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Memória Roda Viva

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Carlos Fino

12/5/2003

O jornalista português fala sobre sua experiência na Guerra do Iraque, a influência dos Estados Unidos e o dia-a-dia de um país que tenta recomeçar

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Paulo Markun: Boa noite. Em quase todos os acontecimentos importantes, surgem personagens que, mesmo não sendo centrais, ganham destaque  pela participação ou pelo envolvimento que acabam tendo nesse caso. É, por exemplo, esse o caso de jornalistas que cobrem fatos importantes de muita repercussão. A Guerra do Iraque, que também ficou conhecida como a "guerra das coberturas jornalísticas", celebrizou repórteres e cinegrafistas que, por sorte ou azar, por coragem, faro profissional ou por disposição ao risco, se colocaram à frente da batalha para informar melhor o mundo. O Roda Viva entrevista, hoje, um desses personagens, o jornalista Carlos Fino, da Rádio e Televisão Portuguesa [RTP]. Ele é integrante da equipe do Jornal Dois, o principal serviço informativo da RTP Dois, o canal internacional da emissora portuguesa dedicado à cultura e ao noticiário internacional. Carlos Fino foi correspondente em Moscou e em Washington e também foi correspondente de guerra da RTP em Bagdá. E foi através dele, e retransmitindo a RTP, que a TV Cultura também divulgou, em primeira mão aqui no Brasil, a notícia do início da Guerra do Iraque.

 

[Comentarista]: Diariamente, em transmissões para o mundo todo, a Rádio e Televisão Portuguesa trazia as imagens e os acontecimentos que faziam de Bagdá o palco principal da Guerra do Iraque. Instalado no Hotel Palestina, na capital iraquiana, onde se concentraram os jornalistas estrangeiros, Carlos Fino foi o primeiro repórter a transmitir o início dos bombardeios sobre Bagdá. A TV Cultura estava conectada à RTP e nossa programação especial também acompanhou o relato de Carlos Fino marcando o início da Guerra do Iraque. Nos dias que se seguiram, a presença do repórter português no canal internacional da RTP foi uma constante, trazendo detalhes da operação de guerra e da vida da cidade à medida que ela ia sendo destruída pelas bombas. A equipe portuguesa também acompanhou de perto o drama de famílias que tiveram suas casas destruídas, muitas vezes com a perda quase total da família. Viu também a fúria da população, indignada com os ataques que não poupavam os civis. Foi em meio a situações de revolta que Carlos Fino e o cinegrafista Nuno Patrício sofreram agressões numa rua de Bagdá. Confundidos com estrangeiros ligados aos americanos, levaram pontapés, socos e coronhadas, como também aconteceu a uma jornalista da Bulgária. Embora saíssem feridos, tiveram mais sorte que outros jornalistas destacados para acompanhar a guerra. Dois deles, cinegrafistas da agência Reuters [agência européia de notícias] e do Canal Telecinco [canal espanhol de notícias] morreram quando um canhão americano, num ataque inexplicado, disparou contra o Hotel Palestina onde 200 jornalistas estavam hospedados. No total, em três semanas de guerra, pelo menos 12 jornalistas morreram no Iraque. Movidos pela batalha das coberturas e pelo que muitos deles consideram senso de responsabilidade profissional, acabaram chegando perto demais do perigo ao procurarem chegar perto demais da notícia.

 

Paulo Markun: Para entrevistar o jornalista Carlos Fino, nós convidamos Lourival Sant’Anna, repórter especial do jornal O Estado de S. Paulo; Jaime Spitzcovsky, diretor do site Prima Página, editor-chefe do Jornal do Terra e membro do grupo de análise e conjuntura internacional da Universidade de São Paulo; Demétrio Magnoli, doutor em geografia urbana pela Universidade de São Paulo e editor do Jornal Mundo, de geografia e política internacional dedicado às escolas de ensino médio e superior. Está também com a gente, Laura Mattos, repórter do caderno "Ilustrada" do jornal Folha de S. Paulo. Participam do programa, ainda, Vicente Adorno, editor de internacional da TV Cultura e Paulo Daniel Farah, professor de literatura da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e um dos editores deste livro: Porque nós, brasileiros, dizemos não à guerra, da editora Planeta.

 

Paulo Markun: Boa noite, Carlos Fino.

 

Carlos Fino: Muito boa noite.

 

Paulo Markun: Obrigado pela sua presença aqui no programa. Eu queria começar por uma pergunta que, sinceramente, me vem à cabeça sempre que eu vejo colegas aceitando essa missão de cobrir guerras. O que é que leva um jornalista a participar de uma cobertura desse tipo onde se sabe que a chance dele morrer é muitas vezes maior, como foi dez vezes maior no caso do Iraque, do que o soldado?

 

Carlos Fino: Olha, nós próprios nos colocávamos essa questão. Eu recordo-me que nos farrapos de conversa que nós tínhamos entre os serviços que fazíamos, havia interrogações e uma delas era essa. Recordo-me de ter essa conversa com uma colega minha da rádio Foeeurope, que está situada em Praga, ela é do Uzbequistão, ex-União Soviética, situada em Praga. É uma mulher relativamente desenraizada, pressuponho eu. Verdadeiramente, eu não sei o que é que nos leva a...

 

Paulo Markun [interrompendo] É a adrenalina?

 

Carlos Fino: Não, nós interrogávamos: “Será pela fama, será pelo dinheiro”? No nosso caso, não é certamente pelo dinheiro. A fama, enfim, é relativa. Eu já sou, em Portugal, um dos jornalistas relativamente conhecidos, porque já fiz o fim da União Soviética, fui duas vezes correspondente em Moscou, portanto não foi propriamente isso que me levou lá. Eu julgo que há motivações diferentes, consoantes às pessoas, naturalmente. Cada caso será um caso. Mas em todos eles, julgo que há algo de um desespero qualquer. Um desespero de causa ou até de vida. Cada um terá o seu. Por outro lado, eu penso que há, no meu caso... acaba por se formar, eu julgo, uma espécie de imperativo categórico do jornalista, do repórter. Se está a acontecer, nós temos que ir. E depois, [tem] um pouco dessa situação do chefe de redação ou do diretor que olha em volta e dá de caras conosco. Porque já foi o sujeito que esteve em outras guerras. Simplesmente isso, esse conjunto de motivos. Mas há um grau talvez de desespero. É pessoal também, isso que talvez nos motiva.

 

Paulo Markun: E volta-se diferente?

 

Carlos Fino: Olha, eu estava a ver agora essas imagens, e foi importante tê-las visto, porque eu tenho estado envolvido, desde o regresso de Bagdá, nessa aura quase vedete do jornalista. Vedete que eu acho que não me assenta bem, e que eu não quero, embora seja agradável. É sempre agradável quando dizem bem a nós, quando nos felicitam. Sentimos o nosso ego enaltecido, mas eu acho que isso é momentâneo, é transitório. Eu não me vejo nessa situação, estou relativamente inconfortável nela. E foi importante ver essas imagens porque elas reconduziram-me, outra vez, às realidades duras da situação da qual eu estava um pouco afastado por causa desses salamaleques, dos cumprimentos e das felicitações. Foi importante tê-las visto porque nisso tudo, eu quero preservar, sobretudo, a missão do jornalista, que é diferente desta que eu estou aqui colocado hoje. Mas ao mesmo tempo me contradigo, porque estou aqui.

 

Jaime Spitzcovsky: Carlos, eu queria te perguntar um pouco sobre a questão do desespero pessoal que você mencionou. Particularmente, o que te desesperou nessa guerra entre Estados Unidos e Iraque?

 

Carlos Fino: Bom, eu falo em outro plano. Desespero pessoal até pelas nossas vidas. Eu acho que cada um daqueles jornalistas que estão ali, e muitos deles eu já conhecida de Moscou, onde estivemos, porque é uma procura de realização pessoal que eles talvez não tenham tido em outros planos. E procuram aqui essa realização pessoal. Uns por uns motivos, outros por outros. Há jornalistas mulheres que não estão casadas, jornalistas homens que andam à procura do amor, nós andamos todos à procura do amor.

 

Jaime Spitzcovsky: Não havia um desespero político em relação a essa guerra?

 

Carlos Fino: Também, claro. Havia. Isso esteve presente, essa noção de que era uma guerra talvez desnecessária. E queríamos ver como é que tudo se iria passar, essa primeira guerra, no fundo a primeira grande guerra do século XXI, em que medida ela iria determinar o nosso futuro, isso também esteve presente sim.

 

Vicente Adorno: Que tipo de estrutura você teve à sua disposição para trabalhar? Porque muita gente pergunta: “Mas como, ninguém do Brasil...” e o Brasil tem uma rede muito poderosa, que é a Globo, “Estava numa posição tão privilegiada como a sua”? Como é a estrutura da RTP que te permitiu isso?

 

Carlos Fino: Bom, não é uma estrutura RTP, é uma estação modesta de um país modesto. Temos que colocar as coisas como elas são. Não há estrutura nenhuma particular, a não ser talvez essa existência, já há mais de uma dezena de anos, desse corpo de correspondentes no estrangeiro, que é importante e que está ligada à existência da RTP internacional. Portanto, dá capacidade de transmitir no mundo inteiro. E talvez essa estrutura, sim, nós temos esse historial, que começou em Portugal com a União Européia, a partir de 1986. No fundo, não foi a estação RTP que sentiu a necessidade de criar os correspondentes no estrangeiro, mas foi por fatores exógenos. Quando Portugal adere à União Européia [bloco econômico, político e social composto de 27 países europeus que participam de um projeto de integração, com uma moeda única, o euro, que vigora em todos eles, e com o objetivo de promover a unidade econômica e política da Europa, melhorar as condições de trabalho e de livre comércio, além de reduzir as desigualdades sociais], em 1986, alguns senhores, em Bruxelas, chamaram atenção ao governo português, que era preciso criar um bureau, criar uma delegação da RTP para acompanhar o processo da integração européia. É assim que nasce a história dos correspondentes da RTP. Depois, a seguir a Bruxelas, vieram outros. Vieram correspondentes em Roma, depois, finalmente com o Gorbachev [Mikhail Gorbachev, foi secretário do Partido Comunista da União Soviética de 1985 a 1991 e promoveu as reformas - glasnost e perestroika - que acabaram levando ao fim da Guerra Fria, e ao fim da própria União Soviética] e a partir de 1989, eu fui enviado para Moscou. Criaram-se, depois, correspondentes em todos os países de excursão oficial portuguesa. Tudo isso, esse pequeno historial, mais a existência da RTP Internacional [gesticulando], talvez seja a estrutura que vale a pena referenciar como importante.

 

Vicente Adorno: Mas a decisão de cobrir a guerra não foi excepcional? Foi quase uma decisão de rotina em Portugal? Faz parte da pauta habitual?

 

Carlos Fino: De cobrir essa guerra? Sim, sem dúvida. E isso também determinado pela existência desse corpo de correspondentes e o fato de estarmos em concorrência direta com as televisões privadas. Isso era, sem dúvida, o grande tema internacional. Portanto não podíamos deixar de estar lá.

 

Lourival Sant´Anna:  Carlos, falando de estrutura, só para pegar esse assunto aqui, tem uma tendência que começa a se observar já no Afeganistão, Paquistão, e que se reforçou muito agora no Iraque, que é de, principalmente as televisões, adquirirem uma estrutura meio militar, de ter... As principais tinham escoltas e, às vezes, entravam e tinham escaramuças nos checkpoints, atiravam, não respeitavam os bloqueios, os postos de controle militares, obviamente iraquianos, e aí, depois quando a guerra amainou, esses seguranças começaram a ser usados para controlar o acesso de outros jornalistas. Então, por exemplo, a CNN [Cable News Network, rede de televisão norte-americana que transmite notícias 24 horas por dia] estava fazendo uma entrevista e queria que ela fosse exclusiva, mas num local público, como era aquele teto ali, no terraço do Hotel Palestina, tinha lá uns leões de chácara para dizer: “Não, não, você não pode passar, essa entrevista aqui é exclusiva e tal”. E aí, todos aqueles jornalistas, com aquela indumentária militar. Parece que a muitos deles subiu à cabeça essa idéia de ser milico e tal. Muitos começaram a agir como milicos, andar naqueles jipes, de carro blindado. Você não acha perigosa essa tendência das televisões, das grandes redes de se misturar um pouco com a atividade militar?

 

Carlos Fino: Olha, não sei como é que eu vou responder a isso porque fico divido entre isso. Por um lado, desprezar essa situação é reconhecer que nós temos um papel a fazer aí. Mas se nós reconhecemos que há um papel para a informação nessas guerras, nós temos que estar e temos que estar, de uma maneira, defendidos, com os instrumentos necessários para a participação. E só não tem quem não pode. Quem puder ter jipe blindado, é bom que tenha jipe blindado. Quem puder ter colete anti-bala é bom que tenha. Agora, na prática depois, acho, às vezes, até é incômodo autorizar esses instrumentos todos e essa paranóia toda. Até onde isso deve ir ou não, essa fronteira? Eu acho que essa é a questão. Agora, que é preciso, por um lado, chamar a atenção da opinião pública e das organizações internacionais para o acontecimento do caráter indispensável do jornalista e da sua proteção... Não faz sentido, como já foi dito aqui, que em termos relativos, os jornalistas tenham sido mais penalizados nessa guerra que os próprios militares. Há mais vítimas jornalistas, em termos relativos, do que há militares. Esse trabalho de pedagogia, que deve ser feito através dos observatórios de imprensa, das organizações internacionais, enfim, na medida ainda que seja possível ela reconstituir um direito internacional, que é uma questão que está em causa. Mas por outro lado, a partir do momento em que sejam ultrapassados, isto é, quando vem o [...], expressamente à praça do paraíso, enverga a fatiota militar e faz um direto [ao vivo] com o chefe dos marines [fuzileiros navais dos Estados Unidos] que acabaram de chegar... Há qualquer coisa de impudico nessa situação. Ou quando alguém pega na Aman Pour [jornalista Christiane Aman Pour, da CNN], ou o Apache vai buscar ela no hotel do Kuwait e a leva para colocar no sítio, para fazer o live, o direto [ao vivo], e depois pega nela e volta a colocá-la... Situações desse âmbito, eu não sei se houve, mas foi o que eu ouvi. Acho que é qualquer coisa que não fica bem. Qualquer dia, podemos ter tanques de aliados. Eu julgo que os jornalistas também já utilizaram, em situações como na ex-Iuguslávia, não só jipes blindados, mas também estiveram em veículos propriamente militares. Portanto, haverá que estudar onde é que passa a fronteira.

 

Demétrio Magnoli: Porque que eu queria discutir justamente esse problema do jornalista e da fronteira que você está tratando. Porque me parece que essa guerra agora no Iraque, ela fechou um ciclo que começa lá no Vietnã, há bastante tempo, quando os jornalistas tiveram um acesso bem amplo à guerra, à informação, bem desimpedido, pouco censurado  e pouco controlado pelos militares, passa pela primeira Guerra do Golfo [conflito militar que teve início em agosto de 1990 na região do Golfo Pérsico com a invasão do Kuwait pelas tropas iraquianas de Saddam Hussein que queria controlar os campos de petróleo da região. Envolveu uma união de forças de países ocidentais, liderados pelos Estados Unidos, e países do Oriente Médio em batalhas onde mais de 100 mil soldados iraquianos foram mortos], em 1991, quando não havia jornalistas nas proximidades da ação e havia uma grande agência de notícias monopolista que era o Pentágono [sede do Departamento de Defesa dos Estados Unidos] fornecendo notícias que eram repassadas pelos jornalistas, até essa guerra agora no Iraque, quando há uma novidade, me parece, na história da imprensa, importante, que são os jornalistas incorporados, os chamados "embedded" [trocadilho de tradução difícil que significa engajamento desses jornalistas com as tropas americanas]  e a brincadeira de que eles estavam indo in bed, “na cama”, com o Pentágono, não é? Esses jornalistas incorporados que cobriam a guerra.

 

Carlos Fino: E que foram todos saudados pelo presidente Bush [George W. Bush, presidente dos Estados Unidos de 2001 a 2009. Depois dos atentados de 11 de setembro, Bush iniciou a chamada "guerra contra o terror". Uma de suas ações foi invadir o Iraque para procurar armas de destruição em massa], em Washington.

 

Demétrio Magnoli: Sim. Eu não chamaria esses jornalistas de jornalistas. Eu acho que isso é um erro. Eu chamaria de soldados da informação. E é aí que entra o problema da fronteira. Porque observando a cobertura dessa guerra, a gente viu uma gramática que é aquilo que eu queria te perguntar, a gente viu uma gramática da informação dual. De um lado, a gente viu os jornalistas embedded, nas unidades militares, que produziam imagens onde você tinha tiros partindo das unidades militares anglo-americanas rumo ao infinito, a um inimigo invisível, a um alvo que não podia ser visto. Atacando o invisível, o mal que estava lá. E , por outro lado, os jornalistas nos centros urbanos, como é o seu caso, que não estavam embedded, o caso dos correspondentes da Al Jazira [emissora de TV do Catar, criada em 1996, destacou-se por alcançar um nível elevado de liberdade de expressão e de oposição no mundo árabe], de outros correspondentes, da BBC [British Broadcasting Corporation, emissora pública de rádio e televisão da Ingaterra], jornais independentes que, inclusive, tinham os jornalistas embedded, mostrando uma outra imagem, que era a imagem do alvo recebendo o tiro. No Ocidente, se viu muito mais imagens do tiro partindo. Esse lado da gramática. No mundo árabe, em função do peso da Al Jazira, se viu muito mais o tiro chegando e o resultado. Quer dizer, são duas gramáticas, são duas formas e existe aí uma história do jornalismo sendo feita. Como é que você vê isso?

 

Carlos Fino: Bom, eu acho que há um progresso em relação à primeira Guerra do Golfo, sem dúvida. Um progresso que é determinado pela tecnologia, que coloca em campo muito mais estações do que a CNN, que teve um exclusivo e, portanto, que colocou ao alcance da RTP fazer essa proeza com a ajuda do Brasil, foi quem reparou [que a emissora portuguesa foi a primeira a dar a notícia da guerra] [coloca a mão no queixo]. Esse é o aspecto tecnológico. E, depois, veio a existência, que você já mencionou, que é existência das televisões independentes dos países árabes. São um fenômeno novo e que estão na mira dos próprios soldados americanos que atiraram sobre televisão do [...] e sobre a própria Al Jazira, fazendo vítimas. Portanto, eu acho que isso é um progresso. Em relação aos embedded, já a situação é mais controversa porque eles não têm, de fato, liberdade de manobra e de movimentação que costumava haver nas outras situações de guerra. Na situação do Vietnã e ainda antes disso, nas situações da Segunda Guerra Mundial. Bom, eu acho que o jornalista, se quiser continuar a ser jornalista, pode sê-lo sempre. Mesmo aceitando, por vezes, algumas regras muito restritivas. A questão é saber como trabalhar com essas regras.

 

Laura Mattos: Carlos, você enfrentou muitas restrições, também, no local onde você estava. As restrições eram mais fortes enquanto o governo iraquiano estava presente ou após a queda de Saddam Hussein, com a chegada das forças aliadas?

 

Carlos Fino: Não, são situações absolutamente diferentes. As restrições eram muito fortes durante o regime do Saddam. Nós tínhamos que trabalhar só com intérprete oficial, mais o condutor, o motorista também designado praticamente pelo... Eles todos faziam parte dos serviços de informação iraquianos. Tinham que, ao final do dia, [se] reportar ao Ministério da Informação. Portanto, eram agentes do regime. Mas mesmo até aí nós conseguíamos, pelo relacionamento com eles... Porque tudo tem lugar num certo contexto. Isso tinha lugar num contexto árabe, que é um contexto, em geral, permissivo em termos de regras. As regras não são... Não é propriamente um contexto germânico, é um contexto árabe. Desde que houvesse uma certa empatia com os nossos guias polícias, nós podíamos alargar um pouco a capacidade da ação mesmo dentro dessas regras. Nós chegamos, por vezes, a ir à casa de algum desses intérpretes, que arriscavam alguma coisa a fazer isso, e tínhamos conversas que não tínhamos com eles, que eles não se permitiam em outra situação. Depois já alguns deles olhavam para um lado enquanto nós filmávamos aquilo que era proibido filmar. Isso chegou a acontecer.

 

Paulo Markun: Carlos, ainda nessa questão, o Ronaldo Félix, que é um telespectador do bairro de São Mateus, aqui em São Paulo, pergunta se em algum momento você sofreu pressão direta para não dar alguma informação. Se sofreu, de onde veio essa pressão, se é que veio, qual foi a sua atitude? Houve pressão dizendo assim... Havia uma vigilância permanente, mas houve pressão específica para dizer: “Não fale isso, não trate daquilo”...

 

Carlos Fino: “Não fale disto, não trate daquilo”, não. Na situação mais aberta da guerra, chegou a haver a censura prévia, instaurada pelos iraquianos. Mas até isso eles já não foram capazes de implementar porque nós sempre mandamos as nossas crônicas sem ir à censura. Havia três grandes companhias que asseguravam o envio das imagens, uma era a televisão da Turquia, a outra era um consórcio luso-espanhol e uma terceira, que era a Reuters. Ou através da Reuters ou através do consórcio luso-espanhol, nós conseguimos sempre mandar as imagens, já no período declarado de censura militar prévia aos trabalhos que tínhamos feito. Conseguimos passar isso sem nunca levar o selo [de censura].

 

Paulo Markun:  É por isso que você disse, na entrevista para a revista Caras [revista que publica notícias ligadas à vida de celebridades] de Portugal, que você considera que o governo americano foi mais rigoroso no controle da informação do que o governo iraquiano?

 

Carlos Fino: Sim, talvez por incapacidade de, já na fase final, que era mais um indício de que o próprio regime estava a perder o pé. Os americanos têm outra atitude, é uma cultura totalmente diferente. Eles lidam com a informação. Não tratam propriamente de proibir, tratam mais de integrar e de contextualizar e de dirigir. Tem os PR oficials, que são os public relations [relações públicas], que são exímios nessa arte e têm até... Os militares estavam todos industriados para, em princípio, responderem aos jornalistas. Portanto, é uma cultura completamente diferente, o que não quer dizer que os americanos não tivessem, também, designadamente dentro dos jornalistas, incorporados, a fazer restrições bastante fortes em relação ao que se podia ou não mandar.

 

Paulo Daniel Farah: Só uma pergunta, aproveitando o gancho. Era mais fácil contornar essas restrições iraquianas, da censura iraquiana, ou essa tentativa por parte do Pentágono de, por exemplo, manipular informações?

 

Carlos Fino: Eu só posso testemunhar uma coisa. Eu não estive dentro, não fiz parte, nós não estivemos com os incorporados, estávamos do outro lado. Então, eu não tenho uma experiência direta desse contato com os americanos. Só a posterior, quando eles já chegaram à Bagdá. Eu posso testemunhar é que os americanos não nos deixaram entrar em muitos locais que nós queríamos entrar, quando eles já controlavam a situação, porque justamente nos pediam a nossa identificação enquanto embedded e nós não éramos embedded. Nós só tínhamos um cartão amarelo, dado pelo [...], era nossa única...

 

Laura Mattos: [interrompendo] Eles chamavam quem não era embedded de unilateral, não é, o Pentágono?

 

Carlos Fino: Sim, portanto tentamos entrar em vários sítios que eles já tinham sob controle e tinha esse aspecto negativo. Mas, por outro lado, também tem que dizer isso, é insofismável, essa tal cultura dos americanos de falar e de livre circulação, a princípio, de informação. É a atitude que eu tinha falado com os marines. Para isso foi importante também a minha passagem por Washington, quando fui correspondente em Washington. Há uma coisa que se aprende na América que é: “You’ve to say what you want”. Portanto: “Você tem que dizer o que quer”. E dizê-lo sem vergonha e sem timidez, olhos nos olhos. Diz: "Hi", e fala com eles de tu para tu. Essa cultura é importante. É muito importante, é completamente diferente. Nós tivemos marines no nosso quarto, que iam lá para pedir para telefonar: “Hi, baby, everything is ok”. E isso criou uma empatia. Eu já contei isso aqui a alguns de vocês, que não há em mais nenhuma parte do mundo, e isso é verdade. Um desses homens que foi lá para telefonar, que era um coronel comandante das tropas que tinham chegado àquela praça,  e estava uma vez conosco, lá em cima no quarto, para telefonar também e no canto...

 

Vicente Adorno [interrompendo]: Eles eram proibidos de ligar para casa?

 

Carlos Fino: Não, eles não tinham [telefone]. Não tinham na unidade deles, não tinham condição de fazer isso [sendo interrompido]. Só para terminar esse episódio... E o cara, no dia seguinte, eu deixo o hall do hotel, ao estar na entrada do hotel, e diz-me... Isto é uma confissão que eu acho espantosa, vinda de um militar que é: “Olha, Carlos, você sabe...” Ele tinha me visto uma vez... “Tenho um problema, minha mulher teve que ser internada, está com uma depressão nervosa, que não agüenta a pressão de eu estar aqui”. Eu acho isso espantoso. Mais nenhum militar no mundo, a não ser americano, confessa um problema tão íntimo.

 

Paulo Markun: Acho que eles vêem muito filme de Hollywood [risos].

 

Jaime Spitzcovsky: Agora, Carlos, o que efetivamente aconteceu no episódio do bombardeio do hotel Palestina? Você estava presente, você estava no hotel quando o tanque norte-americano...

 

Carlos Fino: [interrompendo] Estava.

 

Jaime Spitzcovsky: Quando o tanque americano disparou, morreram dois jornalistas. Os americanos argumentam que os tiros saíam do prédio do hotel, snipers, franco-atiradores iraquianos, disparando contra as tropas americanas e eles teriam reagido. O que ocorreu de fato, uma vez que você foi testemunha ocular?

 

Carlos Fino: Não, isso foi a primeira explicação que surgiu e não corresponde à verdade. Nenhum dos mais de 300 jornalistas que estavam naquele hotel consegue atestar isso. A outra explicação que veio a seguir, que já foi dada pelo homem que apontou o canhão naquela sentido e disparou, foi que as câmeras que estavam nas varandas induziam ao erro e que podiam ser armas. Julgo que foi a explicação que foi dada.

 

Jaime Spitzcovsky: Você acredita que possa ter sido premeditado [o ataque], como algumas versões que quiseram afirmar?

 

Carlos Fino: É difícil de explicar porque é que aquilo acontece na realidade. Porque assim, aquilo é uma ação que começa um pouco antes das sete da manhã e se prolonga até esse momento, que é o culminante, meio dia. São cinco horas de um avanço imparável dos tanques americanos na margem direita do rio, rumo ao norte [gesticulando], percorrendo toda e ocupando toda a zona dos ministérios e dos edifícios públicos... Eles estão tão à vontade que, duas horas depois, já venceram toda a resistência e já estão em cima da ponte. Já há três tanques em cima da ponte a partir das nove da manhã. Estão lá pelo menos até o meio dia. E sempre a disparar de um outro sentido da ponte, nunca no sentido do hotel.  Porque é que, ao meio dia, eles, que não foram atingidos por nada, nenhuma arma significativa os atingiu, zero [abrindo os braços], estavam tão à vontade que estavam permanentemente em cima da ponte, três tanques. Bastava haver o mínimo, arma antitanque, do outro lado, para eles terem sido alvo de um ataque. Estavam tão à vontade... Quer dizer, por que é que atiram para o hotel? Para mim, é inexplicável até hoje. É um mistério [sendo interrompido]. Aliás, nesse mesmo dia, o que se especulava é que o tiro podia ter vindo... Naqueles momentos em diante, se dizia entre nós, podia ter vindo dos iraquianos que estariam a vingar o ataque americano à sede da Al Jazira na noite anterior, onde tinham morto um jornalista árabe. Aquilo que se pensava era que era um tiro dos iraquianos, contra jornalistas ocidentais. Afinal, era friendly fire. My God. Quer dizer, why? Por quê? Até hoje, para mim, é um mistério.

 

Paulo Markun: Carlos, nós vamos fazer um rápido intervalo e voltamos em instantes com mais "fogo amigo" [risos].

 

[intervalo]

 

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o repórter português Carlos Fino, jornalista enviado pela RTP, a Rádio e Televisão Portuguesa, à Bagdá, para cobrir a Guerra do Iraque. Giovane Ribeiro, de Curitiba no Paraná, pede que você conte o episódio do roubo do carro da sua equipe, lá em Bagdá. E Jorge Teodoro Neto, de São Paulo pergunta se, em algum momento, você desistiu ou pensou em desistir de fazer a cobertura da guerra, durante aquele período.

 

Carlos Fino: Olha, o carro, na realidade são dois [casos de carros roubados]. E é sempre com a mesma equipe. A equipe que vinha do Kuwait, que teve alguns episódios também instrutivos do ponto de vista da relação com a imprensa e com os americanos, em particular. Eu dizia a uns integrados na coluna americana e, à páginas tantas, eles resolvem, por razões das pessoas com quem estavam, que eram outros jornalistas de outro grupo, resolveram voltar para o Iraque. E foram presos pela polícia militar americana e foram bastante maltratados. E o primeiro carro ficou, digamos, apreendido pelos americanos. Depois de eles terem estado no Kuwait, pela segunda vez, regressaram ao Iraque, para voltar até Bagdá e chegaram até Bagdá com um novo carro alugado no Kuwait. Esse carro estava estacionado em frente ao hotel Palestina, no parque de estacionamento do hotel Palestina, em frente dos marines que estavam lá 24 horas por dia. Então, na manhã de um desses dias, pura e simplesmente, o carro desapareceu. Foi levado. E nós, quando chegamos ao pé dos americanos, a perguntar: “Who is in charge?”, quem responde, a quem é que eu posso report, relatar, essa ocorrência? Não havia ninguém. Ninguém estava encarregado.

 

[...] [interrompendo] O carro nunca foi encontrado?

 

Carlos Fino: Se o carro foi encontrado, eu não posso precisar agora, porque, entretanto não voltei...

 

Paulo Markun: [interrompendo] Mas, durante aquele período não?

 

Carlos Fino: Não, durante aquele período não.

 

Paulo Markun: E você chegou a pensar em desistir, em algum momento?

 

Carlos Fino: Não me recordo. Como disse o Clinton [Bill Clinton, presidente dos Estados Unidos de 1993 a 2001] sobre a Mônica [Mônica Lewinsky, estagiária da Casa Branca com quem Clinton manteve um relacionamento, enquanto era presidente e casado, negado a princípio e depois admitido em função de provas materiais, provocando crise de governo], eu não me recordo [risos].

 

Demétrio Magnoli: Carlos, eu queria insistir num ponto, porque, cada vez que eu converso com um jornalista sobre isso, sobre o problema dos jornalistas na cama, os jornalistas tendem a responder que o jornalismo sempre pode ser feito, se você é um bom jornalista. Os jornalistas costumam se achar pessoas acima das estruturas. E costumam dizer: “Bom, são formas diferentes de fazer jornalismo, estar ou não embedded”, o que levanta algumas questões éticas... Quando não me parece que a discussão é essa. Parece-me que a discussão é de estruturas e tem a ver com uma história. Pela primeira vez nessa guerra, plenamente, o jornalismo virou parte da logística militar. O jornalismo foi incorporado à mídia, ou à parte dela, não é? Foi incorporado às tropas de combate com toda uma estrutura hierárquica de controle e de filtragem da notícia. Você tinha, nas unidades militares, responsáveis militares pela checagem das notícias que rechecavam essas notícias com o centro de comando no Kuwait e, dependendo da notícia, ela era rechecada antes de ir ao público, na Casa Branca. Você tem uma estrutura desse tamanho de filtragem das notícias de jornalistas embedded. É por isso que eu falei que, na minha opinião, isso não deve ser visto como jornalismo. São soldados da informação, mesmo que sejam boas pessoas, cada um deles individualmente. Eu estou tratando de uma estrutura. Como é que você vê isso?

 

Carlos Fino: Bom, isso foi interpretado nas redações como sendo o preço a pagar para ter, pelo menos, acesso a algumas imagens próximas da realidade da guerra. No fundo, foi isso. Nós tivemos uma equipe nessas condições e eles mostraram, quer dizer, já foi útil mostrar e saber que havia milhares de casos, havia uma coluna de milhares de carros de combate rumo a Bagdá, foi possível ter alguns eye lights, alguma idéia particular da ação, do que estava a ocorrer com aquela coluna. Eu acho que, de fato, a capacidade de ação e de revelar e de chegar a uma informação real era bastante controlada.

 

Laura Mattos: Carlos, de onde você estava dava para ter uma visão plural do conflito? Porque o senhor mesmo me disse que ficou sabendo que deu um furo mundial uma semana depois, mais ou menos. Então, tinha como ter acesso a outras informações e conseguir fazer um caldo mais plural, mais global, de onde o senhor estava também?

 

Carlos Fino: Bom, havia a possibilidade de ter acesso via satélite. Havia quem pudesse ter acesso à internet. Durante algum tempo, um pouco antes desses dias de combate efetivo, no hotel Rachid [onde ficava a sede do comando americano], também havia internet. Limitada, mas era possível consultar, pelo menos, a internet. Depois a rádio, não é? A rádio, nesses casos, é importante para um jornalista em campanha desse tipo. Também trazia outra informação que não a informação só do local. Era possível contextualizar, embora, quer nos embedded, quer ali daquele lado, claro que a informação é muito estreita. Mas eu acho que ela, mesmo assim, tem valor. Eu acho que a resposta se completa aqui, não é? Porque mesmo sem essa visão limitada do terreno, de algumas coisas que se passavam com os americanos e do que é que estava a passar com as vítimas colaterais da guerra, o que nós podemos ver...

 

Paulo Markun: [interrompendo] Foram esses os jornalistas que deram as cenas do fogo amigo, não é? Várias delas, não foram?

 

Carlos Fino: Sim. Sim, a BBC, quando foi bombardeada no norte, com o John Simpson [jornalista britânico que estava no local naquele momento], junto... Portanto no Curdistão, foi vítima desse fogo amigo. Nós também estivemos numa situação que esteve quase a acontecer isso porque os iraquianos levaram-nos e só nos mostravam, praticamente, as vítimas civis e os resultados do ponto de vista negativo para a opinião pública. Nunca nos mostraram os resultados dos bombardeamentos a quartéis ou a unidades militares ou governamentais. Nós éramos sempre convidados a fazer, no fundo, a propaganda do regime iraquiano. Eu penso que, mesmo isso, é importante ter. É claro que nós sabíamos que estávamos a ver só aquilo e podíamos sempre dizer que estávamos a ver só aquilo. E que havia outras coisas que não nos eram mostradas. Eu acho que vale a pena estar [no local de guerra], apesar de tudo.

 

Demétrio Magnoli: Posso te perguntar da queda da estátua [de Saddam no dia 09/04 de 2003 no centro de Bagdá. As cenas foram transmitidas ao vivo]? Porque como espectador na televisão, eu vi uma parte, demorou aquilo lá, eu vi uma parte da derrubada da estátua do Saddam Hussein e as cenas que eu vi na televisão, pode ser que eu tenha perdido alguma, eram sempre tomadas mais ou menos próximas dos acontecimentos. Então parecia que tinha uma multidão, não necessariamente muito grande, mas pelo menos algo que a gente poderia chamar de uma multidão, ajudada por um tanque americano, derrubando a estátua. Acho que essa foi a imagem que ficou para o público mundial. Eu recebi depois, de um jornalista espanhol, uma fotografia, tomada de cima da praça, onde a foto é mais ou menos o seguinte: Tem quatro tanques americanos, um em cada ponto cardeal da praça, tem soldados americanos cercando parte do perímetro da praça e interrompendo o trânsito e, na frente da estátua, tem um pequeno grupo, um grupo de 15, 20, 30 pessoas, alguma coisa assim, pelo que eu vi na foto, muitos jornalistas e o tanque derrubando a estátua. Daria para caracterizar que foi uma encenação sobre controle militar?

 

Carlos Fino: Há quem diga que [a cena] foi preparada no Pentágono. Aliás, o soldado [Edward Chin que tinha 23 anos, na época] de Nova Iorque, de origem chinesa que levava a bandeira, também já levava uma bandeira preparada, que é uma bandeira que vinha dos acontecimentos de 11 de setembro [série de ataques contra alvos civis dos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001, quando aviões seqüestrados por terroristas islâmicos colidiram contra as torres do World Trade Center, centro financeiro e um dos símbolos de Nova Iorque, e tentaram atingir o Pentágono. Mais de 3 mil pessoas morreram na tragédia que marcou a história contemporânea]. Tem muita coisa nesse aparelho americano que, às vezes, faz lembrar os melhores momentos da União Soviética. Também tem isso, esse aparelho também cria esses momentos. E por outro lado, é sabido que os americanos têm toda a arte, como já foi aqui lembrado, de Hollywood, não é? Tem isso nas campanhas eleitorais, que encenaram os melhores momentos...

 

Demétrio Magnoli: [interrompendo] Filma aqui a derrubada da estátua...

 

Carlos Fino: Portanto, o que eu posso testemunhar é outra coisa em contraponto a isso. Eu nunca vi verdadeiro entusiasmo popular [abre os braços] de saudar a chegada das tropas americanas. Eu não constatei isso, em Bagdá. Não sei se houve em outras... Houve muita contra-informação também. Os ingleses chegaram a falar de insurreição. Chegou a abrir os telejornais do mundo inteiro e, afinal, parece que não houve essa insurreição, foi um incidente. Não foi uma verdadeira insurreição. Eu acho que foi um pouco forçado. Aliás, acho que tenho que dizer nesta altura, quando estávamos no Iraque...

 

Vicente Adorno: [interrompendo] Mas de qualquer forma, a estátua foi derrubada. E o Saddam Hussein? Alguém disse para você: “Não ele está aqui, ele não está aqui, ele já fugiu do país”. Alguém sabe onde ele foi parar [Saddam Hussein foi localizado no dia 13 de dezembro de 2003, sendo posteriormente julgado e executado por enforcamento]?

 

Carlos Fino: Não, o que há é muita especulação sobre o que é que falta. Nessa guerra, falta a batalha final de Bagdá. Não houve a batalha final de Bagdá. A verdade é que o exército iraquiano consegue opor resistência desde Bassorá [segunda maior cidade do Iraque e onde está localizado o principal porto do país] até Bagdá. Menos Bagdá. Não houve. Falta, nesse livro, falta esse capítulo. Tudo se passa muito rapidamente a partir do momento em que os americanos tomam o aeroporto.

 

Vicente Adorno: [interrompendo] Se dizia que havia 100 mil homens da guarda republicana e eles nunca apareceram? E seria a divisão de elite do exército...

 

Carlos Fino: [interrompendo] Sim, não se sabe exatamente qual foi o resultado, mas parece que foi muito devastador, dos bombardeamentos contínuos durante muitos dias, mais de duas semanas, sobre essas forças da guarda republicana.

 

Paulo Markun: [interrompendo] Desculpe, vamos ser mais explícitos. Quando você diz que falta alguma coisa, você suspeita efetivamente que tenha havido algum tipo de acordo, alguma negociação, algo assim?

 

Carlos Fino: Eu interrogo-me. Não sei se posso dizer que eu suspeito. Eu interrogo-me. Compreendo que se façam essas perguntas. Por exemplo: O que é que foi fazer um enviado russo à Bagdá na véspera quase do conflito? O que é que foi fazer o embaixador russo que já tinha deixado a capital do Iraque e depois voltou para organizar um comboio para se ir de novo com mais cidadãos russos? Quem ia nesse comboio?

 

Lourival Sant’Anna: E a Condoleza Rise [secretária de Estado norte-americana], que num momento tão crítico sai, vai para Moscou, para quê?

 

Carlos Fino: E, por outro lado, qual foi o resultado da viagem do enviado do Papa à Bagdá [cardeal francês Roger Etchegaray]? Nunca foi explícito. Portanto, há um conjunto de coisas... Falta essa batalha de fato, mesmo que... Vamos lá raciocinar. Mesmo que as forças iraquianas colocadas... A guarda republicana, colocadas em volta de Bagdá, tivessem sido dizimadas, e foram certamente muito, pela aviação, pelos bombardeamentos, ainda sobrou muita gente que estava dentro dos prédios normais, das casas de Bagdá, que não foram bombardeadas. Não era intenção dos americanos bombardear. Mas estavam lá, nas cidades, gente armada.

 

Demétrio Magnoli: [interrompendo] Carlos, isso deu para você ver, uma estrutura de defesa montada dentro da cidade, deu pra ter indícios disso?

 

Carlos Fino: Indícios sim. Havia muita gente em grupos, gente insuspeitada, às vezes de sítios de carros, muita gente armada. Havia certamente depósitos de armas...

 

Demétrio Magnoli: Isso se evaporou quando os americanos chegaram?

 

Carlos Fino: Isso não se manifestou. O máximo que se transformou foi... essas milícias transformaram-se foi em bandos armados de salteadores. E não em bando, em grupos de resistência. E a explicação que muitos iraquianos davam é que, uma vez que a direção desapareceu, então não vale a pena lutar.

 

Vicente Adorno: E 24 horas antes do ataque, apareceu o Saddam Hussein sendo aclamado por uma multidão, andando na rua, recebendo saudação militar dos sentinelas que estavam tomando conta da capital, a mando dele mesmo, e agora os americanos dizem: “Esse era um sósia”. E dizem que havia uns seis sósias. Era isso mesmo? Alguém chegou a ver essa manifestação, além dos cinegrafistas da república iraquiana?

 

Carlos Fino: Nenhum dos jornalistas com quem eu estive em Bagdá teve essa experiência. Portanto, nós não podemos afirmar se era uma encenação ou se era real...

 

Vicente Adorno: Ou se era alguma coisa que tinha acontecido há dez, quinze dias antes, um mês antes...

 

Carlos Fino: Sim, mas é possível isso, tendo em conta o seguinte: Também não foram descobertos até agora os sósias do Saddam, não é?

 

Paulo Markun: E nem as tais armas de destruição em massa.

 

Carlos Fino: Bom, isso também já não... Mas é preciso ter, ainda em relação ao regime, é preciso ter em conta o seguinte: O regime, nos anos de 1970, desenvolveu as infra-estruturas do Iraque. As pessoas tinham um nível de desenvolvimento, para países em desenvolvimento, relativamente elevado. Os iraquianos têm uma cultura geral elevada, muita gente fala inglês, muita gente tem formação superior, muita gente ia ao estrangeiro... Portanto, não era propriamente um país atrasado. Não é o Afeganistão, o Iraque. É um país com história, sofisticado e, nos últimos anos, esse programa do oil for food: “Óleo por comida, por petróleo”, o que criou foi uma dependência muito grande de cada pessoa em relação ao regime. Porque a comida era distribuída gratuitamente. E quem recebe comida não protesta. Por outro lado, haverá sempre, em todos os regimes, há sempre uma raiz qualquer que é genuína, portanto aquilo não é uma emanação completamente exterior à sociedade iraquiana, que o correspondia a alguma coisa. Portanto, algum apoio, aquilo tinha que ter. Se perguntar, por exemplo, em Portugal, para buscar o exemplo que eu conheço, o Salazar [Antônio de Oliveira Salazar (1889-1970), ex-ditador português que contava com algum apoio popular] [gesticulando e girando a cadeira] era completamente estranho à sociedade portuguesa? Não, era uma emanação de um certo tipo de sociedade em Portugal. E mais, se perguntar, e vocês não estão a perguntar sobre o futuro, mas podemos levantar essa questão, o que é dominante? Era esse secularismo que foi promovido por esse regime que foi agora derrubado ou é o fundamentalismo xiita [corrente religiosa islâmica conhecida pelo radicalismo] que já vimos com as facas e com o sangue que vimos em Kerbala [cidade ao sul de Bagdá]? E eu respondo da mesma maneira: “O que é a essência em Portugal, o  secularismo da República, instaurado a partir do início do século XX, ou é [a cidade-santuário de] Fátima que continua a atrair milhares de peregrinos”?

 

Jaime Spitzcovsky: É justamente essa questão, do entusiasmo, Carlos, você disse que não registrou, não verificou nenhum entusiasmo em Bagdá pela chegada das tropas americanas. Houve algum entusiasmo, você viu algum entusiasmo pela queda do regime de Saddam Hussein?

 

Carlos Fino: Sim, em algumas praças, digamos, por alguns setores claramente de classe média. Mas eu não vi grandes massas com grande entusiasmo. Muita gente estava fora também de Bagdá.

 

Jaime Spitzcovsky: Você não compararia ao final do império soviético, que você acompanhou?

 

Carlos Fino: Não, de maneira nenhuma. Não é possível comparar o 25 de Abril [referindo-se à Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974, que derrubou o regime político de inspiração fascista que vigorava no país desde 1926. O golpe foi conduzido por militares com forte apoio da população que, não se sabe porque, trazia muitos cravos nas mãos] em Portugal, também não tem qualquer comparação com o entusiasmo genuíno que existiu nas ruas de Lisboa. Não.

 

Paulo Daniel Farah: Carlos, como que era a interação e a comunicação com a população iraquiana e qual era a relação com os intérpretes? Por exemplo, eu via na TV, às vezes, que um iraquiano falava, por exemplo, 80 palavras e o intérprete traduzia seis, sete? [risos] Quer dizer ... [todos falam ao mesmo tempo]

 

Carlos Fino: Ou em duas, né? [risos] Era um problema, o problema da comunicação. Muitas vezes, os próprios tradutores se encarregavam de dar a resposta. Eu, nessas duas vezes que eu estive... Em 2002, estive no Iraque duas vezes, já com essa perspectiva de que poderia surgir a guerra e isso só viria de preparação. E eu tive a ocasião de fazer uma reportagem de 40 minutos sobre a situação no Iraque, chamada Objetivo Iraque, no início do ano, portanto na véspera do conflito, e tinha um episódio assim, não é, que era um cara, para utilizar a expressão brasileira, um cara que eu perguntava: “Então, o que é que vai fazer se chegarem os americanos”? E ele ficou assim atônito, não dizia nada, e ouve-se a resposta dada [aponta para trás] pelo intérprete: “Lutar, lutar” [risos]. E o cara: “Ah,  sim, lutar”. Isso diz tudo.

 

Paulo Daniel Farah: E eles sabiam por que iam ser atacados? O que é que eles diziam? O que eles achavam que...

 

Carlos Fino: [interrompendo] A razão, para os árabes e para os iraquianos em particular, dessa guerra é o petróleo. E é o redesenhar do mapa geopolítico ou geoestratégico da situação, em geral, no Médio Oriente, a favor do Estado de Israel. Portanto, criando uma profundidade estratégica para o Estado de Israel e mudando, portanto, o campo de alianças, criando condições para eventualmente a retirada das tropas americanas. Isso é uma das análises mais sofisticadas. Basicamente, o que os iraquianos diziam é que tinha dois motivos: Um era o conflito com a Palestina e outro o petróleo.

 

Paulo Daniel Farah: Mesmo os analistas políticos, isso tinham uma versão adaptada de...

 

Carlos Fino: Sim, depois ele tinha maior elaboração, mais sofisticação.

 

Paulo Markun: [interrompendo] Qual é a sua avaliação sobre o ministro da informação iraquiana?

 

Carlos Fino: Sim, é um personagem. O "meu amigo" Al-Sahhaf [Mohammed Saeed Al-Sahhaf, era o principal porta-voz do governo iraquiano. Foi chefe do sistema de comunicações iraquiano e embaixador, em Myanma, na Suécia e na ONU, Organização das Nações Unidas]  [risos]. Ele já me conhecia porque eu era um dos que levantavam sempre a mão para fazer perguntas e ele me dava muitas vezes a palavra.

 

Paulo Daniel Farah: Você conseguia segurar o riso? Você conseguia sempre segurar o riso ali [referindo-se às entrevistas coletivas], levar a sério?

 

Carlos Fino: É patético. A certa altura passa a ser patético, porque ele defende... Mas ele faz bem o papel dele. Aliás, é também a tradução daquilo que era. Os iraquianos não são de um país atrasado, até se tinha uma noção da sofisticação da mídia e tentaram inclusive jogar esse jogo. Até onde puderam. O problema do Al-Sahhaf é que ele jogou o jogo já sozinho. Já para além do limite. Agora, ele tinha algumas observações com graça e com algum humor. Tornou-se uma coqueluche.

 

Laura Mattos: Carlos, queria voltar a falar um pouquinho da mídia. Qual que é a sua opinião sobre o episódio da demissão do Peter Arnet [jornalista e ex-correspondente da CNN que relatava, ao vivo, os acontecimentos da guerra com uma antena parabólica portátil e uma câmera, famoso por cobrir vários conflitos mundiais, demitido depois de ter concedido uma entrevista a uma emissora iraquiana na qual afirmou que os planos de guerra da coalizão anglo-americana tinha fracassado] e se o senhor daria uma entrevista à TV iraquiana, criticando as operações americanas?


Paulo Markun: [interrompendo] Não, ele não é americano, para começo de conversa.

 

Demétrio Magnoli: [interrompendo] Não, não. Mas eu posso continuar a pergunta. Se você fosse o editor, o chefe de redação do Peter Arnet, demitiria ele?

 

Carlos Fino: Não. De maneira nenhuma. Acho que isso contraria nossa, a minha, a nossa gente em Portugal, enfim, a opinião generalizada de que o jornalista pode ter as suas opiniões. E não tem que estar necessariamente dentro do... embora por outro lado, o que está na origem disso? Está o espírito que se criou na América, que a mínima coisa que saia do ponto de vista oficial, aquilo é antipatriótico, não é? Cria-se um pouco esse espírito. Eu não ousaria dizer que é um novo macartismo [período de intensa perseguição aos comunistas e simpatizantes nos Estados Unidos durante os anos de 1940 e 1950], mas alguma coisa desse tipo. Cria-se uma psicose que torna difícil a expressão de qualquer opinião individual fora da linha oficial que é contraditória com a linha da América de defesa dos direitos e defesa da liberdade de expressão.

 

Paulo Markun: Na cobertura da guerra, o Peter Arnet jogava o jogo como os outros jornalistas, atuava da mesma maneira, ou já estava num patamar superior, era uma estrela de primeira grandeza?

 

Carlos Fino: Não, eu contatei com ele [abre os braços], fiz inclusive algumas entrevistas com ele, que incluí nas peças antes da guerra, é um sujeito que continua a ter uma voz bem colocada. Cada vez que fala prende a atenção só pela voz. Já está mais velho, naturalmente, passaram-se doze anos [desde que se encontraram na Guerra do Golfo]. Continua a ter aquilo que é próprio dos jornalistas americanos que é poder de síntese, de clareza, de expressão. Mas o trabalho, como nós víamos, era igual ao nosso.

 

Paulo Markun: Sim, porque na hora em que ele deu essa entrevista, sacaram contra ele a arma do porte de um Walter Cronkite [jornalista norte-americano, apresentador, por 19 anos, do jornal noturno da rede CBS. Foi o jornalista que fez a cobertura da chegada do homem à Lua e da Guerra do Vietnã. Foi citado como um dos homens de maior credibilidade nos Estados Unidos, através de pesquisas de opinião pública], que escreveu um artigo condenando, no fim das contas, a atitude dele. Foi realmente... Para os americanos foi demais. Foi um escândalo.

 

Carlos Fino: Mas não vejo porque. Por que é que em um país em que a matriz é a liberdade de expressão, por que é que mesmo nessa situação aguda, de confronto, não se pode admitir que uma pessoa tenha sua própria opinião?

 

Paulo Markun: A pergunta, para pegar você aqui no contrapé. José Carlos Gaspar, de São Vicente, aqui de São Paulo, que é analista de sistemas, Antônio Tavares de São Paulo, empresário, João Carlos Piedade, do bairro de Cerqueira, César aqui na capital, e Antônio Neves, que é um português nascido em Angola, que vive no Brasil há dez anos, querem saber como você encara a posição do governo português em relação à guerra?

 

Carlos Fino: Bom, eu deixo isso para os políticos, não é? Naturalmente, nunca vou me pronunciar sobre isso.

 

Paulo Markun: [interrompendo] Não. Vai fazer como o Peter Arnet [risos].

 

Carlos Fino: O que eu sei é que não vou fazer como Peter Arnet [risos], mas não foi bem isso que fez o Peter Arnet.

 

Paulo Markun: Foi um pouco mais complicado.

 

Carlos Fino: O que eu sei é que eu podia lhe contar uma história sobre isso. É uma história soviética. Que era o cara que era apanhado pela KGB [agência de informação e de segurança da antiga União Soviética, também atuava como polícia secreta ganhando fama por reprimir e aterrorizar adversários do governo central] e que a KGB tentava que ele falasse. E então foram dando vodca para ele, já estava bêbado, foram dando mais e fazendo perguntas: “Olha lá, e a questão do Afeganistão, não”? E o cara, estando embora grosso, ia sempre dizendo: “Bom, de acordo com o nosso partido”...  e expunha a linha oficial do partido. "Então, e os direitos humanos e os dissidentes?", Sempre que era puxado para qualquer tema, ele dizia sempre: “De acordo com a linha do nosso partido”... Quer dizer, os caras da KGB já estavam tão fartos disso que disseram: “Bom, mas você não tem opinião própria”? E ele aí diz: “Bom, eu tenho, mas não estou de acordo com ela, não”. [risos].

 

Demétrio Magnoli: [interrompendo] Mas Carlos, pondo de outra forma a mesma pergunta, vamos pegar duas vinhetas...

 

Carlos Fino: Deixa-me falar, para não dizer que eu fugi à pergunta. Bom, o que eu acho é assim. Essa situação do governo português defender uma coisa e a opinião pública portuguesa querer outra criou-nos uma situação de grande à vontade. Nós estávamos completamente à vontade para reportar aquilo que entendêssemos. Quer dizer, nós não estávamos a fazer nem a propaganda de um lado, nem a propaganda do outro.

 

Paulo Daniel Farah: E a reunião nos Açores [reunião de ministros do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional em que participam representantes ministeriais do 27 países membros da União Européia. É um dos mais importantes eventos políticos para Portugal] , não teve algum papel negativo? Os iraquianos não mostraram algum tipo de...

 

Carlos Fino: [interrompendo] Mostraram. Tentaram nos agredir. Embora nós disséssemos que não éramos americanos, éramos europeus e, portanto tínhamos uma posição diferente, éramos jornalistas, eles não quiseram saber dos jornalistas e lá o chefe do bando fez-me ver que: “Não, mas você é português, vocês são portugueses”, e lembrou a reunião dos Açores. Nós também comemos por tabela.

 

Demétrio Magnoli: Carlos, gozado você dizer que não vai dizer sua opinião sobre o governo português, porque a cobertura dessa guerra foi extremamente editorializada. Se a gente pegar o [The] New York Times, que foi um dos poucos jornais americanos contra a guerra, apesar de ter sido declarado editorialmente contra a guerra, ele tinha uma vinheta que dizia: “Uma nação em guerra”. E toda a cobertura se dava sob essa vinheta. O que é uma adesão ao esforço de guerra. A Folha de S. Paulo, aqui no Brasil, tinha uma vinheta que dizia: “Ataque do Império”. Pegar essas duas vinhetas é bem editorializada, a cobertura. Como é que eram as vinhetas em Portugal? Como é que ficou essa posição da imprensa, essa editorialização...

 

Carlos Fino: [interrompendo] Olha, os dois principais jornais diários defenderam, os editoriais, defenderam a intervenção americana. Agora, ainda sobre essa questão, eu estava dizendo o seguinte: Eu acho que, entrando na política propriamente dita, parece é que, tendo a Espanha defendido a posição que defendeu, era difícil para Portugal tomar outra posição. Sob pena da marginalização portuguesa numa situação estratégica do pós-guerra. E, portanto aí, eu não posso deixar de reconhecer, essa é uma questão de realismo, Portugal ter seguido um pouco essa corrente. Eu já tive a oportunidade de dizer isso em Portugal e digo aqui também.

 

Paulo Markun: Carlos, nós vamos fazer um rápido intervalo. Eu só queria registrar que eu não conheço suficientemente Portugal para fazer a comparação, mas eu tenho a impressão que o Alentejo [região portuguesa que compreende os distritos de Portalegre, Évora e Beja e compreende a 18% de todo o território  português], onde você nasceu, é mais ou menos como Minas Gerais aqui no Brasil [referindo ao "jeitinho" mineiro de não colocar claramente a opinião sobre um assunto] [risos]

 

Carlos Fino: Eu também não conheço Minas Gerais...

 

Paulo Markun: [interrompendo] A gente já percebeu que você é meio mineiro [risos]. Nós voltamos daqui a pouco.

 

[intervalo]

 

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, nesta noite entrevistando o jornalista português Carlos Fino da RTP, a Rádio e Televisão Portuguesa. Amauri Miranda de Campinas, São Paulo, pergunta: "Na sua opinião, qual é a real finalidade dessa guerra ou qual foi a real finalidade dessa guerra?" Você já disse que os iraquianos acham que é o petróleo.

 

Carlos Fino: Sim. Eu recordo-me quando do processo do Clinton, eu estava em Washington, e há um grande advogado americano que foi defender o Clinton que dizia, numa das ações do Congresso: “When they say it´s not about money, you can be sure that´s about money”. Quando eles dizem que não é do petróleo, que não se trata do petróleo, é claro que é do petróleo. Aliás, basta ver a história do Iraque. Quem se der a esse trabalho, de ver um pouco a história do Iraque, toda a história recente, desde o momento em que foi descoberto o petróleo no Iraque, tudo gira em volta do controle dessa fonte de riqueza. É claro que tem outras coisas, também, como já vimos: A questão do Médio Oriente, a Palestina, a questão do conflito Israel-árabe, tentativa de criar um outro quadro para encontrar uma outra solução para o conflito da Palestina, mas certamente que o petróleo é determinante. Essa também é minha opinião.

 

Jaime Splitzcovsky: E guerra contra o terrorismo, como diz o governo norte-americano, você não acredita que exista ou que entre nos cálculos da Casa Branca [residência oficial do presidente dos Estados Unidos] ?

 

Carlos Fino: Bom, não foi provado que houvesse uma ligação entre a Al Qaeda [grupo terrorista islâmico] e o regime iraquiano.

 

Jaime Splitzcovsky: E nem as ligações de Saddam Hussein com os grupos extremistas palestinos, por exemplo?

 

Carlos Fino: Não, isso é outra coisa. Isso é o que estamos a dizer. Que Saddam Hussein, que o regime apóia os movimentos da Palestina. E isso sim. E daí justamente o interesse dos americanos em mudar o regime também.

 

Jaime Splitzcovski: Você não acredita, então, na lógica dessa guerra contra o terror?

 

Carlos Fino: Eu julgo que não foi provado isso. Não é que não acredito. É o Times que não me traz esses dados, é Newsweek [jornais americanos] que não me traz esses dados, é o For in the fair que não trata disso. São os especialistas mais sérios da política internacional que continuam a dizer que não esteve provado, isso. Há uma outra lógica, para além dessa daí, da guerra contra o terrorismo. Embora ela também possa estar presente naturalmente.

 

Lourival Sant´Anna: Agora, Carlos, vamos falar um pouco do futuro do Iraque. Antes da guerra, a maioria dos analistas, mesmo os iraquianos que estavam fora do Iraque, dizia: “Olha, se for rápido, pode ser uma boa”. Saddam Hussein, figura que muito pouca gente gostava e tal. E foi rápido, 21 dias. Foi bem rápido. E você disse que a classe média se sentiu muito aliviada. Tiraram um peso enorme dos ombros dela. As pessoas não podiam confiar nem nos próprios filhos que estavam na escola e eles ensinavam a respeitar e a ser mais leais à Saddam do que a seus pais etc. O que é que você acha agora, como é que você está vendo o jeitão da coisa, acha que vai dar para viabilizar politicamente, institucionalmente, o Iraque?

 

Carlos Fino: Olha, há digamos uma expressão de um filósofo francês que diz que: “O  mais provável é aquilo que ninguém previu”. Eu acho que nós já estamos a assistir a isso, esse tipo de coisa. Ninguém estava a espera de que o resultado imediato da entrada das tropas americanas fosse o caos a que nós assistimos. Ninguém estava a espera que não houvesse algo de mais preparado. Os americanos afinal de contas, ao contrário do que dizem os teóricos em Washington, parecem não ter muito estômago para tomar conta desses problemas todos e dessa complexidade do Iraque. Não parecem ter, sequer, muita apetência, muita vontade para além de estabelecerem as bases, para se imiscuir dentro das políticas concretas. Parece, pelo menos é [gesticulando] a sensação de quem lá esteve e olha para aqueles soldados todos e não vê muita vontade de mexer nisso [sendo interrompido]. Agora, o que é que vai acontecer? O que é que vai dominar? Proximidade entre os sunitas e os xiitas [a rivalidade entre os dois grupos islâmicos é antiga e nasceu a partir da disputa pelo direito de sucessão a Maomé. Para os xiitas, o líder da comunidade é Imã, herdeiro da missão espiritual do profeta. Para os sunitas, ele é apenas um chefe político, sem autoridade espiritual a qual pertence à comunidade. Porém, ambos seguem as mesmas leis e os mesmos ritos] porque são... Essa solidariedade para nada, ou é clivagem religiosa entre xiitas para um lado ligados, nessa altura ao Irã, e uma aliança Iraque-Irã seria temível, levantaria muitos problemas à Arábia Saudita ou é a ligação depois dos sunitas também nessa altura ao sunitas que são majoritários na Síria. Quer dizer, há ali todo um conjunto de questões que estão por responder. Até onde que vai a autonomia dos curdos, quem vai mandar? Eles deixam de ser o aparelho de Estado que tem sido dominantemente sunita, como vocês sabem, desde os otomanos, passando pelos ingleses, agora vai deixar de ser? Eles vão conciliar-se e partilhar, democraticamente e civilmente, entre os diferentes ramos e as diferentes tendências? Como é que vai ser tudo isso? Eu acho que foi destampada uma tampa que ninguém sabe bem o que vai acontecer.

 

Vicente Adorno: Você talvez possa dizer a nós, com mais propriedade. Eu vejo que é muito difícil manter a própria integridade territorial do Iraque como a gente conheceu até agora porque os curdos exigem um pedaço para eles, os sunitas também querem um pedaço. Agora os xiitas entraram em massa, vindos do Irã também. Como vai ser isso? Você acredita que, mesmo com a força do poder militar, os Estados Unidos vão conseguir manter esse território unido como eles querem?

 

Carlos Fino: Eu estava a espera que, a seguir a essa intervenção militar, houvesse uma autoridade qualquer americana, como houve no pós-guerra na Alemanha, no Japão, que impusesse as regras do jogo. E que fosse a garantia de que haveria uma solução, qualquer que ela fosse, de caráter democrático ou representativo, já não digo um homem, um voto, porque isso parece estar excluído. Mas pelo menos de caráter representativo geral. O que eu não vejo é essa força [junta as mãos]. Vejo muita hesitação e por isso faz...

 

Vicente Adorno: [interrompendo] Tanto que o alto comando americano, essa semana, foi trocado. E ninguém sabe o que esses novos vão fazer lá. Aparentemente, eles não têm ainda uma idéia clara do que fazer: “Bom, agora ganhamos a guerra, foi fácil”. E depois?

 

Carlos Fino: Sim, o que fazer com essa vitória? Justamente. Essa foi a sensação que nós tínhamos, também.

 

Vicente Adorno: A questão palestina não seria agora o próximo passo? Se não resolver a questão Palestina, todo esse resto vai continuar encrencado.

 

Carlos Fino: Sim, mas como é que vai resolver a questão Palestina fazendo pressão sobre uma das partes, como tem sido até agora? A pressão tem sido toda feita sobre o Arafat [Yasser Arafat (1929-1004), líder da Autoridade Palestina e presidente da Organização para a Libertação da Palestina]. Não tem havido pressão sobre o Ariel Sharon [primeiro ministro de Israel entre 2001 e 2006]. Eu julgo que sem uma presença militar, externa, com participação americana no Médio Oriente, não há solução à vista na Palestina. A solução à vista é uma solução de...

 

Demétrio Magnoli: [interrompendo] Carlos, saindo do Oriente Médio e indo para a Europa. Como que a opinião pública portuguesa encarou a grande clivagem que se deu na Europa em relação à Guerra do Iraque, ou seja, a clivagem entre a Inglaterra de um lado, a Espanha e Portugal juntos de um lado, e a França e a Alemanha, ou seja, o eixo da União Européia, toda a União Européia...

 

Carlos Fino: [interrompendo] Há toda uma perplexidade que essa intervenção levanta que fez abalar também todas as estruturas do pós-Guerra Fria e que vem desde a Segunda Guerra Mundial, na realidade desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Foram abaladas as Nações Unidas, foi abalada a União Européia. Como é que Portugal vê? Em Portugal discute-se isso como em todos os outros países. As interpretações que há é que se gerou aqui uma nova dinâmica que vai gerar uma nova ordem internacional, que ainda não é clara como é que vai ser, e que essa clivagem traz, ou faz reemergir a velha clivagem entre os países de caráter continental, e os países mais ligados ao Atlântico.

 

Demétrio Magnoli: Não. A minha pergunta visa o seguinte: O Rumsfeld [Donald Rumsfeld, secretário da Defesa dos Estados Unidos de 2001 a 2006, um dos principais articuladores da Guerra do Iraque, foi acusado de ter autorizado a tortura de presos], num certo momento, caracterizou a Alemanha e a França como sendo a velha Europa. A nova Europa seria a Europa da Grã Bretanha, da Espanha, de Portugal e do leste europeu, que apóia a guerra.

 

Carlos Fino: Sobretudo do leste europeu, não é?

 

Demétrio Magnoli: É, mas também a Grã-Bretanha e a Península Ibérica, que está aí junto. Do ponto de vista dos jornais portugueses e dos intelectuais portugueses, da opinião pública em Portugal, como fica essa polêmica? O pessoal se identifica mais com a velha Europa ou com a nova Europa?

 

Carlos Fino: Há um debate muito aceso sobre o que é mais correto fazer. Nós temos os dois pontos. Temos quem apóie claramente essa posição do governo português dizendo que isso corresponde aos interesses internacionais da melhor forma, que são sempre interesses virados para o Atlântico e, portanto, sempre com um forte componente atlanticista, uma ligação à Inglaterra, uma ligação aos Estados Unidos. Nós temos os Açores, temos bases americanas nos Açores, nossa própria posição geográfica ditaria essa vertente atlântica da política nacional, que é inevitável. Isto é uma visão. Outra visão, talvez mais de acordo com o que era costume ser, desde a Segunda Guerra Mundial, temos um abaixo-assinado de intelectuais, com Mário Soares [político socialista, primeiro ministro de Portugal entre 1976 e 1977, 1978 e 1983 a 1985. Presidente da República de 1986 a 1996], e com homens que vêm da direita, mas que tem tomado posições próximas da esquerda ultimamente, que é Freitas do Amaral, que foi candidato à presidência, e que assinaram um manifesto contra a presença americana. E digamos, com uma leitura perfeitamente tradicional, do direito internacional, do ponto de vista do direito internacional, que os americanos têm que sair, que a legalidade tem que ser restabelecida, que a ordem internacional também. Portanto, temos essas duas posições.

 

Paulo Markun: Como é que a RTP, que é uma TV pública, mas em que o governo controla, digamos, tem o controle político da emissora, no fim das contas, na medida em que, ao contrário da TV Cultura, não há um conselho que não se muda a cada governo, como e que a RTP atua e como você encarou o fato de que via TV Cultura você... A RTP entra no Brasil e traz toda essa visão da...

 

Carlos Fino: [interrompendo] Para mim foi uma surpresa completa. Eu estou, naturalmente, agradecido ao Brasil porque se não fosse o Brasil, ninguém tinha reparado. E foi do Brasil que veio essa observação. Foi também do Brasil que veio a primeira expressão de solidariedade. Quer dizer, eu comecei a receber em Bagdá, naquele quarto e naquela situação cinzenta e dura e problemática, votos agradáveis do Brasil que perguntavam: “Carlos, você está bem”? [risos] Bom, eu nunca mais vou esquecer isso [sendo interrompido]. Como?

 

Paulo Markun: Não, ela está falando aqui.

 

Carlos Fino: Isso eu nunca mais vou esquecer. Portanto, como é que eu vejo? Eu vejo que talvez aqui haja... Sabe que dizia o [...], que é argentino, o Borges [escritor], dizia que os países, como os indivíduos, têm um destino que desconhecem. Talvez o destino desse episódio tenha sido vir aí para mostrar que tem que haver mais ligação entre Portugal e o Brasil.

 

Vicente Adorno: Mas então as pessoas descobriram que também, em português, se pode fazer um bom jornalismo e se pode dar notícia com uma certa maturidade, como foi o caso da RTP?

 

Carlos Fino: [Fala em árabe mas subentende-se que ele tenha concordado com o que foi dito pelo entrevistador] [risos].

 

Laura Mattos: Carlos, fora o glamour desse furo jornalístico, eu queria que você avaliasse um pouco essa disputa que as TVs têm por segundos de diferença. Se isso é realmente relevante ao telespectador, se é prejudicial ou não ao seu trabalho e à qualidade da programação.

 

Carlos Fino: “That´s the way it is”, quer dizer: "Não podemos fugir a isso". Nós estamos nesse mundo competitivo, tudo é ditado pelo mercado, as audiências, e, portanto, isso determina nosso trabalho, sim. A tal ponto que, quando houve essa dança dos hotéis, eu também tive que pensar nisso. Então eu pensava assim: “É melhor estar no [hotel] Al Mansur, que fica ali a dois passos do Ministério das Comunicações, mesmo porque nós tínhamos que depois que sair do Ministério das Comunicações por razões de perigo, mas nessa noite em que começaram o bombardeamento, quem chegar primeiro à Reuters ou ao tal consórcio luso-espanhol, ou à televisão turca e puder transmitir, entrar em direto nessa noite...”. Eu pensei nisso, naturalmente. E daí, seria útil estar nesse Al Mansur. Só fomos para a Palestina porque de fato houve, depois, praticamente uma ordem para se ir do Al Mansur. Mas isso faz parte.

 

Vicente Adorno: Mas quando você entrou no ar, dizendo que a guerra tinha começado, você não estava utilizando imagens da TV portuguesa e sim, imagens de quem?

 

Carlos Fino: Nossas. Do nosso vídeo fone. Quer dizer, só que em Portugal, além dessas imagens que nós próprios enviávamos, havia também o sinal, o feed, imagem enviada junto pela Reuters, que o cara da Reuters estava...

 

Vicente Adorno: [interrompendo] Sim, mas naquele momento a Reuters não tinha condição de colocar nada no ar. Porque nós estávamos acompanhando por vários monitores.

 

Carlos Fino: Não, mas eles tinham uma câmera que estava 24 horas ligada.

 

Laura Mattos: A questão é que o senhor estava ao vivo na hora, essa que é a diferença?

 

Carlos Fino: Exatamente. Mas em Lisboa havia várias imagens além das nossas. Pelo menos as imagens da Reuters.

 

Vicente Adorno: E quem percebeu primeiro em Lisboa? O espectador da RTP ou o espectador da Reuters, por exemplo? Foi diferente daqui do Brasil?

 

Carlos Fino: Não sei [cruza as mãos]. Foi diferente como?

 

Laura Mattos: A questão não é essa. Será que o telespectador tem essa percepção?

 

Paulo Markun: Bom, a Laura Mattos tem [risos]. Sempre tem. É só você pensar porque uma manchete de jornal... Dar o furo no outro jornal é importante? Porque, no fim das contas, é atrás disso que a gente corre. É atrás da notícia, da primazia, de estar na frente, de informar primeiro o seu leitor. Se o telespectador vai ter ou não...

 

Laura Mattos: É mais do que uma questão de audiência naquele momento. Porque o zapear, ali, não é capaz de...

 

Carlos Fino: [interrompendo] Não, mas isso traz todo o resto. Quer dizer, a RTP, que há dez anos para cá, quando surgiram as [TVs] privadas, ela perdeu para as privadas 50% da audiência, reconstituiu agora a liderança nos noticiários, com essa guerra. Veja como é importante.

 

Jaime Spitzcovsky: Agora, Carlos, queria falar de outro momento importante da sua carreira. Quando eu cheguei à Moscou, no começo dos anos de 1990, um colega espanhol que me recebia, estava descrevendo ali o corpo de correspondentes, e me falou: “Olha, tem um jornalista português aqui, da televisão portuguesa, muito talentoso e também famoso por ser uma pessoa intrépida. Já foi até espancado pela KGB” [risos]. É verdade, é mito ou é fato esse teu enfrentamento com a KGB?

 

Carlos Fino: Qual dessas quatro? [risos]

 

Jaime Spitzcovsky: O enfrentamento com a KGB. Você foi realmente espancado pela KGB?

 

Carlos Fino: Sim, fui em 1982, isso já lá vai muito tempo.

 

Jaime Spitzcovsky: Isso deve ter marcado a sua formação jornalística?

 

Carlos Fino: Não, mas perceba qual foi a situação. Eu pura e simplesmente queria entrar num hotel. Você já chegou nos anos de 1990, mas eu estive lá antes, foi em 1882. E o cara não quis deixar eu entrar, queria talvez receber um suborno. Eu só mostrei para ele [faz gesto de quem mostra uma carteira]: “Eu sou correspondente internacional, tenho direito de entrar”. E aí gerou-se uma altercação na entrada do hotel. É difícil explicar isso porque isso foi num contexto. Aí vem lá de dentro um cara que eu não conhecia de lado nenhum, que não conhecia a mim, não pergunta nada e começa a bater. Eu sou apanhado, levado para as traseiras do hotel e aí fui agredido demais. Eu estive dezessete dias internado na Finlândia por causa dessa brincadeira. Agora, isso foi num contexto em que há já a decrepitude do regime e de física do próprio dirigente, em que havia uma polêmica que envolvia o Partido Comunista Português. Havia reações do Partido Comunista Português, em relação às crônicas que eu enviava de Moscou. Com títulos na primeira página da imprensa comunista a dizer que: “Não fala a verdade” “Ofensa ao povo e aos dirigentes soviéticos”. A gota que fez transbordar o copo foi uma reportagem que eu enviei de Moscou, em que eu dava uma versão, que era a versão oficial, vinha do Pravda [foi o principal jornal da União Soviética entre 1918 e 1991. Foi fundado, originalmente, por Leon Trotsky como um jornal voltado para operários, transformando-se, depois, em voz oficial do Estado soviético], do último encontro entre Brejniev [um dos presidentes soviéticos] e o líder comunista português, Álvaro Cunhal. E essa versão que eu dava, a partir de Moscou, estava em completa contradição com a versão do mesmo encontro que dava o jornal Avant, que é o jornal comunista português. Portanto, foi nesse contexto que essa agressão surgiu. Foi num contexto em que eu era um pouco “la bette noire .

 

Jaime Spitzcovsky: Fisicamente você sofreu mais em Moscou do que em Bagdá?

 

Carlos Fino: Sim.

 

Paulo Daniel Farah: Carlos, no Iraque você testemunhou o fim de um regime ditatorial, mas também viu um massacre cultural. Quer dizer, bombardeios e saques a universidades e museus. Queria que você comentasse um pouco essa possibilidade de que o Bush, o Blair [Tony Blair. Primeiro ministro do Reino Unido entre  1997 e 2007] ganhem o prêmio Nobel da Paz. Você acha que tem alguma lição positiva dessa guerra, há alguma perspectiva positiva para o futuro do Iraque e da região, com uma solução pacífica para a região em geral?

 

Carlos Fino: Eu acho que só o futuro vai mostrar isso, não é? Eu conservo essas imagens como algo que deixam uma mancha sobre essa ação. O fato de não ter havido uma preocupação em segurar o mínimo de lei e de ordem e de proteger esses lugares... Afinal, houve a preocupação de proteger o Ministério do Petróleo, poderia haver também essa preocupação em relação aos museus, não é? Parece que havia um desinteresse completo por isso, como se aquilo não fosse parte da história da humanidade. Para mim, é um dos fatos mais chocantes dessa... Eu acho essa uma mancha indelével sobre essa ação.

 

Vicente Adorno: E também acho que os próprios meios de comunicação já estão chamando a atenção para isso. Hoje, para minha surpresa, eu estava assistindo o noticiário da BBC e o repórter estava dizendo que os iraquianos estavam se queixando, justamente, de que os americanos só pensaram em termos de ocupação, de invasão e não de criar um ambiente para o pós-guerra. Você acha que pode haver uma esperança de que, com essa pressão dos meios de comunicação, a própria BBC, que tem o pé do governo inglês em cima dela e que tem a Inglaterra como aliada incondicional dos Estados Unidos, falou hoje: “É, porque aqui se trata mesmo de uma ocupação, de uma invasão”. Você acha que pode começar haver uma consciência diferente aí? Não que nós, jornalistas, sejamos a consciência do mundo, mas...

 

Carlos Fino: Bom, pode ajudar. Já é significativo também na Times, na última Times que eu li, veio um artigo que é um ensaio perfeitamente contra essa ação que é classificada como uma ação neoimperial, ou neocolonial, de advertir para os perigos de uma posição desse tipo, não é? Se é que é essa a intenção americana. Eu não sei se a influência da mídia pode chegar a esse ponto, eu acho que o que vai determinar certamente alguma coisa é a posição dos próprios iraquianos. O que é que eles vão fazer.

 

Vicente Adorno: E você sentiu que eles estariam dispostos a construir um país diferente? Mas eu me lembro que quando foram libertar um aiatolá [considerado o mais alto dignatário da hierarquia religiosa] xiita, que estava preso fazia acho que dez anos, em prisão domiciliar, uma coisa, perguntaram para ele: “O que o senhor achou de ganhar a liberdade de novo, graças aos americanos”? Ele respondeu: “Saddam Hussein é um mal, mas Bush também é um mal. Eu só confio em Alá”.

 

Carlos Fino: Nós tivemos reportagens que víamos pontos de vista semelhantes a esse, em que as pessoas diziam, sobretudo, que os americanos começaram, na ausência dessa estrutura e dessa força determinada para instaurar uma nova ordem, com regras claras. Isso não existiu, não é? Então, foi essa permanência gerada pelo caos e pela desordem... Eles foram buscar pessoas do antigo regime. Aquilo que a vox populi  já dizia, nas ruas de Bagdá, é que isso, no final, é a mesma coisa, só que sem Saddam.

 

Vicente Adorno: E é pior ainda porque não há uma autoridade central. Não existe ninguém que diga: “Vai ser assim”.

 

Carlos Fino: E as coisas agravaram-se todas porque a situação já era má e difícil devido às sanções das Nações Unidas, para ser franco. Tiravam de um lado, davam por um, davam com uma mão o que tiravam com outra. Porque vinham as sanções que impediam todo o tipo de regeneração da economia, mas depois permitiam, aliviavam um pouco o garrote através do programa do petróleo por comida. A situação já era deficiente. Com essa guerra, as infra-estruturas foram atingidas, portanto, tudo piorou. A situação sanitária, que já era má, ou bastante má, agora é péssima. E assim por diante nas outras cidades. Falta de luz, falta de água potável, falta de medicamentos. Portanto, tudo isso tem que ser superado. Na situação atual é pior porque há menos condições. As pessoas ainda não têm emprego, não recebem salário [pontuando com os dedos], quem paga? Como é que se reconstitui tudo isso?

 

Paulo Markun: Carlos, queria mudar o eixo da conversa, e falar um pouco da tua situação pessoal. Você é casado, tem filhos?

 

Carlos Fino: Sou casado e tenho dois filhos.

 

Paulo Markun: Exatamente. E você, eu também li nessa reportagem da revista Caras, que você falava pouco, de propósito, da sua casa, para não...

 

Carlos Fino: Sim, mas isso é um entendimento que eu tenho com a minha mulher e que essas questões devem ficar reservadas. Devem ser protegidas. Já basta estar nessa situação de jornalista vidente, que é já um contra-senso, não é? [risos]. Aí trazer a mulher e os filhos...

 

Paulo Markun: Não, a pergunta era a seguinte: Como é que você lidou com isso, com esse outro lado, no dia-a-dia do trabalho. Se dava para pensar... Não queria entrar na intimidade do seu lar, não é isso, eu queria saber como é que funcionou lá na guerra. Essa era uma demanda que ficava ou você acabava lembrando disso depois da cobertura do dia, como costuma acontecer...

 

Carlos Fino: Não, claro que isso está sempre presente, quando temos família e filhos. Mas ao mesmo tempo há uma certa tarimba, uma certa experiência nesse tipo de situação e, portanto, nós tentamos às vezes enganar o tempo. Não telefonamos todos os dias, telefonamos de semana a semana, ou de dez em dez dias, enfim. Cria-se essa ilusão que não passou tanto tempo. Não sei se me faço entender... Esticamos o tempo, tornamo-lo um pouco mais elástico, ou mais comprimido, se quiser.

 

Paulo Markun: [interrompendo] Há uma, desculpe interromper, há uma foto que a Folha de S. Paulo publicou, uma curiosa foto, de um detalhe do apartamento do Peter Arnet em que havia um bonezinho da National Geographic [revista que aborda assuntos ligados à geografia, cartografia e exploração] e uma garrafa de uísque. O uísque ajuda nessa hora?

 

Carlos Fino: Bom, eu não sou agnóstico, mas também não sou praticante [risos]. Mas às vezes ajuda, não é? Por exemplo, quando chegaram lá os marines, o Nuno, um patrício que é o câmera, tinha o olho azul e um dos marines deu-lhe um emplastro qualquer para tentar ajudar, e o Nuno disse: “Logo à noite, se você quiser, pode subir lá no 1707 [número do apartamento], tem lá uma garrafinha de Johnie Walker [marca de uísque]. Passei a publicidade. E a verdade é que, às tantas da noite, bateram à porta. Era o marine mais o companheiro dele que vieram tomar um copo conosco. Nós entramos em direto [ao vivo] nesse [dia], fizemos outra vez, tudo correu bem nessa reportagem, graças a Deus. E até isso. Na noite da chegada dos marines, tínhamos um marine no quarto e entramos em direto para a RTP, tomando uísque com o marine, e oferecendo-lhe queijo da serra.

 

Demétrio Magnoli: Você não foi para a cama dele, mas quase que ele foi para a sua? [risos]

 

Carlos Fino: Nós começamos a reportagem sobre..

 

Vicente Adorno: [interrompendo] E também a imagem do Bush sendo maquiado, se preparando para...

 

Carlos Fino: Sim, isso também marcou. Mas nós começamos esse direto [ao vivo] com os marines dizendo que não estávamos a celebrar, porque não era papel dos jornalistas estar a celebrar, mas estávamos a compartilhar um momento de descanso.

 

Paulo Markun: Agora, no entanto, quando os marines tiveram no hotel Palestina, invadindo e vasculhando diversos quartos, se não me falha a memória, a imagem que aparece do quarto sendo vasculhado é onde você estava.

 

Carlos Fino: Também nos tocaram a porta, sim. Já às sete da manhã, fui despertado e isso foi completa surpresa. Também não percebi essa ação porque essa ação é programada para as câmeras, aquilo é filmado do início. Eles vêm ao hotel, são filmados na escada, no corredor e depois entrando nos quartos. Isso, também, é uma outra encenação que, até hoje, não percebi, mas que virou parte desse número, não é? Eu estava deitado e, de repente, tem uns caras mascarados, com M16 [marca de arma] apontadas, com luzes e: “Where is the guns”? “Mas quais guns, eu sou jornalista, não sou pistoleiro”, não é?

 

Vicente Adorno: Além disso e dos telefonemas da TV Cultura que acordavam você de madrugada, a gente pede desculpa por isso, você tinha condição de dormir um pouquinho?

 

Carlos Fino: Sim, o Brasil era puxado, porque era assim por volta das três da manhã, era o prime-time [horário nobre] aqui. Mas a partir do momento que eu tinha recebido essa solidariedade do povo brasileiro, eu não podia recusar. Não, esse foi um ponto de honra. E qual era a pergunta?

 

Vicente Adorno: Se você dormia bem durante o bombardeio?

 

Carlos Fino: Dormia pouco. Dormia pouco e inquieto [gesticulando]. Sobressaltado. Quer dizer, sabe que isso cria... Ainda hoje, deixar cair um som qualquer, mais cavo, isso ainda me sobressalta. Quer dizer, está no sistema nervoso. Nós não dormíamos com o som das sirenes e com o som dos bombardeamentos, não. Não era possível. Havia um repouso, mas não havia um descanso efetivo.

 

Paulo Markun: Nosso tempo acabou. Uma última pergunta: Você faria tudo de novo?

 

Carlos Fino: Sim, em termos de ir outra vez, de cobrir os conflitos, eu acho que sim. Quer dizer, eu volto a dizer a mesma coisa que já disse. Eu sou um repórter, é o que eu sou, essencialmente. E acho que é o meu destino. Já não posso fugir, com essa idade. Acho que ia fazer outra vez. Há um imperativo categórico disso. Enquanto eu estiver nessa profissão. Se tiver que ir, eu vou.

 

Paulo Markun: Carlos, muito obrigado pela sua entrevista para nós da TV pública, da TV Cultura. Foi realmente um privilégio poder transmitir o material que você nos forneceu, que a RTP nos forneceu, desde Bagdá e, de alguma forma, informar o telespectador, que é esse o compromisso da TV pública. Nós voltamos na próxima segunda feira. Eu agradeço aos participantes, sempre às 10 e meia da noite, com mais um Roda Viva. Até segunda, boa semana!

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