Paulo Markun: Boa noite. Ela escolheu um lado difícil do jornalismo. Deixou o conforto da Noruega para ser correspondente de guerra e passou mais de 10 anos cobrindo conflitos na Rússia, em Kozovo, no Afeganistão e no Iraque. Seus relatos e reportagens sobre guerras viraram literatura e já renderam 3 livros. Um deles, traduzido em mais de 30 países, foi campeão na lista dos mais vendidos do New York Times. O Roda Viva entrevista esta noite a jornalista e escritora norueguesa Asne Seierstad, autora de O livreiro de Cabul e de 101 dias em Bagdá, seu segundo livro que chega ao Brasil. Asne Seierstad foi a primeira mulher a cobrir os conflitos no Afeganistão, em 2001, e também a Guerra do Iraque, em 2003. A experiência com esse trabalho jornalístico, e com a literatura que resultou disso, traz ao Ocidente uma nova visão crítica da vida, da cultura, das dificuldades e da complexidade do mundo islâmico. No caso, das sociedades no Iraque e no distante Afeganistão.
[Comentarista com vídeo]: Os ataques de 11 de setembro de 2001 e a guerra ao terror lançada na seqüência pelos Estados Unidos atraíram as atenções para o Afeganistão, onde estaria escondido Bin Laden, tido como responsável pelos ataques contra os americanos. Zona de transição de movimentos migratórios há 4 mil anos, o Afeganistão é resultado da mistura de vários povos e civilizações asiáticas. Nesses milênios, passou por uma infinidade de lutas, dominações e guerras, até ser ocupado pelos ingleses, no século XIX, e depois pelos soviéticos, no século XX. Pobre e cheio de dificuldades, viveu as últimas décadas envolvido nas disputas entre facções étnicas e tribais. Em 1996, foi dominado pelo Talibã, milícia sunita, que implantou um regime fundamentalista islâmico no país, após uma guerra civil que fez 1 milhão de mortos e mais de 2 milhões de refugiados. Em 2001, o Talibã foi derrubado e o Afeganistão voltou a ser invadido, dessa vez pelos Estados Unidos, que tentavam capturar Bin Laden.
É esse mundo de conflitos e de complexidade cultural que a jornalista Asne Seierstad quis conhecer mais de perto. Ela entrou no Afeganistão em 2001, mesmo ano da invasão americana. Ao cobrir o conflito, ela conheceu um comerciante de livros de Cabul, a capital afegã, e foi morar na casa dele por 3 meses, conviveu com a família e circulou pelas ruas vestida com a burca, túnica que cobre o corpo e o rosto das mulheres afegãs. Dessa experiência, em 2002, surgiu O livreiro de Cabul, um relato crítico da vida e da sociedade islâmica fundamentalista. Aspectos da história que não aparecem nos noticiários da guerra. No ano seguinte, 2003, ela chegou ao Iraque, outra terra antiga, origem da primeira civilização do mundo, a Suméria, e com uma história de 5 mil anos de dominações e guerras.
Durante 101 dias, entre os meses de janeiro e abril de 2003, Asne Seierstad trabalhou em Bagdá como correspondente de guerra. Ela fez reportagens sobre os acontecimentos no país antes, durante e depois dos ataques americanos e britânicos. Abordando mais a vida do país que as frentes de batalha, ela trouxe para seu novo livro o pensamento dos iraquianos, a censura da era Saddam Hussein, o desabafo de quem se livrou da opressão do ditador e a indignação dos que viram o país ser invadido e se banhar em sangue numa luta que ainda se mostra distante de alguma perspectiva de paz.
Paulo Markun: Para entrevistar a escritora norueguesa Asne Seierstad convidamos Mamede Mustafa Jarouche, professor de língua e literatura árabe da USP e membro do ICA (Instituto da Cultura Árabe); Eduardo Simões, repórter do caderno "Ilustrada" do jornal Folha de S. Paulo; Francis Henrik Aubert, professor de teoria da tradução da USP e tradutor de língua norueguesa; Cristiane Costa, editora chefe da revista Nossa História e do Portal Literal; Cristina Pecequilo, cientista política e professora de relações internacionais da Unesp; Oscar Pilagallo, editor da revista Entre Livros; e Vicente Adorno, editor chefe de documentários da TV Cultura e comentarista internacional da Rádio Cultura FM. Temos também a participação do cartunista Paulo Caruso, registrando em seus desenhos os momentos e os flagrantes do programa.
Boa noite, eu queria começar com uma pergunta um pouco de almanaque, mas que me parece inevitável, na medida em que ao ler seus livros eu vi a grande quantidade de personagens femininos que não são ficcionados, são repórteres, jornalistas, correspondentes de guerra em Bagdá e no Afeganistão. Eu queria saber, com o perdão do machismo, se é que existe, o que é que vocês vão fazer lá?
Asne Seierstad: É uma questão de fazer parte do nosso tempo e de fazer parte do mundo. O mundo, desde que eu cresci, tornou-se muito violento, com muitas guerras. Ficar sentada na pacífica Noruega ou ficar esquiando na pacífica Noruega não me satisfaz. Minha formação me leva a fazer parte do mundo e a ser solidária com outros povos. Minha primeira guerra, na Chechênia, há quase 12 anos, começou com uma coincidência. Eu estava em Moscou e tentei cobrir minha primeira guerra estando em Moscou, mas, com a guerra, sempre temos a propaganda e as mentiras. Você tem de estar no local se quiser contar o que está acontecendo.
Paulo Markun: Minha objeção não é especificamente às jornalistas que fazem esse tipo de cobertura, mas aos profissionais de imprensa como um todo. É que eu não consigo, realmente, compreender qual é a possibilidade que a gente tem - nós enquanto jornalistas - de estando em um conflito, conseguir encontrar a verdade.
Asne Seierstad: Pelo menos ficamos mais próximos da verdade se estivermos presentes, usando os olhos e os ouvidos. Eu acho, e minha experiência comprova isso, que se os militares, o exército, os generais ficassem sozinhos nas guerras, só ouviríamos mentiras, seria a versão deles. As forças americanas em Bagdá sempre tentam comunicar sua versão, até que haja um conflito e para que eles corrijam essa versão. Acho muito importante estar presente. Hoje, no Iraque, há um grande perigo, porque mal podemos ir lá, é perigoso demais. Isso significa que muitos relatos se perdem.
Oscar Pilagallo: Asne, eu gostaria de perguntar com relação ao seu livro, O ivreiro de Cabul, que é um grande sucesso aqui no Brasil e em outros países. Talvez a principal crítica que tenha sido feita ao livro é que você, como jornalista ocidental, teve a chance de conhecer muito de perto a cultura do Afeganistão por ter morado na casa das pessoas e acabou, não exatamente julgando, mas vendo essa realidade através dos olhos de uma européia, pelos valores da Europa. Eu sei que você já respondeu publicamente essa questão, mas a minha pergunta é a seguinte: o jornalista, sobretudo o que viaja para outros países, ele não deveria se comportar mais como um etnólogo, que tenta observar e compreender uma outra sociedade de acordo com seus próprios valores, e não tentar impor seus valores próprios?
Asne Seierstad: Não acho que eu impus meus valores ocidentais. Não com as pessoas que eu entrevistei. Eu não expressava minhas idéias e isso era muito importante e isso foi importante pra mim. Quando morei com aquela família eu nunca dizia o que pensava. Não fui ao Afeganistão mudar uma família, mas descrever uma família. Se falei demais, pode ter sido pela generosidade deles, pela hospitalidade, que pode ter mudado algo na minha presença. Eles podem ter pensado: “Asne disse para fazermos assim.” Eu sempre ficava quieta, embora eu ouvisse coisas hilárias, na minha opinião. Se você perguntar se eu acho que deveria... O jornalismo é uma profissão. Às vezes sou julgada por antropólogos sociais, por etnólogos e outros, mas isso também se chama reportagem. Se fôssemos usar métodos de outras profissões, a reportagem se perderia. Você falou de valores europeus. Sim, eu tenho valores europeus. Você quer que eu escreva com valores paquistaneses, iraquianos ou brasileiros? Pensei muito nisso, mas, como jornalista, você não pode se afastar da sua formação, da história da sua criação. É melhor aceitar isso. O meu sonho é ver livros escritos por homens ou mulheres afegãos sobre isso. Se lermos apenas os livros de jornalistas ocidentais, não teremos acesso a tudo, mas já é alguma coisa.
Cristiane Costa: O fato de ser mulher, você acha que influenciou tanto a idéia e a concepção do livro? Porque tive essa idéia, porque o olhar feminino da guerra é um olhar mais voltado, talvez, para o cotidiano, para as pessoas, para as situações das famílias e menos para o conflito, para a guerra em si, quantos morreram e quantos são feridos. Você acha que seu livro reflete esse seu olhar feminino de certa forma? Se você fosse um homem, talvez você não fizesse?
Asne Seierstad: Para começar, um homem jamais escreveria esse livro, porque ele não seria convidado a viver com a família. Se um homem ocidental, ou até mesmo um afegão, morasse com as irmãs e filhas solteiras do livreiro elas nunca se casariam. Foi o que eles me disseram. Elas podiam aparecer no livro, mas um ocidental não poderia entrar na casa. Só uma mulher poderia ter escrito esse livro. Já me perguntaram se é uma vantagem ou não ser mulher. Em países muito rígidos é uma vantagem porque você tem acesso aos dois universos. Esses paises são tão divididos que existe o universo dos homens e das mulheres. Temos acesso aos dois, ao passo que o homem só tem acesso ao mundo masculino. Quanto à visão feminina das coisas, acho que existem autores muito sensíveis também, como meu herói, Ryszard Kapuscinski [jornalista e escritor polonês (1932-2007), fez reportagens sobre guerras na África, Ásia e Américas], um autor polonês. Ele tem uma espécie de humildade que eu procuro alcançar. Não consigo escrever como ele. Acho que fico atenta a detalhes, mas não sei se isso é feminino.
Eduardo Simões: Uma das confusões que a gente tem quando termina de ler O livreiro de Cabul é que a sociedade afegã, não importa quem esteja no poder, ela mantém nas famílias os valores patriarcais machistas. Eu queria saber: você, como mulher, em que isso ajudou você, na sua investigação, na sua apuração? E no que atrapalhou? Queria também que você falasse da sua experiência usando a burca. Parece que foi uma coisa que te ajudou em alguns momentos.
Asne Seierstad: Para mim a burca tem dois aspectos. Primeiro, foi um grande alívio, porque eu era estrangeira, não tinha aparência de afegã. Naquele país isso causaria olhares constantes, uma atenção constante. Com a burca, pela primeira vez, eu assumi uma posição em que poderia observar sem ser observada. E, pela primeira, o que é o sonho de qualquer repórter, eu deixei de ser notada. Como repórter você deve verificar se a situação não está modificada, se é o que está acontecendo mesmo. De burca acompanhei as mulheres da família e os homens da família também, vendo a situação exatamente como era. Eu era tratada como uma afegã, sempre no fundo do ônibus, ou sentada no porta malas do táxi. Coisas que não aconteceriam para mim como jornalista ocidental, porque me ofereceriam o melhor lugar. Mesmo odiando você, eles te oferecem o melhor. Então, recebi esse tratamento verdadeiro. Além disso, tem a sensação que não foi boa. Era meio pesada, eu tropeçava e caía, não era confortável, era quente, mas me fez entender o alívio que é tirar a burca. Isso você só sente quando usa a burca o dia inteiro. Para descrever isso no livro foi muito importante usá-la e tentar viver como elas.
Cristina Pecequilo: Eu queria voltar um pouquinho à primeira pergunta, à questão do papel do correspondente de guerra hoje. Eu acho que nós vivemos hoje, principalmente no Oriente Médio, um ambiente politicamente muito carregado. De que maneira esse ambiente politicamente carregado, dos governos ocidentais pressionando os próprios governos do Oriente Médio, pressionando as suas opiniões publicas e até mesmo a imprensa, de que maneira isso tem afetado o papel do correspondente de guerra? Você se sente mais limitada trabalhando hoje do que você se sentia há alguns anos atrás? Existe algum tipo, não de censura, mas existe algum tipo de pensamento mais difícil de você expressar? De que maneira você se sente como correspondente de guerra nesse ambiente carregado?
Asne Seierstad: Não sinto nenhum tipo de censura. Estou falando só de mim, mas uma coisa mudou para os jornalistas, que foi a questão da segurança. No conflito atual, os jornalistas são alvos para serem seqüestrados ou como troféus. Grande parte dos jornalistas não pode ficar 10 minutos em Bagdá, porque em 10 minutos alguém vai avisar que você está na rua e alguém vai seqüestrar você. Talvez essa pessoa não corte a sua cabeça, mas vai levar você a alguém. Você é o alvo no Afeganistão e em outros países muçulmanos. Os veteranos contam que, no Vietnã, na Coréia, eles sentiam uma certa segurança. Numa batalha eles eram protegidos pelos dois lados. Isso mudou. Quanto à censura, a única coisa que lembro, e que descrevi em 101 dias, foi quando acompanhei um bombardeio que matou muitas crianças. Era horrível ver, mas os parentes de uma menina pediram-me para fotografá-la. Consegui a autorização, fui ao necrotério, o rosto dela era lindo, mas o corpo estava dilacerado. Mandei a foto do rosto, que lembrava o rosto de uma madona cristã. Então, meu editor escreveu: “Não podemos publicar isso. Não publicamos fotos de crianças mortas”. Eu queria muito que mais alguém a visse antes que ela fosse enterrada. É um tipo de censura. Por que não mostrar crianças? A guerra também mata crianças. Fazer guerra é matar pessoas. Esquecendo isso, vamos ver a guerra como ataque, mas não como um lugar que sofre o ataque. É assim na mídia americana censurada, que não mostra os caixões e as pessoas mortas. Acho que foi a única censura que eu sofri. Acho que cada jornalista tem experiências diferentes.
Paulo Markun: Eu li o seu livro
101 dias em Bagdá e ele impressiona muito pelo retrato, para a gente, do antes. O que era o clima pré-início da guerra. Agora, a impressão que eu tive... Duas coisas me chamaram a atenção. A primeira, foi o esforço que você fez para voltar a Bagdá depois de estar fora de lá, quando obviamente o risco era alto. E a segunda questão é a descrição muito sucinta que você faz sobre a derrubada da estátua do
Saddam Hussein que, segundo as versões que eu li na imprensa, foi uma ação deliberada dos americanos de criar um clima e justificar aquela imagem simbólica. Você chegou a notar isso lá? Não descreveu ou não notou? E por que, afinal, você resolveu voltar para Bagdá?
Asne Seierstad: Eu decidi voltar... Bem, fui expulsa na primeira vez, mas, 2 dias antes do começo da guerra, eu consegui meu visto. Quando voltei, vi os comboios de jornalistas partindo, gente dos canais americanos, CNN, ABC, NBC, CBS
. Recebi muitos avisos. Meu pai me mandou um e-mail com 12 motivos lógicos para eu sair de lá. Essa guerra não é sua, você pode não conseguir mandar a reportagem. A lógica para sobreviver era ir embora, mas alguma coisa me segurou lá, não sei explicar o que foi. Eu simplesmente não queria sair. Eu queria estar com os civis iraquianos, mas era uma coisa mais pessoal. Eu queria ver o fim do regime de
Saddam, porque eu achava que acabaria, mas eu também achava que aquilo tudo era paranóia. Nos jornais ingleses e americanos todos os jornalistas foram aconselhados a ir embora. Houve reuniões com o Pentágono, ou com o departamento de relações exteriores inglês, que recomendaram retirada de todos os jornalistas porque seria uma guerra sem precedentes. Foi uma ameaça para fazê-los sair. Eles não queriam que nenhum jornalista ficasse. Primeiro, não queriam que jornalistas morressem. Segundo, não queriam a presença estrangeira para ver as conseqüências da guerra. Eu pensei: essa cidade tem 500 mil habitantes. A maioria vai sobreviver. Eu achei que seria um dos sobreviventes. Quando o prazo venceu, eu ainda estava lá pensando: tomara que dê tudo certo.
Paulo Markun: A segunda parte da pergunta...
Asne Seierstad: A segunda pergunta é sobre a queda da estátua. Sim, eu estava lá. Foi num momento em que... Foi um dos dias mais assustadores. Uma coisa são as bombas. Você não consegue se proteger delas, mas, ali, eu vi tiros de todos os lados, vi mísseis e balas, os americanos se aproximando e uma certa resistência. Eu estava no meu quarto escrevendo, ouvi o barulho e vi que eram os tanques americanos invadindo Bagdá. Eu me senti aliviada, achando que tinha acabado. Desci e vi os soldados cercando a praça. Eu estava com três amigos iraquianos, uma mulher e dois homens vendo a estátua cair. Demorou uma ou duas horas porque era bem pesada. Olhei para os meus amigos e os dois rapazes estavam chorando. Um deles me disse que era um choro de alegria por finalmente se livrar do
Saddam, mas o outro estava furioso, aquilo era uma humilhação. Durante o regime de
Saddam, eles nunca falavam de política, porque não se podia confiar em ninguém. O rapaz que chorou de alegria era
xiita. O que estava bravo era
sunita. Eles eram muito amigos, eram vizinhos, estudaram juntos, e hoje um deles trabalha para os americanos e o outro apóia os insurgentes e os ataques suicidas. Os dois não se falam mais. Acho que aquele foi o começo do que vemos hoje e os dois simbolizavam uma união que existia com
Saddam, mas depois cada um seguiu um caminho, ambos violentos: os americanos e os insurgentes. A terceira pessoa, a mulher, ficou ali imóvel, não queria dizer o que estava sentindo, mas depois me disse que ela é o tipo de mulher que precisa suportar tudo. Na guerra, ela não pega uma arma e escolhe um lado. Alguém precisa cuidar das crianças, alguém precisa fazer as tarefas domésticas, alguém precisa fazer a vida continuar, mesmo na guerra. Esses três personagens que eu acompanhei são personagens simbólicos no momento da queda da estátua.
Paulo Markun: Mas o que eu menciono é o fato de que aquilo foi uma ação deliberada de marketing norte-americano, no sentido de demarcar a derrocada do regime, e que nós jornalistas corroboramos e reafirmamos na medida em que transformamos aquilo numa cena, como a da Praça da Paz Celestial [referindo-se ao protesto da Praça da Paz Celestial, em 1989, na China], onde não foi marketing. Onde um indivíduo enfrenta um tanque de guerra, uma fileira de tanques de guerra, e nós apenas registramos.
Vicente Adorno: Tem uma contradição. Você fala dessa perseguição, ou dessa paranóia de tirar os jornalistas de lá, e no fato de que via aqui, por exemplo, todo dia um repórter da BBC dentro do caminhão do comandante da operação que estava entrando no sul do Iraque e também reportes da CNN entrando com outra divisão do exército americano. Até se criou um termo que os jornalistas americanos usavam: "i
n bed", ou seja, que eles estavam na mesma cama com o exército [alguns correspondentes foram chamados de
embedded, que significa engajados. No entanto, o trocadilho "i
n bed" foi utilizado como crítica entre os que consideravam que havia exagero na atitude dos correspondentes]. Ou seja, tinham uma relação extremamente promíscua, digamos assim.
Paulo Markun: Dormindo com o inimigo.
Vicente Adorno: Não há aí uma discrepância? Ou esse tipo de comportamento mudou em função das circunstâncias da guerra?
Asne Seierstad: Se entendi direito é a questão de estar com os soldados. Sim, isso mudou. Agora essa é uma das únicas formas de trabalhar em Bagdá. O jornalista ocidental precisa da proteção dos soldados. Ao ler jornais ingleses, ou americanos, é comum encontrar um nome diferente, não sei se é iraquiano, mas pode ser um jornalista iraquiano, que sai e corre o risco de estar nas ruas, enquanto os ingleses e americanos estão protegidos. Mas eles escrevem juntos a matéria. Não acho errado, como princípio, estar com os soldados, mas eu preferi ficar com a população civil, porque acho que isso é fundamental para tentar entender a sociedade iraquiana, as tensões, a mentalidade, o que acontece entre as etnias e entre os grupos religiosos. Acho importante estar com os civis, mas eu também escolhi não estar lá agora. O correspondente de guerra precisa pesar a matéria que vai conseguir e o perigo. Na guerra, o peso da matéria era maior. Hoje a matéria e o perigo... Que tipo de matéria eu poderia fazer falando com militares americanos? E o perigo continua. Então, decidi não ficar lá.
Vicente Adorno: Você nunca teve acesso, então, pra falar com algum chefe do outro lado, digamos, como o Moqtada al-Sadr [radical
xiita].
Asne Seierstad: O lado iraquiano? Não, eles tinham sua própria versão. Durante a guerra, você quer dizer? Eles faziam coletivas, mas era uma única versão. Era tudo decidido antes. Minha fonte eram mesmo os civis. Você pode tentar falar com os generais iraquianos, vai ficar horas esperando uma entrevista que não vai conseguir. Eu ficava mais com as pessoas, observando o cotidiano. Cotidiano não, fica parecendo uma coisa corriqueira, mas eu ia aos hospitais, ia ver os cemitérios, procurava ver como era a sociedade.
Francis Henrik Aubert: Eu queria voltar um pouquinho ao
Livreiro de Cabul porque, como ficou conhecido em todo o mundo, o livro, ao mesmo tempo que fez um grande sucesso, levantou algumas questões de natureza ética. Acompanhei várias situações em jornais noruegueses e era perceptível que havia todo um dilema ético que estava sendo colocado em 2 níveis. Um princípio geral: até onde em nome da busca da verdade se pode entrar na intimidade de uma família? Isso é uma coisa. E um segundo, mais específico: dada a natureza da sociedade islâmica afegã, a revelação de certas coisas não colocaria em risco a integridade física, moral etc daquela família? Não quero, obviamente, retomar toda a polêmica que houve, mas eu queria ouvir de você, hoje, como é que você sente esse problema, ou esses 2 problemas éticos.
Asne Seierstad: Pensei muito sobre isso e minha resposta é em muitos níveis. Para começar, fui convidada para viver com a família para escrever um livro sobre essa família. Não falo o idioma deles. Então, tudo foi traduzido para mim. Conversas foram reconstituídas entre eu e as outras pessoas. "O que ela disse? O que ele disse?" É a versão deles que eu transcrevo. Todas as entrevistas foram traduzidas para mim. Nunca fiquei escondida, ouvindo conversas secretas. O livro só foi possível com a colaboração deles. Quanto à questão de ser muito próximo da intimidade, concordo com o livreiro Shah Mohammad Rais [chefe da família afegã que recebeu Asne], algumas coisas foram íntimas demais. Posso citar um episódio. Um dia, fomos ao hamam [tradicional banho público Afeganistão] e todas as mulheres estavam muito felizes por isso. Não entendi porque, mas fui também. Fomos com aquelas burcas sujas e fétidas, chegamos ao hamam, todos tiraram a roupa, tiramos a burca, entramos na sauna, foi muito bonito. As meninas lavavam o cabelo da mãe, todos estavam felizes e aliviados. Mas, para mim, foi um momento de felicidade, ficamos horas lá, mas depois voltamos às burcas malcheirosas. Eu descrevo isso no livro. Para mim, foi um momento de liberdade. Então, vieram as críticas. "Como você pode descrever o corpo nu de uma mulher que usou burca a vida inteira?" É verdade, eu concordo com ele. Como pude fazer isso? Foi errado, mas especialistas afegãos leram o livro e cortaram muita coisa. Nem sei dizer quanta coisa eu tirei. Aconteceu muita coisa que eu não descrevi. Nesse caso, eu concordo mesmo. Deveria ter tido mais cuidado. Para mim, era um trecho muito bonito do livro. Para o livreiro era feio. Não se descreve um corpo nu. Foi assim nesse episódio, alguns outros eu poderia ter omitido. Em vez de dizer: "ela era parente distante. Foi morta pelos irmãos, que acharam que ela tinha sido infiel." Em vez de dizer que era parente, eu deveria ter dito que eles tinham ouvido isso, mas não eram parentes. Mudei de parente para vizinha. Melhorou um pouco. Não sei se a versão daqui traz vizinha ou parente. Há muitas coisas que... Teria sido possível uma jornalista norueguesa ir ao Afeganistão - e são dois países extremamente diferentes em termos econômicos, em termos de moral e liberdade - teria sido possível fazer isso sem o risco de cometer erros? Conseguimos acertar sem tropeçar e cair algumas vezes? Eu concordo. Algumas coisas poderiam ser menos íntimas, mas é questão de detalhes. Eu não eliminaria o quadro geral ao qual fui convidada e sobre o qual escrevi.
Mamede Mustafá Jarouche: Duas questões. Primeira: no
Livreiro de Cabul você descreve sentimentos, descreve pensamentos. Eu queria saber em que medida esse trabalho, se você chegou a refletir a respeito das fronteiras entre a literatura e o relato jornalístico propriamente dito. Você entra, você produz personagens, você constitui personagens com profundidade. Essa é uma questão. A outra é: a gente sai da leitura do livro com uma sensação de sujeira, de que aquela é uma sociedade suja, como se você tivesse estado dentro dela. É uma coisa muito desagradável a descrição da burca, de como é ruim aquilo. Eu penso assim: em que medida, se você chegou a refletir, o seu livro, talvez de alguma maneira, não se alimente e não alimente estereótipos a respeito da inferioridade oriental, na medida em que, por exemplo, ele pode ser pensado como uma generalização de todo o mundo árabe, de todo o mundo muçulmano?
Asne Seierstad: Acho que há uma diferença entre o jornalismo puro e esse tipo de livro de não ficção, um documentário dramático. São muitos nomes, ninguém achou o nome certo para esse tipo de texto. Optei por escrever assim porque o jornalista costuma se pôr na situação e descrever. Acho que isso encobriria as pessoas, mas eu queria uma ligação direta do leitor com os personagens. A identificação não deveria ser comigo, mas com eles. Com relação aos pensamentos, que nunca escrevemos em jornais, um personagem caminhando na rua e pensando, escrevi o que eles me disseram que estavam pensando. O personagem desce a montanha e me diz que está com medo. Ou ele me conta depois no que estava pensando. É tudo baseado em fatos.
Mamede Mustafá Jarouche: Mas não é um objeto de seleção? Isso que era levado a você certamente era objeto de uma seleção. Certamente eles sentiam milhares de coisas. Entre esses milhares de coisas que os personagens que estavam com você sentiam algumas eram levadas a você outras não. Quer dizer, houve da parte deles uma espécie de seleção que chegou até você. Em certa medida eles também te levaram a escrever o que você escreveu. É essa questão que eu coloco pra você, na medida em que o texto se propõe como um retrato fiel de um lar afegão.
Asne Seierstad: Mas jornalismo é seleção. É a palavra principal em jornalismo. É preciso escolher. Como seriam os jornais se tudo tivesse de ser contado? Não teríamos espaço. Seriam milhares...
Mamede Mustafá Jarouche: Mas a seleção não foi sua, a seleção foi deles.
Asne Seierstad: Dos dois. Eles escolhiam o que me dizer e eu, como jornalista, podia escolher. Pode perguntar a qualquer jornalista. Cabe a mim escolher o que estará no livro, o que eu julgar importante, o que for essencial. Daí a pergunta dele [dirigindo-se a um dos entrevistadores] sobre abrir mão da minha formação. Pode ter sido a visão norueguesa ou feminina, de quem quer que eu seja. Por isso precisamos de diferentes pessoas em jornalismo, precisamos que os afegãos escrevam seus livros, precisamos apoiar a formação de jornalistas no Afeganistão, de escritores, de escolas em geral. Não tenho resposta melhor que essa, mas fiz a melhor seleção que eu pude, escolhendo o essencial, como em meus livros de jornalismo.
Paulo Markun: E a segunda parte da questão a respeito do...
Asne Seierstad: Sim. Era sobre... Sim, preconceitos.
Mamede Mustafá Jarouche: Eu coloco isso porque, veja, uma das revistas que a entrevistou "As mulheres objeto” [referindo-se ao título de uma matéria]... É o que coloca a mulher assim... Quer dizer, 50% da população humana com ódio visceral de toda a prática muçulmana. É como se generalizasse todo o Afeganistão para todo o conjunto do mundo muçulmano. É essa questão que eu proponho pra você.
Asne Seierstad: Tem mais a ver com a crítica do que com o livro. Grande parte dos leitores sabe que é um livro sobre uma família do Afeganistão. Acho que os leitores, e espero isso deles, quero que eles saibam, acho que eles não vão pensar que todo o mundo muçulmano é assim. Eles têm sabedoria para pensar: "Essa é uma família sendo descrita por uma jornalista". Com relação aos preconceitos, quero dar o exemplo da reação de quem seria o meu leitor mais sincero, que são as mulheres afegãs. Muitas delas leram o livro e elas se dividem em suas opiniões. Primeiro, o lado positivo. Há muitas afegãs na Noruega e na Suécia. Elas me ligaram e me agradeceram pelo livro. Elas disseram: "Foi como ler sobre a minha família". Uma delas me disse: "Como você pôde escrever de um jeito que eu sentia que era a minha casa?" Elas me agradeceram por trazer o assunto à tona. As afegãs talvez sejam as pessoas mais oprimidas do mundo, por causa da pobreza e da realidade afegã. Acho que devemos respeitá-las em vez de dizer: elas sofrem preconceito. Outras afegãs disseram mais ou menos o mesmo que você. Que esse livro não demonstra respeito pelas afegãs, que elas são apresentadas como analfabetas e algumas não são, que são apresentadas como submissas. Perguntaram-me por que não escolhi mulheres que contestassem mais, por que escolhi mulheres fracas. Eu estava com uma família e não podia mudar isso. Ouvindo as críticas das afegãs, eu notei uma diferença. São mulheres que vivem no Ocidente e era diferente quando elas vieram. As que reconhecem o problema vieram há poucos anos e viveram sob o regime do
Talibã. As que criticaram o livro vieram durante a invasão soviética, antes da invasão, entre os anos 1970 e 1980. Elas moram no Ocidente há 25 anos, vieram bem jovens. Elas se lembram do Afeganistão de outro jeito, como um lugar bonito e limpo, com gente instruída, com mulheres bem vestidas, professores, universidades e debate intelectual. Elas acham que eu as apresentei de maneira muito baixa, mas depois de quase 30 anos de guerra, o país está destruído e poucas mulheres protestam. Essa é a diferença entre jornalismo e livros. No jornalismo, procuramos coisas especiais."Vamos procurar mulheres que protestam." Eu poderia encontrá-las, mas num livro sobre a vida cotidiana, a maioria das mulheres nunca ouviu falar de algum grupo que possa dar alguma ajuda a elas.
[intervalo]
Paulo Markun: Eu queria perguntar o seguinte. Se eu não estou enganado, jornalista gosta de falar muita coisa pra muita gente e a televisão é o maior veículo pra fazer isso. Entretanto, na televisão você não tem o poder que existe no texto, em que você reconstrói, por exemplo, o que a pessoa está pensando. Na televisão, ou a pessoa te diz o que está pensando ou você pode até dizer que ela pensou tal coisa, mas isso não vai alterar nada. Em qual dessas duas áreas - você opera nas duas - você se sente mais à vontade?
Asne Seierstad: Acho que... Bom, eu prefiro livros. Estou na TV, então, não deveria dizer isso, mas acho a televisão meio superficial. A televisão é mais, exceto em alguns debates, mas... É uma mídia para emoções, não para informações. Mostrar uma criança na guerra é uma coisa que emociona, mas para escrever sobre o que acontece de fato você precisa de livros. Quando alguém vê o noticiário, de quanto vai se lembrar depois? Aprendi muito na televisão. Para fazer reportagens, você aprende a se estruturar, porque o tempo é muito limitado, mas depois de trabalhar alguns anos na TV, eu queria pensamentos mais elaborados. Acho que precisamos das duas coisas, mas a grande sorte no jornalismo é tempo. É depender do tempo. Isso é precioso e só é possível em livros, talvez em documentários longos, para se aprofundar.
Oscar Pilagallo: Você, como correspondente de guerra que já esteve em várias guerras, escreve fatos que você testemunha e chega tão perto de alguma coisa que realmente é relevante para quem está tão longe desse cenário. Mas, ao mesmo tempo, você... Essa é uma critica que se faz muito ao correspondente de guerra, ele está vendo aquela árvore lá, mas ele perde a noção, a perspectiva do geral, perde a noção da floresta, embora veja a árvore especificamente. Eu queria saber: esse é um tipo de problema que você enfrenta ao enviar despachos? Quando você faz esse tipo de viagem e depois quando você recompõe isso em livro, você sente que naquele dia houve uma deficiência no seu relato por você eventualmente não ter uma noção geral do que estava acontecendo? Porque numa guerra as coisas acontecem em níveis diferentes. Uma coisa é você ver o que está acontecendo num massacre, outra coisa é o que está acontecendo em nível de bastidor. E é muito difícil pra um correspondente abarcar tudo isso. Como é que você lida com essa dificuldade?
Asne Seierstad: Sofri as conseqüências disso que você citou. Quando eu estava em Bagdá, disse aos editores que só escreveria sobre o que visse em Bagdá. O que acontecia no deserto, a centenas de quilômetros, eles podiam noticiar da Noruega mesmo, porque de qualquer forma seria por outras fontes. Em Bagdá ou em Oslo [capital da Noruega], a notícia seria a mesma. Uma boa página de jornal teria a minha matéria de Bagdá, uma nota de outro jornalista sobre a guerra no deserto, um comentário de um especialista em questões militares. Esse tipo de seleção é bom, não é a visão de uma só pessoa. A mesma coisa no Afeganistão, com a Aliança do Norte. Eu podia falar do que acontecia no meu front, se o
Talibã estava recuando ou avançando. Isso era feito na forma de reportagem e era importante que as agências de notícias fizessem o resto. Numa guerra, existe dificuldade de comunicação, a eletricidade é um problema e seria um desperdício de tempo e recursos eu ficar lendo as matérias da Reuters [agência de notícias]. Eu poderia fazer isso em Oslo ou em qualquer outro lugar.
Cristiane Costa: E como é que uma filóloga virou correspondente de guerra? O que mexeu na sua cabeça?
Asne Seierstad: Sou formada em literatura russa, nunca estudei jornalismo. Acho que o que me influencia é o fato de nunca ter aprendido. Nunca aprendi como ser jornalista.
Paulo Markun: Talvez essa seja a fórmula do seu sucesso.
Asne Seierstad: É, eu concordo. É preciso estudar idiomas. Se eu fosse uma jovem jornalista hoje, estudaria árabe, persa, uma dessas línguas, e português, claro. O jornalista precisa saber alguma coisa sobre a região. Comecei como
freelancer em Moscou, aos 20 e poucos anos. Eu tive a vantagem de ter um ótimo editor internacional, que me pediu para escrever e disse: "É mais fácil aprender jornalismo para quem fala russo do que ensinar russo a um jornalista". Ele foi me ensinando e as coisas foram acontecendo. E também, para viajar como
freelancer, eu não tinha dinheiro, morava com uma família russa, era só isso que eu podia pagar. Meu jeito de noticiar era ficar na estação com os sem-teto, ir às fazendas coletivas, que já nem sobreviviam direito, viajando para a Sibéria, mas, no caso, como tradutora, porque eu não podia pagar a passagem. Eu traduzia para jornalistas que falavam francês ou inglês. À noite, eles comparavam anotações e me passavam. Então, eu ia escrever. Eu não podia, como correspondente, ter o apoio das agências e tal. Por pura necessidade, eu caçava notícias no nível mais baixo. Viajando como tradutora, aprendi muita coisa. Então, meu aprendizado veio de outro lugar, não das escolas de jornalismo.
Cristiane Costa: Mas por que você escolheu cobrir guerra, efetivamente? Logo a parte mais perigosa do jornalismo?
Asne Seierstad: Isso também... Eu era
freelancer em Moscou, morava num quarto, com uma família russa, e via na TV que os russos tinham invadido a Chechênia. Eu nem pensava em ir para lá, iria cobrir de Moscou mesmo, falando com os parlamentares, com quem quisesse falar, mas percebi que a mídia russa era muito tendenciosa. Era tudo propaganda, tudo mentira, e percebi que teria de ir pessoalmente. Depois de vários meses, eu vi que teria de ir. Então, pensei: mas como se vai a uma guerra? Eu nem sabia chegar lá, não havia estradas, nem aviões, estava tudo fechado. Entrei em contato com o Ministério da Defesa, porque alguém ali fazia contato com os soldados. Consegui um lugar num avião militar com os soldados. Cheguei a Grozni [capital] e tentei me virar. Esse foi o começo. Foi um começo incomum, mas quando você cobre uma guerra, fica mais fácil cobrir a próxima, porque o mundo é perigoso. Aqui vocês talvez saibam disso, mas, na Noruega, nós não sabemos. Se há perigo, alguma coisa está errada. Se alguma coisa está errada, não vamos mandar jornalistas noruegueses. Não somos muito bons nesse tipo de coisa.
Eduardo Simões: Voltando à polêmica após o lançamento do
Livreiro do Cabul, o livreiro ameaçou processar você e, se não me engano, ele estaria agora negociando com editores na Noruega para lançar um livro contando a versão dos fatos dele. A mulher dele ...[interrompido].
Paulo Markun: “A repórter da Noruega”, talvez seja. [risos]
Eduardo Simões: Exatamente. A mulher dele, se não me engano, agora estaria pedindo asilo na Suécia, mas talvez conseguisse na Noruega. A minha pergunta é: você se preocupa com a sua segurança em Oslo, com esses fatos todos? E é verdade que você recebeu de presente dos seus vizinhos um sistema moderno de segurança após o lançamento do livro?
Asne Seierstad: A última coisa é verdade, sim. Aquele sistema com câmera. Acho que não tenho direito de pensar na minha segurança. A família não é perigosa. O livreiro sempre vai à Noruega, já jantou comigo e com meus pais. Minha mãe fez o prato predileto dele e nós ficamos conversando. Ele é muito amistoso e educado, sempre conversamos quando nos encontramos, mas quando as coisas aparecem na mídia, acontece o conflito. Quanto ao livro, ele já escreveu. O nome é
Era uma vez um livreiro de Cabul. É a versão dele. Acho que esse é o jeito certo de agir. Acho que lugar de literatura não é no tribunal. Eu escrevi o meu, ele escreveu o dele e espero que isso... Devemos ter uma discussão ferrenha, mas não no tribunal. Ele ainda não me processou. Está falando disso há 3 anos, mas não fez isso.
Mamede Mustafá Jarouche: Você leu o livro dele?
Asne Seierstad: Não li. Eu sei que deveria, mas alguma coisa me diz: eu sei sobre o que é. Eu já sei. Vou ler, sim. É bem pequeno, 80 páginas, com letras grandes. É um conto de fadas. Foi escrito como conto de fadas e é sobre uma jornalista norueguesa que vai ao Afeganistão cobrir a guerra e viver com uma família afegã. Na mochila, ela tem dois trolls. Talvez vocês saibam o que é troll. É uma figura mítica norueguesa que vive nas montanhas e é má. Os dois trolls têm péssima influência sobre a jornalista e dizem a ela: "Faça isso, faça aquilo", coisas ruins, como não confiar em ninguém. No fim, o livreiro me disse num jantar: "Vou provar que você é inocente e é tudo culpa dos trolls". É um conto de fadas, mas ele trata das questões, dá as suas opiniões.
Oscar Pelagallo: De qualquer maneira, hoje, você reconhece que em vários aspectos o seu livro poderia ter sido diferente e reconhece que de certa maneira o livreiro de Cabul tem razão em alguns pontos. Isso, de alguma maneira, é uma estratégia para se chegar num acordo? Você, logo depois que leu o livro, já reconhecia esses erros? Como isso evoluiu?
Asne Seierstad: Como eu disse, concordo que algumas coisas poderiam ter sido consideradas íntimas demais, mas volto a dizer que as pessoas me traduziam as coisas e podiam... Pelo nosso acordo, elas podiam dizer qualquer coisa. Podiam dizer não e me dizer tudo se quisessem. Também podiam retirar coisas ditas. Elas diziam, mas depois retiravam o que tinham dito. Agora o livro parece muito íntimo, mas não é tanto assim. Não entro no coração e na alma das pessoas e ninguém no livro faz nada de errado, nem mesmo para os padrões afegãos. Estou falando dos membros da família. Sim, o livro poderia ter menos histórias, mas eu só mudaria isso.
Vicente Adorno: A própria família chegou a ser colocada numa posição de perigo por ter, digamos, colaborado com uma estrangeira, ou não havia esse tipo de suposição, nunca se chegou a essa paranóia?
Asne Seierstad: Isso se encaixaria mais na realidade do Iraque. Em Bagdá, a família que recebesse uma jornalista ocidental não seria bem vista pelas diferentes milícias. No Afeganistão, mesmo em Cabul, as tropas internacionais são muito bem-vindas. A resistência não é a mesma no norte do Afeganistão. No sul, a resistência é outra, o
Talibã está voltando. No norte do Afeganistão, a guerra contra o
Talibã já dura anos. Quando os americanos libertaram Cabul, se é que podemos dizer isso, as pessoas ficaram felizes, porque seus grupos étnicos ganharam e o
Talibã recuou. Lá, como ocidental, eu podia andar nas ruas, todo mundo falava comigo. Não era perigoso como é hoje. Hoje, eu não conseguiria escrever o livro, porque a questão da segurança piorou muito.
Cristina Pecequilo: Asne, eu estava lendo algumas entrevistas suas também, além dessas que nós recebemos, e você comenta que um de seus projetos hoje é não voltar pra zona de guerra, que existiria uma necessidade de até se distanciar. Esse distanciamento vai só pra essa questão da segurança ou ele tem algo a ver com uma decisão pessoal? Algum caminho de vida diferente que você está tomando? Outra questão: a gente sente um certo sentimento de inevitabilidade nas crises. A gente sofre muito em alguns episódios. É difícil a gente não se tocar com os livros. Você acha que a resposta pra esses problemas e essa situação pode vir desses países, mesmo com a presença das tropas estrangeiras? Eu queria que você comentasse essa opção sua. Eu nem sei se é verdade, eu li numa entrevista sua. E de que maneira você vê a presença do ocidente hoje interferindo no desenvolvimento dessas regiões, desses países em que você esteve.
Asne Seierstad: São países diferentes, mas vamos começar pelo Iraque. Acho que os americanos vão ter de sair mais cedo ou mais tarde. Muitos especialistas dizem que se os americanos saírem haverá uma guerra civil, mas em Bagdá já existe uma guerra civil. Pode haver estabilidade no país, mas ninguém controla Bagdá. Alguns bairros sofreram limpeza étnica. As pessoas não saem dos bairros há meses, porque do outro lado da rua, há outro grupo étnico. E se eles fazem uma curva errada podem ir parar no lugar errado. Há mulheres que não saem de casa há semanas, mães que não levam os filhos à escola, porque os preferem vivos a instruídos. A questão da segurança é terrível no Iraque hoje. Pode piorar se os americanos saírem, mas com todos os erros cometidos na invasão e depois da invasão, acho que o planejamento deveria ter sido diferente. Acho que os iraquianos encaram isso como ocupação e não como ajuda. No Afeganistão, as forças de paz são bem-vindas no norte, mas, no sul, os conflitos são diretos com o
Talibã. Acho que não podemos enfrentar o
Talibã militarmente. Para cada soldado do
Talibã que está sendo morto, outros 5 vão querer vingança. Quem é o
Talibã? São as pessoas que vivem no sul do Afeganistão. O problema do sul é a pobreza, a falta de emprego. Se você for um pai de família no sul e o
Talibã lhe der 10 dólares por mês, você pode alimentar sua família para lutar. Se estiverem construindo uma escola, um hospital, e pagarem 20 dólares para você ajudar nas obras, você vai preferir essa opção. Acho que se em vez de gastar com a guerra, gastássemos para construir a paz, seria uma solução bem melhor, em vez de ficar gastando com armas e soldados. Quem quiser paz nessas regiões, precisa oferecer dinheiro, reconstruir e fazer mais coisas.
Paulo Markun: E a sua decisão pessoal a que se atribui?
Asne Seierstad: O meu futuro? Digo muita coisa em entrevistas, não confiem em tudo, pode ser coisa do momento, mas espero escrever mais livros, claro, e depois dessas guerras... Depois do 11 de setembro, minha vida também foi tomada por muitos acontecimentos, o mundo todo passou por isso. Espero recuperar tudo e ser capaz de representar as pessoas que não têm voz. Eu também gostaria de falar de reconstrução, de concentrar meus esforços nisso. Boa parte da renda de
O livreiro de Cabul foi para projetos no Afeganistão, construção de escolas para 600 meninas, projetos de bibliotecas para várias escolas. Meu sonho é que, com as escolas para meninas, dessas 600 meninas, surja uma escritora afegã, uma diretora de cinema ou de teatro afegã, uma bailarina, uma jornalista, uma advogada. Qualquer coisa. Alguém que possa escrever sua história sobre o país, para ninguém ter de ouvir relatos de uma norueguesa. Temos de dar essa oportunidade para mudar o país na direção que elas quiserem. Para isso, é preciso haver educação.
[intervalo]
Paulo Markun: Asne, a minha avaliação é que os seus 2 livros, que eu pude lê-los, publicados no Brasil, estão do lado de cá, da não -icção. Muito embora eles utilizem recursos e equipamentos da ficção eles não ultrapassam a fronteira, se é que existe essa fronteira. A pergunta é a seguinte: você pensa em ultrapassá-la? Em operar no campo da ficção?
Asne Seierstad: Não. Já há muitos escritores medíocres no mundo e eu seria um deles. Acho que não há histórias suficientes sobre o que acontece no mundo e posso atuar nesse campo. E tem a ver com meu interesse. Tenho muito interesse e curiosidade em entender o que acontece no nosso mundo. Não me interessa muito criar histórias minhas ou me analisar.
Paulo Markun: Mas você concorda que existe um preconceito em relação ao que é não-ficção como se fosse algo menos importante, menos elaborado, menos relevante, menos artístico?
Asne Seierstad: Você se refere ao que se considera literatura de nível? Tudo bem, não preciso estar no topo da lista de prestígio e eu não seria uma boa escritora, não tenho as histórias dentro de mim. Acho que há muitas histórias para investigar.
Eduardo Simões: Uma dessas histórias poderia ser o fundamentalismo cristão, evangélico, pentecostal, nos EUA? Você tem viajado freqüentemente pra lá. O que você poderia falar sobre essa questão? Isso te interessa para um livro?
Asne Seierstad: O fundamentalismo cristão? Pode ser, mas muita gente escreve sobre isso. Acho que talvez isso esteja sendo coberto. Fiz algumas matérias sobre isso. Acho que a grande questão na Europa hoje é o abismo entre o mundo muçulmano e o cristão. É interessante escrever de religião, mas também pensei em escrever sobre meu país, sobre integração. Hoje, em Oslo, temos algumas escolas com 80% a 90% de crianças imigrantes que não conhecem o norueguês antes de entrar na escola. Falta integração e esse problema vai aumentar. Eu gostaria de escrever sobre isso.
Francis Henrik Aubert: Eu gostaria de voltar para a sua formação de origem como bacharel graduada em letras e puxar um pouco a brasa para a minha sardinha. Você está publicada em muitas línguas, em muitas culturas, em muitos países. Portanto, a sua voz se multiplicou em muitas vozes. Você percebe que nessas novas roupagens, você falando em russo, em alemão, em holandês, em português, em afeganistão, você adquire novas vozes? Há novas leituras que você mesmo descobre no seu próprio texto ou basicamente é sempre o mesmo texto que reaparece e é apenas a superfície lingüística que muda?
Asne Seierstad: Acho que todo texto é uma colaboração entre o escritor e o leitor. Um jornalista brasileiro hoje, ao falar de
101 dias, disse que era repleto de paixão. E eu pensei: paixão? Nunca pensei nisso. Talvez isso revele muito mais sobre ele, ao contrário de um leitor alemão frio. Se você for analítico, vai se interessar por outras coisas. Gosto de leitores de mente aberta. Os críticos sempre procuram o que falta no livro, ficam analisando o livro. "Por que isso? Por que aquilo?" Eles pedem um livro diferente daquele que existe. Seria curioso ver o livro traduzido em países muçulmanos. Eles foram, mas não estive lá depois, só na Turquia. Estive lá e alguns jornalistas disseram: "Acho que esse livro é mais interessante no Ocidente, porque reconhecemos a situação, é tudo parecido". Na Turquia, o livro não teve muito destaque.
Oscar Pelagallo: Asne, eu queria perguntar sobre a doação generosa que você fez para uma escola de meninas em Cabul com parte da renda obtida com o livro que foi um sucesso no mundo todo. Por que especificamente esse tipo de projeto? E, eu queria saber, se você acompanhou o investimento do dinheiro no sentido de saber qual é a pedagogia aplicada nessa escola e se tem para essas meninas algum tipo de ensinamento que contemple outros valores além dos valores locais. Você se interessa por isso ou foi só uma doação e depois você se distanciou? Qual foi o seu grau de envolvimento com esse tipo de coisa?
Asne Seierstad: Eu tinha certeza de que queria educação. Se você educa uma pessoa, está educando mais que isso. Uma menina pode ensinar as irmãs e talvez a mãe. A difusão é maior. Não acho que possamos impor os valores ocidentais no Afeganistão. Não se trata do ocidente, é um país muçulmano, é oriental. Eles têm de achar seu caminho, mas precisam de educação. As meninas precisam. Eu queria uma escola mista, mas isso não existe lá. Então, escolhi as meninas. Construí a escola, continuo fazendo doações para isso, mas a escola é propriedade do Estado afegão. Não dou palpite na educação. É uma escola pública, no esquema afegão. Tem de tudo, matemática, física, persa, idiomas. É uma escola tipicamente afegã, este já é o segundo ano e está funcionando bem.
Oscar Pelagallo: Você não chegou a visitar o lugar propriamente?
Asne Seierstad: Decidi não voltar ao Afeganistão por causa da polêmica da questão da segurança. Fui aconselhada a não voltar por causa de algumas pessoas da família. Agora é perigoso viajar lá sendo ocidental. Em minhas viagens, eu sempre tinha um instinto. Por que fiquei em Bagdá? Porque sentia que daria certo. Hoje sinto que não seria bom ir ao Afeganistão. O próprio comitê afegão-norueguês, que ajuda a construir a escola, avisou que posso ser presa se eu for ao Afeganistão. A ação pode estar correndo lá, posso estar sujeita às leis deles. Mas recebo muitas fotos, eles escrevem cartas. Está funcionando. Elas estão sendo educadas.
Paulo Markun: Última pergunta. Eu começo, ou melhor, termino como comecei, com um pouco de almanaque. A adrenalina da cobertura de guerra faz falta?
Asne Seierstad: Não, de forma alguma. A adrenalina existe. Você não come e não dorme. É como um animal em perigo, que não foge desesperado, mas está em alerta constante. É muito cansativo e você acaba desabando. Não é por isso que eu vou. Acho que é um mito dizer que as pessoas vão lá por essa emoção. Os correspondentes que conheço são sérios, é gente bem formada, que viaja para descobrir coisas. Fico muito feliz. Agora estou contente na minha terra, fora das guerras.
Paulo Markun: Muito obrigada pela sua entrevista. Muito obrigada aos nossos entrevistadores e a você que está em casa.O
Roda Viva fica por aqui e até a próxima semana. Boa noite.