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Memória Roda Viva

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Mayana Zatz

4/12/2006

À frente da Pró-Reitoria de Pesquisas da Universidade de São Paulo, a geneticista tem como uma de suas metas a criação de leis de incentivo à pesquisa

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Paulo Markun: Boa Noite! Mais de cinco milhões de brasileiros têm algum tipo de doença genética e um em cada cinco bebês, no Brasil, morre antes de completar um ano, por ter nascido com um problema genético. Os avanços da ciência, na área da genética humana, estão permitindo diagnósticos cada vez mais precoces; mas, ao mesmo tempo, alimentam a esperança de cura também para outros tipos de doenças. Acontece que a própria pesquisa, a burocracia e os dilemas éticos ainda desafiam os cientistas. E para discutir o quê é real e o quê é fantasia nesse admirável mundo da genética humana, o Roda Viva entrevista, esta noite, a cientista Mayana Zatz, professora titular de genética e pró-reitora de pesquisas da Universidade de São Paulo. O Roda Viva começa num instante.

[intervalo]

Paulo Markun: Mayana Zatz é referência nas pesquisas sobre doenças genéticas, e se tornou conhecida no Brasil, nos últimos anos, por sua atuação marcante na campanha pela liberação do uso de embriões humanos em estudos com células-tronco.

[Exibição de vídeo sobre a entrevistada]

[Comentarista]: O Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo – o maior pólo de investigação genética do Brasil – tem, em seu comando, esta israelense de 58 anos, que nasceu em Tel Aviv, morou com a família na França, dos 2 aos 7 anos, e chegou ao Brasil em 1955. Em 1969, Mayana Zatz estava formada em biologia na Universidade de São Paulo, onde fez mestrado e doutorado em genética, complementando os estudos com pós-doutorado na Universidade da Califórnia. Professora titular de genética do Instituto de Biociências da USP, Mayana Zatz dedicou-se ao estudo de doenças genéticas desde o início da carreira acadêmica. Tornou-se uma especialista em distrofia muscular, doença hereditária que causa degeneração da musculatura. A busca de maior conhecimento e novas terapias para essa e outras doenças igualmente graves, e ainda sem cura, levaram a pesquisadora também a um trabalho político, em defesa das pesquisas com células-tronco. Ficou conhecida como uma das líderes mais ativas da campanha pela liberação de embriões humanos para esses estudos e foi voz presente na batalha travada no Congresso Nacional, no ano passado, para convencer os parlamentares a incluírem, na Lei de Biossegurança, a permissão da pesquisa com células embrionárias. Mesmo com a restrição, que só permite o uso de embriões congelados há três anos em clínicas de fertilização, a lei foi considerada um grande avanço por Mayana Zatz que, a partir disso, mobilizou o seu grupo para ser o primeiro, no país, a realizar um estudo com células-tronco embrionárias. Um novo passo na carreira da cientista que também teve participação no projeto internacional do genoma humano, a maior empreitada científica da história. O estudo, realizado em conjunto por 18 países, desvendou a estrutura genética do organismo humano, abrindo uma nova era na ciência biológica. Outra atuação de Mayana Zatz foi no trabalho pioneiro de seqüenciamento da Xylella fastidiosa, a bactéria responsável pela praga do Amarelinho, terror das plantações de laranja no estado de São Paulo. O trabalho – que também envolveu outros cientistas paulistas e mostrou o caminho para o combate da praga – teve repercussão no exterior e ampliou o reconhecimento internacional da pesquisa genética brasileira. Mayana Zatz tem trabalhos publicados nas principais revistas científicas nacionais e estrangeiras, e já recebeu prêmios internacionais por suas pesquisas, entre eles, o Prêmio Unesco para Mulheres Cientistas, em 2001.

Paulo Markun: Para entrevistar a geneticista Mayana Zatz, nós convidamos Jorge Forbes, psicanalista e presidente do Instituto da Psicanálise Lacaniana; Carlos Alberto Moreira Filho, superintendente do Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Albert Einstein e professor do Instituto de Ciências Biomédicas da USP; Giovana Girardi, repórter do Caderno Vida E, do jornal O Estado de S. Paulo; Marta San Juan França, editora da revista Horizonte Geográfico; Marcos Pivetta, editor especial da revista Pesquisa Fapesp; e Rafael Garcia, repórter da editoria de ciência do jornal Folha de S. Paulo. Também temos a participação do cartunista Paulo Caruso, registrando em seus desenhos os momentos e flagrantes do programa. [Programa transmitido ao vivo]. Boa noite, Mayana.

Mayana Zatz: Boa noite.

Paulo Markun: Está aqui no IG, no último segundo, uma notícia divulgada agora no final da tarde, que a ministra italiana do comércio exterior, Emma Bonino, começou, nesta segunda-feira, uma greve de fome de dois dias para apoiar o pedido de Pier Giorgio Welbi, de 60 anos, doente terminal de distrofia muscular, que pede há vários meses pelo direito de morrer. E ele é presidente de uma associação de defesa dos doentes, fez um apelo público; enfim, mobilizou a Itália. Longe de querer discutir o drama particular dele, o que eu queria perguntar para você é o seguinte: você acha que está encurtando a distância que separa a política da ciência? Porque uma ministra de Estado fazer uma greve de fome para garantir o direito de alguém ter o benefício ou ter o ônus, sei lá, da eutanásia é um pouco essa mistura, não?

Mayana Zatz: É, eu não tenho dúvida que está diminuindo essa distância. A tal ponto que a liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias foi um assunto muito importante na campanha presidencial dos Estados Unidos. Então eu acho que existe hoje um envolvimento político muito grande.

Paulo Markun: Isso é bom para a ciência?

Mayana Zatz: Eu acho que é bom, no sentido que os cientistas sejam ouvidos e que os políticos apóiem o avanço da ciência.

Paulo Markun: E quem é que embaça esse jogo [close em Zatz, que ri da pergunta]? Quem é que não é a favor do avanço da ciência?

Mayana Zatz: Eu acho que existem grupos conservadores que não entendem bem o que são os avanços científicos. Sempre houve – você estuda a história da ciência – sempre houve pessoas que eram contra. Eu acho que a ciência sempre é uma inovação e as pessoas têm medo de tudo que é novo. Então existe muita gente que diz: "Bom, não vamos arriscar”. E a lei de precaução diz: é melhor não fazer nada do que arriscar, avançar no campo científico. Mas eu acho que a história da humanidade mostrou isso, que sempre houve pessoas que eram contra os avanços científicos.

Marta San Juan França: Mas esse envolvimento do cientista com a política, aqui no Brasil, não é muito comum, não é? Eu acho que essas posições que você costuma adotar assim, com bastante paixão, de ir até Brasília, de participar de campanhas para aprovação da Lei de Biossegurança, e outras situações em que você participou, não é uma atitude comum do cientista aqui, não é? Eu acho que você deve ter encontrado, dentro da universidade, bastante oposição, não encontrou?

Mayana Zatz: Olhe, eu encontrei oposição, mas eu encontrei um apoio enorme da mídia. Eu sempre digo que a mídia foi realmente a grande parceira na briga pelas pesquisas com células-tronco embrionárias. Eu acho que foi uma coisa que começou pequena e cada vez mais tinha mais gente se envolvendo e, para mim, foi uma experiência extremamente positiva. Eu acho que a mídia foi muito importante, tanto por dar espaço para os cientistas falarem, como para mostrar aos parlamentares, na hora da votação, que a maioria da população queria a aprovação dessa lei. Tanto é que a gente acabou com 85% dos deputados votando a favor. O que foi uma vitória, assim, enorme, e que foi destaque internacional. Nos tivemos... na [revista] Scientific American dos Estados Unidos, logo em seguida, mostrou a vitória que a gente teve e que foi obtida aqui e não foi na Itália. Eu estive na Itália, quando a gente estava brigando pela Lei de Biossegurança e pelas pesquisas com células-tronco embrionárias, e nós participamos juntos de debates onde tinham cientistas que eram ganhadores de prêmio Nobel, todo mundo se posicionou, todos os cientistas a favor, e não se conseguiu aprovar a lei.

Paulo Markun: Por que o Vaticano é mais perto da Itália? [Risos]

Mayana Zatz: Eu acho que – claro por causa do Vaticano – mas eu acho que a mídia, na Itália, não deu o apoio que a mídia nos deu aqui. Eu acho que a mídia estava muito... [sendo interrompida]

Paulo Markun: Agora, sem querer monopolizar o debate, pelo amor de Deus... Ontem, você aparece no programa Fantástico [da Rede Globo] fazendo o contraponto de uma notícia que a mídia estava divulgando, justamente - não só no Brasil -, sobre as experiências de um chinês que oferece alguns avanços surpreendentes, ou espantosos nesse campo... na recuperação das pessoas. Quer dizer, a mídia também não exagera?

Mayana Zatz: Com certeza. Exagera e eu tenho uma preocupação enorme, porque as pessoas confundem o que é pesquisa e o que é tratamento. Então, esse chinês, quando eu soube que está cobrando 20 mil dólares para tratar uma pessoa – quando, na realidade, a gente sabe que é uma experiência e é absolutamente antiético cobrar-se por experiências, isso é um consenso internacional – e diz que já foram mil pessoas para lá... Se você não faz um contraponto, amanhã todos estão querendo ir para lá. E eu sei o quanto a gente tem essa procura porque, se você espalha uma notícia dessa, no dia seguinte eu recebo centenas de e-mails de pessoas dizendo: “Olha, eu quero ir lá me tratar!”. E a outra coisa é que ele está injetando células de fetos e que a gente não sabe, uma vez injetadas, qual vai ser o destino dessas células. Porque elas podem muito bem virar tumores. Então, o que a gente acha extremamente importante, nessas pesquisas, é que a gente só vai poder injetar essas células no organismo quando a gente souber que a gente domina a diferenciação dessas células no tecido específico. Então, eu vou injetar quando eu souber que esta célula já tem um compromisso de se transformar em músculo, em neurônio, em osso, e não no que ela quer; no que a gente quer e que o corpo está precisando. Então acho que é um risco enorme o que esse chinês está fazendo. Pode ser até que ele esteja na direção certa, mas ele está colocando a carroça na frente dos bois.

Carlos Alberto Moreira Filho: Mayana, isso que eu queria conversar com você. A gente teve sorte – eu digo a nossa geração – de ver o florescimento da genética, o nascimento da genômica, da terapia celular... Mas, agora precisa de uma transição da descoberta para a inovação, para a beira do leito. O que você acha que falta? Nós não estamos seguindo uma linha muito empírica, no Brasil, no resto do mundo? Não tem muita pesquisa básica que a gente tem que fazer? Por exemplo, no nosso caso, nós temos no Brasil muito poucos centros de pesquisa pré-clínica, pouquíssimos de pesquisa clínica. Onde, ao teu ver, nós devemos investir, agora, para conseguir fazer transitar do laboratório até a beira do leito? Qual seria o esforço necessário e articulado da comunidade científica? Seguir um caminho correto, ético, técnico? Onde nós temos que colocar os esforços agora?

Mayana Zatz: Eu acho que tem que colocar tanto na pesquisa básica quanto na pesquisa pré-clínica, antes de passar para os pacientes, antes de poder injetar... antes de poder oferecer esse tratamento para pacientes. Existem alguns centros de excelência, mas eu acho que a gente ainda precisa aumentar muito o número de pesquisadores que tenham acesso a essa tecnologia. E uma das batalhas que eu venho travando desde que eu assumi a Pró-Reitoria de Pesquisas é a gente conseguir, primeiro, uma lei de incentivo à pesquisa. Então, assim, como nos Estados Unidos, onde a gente pudesse captar mais dinheiro para pesquisa, tanto da iniciativa privada, pessoas físicas e jurídicas, que pudessem ter um incentivo do imposto de renda se dessem dinheiro para a pesquisa... E um segundo grande entrave que a gente tem é a importação. A gente leva um tempão para importar material: fica preso na alfândega, estraga na alfândega... Se a gente quer fazer uma pesquisa competitiva... não pode! Quer dizer, nos Estados Unidos, entre ter uma idéia e colocar em prática, você leva dois dias. Aqui você leva meses. Então, eu acho que isso são dois entraves extremamente importantes.

Jorge Forbes: Eu queria continuar na questão da imprensa, você falou que a imprensa te ajuda tanto e, dentro desse debate – e depois que o Markun levantou o negócio do chinês, que em dois dias as pessoas voltam a andar, eu queria te perguntar o seguinte: o que você acha de um uso que se faz, ao meu ver, dos avanços da ciência, de uma ideologia parasita sobre esses avanços, que fazem com que a sociedade pense que para tudo tem remédio Então eu vejo, pessoalmente, quer dizer, como psicanalista e também como psiquiatra, vejo... Claro que me ponho contrário a isso. E acho interessante que na revista Época, desta semana, finalmente... quer dizer, mostrou numa capa, chamando a atenção de todos, a importância dessa discussão, de que não é bem assim, que nem tudo tem remédio. Ontem mesmo uma colega endocrinologista me ligou dizendo: “O que eu faço? Uma paciente chegou aqui, disse que tinha visto, na noite anterior, um remédio x para emagrecer. Não era o caso de eu dar para ela, eu não dei e ela se levantou e me esmurrou”. A endocrinologista era magra e a paciente queria emagrecer; portanto, era gorda, mais pesada, e esmurrou essa colega. E ela me perguntava se eu tinha uma boa solução. Eu gostaria de te ouvir: o que você acha desse uso da ciência com um apanágio universal?

Mayana Zatz: É, eu acho que temos que tomar muito cuidado para separar o joio do trigo. E é por isso que eu acho que a mídia, se por um lado tem sempre a tendência, toda vez que você faz uma descoberta, de transformar aquilo em remédio... Foi o que aconteceu com o genoma humano. Quando acabou o seqüenciamento do genoma humano, já se dizia: “Olha, isso vai curar todas as doenças!”, quando a gente sabia que não é bem isso. Quer dizer, é um começo do começo o seqüenciamento do genoma humano. Então, eu acho que é extremamente importante os cientistas poderem estar falando também. Os cientistas que estão no laboratório, que estão com a mão na massa e sabendo que a realidade não é exatamente que qualquer descoberta vai ser uma panacéia para todas as doenças, serão ouvidos. Eu acabei de ler agora uma revisão muito importante sobre célula-tronco onde eles acabavam dizendo: “Os cientistas precisam falar”. E eu não sei quantos cientistas têm vontade de falar, às vezes dá trabalho, você ter que parar alguma coisa para falar. Mas eu acho extremamente importante exatamente para mostrar que a pesquisa é extremamente importante, mas, entre pesquisa e remédio, tem um longo caminho.

Rafael Garcia: Professora... [risos] até que ponto essa imagem de panacéia, que a genômica e... essa pesquisa adquiriu, isto não foi induzido um pouco por conta dos cientistas que estavam trabalhando nisso, já desde o final da década passada, na época do anúncio do seqüenciamento do genoma humano, e não só pela mídia? A mídia não pode ter seguido, talvez, alguns cientistas que estavam já, talvez, tentando puxar o peixe para o lado deles?

Marcos Pivetta: Pegando – desculpa, Mayana, antes de você responder – carona, não faz também um pouco parte do trabalho do cientista – ou de alguns cientistas – quer dizer, eles acenarem muitas vezes como uma possibilidade de cura, ou um avanço, acenando que ele está mais perto do que ele na realidade está? Quer dizer, não faz um pouco parte do jogo da ciência para você conseguir verbas, para você continuar sua pesquisa, para você conseguir uma posição de destaque...? E aí as pessoas ficam, às vezes, sem saber o que você disse, um pouco antes, o quão longe hoje você está do tratamento, do que é tratamento e do que é pesquisa... Não faz um pouco parte, enfim, da própria lógica da ciência?

Mayana Zatz: É. Eu acho que um pouco a gente quer dourar a pílula. Mas, entre dizer: “Olha, eu descobri tal coisa e isso, no futuro, pode ser um tratamento”, é diferente de você dizer: “Olha, a partir daí eu já tenho um tratamento”. Então, existe uma distância. Mas eu acho que você dizer: “Eu seqüenciei um gene” não é notícia para a imprensa. Agora, você dizer: “O seqüenciamento deste gene pode levar a um tratamento para tal doença”, isso é notícia. Então, existe um pouco, eu acho, um exagero dos dois lados, talvez.

Marta San Juan França: E existe muita expectativa também da pessoa, do público, do doente. Assim, só pelo fato de eu vir aqui, já tinham pessoas com quem eu falei: “Eu vou lá no Roda Viva falar com a Mayana Zatz”, que já me falaram assim: “Ah, então, pergunta para ela sobre a doença tal”. Quer dizer, existe uma expectativa muito grande em relação a isso... [sendo interrompida]

Paulo Markun: Nós recebemos dezenas de e-mails aqui, absolutamente específicos. E eu não vou fazer nenhuma das perguntas porque são casos absolutamente isolados, que interessa àquela pessoa em particular., e eu imagino que, para ela, não tem nada mais importante no mundo.... Se eu estivesse, talvez, na mesma situação, também pensasse igual.

Mayana Zatz: É. Eu recebo milhares de e-mails todo mês, de pessoas com problemas específicos.

Carlos Alberto Moreira Filho: Mayana, eu acho que a gente tem que fazer alguma coisa, porque depois de todo esse avanço incrível da ciência, nos últimos trinta anos, por outro lado, a percepção pública do que a gente faz, às vezes, é muito complicada. Talvez a escola tenha falhado, talvez o ensino de ciências tenha falhado. Nós temos uma visão muito complicada sobre transgênicos, por exemplo, sobre biossegurança, não é? A mídia tem feito um papel bom no Brasil, mas eu acho que a nossa sociedade é e não é tecnológica, você está agora na Pró-Reitoria de Pesquisas da USP, nós somos todos seus fãs, na universidade... Como é que a universidade tem que se portar agora? Eu acho que o ensino de ciências tem que ser reformulado, as pessoas realmente vivem numa época tecnológica, mas de ignorância científica. Como que isso, esse gap [buraco, em inglês], vai ser coberto?

Mayana Zatz: Olha, eu acho que o ensino de ciências tem que ser melhorado com certeza, e parece que é um problema internacional, não é só aqui no Brasil. A gente traduzir essa linguagem científica para uma linguagem compreensível não é fácil. Mas eu acho que é um esforço que a gente tem que fazer. Uma das idéias que nós tivemos foi de abrir os laboratórios da universidade para os alunos do secundário. E não só para os alunos de colégios estaduais, que não têm acesso a um ensino de qualidade, como também a gente vai receber também os professores. Então, cada laboratório vai receber um professor de escolas públicas, para eles realmente verem como é que é a ciência, colocar a mão na massa para ver como é que você faz uma hipótese científica, como é que você desenvolve um projeto, como é que você se questiona, como é que você vê se você está no caminho certo ou tem que mudar de rumo, não é? Eu acho que isso vai ser extremamente importante. Eu não tenho nenhuma ilusão que isso vai resolver o problema de ciência no país, mas a gente quer ser uma gotinha no oceano e que outros copiem, no Brasil todo, esse mesmo modelo. Eu acho que isso pode ajudar no sentido de essas pessoas, que forem para os laboratórios, serem pólos multiplicadores, voltarem para as suas escolas e contarem o que eles viram.

Paulo Markun: Nós vamos fazer um rápido intervalo, mas logo depois dele nós vamos voltar a falar desse assunto no Roda Viva, que tem hoje na platéia: Daniela Franco Bueno, cirurgiã-dentista, mestre em patologia bucal e secretária geral da Associação Brasileira de Fissuras Lábio Palatinas; Éder Zuconi, biólogo; e Patrícia Amante de Oliveira, médica nutróloga do IMEN – Instituto de Metabolismo e Nutrição. A gente volta já, já.

[Intervalo]

Paulo Markun: Voltamos com o Roda Viva, que esta noite entrevista a pesquisadora Mayana Zatz, professora titular de genética e pró-reitora de pesquisas da Universidade de São Paulo. Além das pesquisas na área de genética humana, Mayana está conduzindo um novo projeto na USP de aproximação entre estudantes e ciência.

[Exibição de vídeo sobre a entrevistada]

Comentarista: A idéia é abrir os laboratórios da Universidade de São Paulo aos estudantes do ensino médio das escolas públicas. Levar os alunos para perto da pesquisa científica, de forma que acompanhe o trabalho dos pesquisadores, entendam a importância desses estudos e se envolvam mais com a vida acadêmica. A iniciativa que tem o nome de Programa de Pré-Iniciação Científica, quer ajudar os alunos de maior talento das escolas públicas a enfrentar o vestibular e a acreditar na possibilidade de entrar na Universidade de São Paulo. Mas quer também melhorar a qualidade do ensino de ciências na rede pública, reciclando professores do ensino médio, além de outras ações de incentivo, como a volta dos kits de experimentos de ciência, dos filmes científicos e do ensino à distância, entre outros. O Programa de Pré-Iniciação Científica quer abrir aos alunos da rede pública o maior número possível de laboratórios da USP na capital e no interior de São Paulo.

Paulo Markun: Mayana, tenho certeza de que essa idéia de aproximar é muito boa. Agora, você estudou em um colégio público; eu também, aqui. Acho que a parte da nossa geração, com certeza, é fruto da escola pública. Não seria mais eficiente ter laboratórios instalados nas escolas, para que as crianças tivessem esta iniciação científica como a gente teve – que eu tive, pelo menos – lá nos laboratórios com os professores de biologia, de química, etc.?

Mayana Zatz: Sem dúvida. Eu acho que o caminho é melhorar o ensino das escolas públicas. Mas, dentro da universidade eu não posso atuar nas escolas públicas, eu posso atuar dentro da universidade. Mas, não tenho nenhuma dúvida que tem que se fazer políticas públicas para melhorar o ensino nas escolas estaduais... [sendo interrompida]

Paulo Markun: E o que se ganha com o aprendizado de ciência? As pessoas... ou a sociedade?

Mayana Zatz: Eu acho que você aprende a raciocinar, aprende a ter espírito crítico, aprende a pensar. Eu acho que o ensino de ciência é fundamental na formação de uma pessoa. Mesmo que ela não queira ser cientista, que ela não queira seguir a carreira acadêmica, eu acho que é um aprendizado que vai ser importante para o resto da vida.

Carlos Alberto Moreira Filho: Eu queria te colocar um outro ponto. Outra coisa que falta no Brasil é um empreendedorismo ligado à ciência. Israel tem 96 moléculas licenciadas pela indústria farmacêutica mundial, e são instituições de pesquisas que têm as patentes. Nós não temos nem uma única no Brasil. O que explica o nosso fracasso na transição da descoberta para a inovação. Acho que esse é um dos grandes problemas da universidade brasileira hoje: a sua ligação com o setor produtivo. Acho que é tão problemático quanto o ensino de ciências ou mais. Nós somos dez mil doutores por ano e não tiramos quase nada disso em termos de agregação de valor no setor produtivo. Como é que você vê essa questão?

Mayana Zatz: Olha, eu acho que é uma questão extremamente importante. Acho que essa Lei de Inovação Tecnológica, que permite interação entre universidade e empresa, foi muito importante, e eu acho que está mudando a maneira de pensar. Porque, até então, se você falava isso na universidade, diziam que você estava se vendendo para as multinacionais. Hoje isso está sendo muito bem aceito e a idéia é que o conhecimento que é gerado na universidade e não se transforma em tecnologia morre na praia e não serve para nada. Então eu acho isso extremamente importante, mas é uma coisa que está começando. Mas, se deslanchar, eu acho que pode trazer um avanço importante para o país.

Giovana Girardi: Professora, eu queria voltar um pouquinho às células-tronco. No ano passado, os pesquisadores brasileiros receberam um investimento, uma verba do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, agência de fomento à pesquisa do Ministério da Ciência e Tecnologia] de mais ou menos onze milhões para estudo com célula-tronco embrionária. Agora, recentemente, acho que está sendo liberada lá nos Estados Unidos aquela verba para a Califórnia. O Instituto de Medicina Regenerativa da Califórnia está recebendo 3 bilhões de dólares.

Mayana Zatz: É bastante! [Risos]

Giovana Girardi: Aí, na semana passada, o presidente... [sendo interrompida]

Paulo Markun: Desculpe Giovana, só para... um é onze milhões de reais e o outro é 3 três bilhões de dólares [risos]...

Giovana Girardi: E mesmo o presidente do instituto californiano falou, modestamente, que ele espera que, em dez anos, se eles conseguirem, pelo menos com a célula-tronco embrionária, encontrar a cura para pelo menos uma doença, ele já acha que está no lucro. E ele foi recebido meio como, tipo: "Como você está sendo...

Mayana Zatz: Otimista... [sendo interrompida]

Giovanna Girardi: Não, pessimista, não é? As pessoas, de um modo geral, falaram: “Três bilhões, uma doença, em dez anos!”. Mas essa é a realidade? Vai ser isso ainda que a gente ainda vai demorar para conseguir realmente... do laboratório para o tratamento [indica com a mão direita um deslocamento, movendo-a da direita para a esquerda]; quer dizer, na hora que vai chegar a uma cura, mesmo?

Mayana Zatz: Olha, eu acho que nem todas as doenças vão ser tratadas com células-tronco. Você não vai ter os mesmos resultados... para cada doença, vai ser uma pesquisa diferente. Eu, pessoalmente, acho que algumas doenças a gente vai poder tratar antes de dez anos. Eu acho que a ciência é feita assim de... Eu sempre brinco que a gente vai colocando tijolinhos numa casa, e cada descoberta nova é um novo tijolinho. Mas, às vezes, você tem saltos. Às vezes, você tem um monte de tijolinhos que são colocados de uma vez só. Então, no projeto do genoma humano, quando se começou o seqüenciamento, se falava em quinze anos para acabar. E acabou-se antes. É verdade que até hoje existem ainda alguns gaps [brechas], mas acabou-se antes do esperado.

Jorge Forbes: Mayana, nessa linha, eu acho que seria interessante, o espectador pode estar interessado em uma doença que acomete muita gente, e que, com a longevidade atual da nossa civilização, nós estamos criando atletas com Alzheimer [close em Zatz, que ri do comentário]. Quer dizer, nós aumentamos o número de anos, mas nós não resolvemos o problema da demência. E a mais temida é a Alzheimer. Me parece que temos boas esperanças para o tratamento do Alzheimer – eu já ouvi você, em algum momento, falar isso. Talvez seria interessante que você agregasse à pergunta esse aspecto, que deve ter muitos interessados aí.

Mayana Zatz: Eu acho que levantou também uma questão interessante porque, quando se começou a discutir a importância das pesquisas com células-tronco embrionárias, todo mundo só falava da doença de Alzheimer e da doença de Parkinson. E eu acho que a doença de Parkinson vai poder ser tratada com célula-tronco; mas a doença de Alzheimer, não. Por quê? Porque, na doença de Alzheimer, você tem depósito de placas amilóides, e é esse depósito que atrapalha, então, a interação entre os neurônios. Então eu acho que faz muito mais sentido você evitar o depósito de placas do que você substituir os neurônios com células-tronco. E isso já foi tentado com modelos animais e eles mostraram que, se você impede a formação de placas, você inclusive consegue regenerar os neurônios, quando está no início da doença. Então eu acho que a estratégia vai ser muito mais ir por esse caminho do que você tratar com... [sendo interrompida]

Jorge Forbes: Em menos de dez anos?

Mayana Zatz: Esse em menos de dez anos! Eu acredito que em menos de dez anos a gente consiga, sim.

Paulo Markun: Agora, que tipo de doença, de modo geral... quer dizer, que tipo de resultado – o que vai surgir da célula-tronco – pode propiciar, tirando a fantasia de lado?

Mayana Zatz: Olha, eu acho que vai ser o futuro dos transplantes. A gente vai poder regenerar tecidos – hoje, tecidos – e no futuro a gente vai poder fazer órgãos, por que não? Existe um trabalho que saiu agora, essa semana, mostrando que, a partir de células-tronco embrionárias de camundongo, uma célula foi capaz de regenerar todos os tecidos, ou todos os tipos celulares do coração. Então, a partir daí, você poderia fabricar todos os tecidos do coração. E mais tarde, eu acho que a gente vai poder fabricar outros órgãos. Mas é coisa de futuro, ainda. Eu não acho que a gente está pronto para fazer isso. No começo, a gente vai poder fazer tecidos mais simples – e eu, particularmente, estou muito interessada em músculos, porque eu trabalho com doenças neuromusculares – e, mais tarde, a gente vai poder fazer órgãos mais complexos.

Rafael Garcia: Professora, a gente tem ouvido falar, ultimamente, muito em estratégias de pesquisa que são bastante ousadas, como a engenharia de tecido com célula-tronco, terapia gênica, silenciamento de gene com interferência de RNA. Mas a impressão que, às vezes, a gente tem, cobrindo ciência no jornal, é de que a pesquisa em farmacologia, para produção de drogas mais convencionais, tem que se beneficiar muito mais do conhecimento que a genômica e a genética trouxeram nesses últimos anos. A senhora acha que todas essas doenças genéticas ou doenças degenerativas elas vão, efetivamente, precisar desse tipo de estratégia, que ainda está muito na frente, vai precisar de tecnologias mais novas? Ou parte dessas doenças... vai ser possível tratar elas com drogas mais convencionais?

Mayana Zatz: Eu acho que muitas delas a gente vai poder tratar com drogas. No momento que você descobre o que aquele gene faz, qual é a proteína que ele expressa, você vai poder, em várias situações, tratar com uma estratégia farmacológica, com drogas. Agora, existe toda uma área extremamente importante da farmacogenômica, que é a resposta individual à droga, e essa vai revolucionar a medicina. Porque hoje, toda vez que você toma uma droga nova, você é uma cobaia, você não sabe como é que vai reagir. Você pode ter um efeito benéfico, você pode não ter efeito nenhum, ou aquela droga pode ser tóxica. E isso a gente sabe que está relacionado com os teus genes. Então, uma coisa, por exemplo, muito simples é a velocidade com que você metaboliza uma droga. Se você for um metabolizador lento, você tem que tomar uma dose muito menor daquela droga, porque ela vai ser tóxica, se tomar a dose padrão. Se você for metabolizador rápido, você vai eliminar rapidamente e aquela droga não vai fazer efeito nenhum. E hoje os laboratórios falam: “Toma o remédio para ver o que acontece”. No futuro, não vai ser assim: antes de você tomar um remédio, você vai ao laboratório – um laboratório de genética – e vai ver qual é a dose que você tem que tomar daquele remédio e qual é, de acordo com o teu perfil genético, a droga ideal para você.

Rafael Garcia: E no caso da distrofia muscular progressiva, que é a doença com a qual você trabalha no laboratório, que tipo de tratamento a senhora acha que vai conseguir vencer essa doença um dia?

Mayana Zatz: No caso da distrofia, em particular, eu acho que a terapia celular vai ser a solução, porque você tem uma degeneração progressiva da musculatura que vai sendo eliminada. Então, você tem que substituir aquela musculatura. Da mesma maneira, se você tem um coração que não está funcionando, você faz um transplante e substitui aquele coração. Mas, para outras doenças – você lembrou muito bem –, o RNA de interferência pode ser extremamente importante. Nós temos uma série de doenças que se manifestam em idade tardia, por exemplo, a “Coréia de Huntington”, ou as degenerações espino-cerebelares, onde existe um gene que está produzindo uma proteína em excesso, porque ele tem um aumento de um pedaço, de uma seqüência desse gene. E aí você vai, com o RNA de interferência, poder inibir aquela produção em excesso, muito antes do aparecimento dos sinais clínicos, que são genes, onde você pode descobrir que a pessoa é portadora da mutação logo depois que ela nasce, e a doença só vai aparecer 40 ou 50 anos depois. Então, hoje a gente é contra testar pessoas assintomáticas – os jovens assintomáticos – para doenças de início tardio, para as quais não há tratamento. Mas no momento em que você tiver um tratamento, aí sim vai ser muito interessante você testar em pessoas jovens para evitar o aparecimento dos sintomas.

Marcos Pivetta: Mayana, dentro dessa linha de tratamentos... enfim, da área de genética, além das células-tronco, se falava...  – ainda se fala um pouco, mas em menor escala – muito de terapia gênica. Quer dizer, ela não obteve resultados ainda muito animadores. Eu gostaria que você falasse um pouco... qual perspectiva você vê de uso da terapia gênica, se você acha que realmente vai ser uma forma de tratar algumas doenças, ou você acha que a terapia celular, com célula-tronco, realmente é muito mais promissora?

Paulo Markun: Começando pela explicação entre o é uma coisa e outra [risos]!

Mayana Zatz: Bom, a terapia gênica seria você substituir um gene que está defeituoso, é tentar corrigir o defeito. E a terapia celular você substitui a célula toda, sem ter que se preocupar muito com qual é o defeito, saber que aquela célula não está funcionando e você precisa substituir. Eu acho que a terapia celular é mais promissora. Por quê? Porque, na terapia gênica, você tem que, para cada gene, ter uma estratégia diferente. Então, existem alguns genes onde você pode ter mil mutações diferentes levando a um mau funcionamento daquele gene e a uma doença genética. Você, teoricamente, teria que ter uma estratégia para corrigir para cada um daqueles defeitos. Depois, você tem o problema de vetores. Você ter que fazer aquele gene que está defeituoso... você substituir e ter certeza que ele vai chegar no lugar certo. Então, qual seria o vetor: um vírus, ou... ninguém sabe exatamente qual vetor você teria que usar para não ter risco nenhum para o organismo. Então, é muito mais complexo se for pensar nas milhares de doenças genéticas e nas milhares de mutações que podem levar a doença genética em cada um dos genes. Já na terapia celular, não. Nós estamos testando agora terapia celular para um tipo de distrofia, que é a distrofia de Duchenne, que é a mais grave das distrofias. Nós temos mais de trinta distrofias diferentes; se funcionar para a distrofia de Duchenne, vai funcionar para qualquer uma das distrofias, porque o que eu quero é substituir o músculo, e aí não vai me importar qual é o motivo pelo qual o músculo está degenerando, o importante é poder substituí-lo.

Marcos Pivetta: Quer dizer, do ponto de vista clínico, você acha que a terapia gênica, por enquanto... você ainda não vê, pelo que estou sentindo, uma utilidade muito clara, do ponto de vista clínico, de tratamento?

Mayana Zatz: É, clínico eu acho que nós estamos muito longe de um tratamento.

Giovana Girardi: Eu queria até completar isso... Eu tenho a impressão assim: a gente fala que já faz seis anos que seqüenciou o genoma, e aí era o livro da vida, e a coisa toda de panacéia e tudo mais. E a impressão que dá, até – acho que a gente, que cobre ciência – é que cada vez... Não sei, eu tenho a impressão que, às vezes, a gente toma uns sustos. Por exemplo, esta pesquisa que saiu na semana passada – retrasada – falando que, em vez da gente só ser 0,1% diferente entre um ser humano e outro, essa diferença pode ser muito maior. Então, comparando no livro da vida, em vez da gente só ter algumas letras diferentes, a gente pode ter páginas inteiras duplicadas ou páginas inteiras... apagadas. Cientistas ainda estão... cada vez que eles olham mais para o genoma eles falam: “Ui, tem mais uma novidade aqui”. Não sei, está pegando ainda de surpresa?

Mayana Zatz: Eu acho que os genes são muito mais complexos do que a gente imaginava antes. E, por isso, quando se fala que você tem homologia de 99% entre o homem e o macaco, pode ser até que, na seqüência de DNA se tenha. Mas, no processamento dos genes para formar proteínas, a gente é muito mais complexo. E a grande surpresa que a gente teve quando começou a estudar doenças genéticas é você ver que não existe determinismo genético. Então, você vê que, com a mesma mutação, às vezes na mesma família, você tem pessoas que têm uma doença grave, e outros que podem ser totalmente assintomáticos. E isso abre um novo caminho para tratamentos. Se eu conseguir entender porque que uma pessoa tem aquela mutação e não tem a doença, isso vai abrir também novas perspectivas de tratamento.

Jorge Forbes: Eu queria questionar exatamente nesse ponto, quando você fala que na mesma família você tem uma mutação gênica em dois irmãos e em um você tem uma expressão, como de um comportamento... Imaginemos uma paralisia, em um você tem uma paralisia em um membro inferior, em uma perna, e no outro você tem um leve tremor. A minha pergunta é a seguinte: a determinação gênica faz parte do genótipo, ou comportamento do fenótipo. Você entende... tem gente, muita gente, tem uma linha de pesquisadores que pensam que um dia nós encontraremos relações biunívocas entre o genótipo e fenótipo. Um pouco o que a Giovana falava há pouco, a idéia que realmente nós chegaremos ao livro da vida, onde a minha felicidade, a minha tristeza, o meu amor, a minha loucura, ou a minha sei lá o que, tudo aquilo vai poder ser determinado e, portanto, alterado nessa conjugação. A pergunta é: você é dessa corrente, ou você acha que cada vez que se anda nisso você vê que aumenta a distância – como foi levantado pelo Marcos Pivetta – e que não há a possibilidade desse colabamento entre o genótipo e o fenótipo?

Mayana Zatz: É, eu acho que aumenta a distância. A gente percebe, cada vez mais, que o genótipo não é determinante, que existe uma interação muito grande entre os genes e o ambiente, ou fatores que se chamam epigenéticos. E que isso tem um caminho enorme de estudos para a gente conseguir entender melhor.

Jorge Forbes: Isso talvez, então, queira dizer também que é necessário associar a ciência à postura de ética...?

Mayana Zatz: Com certeza. E de comportamento. Então, por exemplo, essa matéria que o chinês mostrou ontem, no Fantástico: ele mostra um paciente que tem esclerose lateral amiotrófica e que não andava há cinco, seis meses. E ele deu injeções de células-tronco e, dois dias depois, disse que o paciente saiu andando. Mas a gente sabe que isso é impossível, não é? Porque se tivesse sucesso o tratamento, você precisa de semanas para aquelas células se dividirem e ter algum efeito. Então, qual interpretação que a gente pode dar para isso que ele mostrou? É que aquele paciente, quando recebeu o diagnóstico de uma esclerose lateral amiotrófica, ele se identificou com aquela doença e disse: “Bom, já que vai progredir, eu já vou me largar de vez, eu vou parar de andar”. E com isso ele realmente parou de andar. E, no momento que ele teve um estímulo e uma esperança de uma coisa que podia ser tratada, ele começou a andar. E que não tinha nada a ver com o tratamento. Então, vai muito na linha que você fala, que a gente tem que desautorizar o sofrimento, não é? O Jorge fala que a gente tem que desautorizar o sofrimento dos pacientes e que os pacientes, mesmo que tenham problema, podem inventar uma nova maneira de viver com aquele problema e ter... [sendo interrompida]

Jorge Forbes: Desautorizar o sofrimento prêt-à-porter, não é? Quer dizer, a partir da idéia que a sociedade provê formas standard tanto de felicidade como de sofrimento. Quer dizer, desautorizar esse sofrimento standard que a sociedade dá e que eu concordo com você. Talvez a pessoa tenha andado porque ela tivesse identificado com o sofrimento prêt-à-porter, já pronto para usar!

Mayana Zatz: E obviamente que ela tinha potencial para continuar andando, tanto é que dois dias depois ela estava andando.

Carlos Alberto Moreira Filho: Mayana, eu queria só mudar um pouco...  Acho que tem um lado que é importante passar, que... genômica, alguma coisa em terapia celular... já tem impacto em doenças muito comuns. Por exemplo, o câncer, que é a segunda causa de mortalidade no Brasil – de mortalidade e de morbidade – tem uma contribuição enorme da genômica em termos das terapias que são adaptadas ao tipo de tumor e ao tipo de indivíduo que tem o tumor, não é? Você não acha que – e isso é importante a gente mostrar – as terapias com células-tronco adultas e o uso prático de genômica, na prática médica –a gente faz isso todo dia – eu acho que é importante as pessoas verem também que há muita coisa nas doenças que são mais comuns e que estão usando isso. Eu acho que é interessante você comentar sobre isso, que não é apenas um conhecimento que atua sobre doenças raras ou sobre coisas que ainda são fronteiras. Existe um avanço enorme na oncologia, na neurologia, na cardiologia, ligado diretamente a esse avanço da genômica e da terapia celular, em menor grau.

Mayana Zatz: É, eu diria mais que na farmacogenômica, que a gente acabou de discutir aqui. A farmacogenômica vai revolucionar a medicina em todos os sentidos. O câncer é um deles, onde já está havendo avanços muito grandes. Eu acho que as pessoas, às vezes, não atinam muito que câncer é considerado uma doença genética.

Jorge Forbes: É, é uma doença de instabilidade.

Mayana Zatz: É.

Marta San Juan França: Agora, tem uma coisa que ele colocou que eu acho interessante. Teve uma época que se falava em terapia, genética, genes para... de violência, de homossexualismo, tendência ao alcoolismo. Isso não é mais, não se fala mais nisso?

Mayana Zatz: Olha, em relação à tendência ao alcoolismo, existem trabalhos mostrando – tanto com estudos de gêmeos, como de filhos adotados, como estudos animais – que existe uma predisposição ao alcoolismo. Mas você precisa ter não só... o ambiente também precisa interagir. Não existe só o componente genético. Então são coisas que a gente chama de multifatoriais. Você pode ter, por exemplo, uma predisposição a ter pressão alta, mas você vai ter pressão alta em determinadas condições ambientais. Então, o alcoolismo é a mesma coisa, a gente acredita que haja uma predisposição... [sendo interrompida]

Marta San Juan França: E homossexualismo também [risos]?

Mayana Zatz: Eu, pessoalmente, acho que há uma predisposição ao homossexualismo, dependendo do tipo de homossexualismo. Tem algumas crianças que você vê que desde crianças já têm uma tendência ao homossexualismo. Eu acho que esse, talvez, tenha alguma predisposição genética. Agora, o homossexualismo de adulto, talvez não. A pessoa está procurando emoções diferentes, dependendo do ambiente, e não tem uma predisposição genética.

Marta San Juan França: Mas não existe uma... Os geneticistas não consideram que quase tudo tem uma raiz genética? Nesse ponto, assim, você não tem limite, não é? O tipo de comportamento ou o tipo de... qualquer alteração que provoque alguma doença...

Mayana Zatz: Não. Existem coisas que são totalmente ambientais. Por exemplo, a língua que se fala. Você vai falar uma determinada língua de acordo com o país que você vive. Existem condições que são totalmente genéticas, como por exemplo, o grupo sangüíneo. Não importa em que país você vai morar, seu grupo não vai mudar. Mas na grande maioria das condições, eu acho que existe uma interação entre os genes e o ambiente. Então, por exemplo, se você leva um tombo e quebra uma perna, você vai dizer: “É ambiental”, não é? Mas se você pudesse reproduzir exatamente o mesmo tombo em duas pessoas diferentes, talvez uma segunda pessoa não quebrasse a perna. Por quê? Porque a constituição óssea e muscular dela é diferente, e isso tem um componente genético. Então, eu acho que na grande maioria das condições se tem uma interação entre os genes e o ambiente.

Paulo Markun: Mayana, antes de fazer o intervalo, eu queria apresentar a pergunta do professor de ciências da Faculdade de Educação da USP, Nélio Bizzo, sobre o atual sistema educacional da disciplina nas escolas brasileiras. Vamos ver...

Nélio Bizzo: Mayana, eu quero te fazer uma pergunta especificamente dirigida à minha área, que é o ensino de ciências. O que você acha desse ensino de ciências que faz com que os alunos fiquem memorizando nomes e informações, estudem todos os vírus, animais, vegetais, enfim, façam... Os estudantes têm que estudar muita coisa, memorizar, você acha que isso é o mais importante, ou o mais importante é, talvez, estudar menos coisas, mas com mais profundidade, desenvolvendo o raciocínio? O que é melhor para o desenvolvimento de cientistas como você [Bizzo sorri]?

Mayana Zatz: [Zatz sorri] Bom, eu acho péssimo decorar e memorizar. Eu acho que as pessoas têm que entender o raciocínio científico. E por isso a importância dessa pesquisa em laboratório; da pessoa pôr a mão na massa e entender como é que você pensa em um assunto, como é que você desenvolve, e como é que você se questiona, em relação aos resultados. Eu acho que decorar não leva a nada e, provavelmente, passou de ano, já esqueceu tudo [Zatz sorri].

Paulo Markun: É aquela memória do computador que você desligou, desapareceu [Markun sorri]. [...] Vamos para um intervalo e voltamos daqui a instantes, com o programa que é acompanhado na platéia por Francisco Roberto Soares da Silva; gerente de marketing; Celso Kukler, médico nutrólogo do Hospital do Coração, em São Paulo; e Doris Barga, empresária e diretora do Espaço Mamitobe. A gente volta já, já.

[Intervalo]

Paulo Markun: Voltamos com o Roda Viva, que esta noite entrevista a geneticista Mayana Zatz, pesquisadora da área de genética humana e pró-reitora de pesquisas da Universidade de São Paulo. Mayana é pioneira no estudo das doenças neuromusculares no Brasil, que já afetam mais de 200.000 pessoas.

[Exibição de vídeo sobre a entrevistada]

Comentarista: Mayana Zatz é coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo, desde a criação da entidade, em 1969. O centro, que funciona na Cidade Universitária, em São Paulo, desenvolve pesquisa básica e aplicada, e oferece atendimento e aconselhamento sobre doenças genéticas, especialmente a distrofia muscular, especialidade de Mayana Zatz. Seu grupo foi o primeiro do mundo a localizar um dos genes ligados a uma distrofia que afeta braços e pernas e realiza estudos sobre mais de 50 formas diferentes da doença, um mal hereditário que causa a degeneração da musculatura e ainda não tem cura. Ela também é fundadora e presidente da Associação Brasileira de Distrofia Muscular, primeiro centro de atendimento a portadores de distrofia da América Latina. A entidade oferece orientação, fisioterapia e apoio psicológico a parentes e portadores da doença. Mais de 80 mil crianças, no Brasil, são vítimas de algum tipo de distrofia, em muitos casos, herdado da mãe que é portadora, mas não apresenta sintomas. A detecção e tratamentos precoces aumentam a sobrevida do paciente, melhorando a qualidade de vida e sua inserção social. O trabalho da ABDIM, Associação Brasileira de Distrofia Muscular, pode ser conhecido no site da entidade, na internet: www.abdim.org.br. Seus objetivos, serviços oferecidos e informações sobre doenças genéticas, uma ficha de cadastro para interessados e um aviso esperançoso na página principal: Não existe doença sem cura, existe doença cujo tratamento ainda não foi encontrado.

Paulo Markun: Mayana, também na questão da distrofia muscular, o Brasil é um país desigual. A gente tem pesquisa avançada e tem alguns centros de excelência, mas tem gente que não consegue emprego porque não tem cadeira de rodas. Como é que se resolve isso?

Mayana Zatz: É. Eu acho que é uma questão muito importante. A gente tem batalhado para que os pacientes tivessem acesso a um tratamento melhor, mas a gente continua... Fora de São Paulo, isso não existe. Por exemplo, testes genéticos: nós desenvolvemos testes genéticos que permitem que você faça um diagnóstico com uma coleta de sangue, só que, no momento, que não é mais pesquisa e passa a ser uma prestação de serviço. O SUS [Sistema Único de Saúde] não cobre o custo. Então, você desenvolve pesquisa, desenvolve tecnologia, mas isso não é repassado para a população mais carente. E, realmente, os pacientes não têm cadeira de rodas, não têm o mínimo de possibilidade de sair, ter acesso a uma escola, de ter acesso a uma fisioterapia... Fora de São Paulo a situação é realmente muito difícil. E a idéia, quando a gente fundou a Associação Brasileira de Distrofia Muscular, era tentar ajudar esses pacientes, é o mínimo que a gente faz quando se pensa na população brasileira.

Paulo Markun: Os testes genéticos envolvem também a possibilidade de identificação se um casal, por exemplo, terá crianças portadoras de distrofia, ou é tudo mistura de estação?

Mayana Zatz: Não, é isso mesmo! Então, o que faz o teste genético? Toda vez que você tem uma distrofia ou qualquer outra doença genética na família, você faz o diagnóstico na criança, pelo teste genético. E aí o próximo passo é saber se existe risco de repetição com aquela doença, tanto para aquele casal, como para outros parentes, que são assintomáticos. Por exemplo, a distrofia de Duchenne, que só afeta meninos, você faz o teste nas irmãs, nas tias, nas primas, todas elas – se quiserem, é claro. Você pode detectar se elas têm risco ou não antes de terem um filho afetado. Então, para a prevenção da doença isso é fundamental. Mas, como eu falei, os pacientes mais pobres não têm acesso a estes testes porque o SUS não cobre. E é um teste que poderia ser feito mandando pelo Correio, de qualquer lugar do país, e a gente poderia fazer o teste no Centro do Genoma.

Carlos Alberto Moreira Filho: Mayana, tem outra coisa importante nisso. As pessoas pensam que o teste genético é só para uma doença muito rara. Câncer de mama, câncer de ovário, câncer de cólon, têm testes genéticos que mostram a predisposição, o risco – e às vezes é altíssimo o risco, como em câncer de mama hereditário. Então, esse eu acho que é um dos grandes problemas: que o SUS não paga. E tem um outro problema que eu gostaria que você comentasse. Existem doenças genéticas que nós podemos detectar analisando células do feto e que são extremamente limitantes à vida. Não só aqui, no Brasil.... você pode, nos serviços acadêmicos, fazer o teste, mas o aborto será crítico eletivo e não pode ser feito. Na verdade, quem realmente não faz é quem não tem acesso. Eu gostaria que você comentasse isso, porque eu acho que isso é uma questão de exclusão importante no nosso país. Nós temos um avanço grande da genética, nas instituições públicas, que permite quase todos os testes genéticos. Nós fazemos no Brasil, mas nós temos o problema de que o benefício do teste genético é extremamente restrito. Como é que a gente quebraria esse ciclo? O que é importante fazer aí?

Mayana Zatz: Olhe. Eu acho que é uma questão muito polêmica. Mas eu... você sabe a nossa posição. Eu acho que quem tem que decidir é o casal. Então, a gente oferece o diagnóstico pré-natal para quem quiser, e depois a pessoa faz o que quiser com essa informação. E, ao contrário do que as pessoas pensam, no momento em que a gente começou a oferecer diagnóstico pré-natal – quer dizer, para o casal que tinha o risco alto de ter uma doença genética, e engravida, e você pode saber, logo no início da gestação, se esse feto vai ter algum problema – diminuiu-se muito o número de interrupções de gestação em famílias de alto risco Por quê? Porque as pessoas interrompiam a gestação com medo de ter um filho afetado. E hoje, a gente, quando oferece o diagnóstico pré-natal, a gente vê que, na grande maioria dos casos, a gente pode dar uma boa notícia, que o feto é normal e a gestação continuar. E só numa percentagem pequena de casos a gente confirma que o feto é afetado. Então, a gente não faz interrupção de gestação, mas a gente acha que o casal tem que ter o direito de decidir. E aí é o que eu sempre digo, a pessoa tem a possibilidade de dizer: “Olha, é legal no Brasil?”. Ela tem possibilidade de viajar e de fazer em qualquer lugar do mundo. Então é um problema social, eu acho, e não um problema religioso.

Paulo Markun: Agora, eu já conversei uma vez com o Dr. Carlos Alberto sobre essa questão, e... Virou moda a questão da preservação do cordão umbilical do bebê nascido – de boas famílias, principalmente, que pagam um caminhão de dinheiro para fazer isso. Qual é a vantagem que existe – se é que existe alguma vantagem – de alguém – eu, só pode ser dos meus netos e netas – guardar ali o cordão umbilical, salvo aquilo que as avós faziam de enterrar na beira de uma planta?

Mayana Zatz: Eu acho que nenhuma. Eu sou muito favorável a ter bancos públicos de cordão. Mas os bancos, se você guardar o cordão de seu próprio filho, a chance de você usar é ridiculamente pequena. Primeiro, se teu filho tiver uma doença genética, você não pode usar o sangue, o cordão da própria pessoa. Em casos de leucemia também já se mostrou que é muito melhor você usar de uma pessoa compatível do que usar o próprio cordão. Então, a idéia de ter bancos de cordão é porque, se você tiver um número – estima-se 12 mil, mais ou menos, não é?

Carlos Alberto Moreira Filho: Doze mil.

Mayana Zatz: Doze mil amostras, num banco, a chance de você achar um compatível é de praticamente 100%. Então, você teria esses bancos, uns três ou quatro bancos no país, e, hoje, já se justifica porque, se você tiver um caso de leucemia, por exemplo, ao invés de ter aquele desespero de você tentar procurar um compatível na família, você vai no banco de cordão e vai lá achar um compatível e resolveria esse problema. E uma outra coisa que eu fiz e toda vez que me perguntam, é uma estimativa... Você falou do “rios de dinheiro”. Então, se você calcular que custa cinco mil reais para coleta, e 500 reais por ano para manter; se você puser esse dinheiro na aplicação a 10% ao ano, depois de 20 anos você vai ter 60 e tantos mil reais. E isso dá para comprar dois cordões, em qualquer lugar do mundo, se for necessário. Então, eu acho que o bebê, quando nasce, deveria ter o direito de escolher: se ele quer que a mamãe congele o seu cordão, ou se quer que a mamãe faça uma poupança para você; quando você tiver 20 anos, você vai ter esse dinheiro e vai fazer o que quiser com esse dinheiro [risos]. Então, eu, pessoalmente, acho que congelar o sangue do próprio cordão é uma bobagem. Agora, se as pessoas, depois de saberem tudo isso, ainda quiserem congelar, é uma opção delas; mas eu acho que elas têm que saber que a chance de usar é ridiculamente pequena, de usar o sangue do próprio cordão.

[Zatz vira-se para Moreira Filho]

Carlos Alberto Moreira Filho: Sim!

Mayana Zatz: Você concorda, não é [Zatz ri]?

Carlos Alberto Moreira Filho: Concordo, plenamente.

Marta San Juan França: Tem uma outra questão, de embrião também, sobre célula-tronco. Quando foi aprovada a Lei de Biossegurança, que permite pesquisas com células-tronco embrionárias, a partir de embriões congelados, se imaginou então, que se teriam montanhas de embriões congelados, que se poderia utilizar para se fazer essas pesquisas. E depois se chegou à conclusão que, na verdade, são pouquíssimos. E mesmo esses, para você poder utilizar para fazer pesquisas, são menos ainda; quer dizer, é um número muito pequeno. Como é que está essa questão? Quer dizer, já estão usando embriões dessas clínicas de fertilização, já estão sendo usados para fazer pesquisa? Não? Como é que está isso?

Mayana Zatz: Olha, por enquanto, o que está se tentando fazer é desenvolver linhagens a partir desses embriões. Mas, você levantou um ponto muito importante: que ninguém sabe quantos embriões congelados existem. Então, se falava de 30 mil, depois começou a se falar de três mil, e ninguém sabe, ao certo, quantos embriões existem. Mas o que a gente sabe é que a chance de você, a partir do embrião congelado, conseguir desenvolver uma linhagem é muito pequena, da ordem de 5 a 6%. Ou seja, de cada 100 embriões que você vai descongelar, em 95 deles não vai acontecer nada. Talvez em cinco, você consiga uma linhagem. Então, é uma coisa trabalhosa e, por isso, a gente acha que esses embriões são muito preciosos. E só deve, então, trabalhar com esses embriões quem tiver toda a tecnologia e puder fazer um bom uso disso.

Marta San Juan França: No Brasil, ninguém ainda começou a fazer?

Mayana Zatz: Já se começou, mas ainda em escala muito pequena. No meu grupo, nós estamos mais desenvolvendo meios de crescer, de cultivar essas células sem usar nada animal. Porque todas as células, as linhagens que existem, ou elas foram cultivadas com o que a gente chama de “feeder layers”, de camundongo, ou usando produtos animais. Então, a gente está tentando, o máximo possível, fazer esse cultivo sem usar nada animal. E não é fácil. Você se distrai um pouquinho e a célula morre, ou ela se diferencia, não tem fim de semana [risos]... Então, é um trabalho realmente grande você trabalhar com essas células.

Carlos Alberto Moreira Filho: Mayana, eu queria que você fizesse uma avaliação. É muito difícil uma terapia com a célula-tronco embrionária, porque você tem que ter uma clonagem terapêutica... E há um potencial limitado, mas interessante, das células-tronco adultas, porque elas podem ser guardadas em bancos etc. Como é que você vê isso, será que a célula-tronco embrionária vai ser um caminho para nós domesticarmos as adultas, ou vice-versa?

Mayana Zatz: Nosso grupo, pessoalmente, nós estamos trabalhando com células-tronco adultas de cordão, de tecido adiposo e de polpa dentária, porque essas células, primeiro, são muito mais acessíveis. Se a gente conseguir fazer, a partir delas, tecidos, vai ser muito mais fácil para todo mundo. Eu acho que as células-tronco embrionárias nunca vão... a gente nunca vai tem uma quantidade suficiente para poder fazer terapias em grande quantidade, em grande escala. Mas a gente vai poder aprender com elas como é que elas se comportam, quais são os genes que são ativados e silenciados para formar cada tecido... E eu acho, então, que é um passo extremamente importante a gente manipular essas células para poder aprender como é que a gente faz as células-tronco adultas se comportarem como as embrionárias. Mas eu acho que, a longo prazo, a gente não vai usar as embrionárias.

Rafael Garcia: A senhora acha que, então, a partir de um determinado momento no futuro, vai chegar uma hora em que os cientistas vão poder dizer: “Não precisamos mais de células-tronco de embriões, é o fim da polêmica!”?

Mayana Zatz: Eu acho que sim. Apesar de que a gente ainda vai ter muito que aprender com as células-tronco embrionárias, não só com a terapia celular. Por exemplo, eu estou muito interessada em obter as células-tronco embrionárias com mutações que causam algumas doenças. Como é que a gente obtém isso? Quando você tem um casal que tem o risco grande para ter uma doença genética, que você conhece a mutação, você pode fazer o que a gente chama de diagnóstico pré-implantação. Então, faz-se a fertilização assistida, quando o embrião tem oito células, você pode tirar uma célula e ver se tem ou não a mutação. Se não tiver, você implanta no útero e garante para o casal uma criança sem aquela doença. Se tiver, você nunca vai implantar. Mas esse embrião com a mutação é precioso em termos de pesquisa. Porque ali eu vou poder entender como é que aquele gene se manifesta logo no início da embriogênese, eu vou poder testar drogas em culturas obtidas dessas células... Eu acho que a gente tem muito que aprender, além da terapia celular, em relação ao funcionamento gênico com as células embrionárias.

Paulo Markun: Mayana, antes de fazer o intervalo – eu tenho que fazê-lo – eu queria só esclarecer o seguinte: esse embrião, que você menciona, não é um feto, está certo?

Mayana Zatz: Não!

Paulo Markun: É algo quase que microscópico?

Mayana Zatz: É microscópico!

Paulo Markun: É microcópico?

Mayana Zatz: É.

Paulo Markun: Porque, por trás de grande parte da polêmica em relação a isso, é essa pouca distinção entre o que é feto e o que é embrião – que, para muitas pessoas, é a mesma coisa. No seu caso, você acha que não?

Mayana Zatz: Não, acho não, com certeza! Um feto... Quando o chinês estava falando, era de fetos abortados de quatro meses. Abortados! Nós estamos falando de embriões que nunca foram inseridos em útero, que têm oito, dez, cem células, que sejam!

Paulo Markun: De fertilização in vitro?

Mayana Zatz: É, fertilização in vitro. Já estão in vitro. A  [revista] Scientific American fez uma foto, que eu achei muito elucidativa, mostrando o tamanho do embrião em comparação com o buraco de uma agulha de injeção. Então, se você comparar o buraco de uma agulha de injeção é, sei lá, pelo menos, 20 vezes maior do que o embrião do qual nós estamos falando. E isso é extremamente importante as pessoas saberem, porque os grupos que são contra essas pesquisas diziam, e dizem, que a gente vai arrancar perninha e bracinho de feto. Nós estamos muito longe de fazer isso.
 
Paulo Markun: Bem, nós vamos fazer um rápido intervalo na entrevista desta noite, que é acompanhada em nossa platéia por Sônia Regina de Camargo Xavier, professora; Márcio Barbosa Xavier, secretário geral da Cruz Vermelha do Estado de São Paulo; Tereza Genesini, matemática e psicanalista da informação; e Ana Carolina Langer Müller, fisioterapeuta. A gente volta já, já.

[Intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando Mayana Zatz, pró-reitora de pesquisas na Universidade de São Paulo. Eu vou encaminhar a pergunta do biólogo Fernando Reinach, sobre a atual resistência da população em relação aos avanços da ciência.

Fernando Reinach: Mayana, o problema é o seguinte, que eu queria que você me dissesse. Nos últimos 20, 30 anos tem acontecido que as descobertas da ciência, as novidades que a ciência traz, têm tido uma grande resistência da população e da maioria do público de incorporá-las de uma maneira tranqüila, o que não ocorria no início do século XX. Por exemplo, as células-tronco embrionárias, organismos transgênicos, todo o problema da formação do sistema nervoso, e como isso se relaciona com as leis de aborto, etc... Tem tido um problema de comunicação da ciência com a sociedade. Eu queria saber o que você acha disso e o que precisa ser feito para ser revertido no futuro?

Mayana Zatz: O que eu acho é que existe uma desinformação muito grande. Então, existem aqueles grupos conservadores que morrem de medo dos avanços científicos e que ficam gerando pânico, em informações totalmente erradas, na população. Eu lembro quando a gente estava brigando pela Lei de Biossegurança em Brasília, e eu cheguei a ouvir pessoas dizendo que comer plantas transgênicas dava aids. Ou, aqueles ecólogos malucos que diziam: “Olha, pode dizer o que você quiser, mas DNA eu não vou comer nunca” [risos]. Então, existe essa desinformação e eu acho que existe uma omissão dos cientistas em falar com a população e dizer: “Olha, não é assim...”, e dar as informações corretas. Eu acho que é isso que gera esse pânico na população... [sendo interrompida]

Paulo Markun: Mas, e nos Estados Unidos, e mesmo em alguns estados brasileiros? A gente tem a questão do criacionismo discutida como se fosse uma opção científica. Não é justificável esse tipo de desinformação, por parte da população? Quer dizer, que haja... havia, durante um certo tempo, um limite entre ciência e religião. Antigamente – e Galileu [Galileu Galilei] que o diga – esse limite era mais complicado; quer dizer, a religião predominava. Depois, houve uma separação e havia um limite. E hoje parece que, em alguns casos, esse limite está sendo novamente eliminado...

Mayana Zatz: Porque justamente essas pessoas que defendem essas idéias são extremamente engajadas e elas têm um papel importante de estar disseminando aquela informação, enquanto que os cientistas dizem: “Ah, isso é uma bobagem que isso é bobagem, não vou perder tempo com isso” E não têm o mesmo engajamento e o mesmo tempo de estar informando a população. Eu acho que nós somos omissos. Eu acho que os cientistas têm que ter um papel importante e informar a população. No caso das células-tronco, a gente falou inúmeras vezes, mostrou que nós estávamos falando de embriões minúsculos, microscópicos, que não eram fetos, que a gente não estava arrancando perna e braço de feto. Eu acho que isso foi importante. E em relação às plantas transgênicas, a mesma coisa. Eu acho que a gente tem que explicar para a população que não existe risco, desde que sejam pesquisas monitoradas. Isso que aconteceu agora, com a CTNBio, que você... Não sei se vocês seguiram, na semana passada, uma coisa totalmente absurda: uma pesquisa extremamente importante na área de veterinária foi proibida quando tinham só quatro votos contra. Foram sete pessoas votando a favor, quatro contra, e a pesquisa não pôde ser aprovada. Eu acho que tem que ser mudado isso! Eu acho que... Senão, não adianta nada brigar pela lei, porque a lei está aprovada, mas vêm os burocratas e não deixam a coisa ser aprovada.

Jorge Forbes: Então, você deixou clara a sua... Você acha que os transgênicos recebem crítica pela falta informação? É claro que você não apóia muito... o MST [Movimento dos Sem Terra], por exemplo, na sua invasão ao laboratório de alimentos transgênicos. Agora, fora isso, eu queria te perguntar o seguinte: antes, no final do último bloco, você estava fazendo essa diferenciação do momento em que vira embrião ou não vira embrião... diferenciava – desculpa – embrião e feto... Para você, em que momento se dá o nascimento do ser humano, porque a questão parece...

[,,,] O início da vida!

Jorge Forbes: O início da vida! Da vida humana, porque vida biológica, não é... ? Então, há a forte corrente que entende que desde que duas células se combinam o início está lá; outros que não, que só a inscrição na cultura é o momento do início; e outros que, através da identificação, da imagem, ou seja, quando está parecido comigo, quando já tem dois braços, duas pernas e então agora já não pode mais ser mexido... Enfim, qual é a sua posição dentro disso?

Paulo Markun: Só, antes de você iniciar, essa pergunta também é de Paulo César Martins, aqui de São Paulo e, num certo sentido, já foi abordada aqui a pergunta de Roberto Luiz Rulf, de São Paulo também... Por favor.

Mayana Zatz: Eu acho que, antes que haja a instalação de um sistema nervoso, você não pode falar em vida. E foi o que a gente mostrou, batalhou, quando a gente estava defendendo as pesquisas com esses embriões. É um consenso que, quando pára de funcionar o sistema nervoso, acabou a vida e você pode fazer transplante de órgãos. Então, eu acho que a gente tem que usar exatamente o mesmo raciocínio para o início da vida. Antes de você ter a instalação de um sistema nervoso, não há porque falar em vida... Você tem um conjunto de células, mas não tem a menor chance de ter alguma vida independente.

Marcos Pivetta: Quer dizer, quando começa a atividade cerebral independente... Este é o marco do início da vida, se houver?

Mayana Zatz: É. Antes disso, eu não consigo imaginar um início de vida.

Marcos Pivetta: Isso ocorre em que momento? Depois que há a junção... [sendo interrompido]

Mayana Zatz: [Pausa] Você começa a ter um sistema nervoso quando o embrião tem 14 dias. Mas, eu acho que com 14 dias também você não pode falar em vida. Eu acho que antes dos três meses um feto não tem a menor chance de ter uma vida independente.

Rafael Garcia: Mas a senhora considera essa definição uma definição técnica, científica, ou a senhora considera essa uma definição moral?

Mayana Zatz: [Sorri para o entrevistador] Eu acho que é muito difícil você falar em... se é moral ou se é ética. Eu, pessoalmente, acho que, antes que um feto tenha a possibilidade de ter uma vida independente – e isso ocorre com 12..., antes de 12 semanas, nem pensar – eu acho que você não pode falar em vida.

Paulo Markun: É, isso também explica... em um certo sentido, esclarece a dúvida apresentada por Bruno Noronha, que é estudante de biologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que queria saber se há um consenso entre os cientistas sobre o tempo para o embrião ser considerado vivo. Se eu bem entendo, não há um consenso...

Mayana Zatz: Não!

Paulo Markun: Isso não é uma coisa que tem lá, igual a um dicionário, que você abre e diz assim: “Vida é igual a tantos meses”. Cada cabeça, uma sentença?

Mayana Zatz: Exatamente. Eu acho que você pode pensar que é um ciclo; que a vida é um ciclo. Assim que o feto se desenvolve, formam as células embrionárias, as células crescem. Depois você forma um novo indivíduo e o ciclo recomeça. Então você também pode pensar na vida como um ciclo.

Paulo Markun: Fazendo uma coisa que eu não gosto de fazer muito, que é especulação de ficção científica, o raciocínio oposto nos levaria a que ponto? Quer dizer, na medida em que os cientistas, a ciência, conseguir desenvolver órgãos humanos a partir de células-tronco, a partir de... enfim, a partir da genômica, quando é que a pessoa vai deixar de ser aquela pessoa? Quer dizer, o sujeito tem cabeça, tronco e membros. Novamente produzidos, será a mesma pessoa?

Mayana Zatz: Eu acho que sim. Porque... Tanto é que a expectativa de vida está crescendo cada vez mais. Então, há 100 anos atrás você não podia pensar numa pessoa recebendo um transplante de coração, não é? E hoje ela recebe e vive muito mais. Então, trocar os órgãos, para mim, eu acho que vai ser a continuação da vida. Agora, trocar o cérebro... [risos] Aí são outros quinhentos!

Paulo Markun: Aí vai começar a complicar?

Mayana Zatz: É, aí eu acho que complica.

Paulo Markun: E, nesse sentido, não há algo de religioso nesse raciocínio científico? Na medida em que ele associa o cérebro... Porque – aí já virou um pouco de especulação metafísica, mas... – se associava, em um certo sentido, o coração à fonte da vida e onde estava a alma. Em um outro momento, se fala num cérebro. E há aqueles que pensam que a vida tem uma outra dimensão e dizem que não está em nenhum desses lugares. Quer dizer, essa barreira do cérebro, ela é um pouco de preconceito ou ela tem uma razão lógica para isso?

Mayana Zatz: Eu acho que o cérebro faz a gente a ser o que é, não é? O corpo é um invólucro, mas você é o que você é a partir do teu cérebro. E enquanto você puder manter o teu corpo, você vai ser aquela pessoa. Pelo menos, eu vejo assim.

Paulo Markun: Bem, uma questão que a gente acabou não abordando – nós estamos chegando ao final do programa, e já quase extrapolamos com o tempo aí da... viagem... um pouco distante da ciência, por minha culpa – e é a seguinte: o que faz a pró-reitora de pesquisas da USP, que tipo de responsabilidade que você tem na universidade e que tipo de papel a USP tem no campo da pesquisa brasileira?

Mayana Zatz: Eu acho que a Universidade de São Paulo tem um papel muito importante e acho que, pelo menos metade das publicações científicas do país, são originadas na Universidade de São Paulo. E a Pró-Reitoria de Pesquisas tem, como papel, incentivar a pesquisa e atuar em todas as áreas onde ela possa melhorar a pesquisa da universidade e, a partir da universidade, do país. Eu, pessoalmente, quando assumi o cargo de pró-reitora de pesquisas – que foi um susto, porque eu nunca tive nenhum envolvimento político e, de repente, me convidaram, eu nem conhecia a reitora na época... – eu assumi porque eu tinha algumas metas pontuais. Então, uma delas é fazer uma lei de incentivo à pesquisa. A outra é melhorar a importação, que eu acho que é um gargalo para todos os cientistas. E tentar também melhorar o ensino de ciência, com esses programas que a gente está abrindo para as escolas secundárias, tentando sempre manter a excelência da pesquisa na universidade. Então, eu não acho que cotas vão resolver o problema. Eu acho que a gente tem é que melhorar o ensino básico para que os alunos menos privilegiados, que não têm acesso às escolas – às melhores escolas – possam competir em situação de igualdade. Mas são essas as metas que eu me propus quando assumi a Pró-Reitoria de Pesquisas.

Paulo Markun: Ok, Mayana. Muito obrigado pela sua entrevista, obrigado aos nossos entrevistadores, a você que está em casa. Na próxima segunda-feira, estaremos aqui com mais um Roda Viva, às dez e quarenta da noite. Uma ótima semana e até segunda.
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