseguiram chegar ao hospital. Ao ver uma menina ou um menino atacados à noite, quando os israelenses batem à sua porta, entram, cospem no rosto da mãe e do pai, humilham o pai diante dos filhos, isso não cria uma personalidade pacífica, não cria uma criança adorável, mas uma criança irritada, disposta a fazer qualquer coisa. A frustração do processo de paz, a frustração das mentiras dos EUA, que dizem querer nos dar paz e um Estado, as mentiras de George Bush [(1946-), presidente dos Estados Unidos desde 2001, foi reeleito e seu mandato termina em 2009] e Condoleezza Rice [(1954-), atual secretária de Estado norte-americana], que vão ao Oriente Médio só para apoiar Israel... Quando Israel foi encurralado no Líbano, os objetivos não estavam indo bem, eles apelaram ao Conselho de Segurança, e foram enviados 15 mil ou 30 mil forças da ONU para proteger Israel. Então o povo palestino, diante dessas frustrações e injustiças, pode cometer um erro ou outro na resistência. Vou dizer uma coisa. A comunidade internacional critica os homens-bomba. Quero lembrar ao público o seguinte: o primeiro homem-bomba surgiu na Palestina depois de 40 anos de ocupação. Quer dizer, desde 1967, esquecendo 1948, a perda da Palestina histórica para Israel - mas isso vem desde 1967 e o primeiro homem-bomba surgiu em 1996. Antes disso, qual era o cenário na Palestina? Era o levante civil popular, a primeira Intifada, a revolução das pedras. Os tanques do poderoso exército israelense e as pedras das crianças palestinas. Por sete anos, até o Acordo de Oslo, em setembro de 1993. A primeira Intifada começou em 1987. Depois de sete anos, houve o Acordo de Oslo. Arafat entrou com seus homens e disse: "Conseguimos a paz com Israel, fizemos todas as concessões". Ele mudou a carta da OLP, reconheceu o território de Israel e foi fotografado com Carter [(1924-), presidente do Estados Unidos de 1977 a 1981, recebeu o Prêmio Nobel da Paz, em 2002, por suas ações no intuito de promover a paz mundial, os direitos humanos, a democracia e por ter sido mediador em diversas questões conflitivas ao redor do globo] e com Clinton [(1946-), presidente dos Estados Unidos por dois mandatos, de 1993 a 2001]. As pessoas acharam que a paz viria, mas então esse processo de paz parou. Nada de Estado palestino, nada de Jerusalém. Os assentamentos cresciam cada vez mais diante dos nossos olhos, nas nossas aldeias, nas nossas plantações de oliveiras. As montanhas estavam repletas de assentamentos. Foi construído o muro. Esse é o resultado do processo de paz. As pessoas deram uma chance à paz. Na primeira Intifada, havia apenas civis. Não houve nenhum ato de violência, mas depois de Oslo, desde 1993, as pessoas tinham esperança, depois ela foi diminuindo, foi desaparecendo com a intransigência americana - ajudando Israel diplomática e militarmente - sem implementar os acordos de Oslo. Sou contra os acordos de Oslo, escrevi criticando-os, mas eles não foram aplicados. Então quando criticamos os erros de qualquer resistência no nosso tempo, primeiro temos de criticar o pecado original, a ocupação militar da terra de outros povos à força e a permanência lá por décadas, anos após ano.

Beatriz Kouchinir: O senhor disse que escreve como filma. E eu me lembrei de uma entrevista do cineasta israelense Amos Gitai na semana de 10 de agosto, no Le Monde [jornal francês]. O Amos Gitai, ele diz que viver no Oriente Médio hoje é viver num banho de sangue de ambos os lados e que a esquerda israelense é a favor da devolução dos territórios ocupados, mas que a grande contradição  é que Israel desocupou o Líbano e a Cisjordânia, e aí você vê as zonas de conflito. E que Israel está no Golã e o Golã está tranqüilo. Por que, no seu modo de entender, isso está acontecendo agora?

Mourid Barghouti: Acho que você fez duas ou três perguntas juntas, mas vou tentar responder. Para começar, respeitamos qualquer voz israelense que defenda a paz e seja contra os governos militares. Há algumas pessoas que nós respeitamos e concordamos com elas, mas isso não é um movimento. Não há uma esquerda israelense como movimento. Há pessoas respeitáveis que podemos indicar, às quais podemos nos referir, mas não há um movimento de esquerda em Israel. Vou lhe dizer uma coisa. Esse movimento de paz em Israel existia e nós o abraçamos, mas quando a discussão começou a tratar do direito de retorno dos refugiados palestinos, eles se bandearam para a direita, todos apoiaram o governo, inclusive Benny Morris [(1948-), um dos principais historiadores de Israel, pertencente a uma corrente chamada Novos Historiadores, formado por um grupo de pesquisadores que tem feito críticas ao conhecimento herdado sobre as origens do Estado de Israel e o conflito entre palestinos e israelenses], o historiador, que mudou de idéia. Numa entrevista, ele pediu perdão pelo seu livro que denunciava a demolição de 400 aldeias palestinas em 1948. Ele disse: "Critiquei a demolição não por ser uma coisa ruim, mas porque Israel não terminou o trabalho". Ele defendeu a continuação da limpeza étnica, a ponto de jornalistas perguntarem: "Senhor Morris, o senhor é a mesma pessoa? É a mesma pessoa que escreveu aquele livro?" Ele disse que sim, que estava com o governo, porque o direito de retorno dos refugiados palestinos corresponderia à destruição do Estado judeu. Esse tipo de esquerda é como uma linda flor que dura só um dia. Estamos decepcionados com a esquerda israelense, com o acampamento de paz israelense como movimento. Como indivíduos, nós os conhecemos, eles são respeitáveis e respeitamos a recusa deles em servir em certos territórios, em certos postos de controle, em ir ao Líbano na guerra de 1982 e em ir a Gaza para derrubar casas. Nós respeitamos essas pessoas e reconhecemos seu mérito, mas como movimento, a esquerda de Israel se retraiu. Shimon Peres [(1923-), político israelense, foi primeiro-ministro de Israel de 1984 a 1986 e de 1995 a 1996; ganhou o Prêmio Nobel de Paz em 1994. Em junho 2007, foi eleito presidente de Israel] se submeteu a qualquer primeiro-ministro de direita. Ele já não era trabalhista, não era de esquerda, não era vencedor do Nobel da Paz, mas alguém a serviço das políticas de direita. Ele é um símbolo da influência da direita como movimento. O silêncio das Colinas de Golã me parece impressionante. Eu não o aprovo. Não é aceitável que a idéia da resistência seja linda em todo lugar, exceto nas Colinas de Golã. É o meu modo de ver.

Paulo Markun: Vamos fazer mais um intervalo e eu lembro aos telespectadores que pelo endereço culturamarcas.com.br, ou pelo telefone 0113081-3000, você pode obter os exemplares do melhor do Roda Viva. São três volumes: Internacional, Cultura e Poder. Cada um deles com 20 das melhores entrevistas já feitas no programa. Nós voltamos em instantes com o Roda Viva que tem na platéia desta noite Oswaldo Modesto, economista, e Heloísa Bargui, pesquisadora do Museu Paulista da USP.

[intervalo]

Paulo Markun: O Roda Viva entrevista hoje Mourid Barghouti, escritor palestino. Como se trata de um programa gravado, ele não permite a participação direta do telespectador, mas se você quiser mandar críticas, sugestões e propostas ao programa utilize o site do Roda Viva. O endereço é www.tvcultura.com.br/rodaviva. Mourid Barghouti é um poeta com 13 livros publicados. Ele lançou na Festa Literária de Paraty, a FLIP 2006, o único livro de prosa Eu vi Ramallah. Um livro que fala da sua volta à terra natal cuja ocupação por Israel levou o escritor a um exílio de 30 anos.

Mamede Moustafá Jarouche: Aqui no Brasil, nós ainda não temos uma tradição de estudos árabes, uma tradição orientalista firmada. Isso está se formando aos poucos. A pergunta é a seguinte... São questões óbvias, mas eu acho que seria interessante falar a respeito aqui. Você já deve ter respondido muito a essa pergunta. A literatura árabe hoje, ela é  uma literatura dividida em literaturas nacionais, ou seja, você tem uma literatura egípcia, uma literatura tunisiana, libanesa, síria... E existe enfim uma literatura palestina, que é uma literatura, em certa medida, dissociada do lugar. A pergunta que te faço é assim... é uma questão bem de ordem genérica. Quais seriam hoje as linhas de força da literatura palestina? Eu parto do pressuposto de que você, por exemplo, ao contrário do que poderia se esperar, você é um autor que rejeita um pouco o engajamento, pelo menos na literatura, da maneira como a gente conhece, vulgarizada. Mas enfim, eu gostaria que você falasse um pouco a respeito disso.

Mourid Barghouti: A literatura palestina faz parte da literatura árabe. Por 1.500 anos, a literatura árabe não pertenceu a Estados, mas sim ao idioma. Escrevemos em árabe, na cultura árabe, somos escritores árabes, mas com a divisão do mundo árabe em 21 Estados, começamos a relacionar a literatura aos Estados. Não gosto disso e não acho que vá durar. Você não pode falar do romance egípcio, do romance sírio, do romance libanês. São romances árabes escritos nessa língua, sobre pessoas que vivem naquela região, sobre o destino daqueles personagens, sobre as formas de escrever nesse gênero, o romance. O mesmo se aplica à poesia e à música. É a cultura de toda uma nação, mas por causa do problema palestino, por causa da perda da terra Palestina, porque nos foi negado geográfica e historicamente o nosso espaço, houve uma certa notoriedade da literatura palestina como tal, não por ser regional ou por ter sido retirada do contexto da literatura árabe, mas por ser como o membro doente da família, que está com febre e cuja recuperação estamos esperando. Nesse sentido, não vejo muita diferença. Um poema árabe é bonito ou ruim devido à sua estrutura, ou por ser profundo ou superficial, não por ser palestino, argelino etc. Você sabe disso. Não digo que a literatura palestina seja melhor ou pior. Ela faz parte da cultura da região. Se for boa, é porque é boa como literatura. Se for ruim, é porque é ruim como literatura, não por ser palestina ou de qualquer outra região.

Safa Jubran: Mourid, afinal de contas, o livro seu Eu vi Ramallah é mais um livro sobre a ausência de Ramallah na vida do exilado Mourid, mais do que é um livro sobre o encontro com a Ramallah depois de 30 anos. Eu queria falar um pouco sobre o exílio e suas conseqüências. E principalmente, para quem chegou a morar em mais de 30 casas ou menos, ou quase 30 casas, durante esses trinta anos de exílio. O que é e como é morar no tempo, não no lugar?

Mourid Barghouti: Quando você está no exílio, quando é obrigado a ficar em outro lugar e sua vontade é contrariada, você não fica pensando nas lembranças da sua infância. Você se sente estressado, oprimido e irritado e começa a procurar formas e métodos de dizer não, de resistir, de dar um jeito de tornar o sofrimento mais curto e menos doloroso. Por isso, vivendo fora por tantos anos, ficamos com uma noção muito estranha do surgimento de toda uma geração para a qual a Palestina deixou de ser uma presença física, concreta, com becos, ruas, cheiros, lojas, com crianças se tornando adultos, pais e avôs, famílias ficando maiores, ruas aumentando, aldeias se tornando cidadezinhas que então se tornam cidades. Não foi esse o caso. Algumas gerações amam a "idéia da Palestina”, não os detalhes físicos do país. Esses detalhes são narrados a elas pelas gerações mais velhas. É uma experiência verbal passada de geração a geração. Quando vi Ramallah depois de 30 anos, fiquei chocado ao ver que eu não sabia nada, após 30 anos, nem mesmo os membros da minha família. As crianças se tornaram pais. Perguntavam-me: "Você conhece esse homem?" Eu tinha vergonha de dizer não e mentia, dizia que o conhecia. Era meu primo, mas eu não sabia. Viver no tempo significa que o lugar mudou, ele se tornou memória, ele se tornou idéia. A presença concreta da Palestina mantém-se viva na mente dos que continuam lá, dos que nunca deixaram os territórios em que viviam. Eles estão sob ocupação, estão presos, às vezes têm emprego, às vezes não têm, mas estão sempre no local. Há uma geração que ama a idéia da Palestina, não a Palestina em si, em seus detalhes.

Lázaro de Oliveira: Mourid, você, 30 anos exilado, só fez poesia. Quando você volta a visitar a cidade, você adota a prosa para falar desse sentimento da volta. O que a poesia árabe tem de limitação que a prosa permite que você exponha seus sentimentos?

Mourid Barghouti: Na verdade, escrevi esse livro em prosa e escrevi dois livros de poesia sobre a mesma experiência. Demorei mais para escrever poemas, porque os poemas precisam amadurecer com o passar do tempo. A expressão em prosa veio imediatamente. Assim que cruzei a ponte de novo e saí da Palestina, peguei a caneta e comecei a escrever prosa. A poesia não vem facilmente assim. A mesma experiência da volta vai aparecer em dois livros publicados depois da minha visita. Um deles se chama... Na verdade, são três livros. Um deles se chama People in theirnights, o outro, The power of the bombing grenade e o terceiro é Midnight. O livro inteiro é um poema e foi o último que escrevi. Os dois anteriores também tratavam desse retorno à minha cidade, ao lugar onde nasci, à minha aldeia, mas foram escritos de um jeito diferente. A poesia não me decepcionou. A poesia precisava de mais tempo e eu dei esse tempo a ela.

Paulo Markun: Agora, o fato de o inglês ser a sua segunda língua, e em muitos casos, imagino eu, a primeira, na medida em que o relacionamento no exílio em muitos períodos não era feito na sua língua natal, atrapalha a produção de poesia e prosa em árabe, ou fica mais fácil, na medida em que esse é uma espécie de gancho que te mantém preso à idéia da Palestina?

Mourid Barghouti: Escrever poesia? Acho que a poesia não é uma expressão geográfica.  A poesia é uma expressão humana universal. Acho que minha opção por escrever poesia tem a ver com a humanidade.

Paulo Markun: Mas eu acho que não me expressei bem. Quer dizer, você faz poesia em árabe e isso é que eu pergunto: o fato de ser em árabe facilita as coisas, facilita que a poesia apareça para você cuja língua natal é essa, ou o fato de estar vivendo num país onde muitas vezes você tem que falar inglês atrapalha?

Mourid Barghouti: Claro. Minha primeira língua é árabe e escrevo poesia nessa língua. Não poderia ser diferente. Falo inglês, mas não sei escrever poesia em inglês. Não quero fazer isso. Eu me dirijo primeiramente à minha gente e, por meio dela, dirijo-me a todos os grupos oprimidos de seres humanos, onde quer que tenham estado, onde quer que estejam ou venham a estar. Essa poesia é a única forma de eu me expressar. Se eu escrever um romance, uma narrativa, outras memórias, será para tratar dessa condição humana que foi a minha experiência, a experiência da minha gente, mas tem muito a ver com a experiência de outros. Muita gente leu esse livro e comentou que tinha vivido um momento ou outro descrito ali, que tinha voltado a algum lugar e sentido a mesma coisa. Essas coisas em comum com outros leitores é um grande incentivo. A poesia, para mim, é uma forma de comunicação.

Norma Couri: Mourid, eu queria voltar naquela questão do Amos Gitai. O Amos Gitai fez um filme que, pelo que me lembro, se chama Free Zone, e há outros atores como Amós Oz e como David Joshua, que é um pacifista. Eu queria saber a sua posição, se o senhor se sente traído por eles e por quê.

Mourid Barghouti: Talvez essa pergunta já tenha sido respondida. Os israelenses que apóiam o direito dos palestinos são cada vez mais escassos e o apoio deles é cada vez mais fraco. Quero lembrar uma coisa a você e ao público. Os sul-africanos brancos sob o regime do apartheid na África do Sul, que eram revolucionários, que criaram a esquerda na política dos brancos na África do Sul, esses brancos do regime sul-africano apoiaram o ANC [sigla do nome em inglês: African National Congress], o Congresso Nacional Africano, e se afiliaram a ele, tornaram-se membros do ANC. Imaginem um israelense como membro da OLP para mostrar sua solidariedade ou sua objeção com relação à ocupação militar, ao genocídio e aos crimes de guerra cometidos por Israel. Nunca aconteceu. Não estou pedindo que eles sejam membros da OLP, só estou mostrando que existe solidariedade de verdade quando você está envolvido com o problema, quando você faz parte da luta, da resistência à opressão, você dá mais do que os israelenses têm dado. Eles são cada vez menos numerosos e sua voz é cada vez mais fraca. Essa guerra no Líbano tinha apoio de 82% da população. Na África do Sul, quem apoiava o movimento negro entrava para o ANC e lutava com ele.

Mamede Moustafá Jarouche: Mourid, você falou agora que pretende ficar só na poesia  e você quer falar ao seu povo. Qual é o seu povo? A sua voz, ela alcança da mesma maneira, ou atinge da mesma maneira um palestino como atinge um egípcio? Você disse agora que é ruim que haja divisões nacionais em literatura, que, na verdade, a literatura é árabe. Agora, você se coloca como escritor palestino e é visto mais do que um escritor árabe, é visto como um palestino. Antes de tudo, se diz o escritor palestino Mourid Barghouti, e não o escritor árabe, o poeta árabe Mourid Barghouti.  Qual é o alcance da sua voz? Pensando que a sua poesia certamente é sentida de uma maneira por um palestino, talvez, vivendo sob ocupação e por um marroquino totalmente afastado, não diretamente ligado a esse problema. É nesse sentido que eu te pergunto: qual seria, quem seria o seu público e se há diferenciação para quem você fala.

Mourid Barghouti: Bem, durante 30 anos, li a minha poesia para platéias árabes fora da Palestina. No Marrocos, como você disse, e em todas as capitais árabes. Também li em capitais européias. A recepção dos poemas era de acordo com a qualidade do poema. Se fosse um poema convincente, bem estruturado e comovente, ele era bem recebido. Se fosse ruim, sendo meu ou de outro poeta, não era bem recebido. Na verdade, para mim é uma coisa nova ler para os palestinos, porque voltei há pouco tempo, mas minha poesia teve alcance desde Bahrein, no Golfo, até o Marrocos, no Oceano Atlântico, apenas como poesia. Ponto final. Então você pode gostar ou não, mas pela qualidade da poesia.

Paulo Markun: Vamos fazer mais um intervalo e eu lembro que o programa desta noite e todos os outros da série podem ser encomendados em DVD pelo site culturamarcas.com.br. O programa desta noite é acompanhado pela platéia com Valentina Silva Nunes, professora da Universidade de Sorocaba e Ângela Ribeiro, pesquisadora do Museu Paulista da USP.

[intervalo]

Paulo Markun: Nosso convidado dessa noite é o poeta Mourid Barghouti, palestino que deixou a terra natal em razão da ocupação israelense. Viveu 30 anos no exílio e escreveu um livro de prosa quando conseguiu voltar a cidade onde nasceu e nesse livro faz observações sobre o interminável conflito no Oriente Médio.

Ubiratan Brasil: Mourid, o livro trata dessa sua volta à Ramallah depois de 30 anos. Então, o que poderia ser algo com uma sensação boa, algo bom... O tom que sobressai na prosa não é de um vitorioso, não é de uma pessoa que está retomando o seu caminho de volta. Mas, claro, com todas as imposições que lhe são obrigadas, que são impostas pra esse retorno. Queria que você comentasse um pouco esse fato de não dar um ar de vitória, mesmo você podendo voltar à sua terra natal 30 anos depois.

Mourid Barghouti: Não foi um retorno vitorioso. Foi muito doloroso. Quando você é poeta e tem a responsabilidade moral das pessoas ao seu redor, seus parentes, os palestinos que são refugiados espalhados por todo o mundo, se você tem oportunidade de voltar por um motivo técnico que deu a você esse privilégio, você sente dor, você não sente que é uma comemoração. Foi isso que eu senti. Eu disse que o retorno deve ser de todos os refugiados, não de um indivíduo, nem sequer de Yasser Arafat. Não gostei das comemorações quando ele entrou em Gaza. Dez mil palestinos voltaram com ele, mas e o resto? O resultado é esse. Os que voltaram com Arafat estão presos ou enterrados. Ele mesmo morreu, ou foi envenenado, e toda a liderança do Hamas está presa agora. 25 membros do parlamento e oito ministros foram seqüestrados à meia-noite e depois presos, mas ninguém disse nada. Essa aventura de ter um governo comandado pela ocupação é uma estupidez e não vai dar certo. Por isso não foi uma comemoração, não foi uma vitória o retorno de ninguém. Nesse livro, Eu Vi Ramallah, o tom não é de triunfo, é de meditação, de fazer perguntas.

Lázaro de Oliveira: Mas também não é a volta do derrotado.

Mourid Barghouti: Não, eu disse meditação, não derrota. Não é um retorno triunfal, não é uma vitória triunfal você poder visitar seu país depois de 30 anos. É um desenvolvimento positivo, mas não é um momento histórico.

Safa Jubran: Eu queria voltar um pouco também para o livro e falar sobre a imagem do palestino. A imagem do palestino que todo mundo conhece é aquela ou de vítima, com a faca no coração, como você disse uma vez, ou de terrorista com a faca na mão. Agora, já no livro, a gente vê um outro palestino. A gente consegue até imaginar "é um homem comum". É um palestino que é um pai, uma mãe, um irmão. Como palestinos, como pessoas comuns, com suas tristezas, angústias, alegrias, bondades, e até pequenas maldades, como você coloca. Eu gostaria que você comentasse um pouco isso. E isso realmente me impressionou no livro: ver o dia-a-dia dessas pessoas que é diferente, não é um rosto estampado no jornal. E uma outra coisa também ligada a isso. Quando se refere a todas as pessoas no livro que morreram sendo elas mortas na luta, na resistência, ou simplesmente na cama por morte natural, sempre você antecede o nome delas com a palavra mártir. Eu queria saber por que mártir esse palestino, mesmo até estando fora, morto não na luta? Por que é mártir? Sempre por ter lutado ou por ter sido morto, talvez, fora, por ter sonhado em voltar a palestina e não ter podido? Não sei. Gostaria que você falasse um pouco sobre isso. 

Mourid Barghouti: Essa pergunta tem duas partes. A primeira parte é sobre a imagem estereotipada dos palestinos. Há uma espécie de assassinato do caráter dos palestinos na mídia internacional. Somos vítimas de desinformação e de informações erradas, não aparecemos na tela da TV, a menos que tenhamos sangue nas mãos, nas costas, na cabeça, a menos que estejamos sendo retirados para ser enterrados, ou levando alguém conosco, matando alguém, como terroristas ou como vítimas. Há amantes palestinos, escritores, músicos, maridos, avôs de cabelo branco, há também avós, palestinos talentosos, palestinos burros, palestinos fiéis à esposa ou que traem a esposa. Não se vê uma história de amor entre palestinos, não se vê um palestino normal, um pesquisador, um bailarino. Eles não são vistos na TV, não existem. O que existe é o palestino que é um problema. O povo palestino não é um problema, é uma nação. Essa imagem não é mostrada ao mundo. O que se mostra é que o palestino é um problema clínico, é um caso, não é um ser humano. Isso responde à primeira parte da pergunta. Você quer saber sobre o mártir. Na cultura árabe, algumas palavras não são bem compreendidas mundialmente. Quando se diz, por exemplo, mártir. Ou então jihad. As pessoas pensam no significado que está na cabeça de [Donald Henry] Rumsfeld [(1932-), secretário da Defesa dos Estados Unidos, de 2001 a 2006, articulador da invasão do Iraque pelos EUA; enviado especial dos EUA ao Médio Oriente durante a presidência de Ronald Reagan (1981-1989), em 1998, apresentou um estudo onde revelava que as maiores ameaças para a segurança dos EUA eram provenientes de países como o Irã, Síria e a Coréia do Norte], como se ele fosse o dicionário da cultura árabe, o dicionário do significado de qualquer cultura do mundo. É um tipo de linguagem que teme as conotações de certas palavras. Se você pensar na palavra mártir, na nossa cultura, se você for viajante, sofrer um acidente e não puder voltar para sua família, você é mártir. Isso é cultura popular. Se você for estudar em Harvard, um carro atropelar você e você não puder voltar para ver seus pais que choram, você é um mártir da educação. Isso faz parte da cultura. Se há dois personagens que se amam, como numa história muito conhecida na cultura árabe, e não podem coroar esse amor com o casamento, então o homem vai para o deserto e fica recitando poemas, sem nunca se casar com sua amada, ele se chama [diz a palavra em árabe]. Quer dizer, "mártir do amor". Essa palavra é diferente dessas definições de hoje, dos institutos de Washington que analisam as palavras e encontram ligações entre elas e o noticiário das 20h. Essa é uma terminologia de raízes profundas numa cultura milenar. Essa língua não foi criada para agradar a CNN [sigla de Cable News Network, rede de televisão norte-americana pertencente ao grupo Time Warner], que, comparativamente, acabou de ser criada. O mesmo se aplica a jihad. Por exemplo, se você estiver lutando para conseguir alguma coisa e isso faz você ser humilhado e perder a fé, mas você resiste à tentação, não entrega sua dignidade em troca de dinheiro, não entrega sua dignidade por uma mulher, não entrega sua dignidade para ser ministro, isso é um jihad contra as tentações. Esse tipo resistência às vozes do mal que levam você a se entregar a coisas mundanas, sacrificando valores permanentes. Então jihad é lutar na guerra, lutar contra as tentações. Isso também é jihad. Muitas crianças, jornalistas, poetas e banqueiros têm o nome de Jihad. É como Muhammed ou Mourid. Jihad é um nome. É como Christian ou David. É um nome. Nos EUA, eles já rotulam. "Você é jihad!" É apenas um nome. Essa cultura tem muitos elementos, muitas palavras, muitas conotações para palavras. Se você quiser colocá-las nos noticiários da CNN ou da Fox News, vai destruir toda a cultura da região. Essa gente acha que política é o jornal das 20h. Política não é o que aconteceu nas últimas 24 horas. É toda uma estrutura de justiça ou injustiça. Quem decide o comportamento de quem, justa ou injustamente. Então você não entende certas terminologias e analisa uma palavra ou outra. É um esforço inútil no meu modo de entender.

Beatriz Kouchinir: A experiência do exílio, voltando à questão do seu livro, é uma experiência muito silenciosa. E eu queria aproximá-lo de uma frase da Hannah Arendt [1906-1975), teórica política alemã e filósofa] que ela vai dizer que "compreender não é perdoar", que "compreender traz consigo uma noção de reconciliação com aquelas experiências". O seu livro carrega essa idéia de reconciliação?  Voltar à Ramallah era uma tentativa de se reconciliar com aquele passado?

Mourid Barghouti: Não entendi. Você quer saber se eu queria uma reconciliação comigo? Com meu passado? Não. A reconciliação...

Beatriz Kouchinir: É uma reconciliação sem perdão. A reconciliação, para a Hannah Arendt, é quando você reconcilia sem perdoar, você tenta vivenciar aquela experiência sem perdoar.

Mourid Barghouti: Vivemos um momento histórico no qual não podemos ter tudo que queremos. Você aceita as limitações da História, mas sente que seu direito é um todo que você não pode desenhar ou tocar, do qual não pode se lembrar, que você não pode fixar nem contar às crianças. Sabemos qual é o direito dos palestinos e sabemos que há limitações, nessa vida política moderna, às ambições dos palestinos. Concordamos em fazer concessões aos israelenses e nos reconciliar com eles para poder viver em paz lado a lado com eles, num outro Estado palestino. Pensando em reconciliação dessa forma, achei que eu poderia conviver com isso. Infelizmente, isso se mostrou impossível. Até mesmo a solução dos dois Estados está se tornando cada vez mais impossível com a construção do muro [construído por Israel, a partir de 2002, entre Israel e Cisjordânia, destinado a impedir ataques palestinos, principalmente os ataques suicidas mais frequentes após setembro de 2000 com o início da segunda Intifada, frequentemente chamado "muro da vergonha"], a situação na Cisjordânia, os assentamentos, o domínio israelense pelo ar, pelo mar e por terra, entradas e saídas em territórios palestinos. Assim não se faz um Estado. Estamos defendendo de novo a primeira idéia da OLP, um Estado comum, democrático e secular na Palestina. Um homem, um voto. Que seja governado por um judeu, por um cristão, por um muçulmano, por um ateu. Não importa. Queremos direitos iguais para todos os cidadãos na Palestina histórica. Todos devem ficar onde estão, mas como cidadãos iguais, num país livre, secular e democrático. Claro que Israel não aceita essa solução, os americanos não aceitam, o adorável Tony Blair não aceita, então continuaremos com esse problema por muito tempo. Essa guerra contra o Líbano foi a sexta e não será a última. Quando Sadat [Muhammad Anwar Al Sadat (1918-1981), militar e político egípcio, presidente de seu país de 1970 a 1981, recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1978; em outubro de 1981, é assassinado durante uma parada militar no Cairo por membros da Jihad Islâmica Egípcia, infiltrados no exército, como represália por ter assinado a paz com Israel] assinou o primeiro tratado de paz com Israel, em 1977, 79, ele disse: "Essa guerra de outubro, a do Yom Kippur [guerra israelo-árabe iniciada em 1973, no dia 6 de outubro, dia do Yom Kipur, feriado judaico conhecido como "Dia do Perdão", entre Israel e uma coligação Egito-Síria], é a última guerra entre Israel e os árabes". Depois disso, foram mais cinco e a sexta está em andamento no Líbano. Façam as contas.

Paulo Markun: A última pergunta daria um programa inteiro, mas o nosso tempo acabou e eu gostaria de uma resposta sintética. O final do seu livro tem um fantástico capítulo muito curto sobre a importância - eu estou simplificando a coisa - a importância do travesseiro, uma espécie de juízo final diário que a gente enfrenta. E eu queria saber como é que o senhor enfrenta o seu travesseiro, com a sensação de que fez a sua parte?

Mourid Barghouti: Bem, com o meu travesseiro, enxergo mais os meus erros que os meus acertos. Vejo mais meus poemas ruins que os melhores. Sempre desconfio de qualquer façanha, de qualquer forma que eu escolha, de qualquer livro que eu escreva. Desconfio até do meu modo de ver a vida, porque ninguém pode ter certeza de que sua análise seja 100% correta, 100% definitiva ou 100% adequada aos próximos anos de sua própria vida. O travesseiro é um juiz cruel, que não é misericordioso com a cabeça que repousa sobre ele. No meu caso, sou uma pessoa muito crítica socialmente, mas também sou crítico comigo mesmo, com quem sou interiormente. Por exemplo, vejo os poemas que publiquei nos meus 14 livros e penso: "Quatro deles não deveriam ter sido publicados". Sempre acho que o melhor é algo por que ainda vamos lutar, que ainda não conseguimos. Meu travesseiro é meu maior crítico.

Paulo Markun: Muito obrigado por sua entrevista e eu espero que o telespectador em casa vá encontrar o seu travesseiro sabendo um pouco mais sobre a Palestina, mais sobre poesia árabe e, enfim, um pouco mais sobre essa questão que é tão importante para nós e que muitas vezes realmente passa pela mídia como se fosse fácil de resolver. Ou, de outro lado, como se jamais tivesse solução. a gente espera que não seja nem uma coisa que não é fácil, mas espera obviamente que um dia isso se resolva. Obrigado aos entrevistadores. Voltaremos nesta segunda-feira com mais um Roda Viva.

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