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Memória Roda Viva

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Laura Kipnis

28/6/2006

Escritora americana fala sobre o livro Contra o amor, obra polêmica que questiona as imposições sociais e políticas em relação ao casamento

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Paulo Markun: Boa noite. Em seus quase 20 anos, o Roda Viva já passou por todo tipo de polêmica de personagens e de assuntos. O tema de hoje, no entanto, é inédito e de certa forma impensável em outros tempos, quando o amor, o casamento e a monogamia eram vistos como conceitos sólidos, indiscutíveis e inatacáveis. Mas os relacionamentos amorosos atuais, marcados cada vez mais por brigas, infidelidade e separações, abriram brecha para que surgisse alguém se dizendo contra o amor, que o amor é uma invenção moderna, não traz toda a felicidade que promete, cria muita ansiedade e provoca stress e depressão. Quem abre a polêmica é a escritora americana Laura Kipnis, convidada desta noite do Roda Viva. Autora de vários estudos sobre  sexualidade e política, ela veio à Bienal do Livro de São Paulo lançar seu novo livro que tem o título Contra o amor. Laura Kipnis, com seu livro Contra o amor, lança um questionamento sobre o fato de a sociedade continuar idealizando relações amorosas duradouras e monogâmicas quando a realidade mostra que isso é cada vez menos possível.

Contra o amor é o resultado de uma análise bem-humorada, e ao mesmo tempo aprofundada, sobre regras e rituais do casamento contemporâneo. Por que os relacionamentos se tornam tão marcados pela insatisfação? Professora de comunicação da Universidade Northwestern, em Illinois, nos Estados Unidos, Laura Kipnis há anos se dedica ao estudo sobre política sexual e política contemporânea. O livro Contra o amor, que ela veio lançar na Bienal do Livro de São Paulo de 2006, é parte de um conjunto de publicações que também inclui artigos e ensaios sobre seus temas centrais: estrutura do casamento, relações amorosas e infidelidade. Com habilidade de romancista e olhar crítico e analítico, Laura Kipnis questiona os padrões convencionais de relacionamento que, segundo ela, estão ameaçados pela dificuldade da personalidade moderna, pelas vicissitudes do desejo e pela conformidade social.
 
Paulo Markun:
Para entrevistar a escritora Laura Kipnis, convidamos: Fábio Santos, editor da revista e do site Primeira Leitura; Oscar Pilagallo, editor da revista EntreLivros; Silvia Poppovic, apresentadora da TV Cultura; Gioconda Bordon, da Rádio Cultura; José Ângelo Gaiarsa, médico pscicoterapeuta; Mario Lorenzi, jornalista e escritor. Além da participação do cartunista Paulo Caruso registrando com seus desenhos alguns momentos deste debate. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todo o brasil. Como o programa de hoje é gravado não é possível a participação dos telespectadores.

Boa noite. Laura, o seu livro, ele é polêmico, é o mínimo que se pode dizer. Eu não resisto a fazer uma pergunta que eu diria que é provocadora como o seu escrito. Já que você fala tanto contra o amor, contra o adultério, contra qualquer possibilidade de relacionamento, eu queria saber: qual é o seu estado civil e qual foi no passado? 

Laura Kipnis: [Risos] Preciso dizer que habitualmente tento evitar perguntas pessoais, mas já fui casada e não sou mais. Mas isso é um pedido?

Paulo Markun: Não, mas foi isso que fez você escrever o livro? Foi essa experiência pessoal?

Laura Kipnis: Escrevi o livro no fim do governo Clinton e havia muita coisa na imprensa sobre adultério. Fiquei muito interessada em todas as discussões que relacionavam política e casamento. De certo modo, esse foi o começo. As questões pessoais tornaram-se políticas e houve um grande debate nacional. E havia muita infelicidade na vida das pessoas, mas não havia uma forma pública de se falar francamente a respeito. Havia somente livros de auto-ajuda dizendo para fazer isso ou aquilo. Mas claro que conselhos não funcionam, ou não continuaríamos precisando tanto deles. Claro que eu tenho minha... Escrevo sobre coisas que acho que não entendo e não posso dizer que entendo a questão do amor. Esse foi um dos motivos que me levaram a escrever o livro.

Oscar Pilagallo: Professora, eu queria perguntar: essas conclusões que a senhora chegou nesse livro não estariam muito mais voltadas, não seriam mais aplicáveis, a uma certa classe média norte-americana do que para sociedades distintas dessa? Tudo bem que é um fenômeno ocidental, talvez possamos dizer assim, mas a classe média americana não está mais descrita no livro do que outras sociedades?

Laura Kipnis: Quando escrevi o livro achei que estava tratando apenas do contexto americano. E não pretendia abordar outras culturas. O livro é uma observação, uma observação cultural e social, e parecia que, para escrever do modo como eu escrevia, só poderia escrever sobre minha própria cultura. Porque é a cultura na qual você se sente integrada. Para minha surpresa, o livro já foi traduzido para 8 idiomas. Ele parece ser aplicável a outros contextos além do americano. E pode-se ver isso de duas formas: pode-se dizer que este é um problema universal ou pode-se dizer que os problemas americanos estão se propagando pelo mundo da mesma forma que o mundo está se americanizando. A classe média, eu não diria que é uma classe universal, mas parece que os problemas da classe média estão penetrando, ou se espalhando, aparentemente, para outros contextos nacionais e outros meios sociais. Essa é a minha impressão.

Oscar Pilagallo: Talvez porque as classes médias em outros países, fora do contexto americano, elas, não sei se em função de um fenômeno de globalização, acabam se parecendo entre elas. Então, elas se vêem refletidas no livro. Seria isso? Um pouco isso?

Laura Kipnis: O amor é específico para cada contexto social e histórico, mas também há algo universal nos sentimentos por trás dele. Tento manter as duas coisas em equilíbrio. Há aspirações humanas universais por esse tipo de conexão, mas acho que os costumes e contextos sociais mudam o tempo todo. Emoções como o ciúme em certo aspecto são universais, em outro aspecto são específicas da cultura. Porque fomos educados, ou aculturados, a um determinado conjunto de normas. Algumas sociedades são polígamas, outras monógamas, outras dizem que são monógamas, mas ninguém sabe o que acontece entre quatro paredes. Por isso elas são tanto universais como específicas, culturalmente específicas.

Gioconda Bordon: Eu queria entender por que você escolheu esse título: Contra o amor. Porque não me parece que você seja contra o amor. No livro inteiro você ataca, e muito, as formas como a gente vive o desejo. Quer dizer, então, me parece que você é muito mais contra o desejo. Porque casamento é ruim, trair também pode ser pior, ficar solteiro também não é muito bom, os gays também não estão se achando. Quer dizer, não tem muito jeito. Então, ser contra o desejo parece ser tão ingênuo quanto ser contra a morte. Não tem como. Porque o desejo ele é conflituoso mesmo. Se ele não trouxer conflito, não existe. Ele é conflito. Então, eu queria saber porque você escolheu falar contra o amor se não é contra o amor que você é. Você está sendo contra a forma como a gente organiza o desejo. De que forma você acha que isso poderia ser vivido com menos conflito? Isso não ficou claro pra mim no livro.

Laura Kipnis: O subtítulo na edição americana é “Uma polêmica”. De certo modo isso faz o título Contra o amor ser irônico. Ao escrever o título, comecei a rir quando pensei nele. E precisei usá-lo como título porque me fez rir. Porque é um pensamento proibido. É algo que não podemos dizer: ser contra o amor? Mas acho que fica claro no livro que sou totalmente romântica. Não sou contra o amor, sou totalmente a favor dele. Você tem razão ao dizer que o tema do livro é: se é contra alguma coisa é a respeito do modo como o amor é organizado socialmente no contexto sobre o qual eu escrevi. É organizado em casais supostamente monógamos dentro da relação conjugal. Mas não concordo quando diz que sou contra o desejo. Na verdade...

Gioconda Bordon: É o que parece. Eu senti talvez... Eu li, e procurei ler com atenção, mas o que eu senti é que você esperneia contra o desejo, porque se você deseja e se casa, daqui a 2 anos aquilo vai virar uma porcaria. Se você, de repente, acha: vou, quem sabe, arriscar uma aventura extraconjugal, um adultério, que promete ser bom, pelo menos assim no começo. Até você cita um livro muito interessante do Denis de Rougemont [escritor, filósofo e ecologista suíço (1906-1985)], que é L’amour et l’accident [publicado no Brasil com o título A história do amor no ocidente], em que ele fala que, na verdade, o mais importante para o adultério é que exista o impedimento. Não existe um amor tão forte como a paixão sexual se não tem o impedimento. Então, o adultério também fica chato. Acaba ficando um segundo casamento. Eu não entendi de que forma você acharia que seria possível viver o desejo com todos os conflitos que ele tem de uma forma que não seja tão difícil, porque conflito tem, não tem como. Eu entendi que você fica ainda irritada com a força do conflito desse desejo. Foi assim que eu li o livro.

Laura Kipnis: Acho que o desejo... Acho que você não entendeu bem o livro. Porque o argumento sobre o desejo é que o desejo sobrepuja a estabilidade, nosso desejo por estabilidade. Concordo com você que o desejo é conflituoso e acho que essa é a questão, não há uma discussão honesta a respeito. Por um lado há um desejo por estabilidade e, por outro lado, há um desejo por liberdade. E essas coisas contrastam ou entram em conflito entre si e não há... Talvez este seja o dilema existencial humano, o fato de não haver um modo adequado de trabalhar essas coisas. Mas a pergunta que eu queria fazer era: no contexto em que o casamento monógamo supostamente é a norma e supostamente é para o bem social, o que acontece quando o desejo não dura? Não que eu fosse contra o desejo. Eu disse que o desejo é muito importante e viver numa situação sem o desejo é como uma morte prematura. É como se a próxima parada fosse o cemitério. É como se a pessoa estivesse morta prematuramente. Eu não era, de modo algum, a favor disso. Eu dizia que um número grande demais de pessoas adota determinada norma que as colocam naquela situação e concordam com isso, aquiescem a isso. E há conseqüências sociais maiores em função disso, não só em âmbito individual como também político. Eu diria que sou grande fã do desejo. Eu sou pró-desejo.

Fábio Santos: Professora, eu acho que tive exatamente uma visão contrária a que Gioconda teve. Acho que o livro é fundamentalmente contra o amor. Na verdade, o casamento monogâmico e o amor vivido dentro do casamento monogâmico. E que, pelo contrário, a senhora dá uma importância muito grande para o desejo e para o prazer de uma maneira geral. Então, o substrato, me parece, pelo qual o seu livro caminha é a idéia de que a vida é prazer. E a gente bem sabe que mesmo quando a gente tentou, e há experiências sociais que tentaram exatamente isso, não dá certo, dá errado, por conta do conflito. Os conflitos existem. Se tem 3 pessoas querendo prazer, 1 vai ter problema.

Paulo Markun: Ou os 3.

Fábio Santos: Ou os 3. Então, me parece, o que falta na verdade, e aí eu acho que concordo com a Gioconda, a senhora não aponta o que seria a alternativa. Se o casamento monogâmico que inventamos, e que tem durado uns séculos como forma de organizar a sociedade, produzir famílias e reproduzir a sociedade que a gente tem, qual seria a alternativa?

Sílvia Poppovic: Posso fazer um aparte? Gostaria de fazer um aparte justamente para encerrar, ou até para fazer uma provocação, e talvez até para trazer uma informação a respeito da nossa realidade aqui no Brasil. O que ela diz para todas nós mulheres é que a saída é a independência financeira da mulher. Porque, uma vez que a mulher não precisa mais do casamento como um emprego, uma vez que a mulher tem autonomia financeira, ela pode escolher até quando ela precisa ficar dentro daquela relação. Ela pode simplesmente dizer não para aquilo e partir para uma outra história. Acontece que no nosso país nós temos uma sociedade talvez bem mais machista do que a sociedade americana. E neste país aqui, se você é uma mulher bem sucedida financeiramente e você começa a ter poder e ter espaço e ganhar dinheiro e ser famosa, você certamente vai ter mais problemas com os homens. Então, é um grande paradoxo esse. Você de certa maneira ganha a liberdade, mas de outro lado você ganha também uma solidão especialmente no que se refere a vida a dois, porque os homens temem essa mulher tão poderosa. E talvez essa mulher não esteja sabendo administrar tão bem essa independência toda. Então, é um grande paradoxo. A gente vai até o fim do livro, chega lá e fala: “Muito bem. Então, o negócio é ser independente?" Bom, nós aqui já temos exemplos de mulheres independentes que estão profundamente insatisfeitas e sozinhas. Como é que fica?

José Ângelo Gaiarsa: Eu gostaria de fazer uma defesa da doutora...

Laura Kipnis: [sem saber o que fazer] Ok. [risos]

José Ângelo Gaiarsa: Não, não. É que faz parte totalmente e é muito simples. Eu não sei por que é que quem aponta problema tem obrigação de apontar solução. Ainda mais um problema desse tamanho.

Laura Kipnis: Tentarei responder na ordem. Concordo com você [aponta para Gaiarsa]. Quem aponta o problema necessariamente não precisa ter a solução. O interessante para mim foi que escrevi um livro chamado Contra o amor. Mas todo livro que tem "amor" no título é tratado como se fosse um livro de auto-ajuda. E as pessoas querem que você dê a solução. E eu pensei: meu Deus, essa instituição está de fato num estado lastimável. Se você escreve um livro chamado Contra o amor e lhe pedem conselhos, como solucionar o problema? Qualquer resposta que alguém possa dar: "eis a resposta para o problema, eis a solução", será uma resposta muito superficial. É uma luta de um milênio e eu devo dar a resposta, o modo de solucionar em 5 passos fáceis. Não era esse o tipo de livro que tentava escrever, mas um livro para levantar essas questões. E também, voltando à questão do prazer, um dos motivos para eu acreditar que não é uma questão pessoal é que a questão de obter mais prazer na vida ou maior gratificação na vida é maior do que uma questão individual. E começa com uma exigência de que poderíamos obter mais da vida, mais da sociedade, e não só no âmbito pessoal, mas nos âmbitos político, social e econômico. Parte do motivo para eu escrever o livro foi achar que as pessoas pedem muito pouco de suas situações e pedir mais é o primeiro passo para conseguir mais. E o cemitério prematuro em que muitos decidem viver em suas vidas pessoais também é uma preparação para uma espécie de aquiescência política. Em relação à questão de gêneros... Normalmente não falo sobre gêneros no livro. Não há gênero nos pronomes, não há "ele" ou "ela", falo da situação do amor como se homens e mulheres desempenhassem o mesmo papel nele. Pode não ser totalmente do ponto de vista sociológico preciso, mas à medida em que as mulheres ficam mais independentes financeiramente, elas podem agir de modo mais independente e mais próximo de como imaginamos que os homens agem num relacionamento. Uma das coisas que digo é que qualquer um dos sexos pode fazer o papel de qualquer um dos gêneros. Quem quiser mais é a garota, é a mulher, quem quiser a liberdade é o garoto. E homem ou mulher podem fazer o papel da garota ou do garoto. Mas acho que a questão da independência financeira da mulher está mudando toda a situação do casamento e a instituição está em transição. Um dos motivos para termos esta discussão é porque... Estou falando novamente do contexto americano, mas está se tornando uma situação mundial, porque cada vez mais mulheres trabalham fora, no mundo todo. E isso muda, primeiro, as exigências que as mulheres fazem no casamento. Nos Estados Unidos, 75% dos divórcios são pedidos por mulheres. Elas querem sair, pois acham que podem conseguir mais. Isso traz de volta a questão da gratificação. O primeiro passo para ter mais é achar que você merece mais, pedir mais. E, como eu disse, não é só uma questão pessoal é também política.

Paulo Markun: Vamos fazer um intervalo. Nós voltamos num instante com o Roda Viva, que hoje tem na platéia Vera Bastazin, professora e coordenadora da pós-graduação do programa de literatura e crítica literária da PUC de São Paulo e Juliana Dantas, repórter da Amcham [Câmara Americana de Comércio]. A gente volta já, já.

[intervalo]

Paulo Markun : Voltamos com o Roda Viva que esta noite entrevista a escritora americana Laura Kipnis, que lançou no Brasil seu novo livro Contra o amor, uma polêmica em torno do amor e do casamento.

[Vídeo]: No começo do livro Contra o amor, Laura Kipnis lança uma advertência ao leitor: “Apertem os cintos, por favor, estamos prestes a enfrentar contradições. O tema é o amor e as coisas podem ficar turbulentas”. É um livro para sacudir conceitos e colocar de ponta-cabeça um tema que parece não permitir discordâncias. Laura reconhece que o amor é um bem maior que se busca e que ninguém é contra ele. Mas a autora vê a necessidade de uma polêmica contra ele. Afinal, o amor moderno não cumpre o que promete. Impaciência, ciúme e insatisfação levam uma torrente de amantes a desfazer suas juras de amor, buscar relacionamento extra-conjugais ou entrar em relacionamentos em série, desfazendo e construindo sucessivamente novas relações. Uma situação que, para a escritora, necessita um sério questionamento comportamental e afetivo.

Paulo Markun: Laura, a mais demolidora, o mais demolidor trecho do seu livro, na minha opinião, é um em que você relaciona, em algumas páginas, 5 ou 6 páginas, a quantidade de coisas que não se pode fazer num casamento. E eu vou citar, por exemplo, algumas: “Você não pode se repetir, não pode ser dramático demais, não pode saber de coisas que o outro não sabe, nem dar impressão de que está exibindo o seu conhecimento, não pode comer o que quer, não pode falar palavras que não são aceitas...”, eu não vou citar as palavras. “...., não pode chamar um 'faz tudo' se o outro se considera habilidoso”, e assim por diante. O que eu pergunto é o seguinte: eu conheço inúmeros casamentos em que há alguns desses “não pode” e que há um enorme esforço - e você também liquida com esse esforço - para diminuir a quantidade dos “não pode” aceitando que o outro é diferente. A coisa mais difícil de se fazer num casamento, ou num outro relacionamento qualquer. Pergunto se é isso mesmo. Quer dizer, não adianta tentar? Cairemos sempre nessa interminável coleção de "não-podes"?

Laura Kipnis: Em primeiro lugar, devo dizer que tudo isso é verdade. Foi feita uma pesquisa e ela mostra a realidade. A pergunta que fez é profunda, se tem de ser assim. Parte do que acontece numa situação moderna é que o amor se tornou tão imensamente importante para nós, para nossos seres, para nossos egos, para nossas identidades, que a possibilidade de perder o amor torna-se incrivelmente traumática. Sobretudo quando a escolha não é sua. A separação que ocorre, quando não é escolha sua causa um enorme trauma e as pessoas fazem tudo que podem para evitar isso. Assim, muita ansiedade acompanha o amor moderno. E uma das coisas que as pessoas fazem para tentar evitar a ansiedade, para diminuir a ansiedade, é tentar controlar o outro, torná-lo previsível, fazê-lo suprir as necessidades que você imagina ter. Ironicamente, o que acontece nessa situação é que você acaba afastando a outra pessoa. Então, existe uma situação de ansiedade no âmago do casal moderno que leva à existência de todas essas regras e ao desejo de controlar outra pessoa. Então, acho que isso surge da ansiedade e insegurança. Se pudéssemos nos livrar dessas coisas, isso com certeza seria utópico.

Oscar Pilagallo: Professora, de certa maneira, a senhora concorda no livro que um certo grau de repressão na sociedade é necessário para a sobrevivência da própria civilização. É o que a senhora está dizendo no livro. E diz também que a civilização atual, como a gente chegou hoje, a gente já atingiu um nível que seria suficiente para garantir essa sobrevivência. E que o problema estaria nesse superávit de repressão. Pergunto: seria uma questão de dosagem? Até que ponto essa repressão é interessante? Até que ponto a gente, a sociedade, conseguiria obter um desejo que compensasse essa dose de repressão? Tudo passaria por aí? Para compensar essa dose de repressão?

Laura Kipnis: Admito que sou freudiana. Assim, há elementos freudianos no livro e eles são dialéticos, ou se alternam entre repressão e civilização. Suponha que eu tenha sido condicionada a pensar assim por Freud. Mas também vemos como isso funciona politicamente, sobretudo nos Estados Unidos, no momento em que, após o 11 de setembro [referindo-se à data do atentado terrorista em Nova Iorque], houve um grande aumento na repressão social, no policiamento. O Estado aproveita toda chance que tem para aumentar o nível de repressão e controle sociais. E há muito pouca resistência da população. Uma das coisas que quero conseguir no livro é tentar falar sobre a relação entre o político e o pessoal. E os tipos diferentes de formas de vida pessoais com as quais nos comprometemos, como essas regras que criamos uns para os outros, que podemos criar uns para os outros, que estabelecem o palco para essa aquiescência política que nós vemos, digamos, nos Estados Unidos agora. Então, essa idéia de que para obter amor você pode dizer ao outro o que fazer no menor nível possível, esse micropoliciamento do comportamento "não pode fazer isso, não pode comer aquilo, não pode ir aqui ou ali", prepara a mentalidade do cidadão para o tipo de repressão que vemos aplicada nos EUA sobre os cidadãos. Acho que essas coisas estão relacionadas.

José Ângelo Gaiarsa: Eu não tenho a menor objeção ao que a Laura disse. Eu sou terapeuta há meio século, eu conheço bem a classe média paulista que é a mais representativa do Brasil. Eu passava 80% do tempo discutindo, interminável e insoluvelmente, problemas de família. Se não houvesse família, não teria emprego nem salário. Acho que o nome do seu livro é infeliz porque você descreve o amor muito bem em certos momentos, em que você distrai um pouco a sua língua viperina. Acho que você faz descrições excelentes do encantamento amoroso, que é maravilhoso mas dura pouco. Se não houvesse família não haveria Freud. Acho bom dizer isso. E acho que há sempre a confusão das pessoas entre, eu gosto da palavra, o encantamento amoroso e o desejo de eternizá-lo. Eu não sei o que pode ser eterno na espécie. A única pergunta que eu iria fazer você acabou de responder: por que os governos protegem tanto o matrimônio? É porque ele é ótimo pra manter a repressão de todos. A palavra que a criança mais ouve na vida é “não” . E ela se deforma, se encolhe, perde muito da sua aptidão de rebeldia e é esse o maior interesse de manter a sociedade. E diria mais uma coisa [consulta suas anotações] que agora fugiu, mas volta daqui a pouco, se Deus quiser. Desculpe, mas eu não tenho objeções para você. Ah! [lembra-se] Que o desejo se realiza na família. Deus do céu, mas a essência do Freud é dizer que a família é a essência da repressão do desejo. Mãe não tem sexo. Então, não sei como é que amor eterno vai satisfazer alguém. Sinto muito, mas não tenho nada contra [risos].

Laura Kipnis: Obrigada [risos]

José Ângelo Gaiarsa: Gostaria só de acrescentar um pouquinho mais. Um dado curioso do seu estilo. Às vezes eu tinha claramente a impressão que eram 3 mulheres conversando, uma sem ouvir muito a outra. As três escrevendo a mesma frase, o que tornava o texto às vezes muito difícil, muito rico de vários aspectos num período só. Se pudesse alisar um pouquinho talvez o livro ficasse um pouco mais fácil. Conselho de quem escreveu muito também.

Laura Kipnis: Uma crítica ao meu estilo literário. Acho que está certo quando diz que há diversas vozes no livro, ou que há posições diferentes, e um dos prazeres, para citar esse termo, de escrever uma polêmica foi que eu senti que estava escrevendo numa espécie de atuação, ou numa personagem. Assim, eu não precisei escrever sobre mim ou fazer referências a mim e podia assumir diferentes posições: do amante, ou do adúltero, ou da pessoa traída, ou da pessoa cujo desejo é suprimido no casamento ou na situação. Havia uma certa liberdade para experimentar ao ter vozes diferentes que não precisavam necessariamente concordar entre si. Gostaria de comentar algo que você disse antes. Há uma história muito interessante, quando se lê a história do casamento, sobre o modo como se constitui uma instituição de controle social. O casamento, no início, era um acordo particular entre 2 pessoas. Aí, a Igreja interveio e decidiu estabelecer regras definindo como os casais poderiam casar. Em seguida veio o Estado e o casamento se tornou parte do modo como o Estado organiza os cidadãos, como registra e controla os cidadãos. Ele se tornou um instrumento de controle do Estado, do modo como o senhor falou. E isso faz parte do modo como o Estado moderno progride. Isto é, aumentando o controle sobre a vida particular dos cidadãos. Há várias histórias interessantes do casamento. Há uma na qual o casamento se torna mais livre quando as pessoas passam a escolher os parceiros em vez de os pais fazerem essa escolha. É o casamento por amor e não por propriedade, mas ao mesmo tempo o casamento se torna esse instrumento de controle social. Quando você fala que há vozes conflitantes no meu livro, é uma questão muito complicada, escrever em um único estilo ou dar conselhos. Eu não estava tentando escrever um simples livro, eu tentava dar ao assunto o máximo de complexidade que ele requer.

Mário Lorezi: Para voltar ao que você disse, para resolver os problemas e contradições que a Laura elencou, precisaria esclarecer todo o ponto de vista da família. Não dá. Não é possível. A família, em certo sentido, fez seu tempo, precisa modificá-la. E só se pode modificar modificando as leis. O divórcio não deveria mais ser o que era. Ou seja, julgado pela sociedade, deveria sim ser julgado pelas leis, que deveriam ter em conta os desejos dos divorciados. Eu sou de uma família de 6 casamentos, 4 divórcios, sei do que estou falando. E tem outra coisa, tem a questão da religião. Por exemplo, nos Estados Unidos, os protestantes são mais autoritários para a sociedade do que os católicos, que tem o pecado como grande....Como se diz? Grande culpado de toda a repressão. E a sociedade americana, por exemplo, julga e não perdoa. A sociedade católica julga também, mas quando o padre perdoa, porque ele absolve, ela [a sociedade] também absolve. Então são 2 mentalidades muito diferentes. Terceira coisa da qual não falamos são os filhos. Como pode haver? A não ser que queiramos acabar com a humanidade. Não fazemos mais filhos e terminou? Então, não se trata só de exaltar o desejo, como dizia justamente ela. Exaltamos o desejo, saciamos o desejo e resolvemos o problema. E os filhos? Eles vêm, lamentavelmente para alguns, mas eles vêm. Outros gostam de tê-los e está tudo bem. O que fazer com o filho. Eu sou de uma família, repito, com 4 divórcios que envolveram 7 filhos. Os 7 filhos foram felizes só o dia em que os pais divorciaram. Os meus, por exemplo, o dia em que minha mulher e eu anunciamos que iríamos nos divorciar disseram: “Ainda bem! Porque vocês dois juntos não são mais suportáveis”. Então, eu acho que você disse uma coisa muito certa, mas temos que ter em conta esses fatores. São fatores que, claro, se prestam à polêmica. Mas, se as leis que nós criamos durante os séculos, e que são em grande parte devidas às religiões e não às questões cívicas, pudessem ser modificadas civicamente, nós chegaríamos muito mais longe do que estamos hoje. Esse é um aspecto que eu não vi no seu livro: filhos, religião, leis. Seria importante, digamos, enfrentar esses argumentos para dar ao seu livro a possibilidade de caminhar, não digo para a solução porque seria difícil, mas para uma visão mais otimista daquilo que existe hoje.

Sílvia Poppovic: Você acha que o casamento vai acabar?

Laura Kipnis: Deixe-me responder aqui primeiro.

Sílvia Poppovic: Desculpe, achei que você não fosse responder ao que ele estava dizendo. Desculpe, pode responder à pergunta.
 
Laura Kipnis: Posso tentar falar sobre as duas coisas. Fico satisfeita com o que disse porque no contexto sobre no qual escrevi, nos EUA, onde quer que os filhos sejam criados a discussão é muito hipócrita, porque os filhos são sempre criados como uma forma de dizer que os casais devem ficar juntos pelo bem dos filhos. É uma frase comum nos Estados Unidos, "pelo bem dos filhos". Significa que os adultos permanecem juntos mesmo infelizes, porque acham que é disso que os filhos precisam. Mas acontece, porque a instituição do casamento está em transição, que o mais comum agora são casamentos seqüenciais do que um único casamento para a vida toda. Assim, de uma maneira informal, as pessoas estão encontrando as soluções que citou, dessas famílias mistas nas quais há pai, padrasto, filhos dessa família, filhos da outra família, criando novos tipos de famílias. Em vez de isso acontecer por meio de uma legislação, está acontecendo pela necessidade de as pessoas encontrarem soluções, porque o casamento está nessa transição. Mas há muita hipocrisia nos Estados Unidos, porque se fala muito em valores familiares, nos filhos e no bem dos filhos, mas há um enorme índice de pobreza infantil. Quando se trata de moralizar o comportamento adulto ouvimos falar em "pelo bem dos filhos". Mas quando se trata de alocar recursos, de garantir pagamento para as mães e para os filhos, para que os filhos não vivam na pobreza, nenhum recurso é voltado às crianças, somente à moralização. Acho que, realmente, as crianças são mais felizes quando os pais infelizes se separam. Mas quase não se pode dizer isso nos Estados Unidos, porque aceita-se sem questionar que os filhos precisam dessa família intacta, mesmo que isso produza crianças loucas e neuróticas.

Paulo Markun: E a pergunta da Sílvia? Você acha que o casamento vai acabar ou já acabou?

Laura Kipnis: Acho que está em transição. O formato social, de muitas formas por causa das forças econômicas, está em transição e as pessoas me perguntam porque, supostamente, tenho todas as respostas se escrevi um livro chamado Contra o amor. O que vai acontecer com o casamento eu não sei. A estrutura familiar está mudando no mundo todo a medida em que as mulheres entram na força de trabalho e os formatos familiares não acompanharam as mudanças econômicas, para começar. As pessoas sempre acham modos de formar um casal e de desfazê-lo. O divórcio é uma instituição tão antiga quanto o casamento. Assim, esses formatos mudam e sempre que isso acontece as pessoas entram em pânico. Por isso estamos vivendo um pequeno pânico em toda parte por causa da transição.

Paulo Markun: Vamos ver uma pergunta de uma pessoa que tem uma outra visão sobre o assunto que é o empresário José Mindlin. Vamos ver.

[Vídeo com o empresário José Mindlin]: Diante de tudo que você está dizendo, eu gostaria de saber como você analisaria o meu caso pessoal. Sou casado há 67 anos, de um casamento curtido e não agüentado. [ A legenda informa que a esposa de Mindlin, Guita Mindlin, faleceu no dia 25/06/2006].

Laura Kipnis: Não há nada no meu livro que diga que não pode haver um casamento longo e feliz. Sou totalmente a favor disso. Eu sou, como disse, uma grande romântica. Descobri uma pesquisa nos Estados Unidos segundo a qual 38% das pessoas que são casadas dizem que são felizes. Não sou eu que digo que as pessoas não podem ser felizes, são as pessoas casadas que dizem que não são felizes. Eu fico muito satisfeita ao ver um casal que está junto, acho que disse há 67 anos, e que é feliz com o cônjuge. Você deveria contar esse segredo para mim, ou para o resto da humanidade, que busca esse segredo. 

Gioconda Bordon: Agora, Laura, por que você diz que é contra esse trabalho no casamento, trabalhar o casamento? Quer dizer, esse esforço para que as coisas dêem certo. Você diz que um casamento que precisa de trabalho não é um bom acordo. Por exemplo, o que é que nós estamos fazendo aqui? A gente está, de alguma forma, trabalhando um diálogo, trabalhando uma troca. A gente faz acordos e negociações desde a hora que a gente acorda. Então, por que no casamento isso seria um sinal de que essa relação não dá certo? Se você tem que trabalhar por ela, então, tchau.

Fábio Santos: Aliás, só para complementar, a sua visão do trabalho é também muito negativa. É a visão do trabalho do século XIX. É claro que ainda há setores da sociedade que vivem esse tipo de trabalho e é interessante que se possa transformar esse tipo de trabalho, mas muitos de nós já vive numa sociedade onde o trabalho, ou pelo menos as condições de trabalho, podem estar aliadas ao prazer, ou podem estar aliadas à satisfação intelectual, à satisfação social. E parece que a sua visão do trabalho, que contamina sua visão do esforço para permanecer casado, é que provoca essa confusão.

Laura Kipnis: Quando comecei a escrever o livro passei a ler muitos manuais de auto-ajuda para casais. O interessante é que havia uma frase em todos eles. "Você precisa trabalhar no seu casamento. Se seu casamento não está dando certo, você não trabalhou o suficiente nele." Se esse conselho funcionasse, não teríamos de ouví-lo repetidas vezes. Como, além de Freud, também fui influenciada por Marx [Karl Marx (1818-1883)] imediatamente pensei em O capital [uma das principais obras de Marx, publicada em 1967] e a crítica à exploração que acompanha o trabalho. Trabalhar no casamento não é uma frase neutra, sobretudo nos EUA. Acho que o Brasil tem uma cultura que aprecia mais o lazer do que nos Estados Unidos. Os Estados Unidos são a nação que mais valoriza o trabalho, acho que só perde para o Japão e talvez o tenha ultrapassado em termos de horas semanais trabalhadas. Você falou em negociação, que é outra linguagem que poderíamos usar, em vez da linguagem da fábrica, do local de trabalho, ou por que não brincar com o casamento? A sisudez de trabalhar no casamento levanta suspeitas, para mim. Mas, novamente, se todo esses conselhos que nós recebemos, e me refiro a nós americanos, e podem me dizer se isso se aplica aqui, todos esses conselhos criam, me parece, não digo mais problemas, mas certamente não fornece as soluções, pois só seria preciso dizer uma vez. Se essa fosse a solução, trabalhar mais no casamento, por que isso teria de ser sempre repetido? Diga uma vez e o problema está resolvido. Então, não resolve o problema.

Paulo Markun: Nós vamos fazer mais um rápido intervalo. Nós voltamos em instantes com o Roda Viva que é acompanhado da platéia por Priscila Dourado Diniz, que é estudante de psicologia da Universidade Cruzeiro do Sul, José Luiz Godinho, advogado e Juliana Farina, estudante de comunicação social. Voltamos já, já.

[intervalo]

Paulo Markun: O Roda Viva entrevista esta noite a escritora americana Laura Kipnis. Ela é professora de comunicação da Universidade Northwestern, em Illinois, nos Estados Unidos e é autora de vários ensaios sobre política sexual e cultura contemporânea. Laura, um outro livro seu, que não foi publicado no Brasil, fala sobre pornografia. A pornografia não seria uma espécie de saída para esse problema do casamento monogâmico?

Laura Kipnis: Uma das coisas sobre as quais não falei em Contra o amor ,e que está relacionada com a pergunta que você fez, é a questão do adultério, que surge em Contra o amor. Acho que me interessei no livro de pornografia... Da mesma forma, em Contra o amor, o modo como o adultério é apresentado visa pegar esses formatos sociais que são vistos de modo tão negativo e depreciado, e falar sobre o que as pessoas buscam quando se envolvem com essas coisas. De certa forma as pessoas buscam formas de escape que não fornecem a solução, mas que são refúgios temporários. Tem razão quando disse antes que o adultério pode se tornar como um casamento, ele se torna regido por regras. Mas é uma solução temporária. Nos dois casos, adultério e pornografia, eu tentei fazer perguntas que não são usuais, que não são as acusações usuais e a moralização, e falar sobre o que as pessoas buscam. E elas buscam mais gratificações do que a realidade fornece. Assim, elas inventam essas formas fantasiosas. A pornografia é uma forma fantasiosa, é uma fantasia de que há uma plenitude de sexo sem restrição, sem repressão social, sem repressão psíquica. E o adultério é uma utopia temporária que não é apenas uma aventura de uma noite, mas um caso amoroso, no qual duas pessoas se apaixonam e ficam fora de instituições sociais, regras e normas. E é um refúgio idílico temporário da realidade.

Oscar Pilagallo: Professora, eu gostaria só de citar, desculpe interromper, mas é com relação a esse ponto que a senhora está citando, tem uma aspas no livro em que a senhora diz o seguinte: “Onde quer que reine o compromisso com a monogamia o adultério proporciona a sua transgressão estrutural”. Eu não sei até que ponto o adultério teria todo esse papel, porque uma coisa é não fazer uma leitura moralizante do adultério, até aí tudo bem, outra coisa é ir no extremo oposto e fazer uma afirmação como essa. Na verdade, o adultério também pode ser interpretado como um elemento conservador na medida em que ele ajuda a preservar um status quo.

Laura Kipnis: É verdade, concordo com você. Mas há um aspecto interessante dos seres humanos. Sempre que há regras, sempre que há instituições sociais, há um desejo de transgredi-las. Não pode haver blasfêmia sem religião, da mesma forma não há religião sem blasfêmia. E casamento e adultério também formam um par. Há uma instituição ou um contrato e há uma transgressão dele. Mas não é errado dizer que o adultério tem um lado conservador. Pode-se dizer o mesmo da pornografia. Tabus também reforçam os limites e as regras ao mesmo tempo em que os violam. A pornografia é interessante porque mapeia a cultura, mostra onde estão as fronteiras. E o que a pornografia faz é sistematicamente transgredir essas fronteiras. Você sabe onde estão as fronteiras e tem esse frisson momentâneo, esse prazer momentâneo da transgressão. Mas acho que é provavelmente verdade que ela as reforça ao mesmo tempo. Mas também vemos, socialmente, que as fronteiras se movem. Elas não são fixas. Nos Estados Unidos a ilegitimidade nos nascimentos era um grande tabu social, agora não é. Assim as fronteiras mudam a medida em que são provocadas e questionadas.

Sílvia Poppovic: Eu, certamente, me considero uma vítima desse ideal do amor romântico do casamento. Por mais anos de análise e de leitura que uma mulher possa ter enfrentando, na hora em que você se apaixona, infelizmente, parece que você regride emocionalmente. Espera emocionalmente tudo do outro, ou tudo aquilo que você fantasia como uma situação realmente de felicidade, de completude, de amor, de tesão e de todas essas coisas. Agora, eu acho que o livro esquece outras coisas que uma relação a dois, que um casamento, oferece, como completude intelectual, cumplicidade, solidariedade. Quer dizer, existem outros ingredientes que eu acho que a vida a dois traz. Por exemplo, é muito mais gostoso viver a dois do que viver a um, na minha opinião. Eu acho mais gostoso se fazer as coisas a dois do que se fazer a um. Tem várias outras situações que o casamento oferece que se você trabalhar, como disse a Gioconda, elas podem melhorar e melhorar com os anos. Quer dizer, isso vai ficando cada vez melhor, não vai ficando pior. Eu me deprimi muito, ontem a noite. Eu fiquei muito deprimida quando eu fui voltar a olhar o livro. Eu achei tão... Eu pensei: essa mulher, eu acho que ela tem um prazer sádico  [risos]. Eu admito que era uma coisa muito pessoal. Pensei: ela tem um prazer sádico de desmoronar todas as coisas em que a gente pode acreditar, talvez polianicamente, ingenuamente, do que uma relação a dois pode transcender. Além da cama que, tudo bem, é ótimo, gostoso, tudo certo. Então, você vem com palavras como: “O casamento vai terminar com 2 martinis, o casamento vai terminar com o prozac. O casamento pode, na verdade, ser um caldo de depressão, de stress.” Eu falei: gente, mas será que eu estou sendo...

Mário Lorezi: Mas se fosse assim, desculpe a interrupção, mas se fosse assim a pornografia e a masturbação teriam resolvido todos os problemas.

Sílvia Poppovic: Pois é, mas não se resolve.

Mário Lorezi: Sinto muito.

Sílvia Poppovic: Então, Laura, eu sei que você não está aqui para dar soluções prontas, mas você tem alguma responsabilidade, uma vez que você desconstrói tão provocativamente conceitos, sonhos e vontades que nós, homens e mulheres desse tempo, temos como um lugar para poder realmente criar e relaxar e encostar. Eu acho a vida a dois maravilhosa em muitos e muitos momentos. Eu tenho muito prazer na vida a dois. Então, eu queria saber se você de fato acredita nesse fim tão negro da vida a dois, no fim do casamento, no fim de tudo. Onde é então que nós vamos procurar as nossas utopias?

Laura Kipnis: Volto a dizer que o livro foi escrito para ser polêmico...

Sílvia Poppovic: Conseguiu, então. [risos]

Laura Kipnis: Obrigada. Houve um prazer sádico, devo admitir, ao cutucar os buracos. Uma parte minha gosta de dizer que o rei está nu ou de cutucar o sistema.

Sílvia Poppovic: É uma coisa um pouco sádica, quase.

Laura Kipnis: Mas por outro lado, falar algo que todos sabem, que há prazeres no casal, seria algo muito convencional. Eu não precisava dizer o que já havia sido dito mil vezes ou mais. Mas eu gostaria que você reconhecesse a regressão provocada pelo amor. É uma questão muito complicada porque nossa primeira experiência de amor é com nossos pais. E o amor também é usado na infância como forma de punição, de controle. Somos socializados pelo modo como nossos pais nos dão amor quando somos bons e obedientes, e negam amor quando somos maus. Tem razão, sempre há esse elemento de regressão e também de projeção na outra pessoa. Daí surgem as regras. Faça isso, não faça aquilo. Todos esses elementos estão em jogo e talvez também haja algo inerentemente. Espero que não me chame de sádica por dizer isso, mas há algo inerentemente frustrante e insatisfatório na natureza do desejo. É difícil desejar algo que você já tem, você deseja o que não tem. A questão é se as estruturas que inventamos como a parceria no casamento e o casal monógamo suprem os desejos que entram na instituição, ou se há algo inerentemente insatisfatório. Eu estava interessada em fazer essas perguntas, embora elas sejam penosas. E todos que se apaixonaram sabem que há um elemento utópico e uma grande alegria, e também existe a dor. Existe a dor do fim do amor. Todas essas coisas estão em jogo ao mesmo tempo. Mas eu não inventei a situação. Eu posso descrevê-la de modo mais incisivo do que se costuma fazer, mas não é minha culpa.

José Ângelo Gaiarsa: Talvez pelo fato dela se chamar Laura e esse ser o nome do meu primeiro amor eu estou muito mais a favor do que contra. Sabe, toda a discussão, toda palavra é genérica. Falou em casamento, existem um bilhão de casamentos, desde os mais horríveis até alguns que são admiráveis. É lógico e elementar. Agora, segundo lugar, estou achando fantástico que aqui na reunião os 2 “madurões” acharam a solução. Porque eu também tenho... Nasci em 1920. Eu tive 5 casamentos. A única coisa ruim deles é que todos duraram o dobro do que deviam [risos]. Mas quanto ao mais, é uma das soluções. Quanto aos muitos filhos, hoje em dia, é preciso pensar bem. Primeiro, na superpopulação, e, segundo, eu acho que criança sempre foi muito maltratada. E que crianças precisam de muitas pessoas em volta e não só papai e mamãe.

Mário Lorezi: Agora, você [referindo-se a Gaiarsa] me contou como companheiro de idade. Então, eu quero dizer que a minha atual situação é um casamento distante. Quer dizer, nós não vivemos juntos já há 14 anos. Nos juntamos quinta-feira, sexta-feira, até a segunda. Viajamos juntos. Temos cada um sua própria vida durante 2, 3 dias, que é o que basta para eliminar realmente os conflitos graves. Porque você não cria conflitos graves se você tem 3 ou 4 dias em que você está sozinho. Mesmo telefonando 15 vezes por dia, mesmo fazendo... Eu mando poesias para a minha mulher, mando flores, ela me manda não sei o quê... Quer dizer, temos uma relação tão íntima sendo afastados 3, 4 dias por semana, que eu acho que isso – claro, é uma solução muito específica – mas é para ser levado em consideração. Mesmo para gente jovem, sempre que o tesão não impeça. Quando vejo os casais que você convida para jantar, que têm 20 anos, que você não consegue separá-los nem a pau [imita um casal fazendo brincadeiras e dando risadinhas] Isso não tem jeito [risos]. Mas alguma coisa tem que ser feita porque não pode eliminar a junção de 2 pessoas senão acabamos com a humanidade, como eu disse antes.

Laura Kipnis: Depois que meu livro foi publicado muita gente me escreveu e-mails e as pessoas inventam formas interessantes para viver. Acho que elas estão sendo criativas, inventivas e tentam buscar outras soluções diferentes da de viver juntos numa casa pelo resto da vida, brigando e dizendo ao outro o que fazer. Assim, eu estava interessada não nas situações de convívio, mas nos relacionamentos e na questão da monogamia ou da liberdade que as pessoas inventam com essas soluções diferentes. Há uma inventividade que também surge aqui. Pensei a mesma coisa em relação ao adultério, que as pessoas estão sendo artísticas, ou criativas, tentando criar soluções para o que pode ser esse dilema existencial humano. Há muita criatividade e é interessante, mas é interessante na discussão mais ampla do casamento, que essa criatividade não é discutida. Ela é sempre vista como sendo além da norma. A norma, ao menos nos Estados Unidos, no contexto americano, é um casal com um casamento para a vida toda, mesmo que não seja mais um fato sociológico.

Paulo Markun: Vamos ouvir a pergunta da sexóloga Maria Helena Matarazzo.

[Vídeo com pergunta gravada de Maria Helena Matarazzo]: Atualmente, nós sabemos que a paixão dura de 2 a 3 anos. Depois os casais começam a sofrer ataques periódicos de preguiça sexual. Em que momento a senhora acha que o sexo fica tão entediante que essa coisa deveria ser trabalhada pelo casal?

Laura Kipnis: Não sei se tenho a resposta universal. Seria um assunto para cada casal responder por si. Ao meu modo utópico - pois, como eu disse, eu sou uma romântica -, eu gosto da idéia que eu desejaria ser monógama, que só desejaria uma pessoa. Essa seria a solução ideal: não desejar outras pessoas. Em vez de ter regras dizendo quem e o que desejar. Esse seria o ideal.

Paulo Markun: Agora, você viveu com certeza uma época em que vivemos todos nós aqui, creio, talvez o Fábio não tenha vivido, que era a época do amor livre, em que surgiu a pílula anticoncepcional e ainda não havia surgido a aids. Aquilo era a utopia?

Laura Kipnis: Devo dizer que eu era adolescente, gosto de ressaltar, ou uma pré-adolescente na época do amor livre. A questão do gênero entra em cena porque agora é muito comum se dizer nos Estados Unidos que essa revolução não tenha sido necessariamente uma "revolução da mulher". A questão do prazer sexual da mulher não estava tanto em voga, esse é um assunto mais recente. Mas no livro que escrevi tentei reavivar algumas dessas questões que foram discutidas nos anos 1960, sobretudo na forma como casamento e amor eram questões políticas, e a relação entre a vida política e pessoal, e a política nacional durante a Guerra do Vietnã estava relacionada à questão do casamento monógamo. Há um grande filme, Amargo regresso, com Jane Fonda, que compara as estruturas desse horrível casamento monógamo repressivo e a situação política nos Estados Unidos. Nesse livro, tentei reavivar algumas dessas conexões porque, ao menos no contexto americano, não há um modo de falar sobre amor e casamento politicamente. Isso só é discutido em termos pessoais e morais.

Oscar Pilagallo: A senhora acha que o livro também pode ser lido com sinal trocado? É no seguinte sentido: a senhora vai ao longo do livro falando sobre todos os reveses, todas as repressões, as dificuldades da vida em comum, da vida em casal. A gente pode ler isso também, não como uma relação de coisas ruins, mas como uma advertência para que os casais não caiam nessa situação. Nesse sentido o livro teria uma dimensão até menor, porque cairia na questão da auto-ajuda, o que certamente não é o objetivo. Mas ele também tem esse lado?

Laura Kipnis: Recebi uma carta muito engraçada de alguém que me contou... Há uma lista de coisas, na edição americana são 10 páginas, que você pode ou não fazer, ou melhor, que não pode fazer. São coisas que não pode fazer. No jantar de ensaio de casamento, o jantar que ocorre na véspera do casamento, o padrinho leu a lista completa em voz alta, leu as 10 páginas em voz alta e todos riram, claro. Mas é interessante que diga isso. Acho que há um meio agora pelo qual você não possa escrever um livro que não seja uma auto-ajuda porque as pessoas estão famintas por conselhos sobre o amor. Uma das coisas que procurei ver foram livros de aconselhamento, mas também humoristas, o que os humoristas dizem, porque humoristas costumam dizer a verdade. E há muitas piadas sobre casamento. E essas piadas também falam do casamento como uma prisão, maridos e esposas como carcereiros uns dos outros. Podemos ver a comédia também como um tipo de conselho. Mas a questão, mais uma vez, é como isso volta ao "você precisa trabalhar no seu casamento". Se conselhos funcionassem não precisaríamos tanto deles. Há algo quebrado, talvez na estrutura que as pessoas não querem abordar diretamente. Daí a necessidade de tantos conselhos.

Paulo Markun: Vamos fazer mais um intervalo. Voltamos em instantes com a entrevista que é acompanhada pela platéia que é de Christian Day Marcelino, diretora-executiva da Mine Language Center, Beth Vidigal, diretora da União Brasileira de Escritores e Joyce Cavalcante, escritora e jornalista.

[intervalo]

Paulo Markun: Voltamos com o Roda Viva que esta noite entrevista a escritora americana Laura Kipnis. Laura, no livro, você, num capítulo, relaciona o lar como mais um pedaço daquela série de estruturas castrativas da sociedade que incluem: o hospício, a fábrica, a prisão e que foram descritas por Michel Foucault [(1926-1984), filósofo francês]. Você pensa mesmo isso? O lar é o último dos bastiões? É o goulag [campo de trabalho forçado para criminosos e presos políticos da União Soviética] doméstico?

Laura Kipnis: Você participou de algum jantar, recentemente, na casa de um casal com um dando ordens ao outro? Eu estive num jantar desses recentemente. Sim, é preciso dizer que de algum modo as pessoas não parecem querer ter tanta liberdade quanto seria possível. E essa é a questão perturbadora. Suponho que haja muitas questões perturbadoras, mas há escolhas que podemos fazer em termos de amor. Se o amor é uma substância utópica, se dá margem a aspirações utópicas, por que escolhemos os formatos sociais que promovem a maior quantidade de restrições em vez da maior quantidade de liberdade? Essa é a questão de instituições sociais em geral e eu detestaria pensar que essa é uma propensão humana, mas parece haver algum modo pelo qual nos voltamos a estruturas sociais e formatos autoritários em vez daqueles mais liberais ou que exploram as possibilidades de liberdade possíveis. E isso me assusta. E acho que há algo que tem a ver com a infância e os papéis desempenhados pelos pais ao restringir os impulsos dos filhos que fornece a estrutura, o modelo para a vida familiar e doméstica posterior que criamos. De certo modo nossos cônjuges tornam-se nossos pais - ou nós nos tornamos os pais de nossos cônjuges. Nós revivemos essas relações repressivas infantis. E precisa ser assim? Essa é a pergunta que eu tentava fazer. Gostaria de pensar que isso é verdade.

Fábio Santos: Professora Laura, a gente percebeu aqui pelo depoimento de pelo menos 2 dos entrevistadores que o casamento, na verdade, está em transformação e que você se concentra naquilo que ainda é considerado status quo, mas que não é o que se constata na realidade, pelo menos de algumas das experiências. O que me parece é que o seu problema é com o casamento, com a idéia do casamento monogâmico, onde o amor se realiza eternamente e duradouramente. Hoje em dia não é muito mais fácil a gente se separar? A gente buscar outros casamentos? Então, minha questão é: nós não estamos já construindo uma solução? No início do programa eu tinha questionado qual é a saída. Quer dizer, essa saída já não está sendo construída? A liberalização da mulher... Você usa uma coisa interessante que é: “A independência financeira da mulher na verdade é uma igualdade de submissões”, mas nós não estamos já justamente rompendo essa igualdade de submissões? Hoje não é muito mais fácil construir realidades de vida alternativas? 

Laura Kipnis: Quando você diz... Não sei se entendi perfeitamente, mas acho que você disse que a descrição social no livro, ou a realidade social que eu descrevo, não existe ou está em transição. Uma das coisas que achei interessante quando o livro foi traduzido para contextos diferentes é que parece haver um elemento de reconhecimento. Eu escrevi o que me pareceu ser um retrato preciso, embora um tanto exagerado, da realidade social. Mas se não repercutisse entre as pessoas, não haveria uma discussão, ele não seria lido e comentado. Assim, acho que as pessoas... Entendo que haja um conflito em relação a esse livro, porque acho que... E não falo como um auto-elogio, mas escrevi algo que as pessoas parecem reconhecer intimamente, mas não querem reconhecer publicamente. Preferimos pensar que a situação tem esperança, que está melhorando, que não está tão ruim, que há coisas boas em ser um casal. No geral é verdade, mas há alguns elementos que descrevi que as pessoas sabem que é verdade, mas não querem admitir. E eu entendo isso. Queremos ter boas notícias e eu descrevo uma situação ruim.  Mas a motivação política ao descrever a situação ruim é levar todos a encontrar um modo de superá-la. Sinto que meu trabalho era o de implodir a ponte, implodir o prédio e então... Mas não é meu trabalho dizer: é assim que deve reconstruir. Eu era a responsável pela demolição e outra pessoa viria erguer um edifício melhor.

Gioconda Bordon: Laura, você disse várias vezes que você é uma romântica. Eu também sou. Agora, eu não sou ingênua. Então, eu não estou querendo respostas, mesmo porque, como disse o Gaiarsa, o que a gente tem que fazer, o trabalho de um intelectual, é muito mais procurar perguntas do que respostas. Mas, com a minha idade, que é, acho, é praticamente a mesma que a sua, a gente só pode ter amores maduros, não juvenis, porque já passou. Você fala tão mal do amor maduro, como se o amor maduro fosse uma coisa tão “xôxa”, como um pão requentado, uma coisa velha. Nesse sentidos é que eu gostaria de uma resposta, mas, não tem nenhum alento, nenhuma coisa boa para senhoras, jovens senhoras românticas, por exemplo?

Laura Kipnis: Ok. [risos]

Gioconda Bordon: Ué, estou perguntando, né? Porque ela fala tão mal do amor maduro. Ela coloca como uma coisa de segunda linha, assim, pior do que prêmio de consolação. Aquela coisa com o chinelão sem graça. Não tem uma coisa um pouco melhor?

Laura Kipnis: Na verdade, a metáfora que eu uso, e às vezes escrevo coisas que me fazem rir, e a metáfora que uso com isso é o adesivo dental, aquilo que segura a dentadura. Ele deveria manter as coisas unidas, mas nunca funciona realmente. Quando li esses livros de aconselhamento perdendo somente para a expressão "trabalhar na relação", havia a afirmação "o amor romântico acaba e então temos o amor maduro". E fiquei tão cansada de ouvir a expressão "amor maduro" que eu simplesmente quis acabar com ela. Sei que você me acusou de não ser realista, ou de ser ingênua, e a idéia que me veio à cabeça... Me perdoe porque vou falar no modo polêmico. Nos Estados Unidos discute-se muito se a tortura deve ser usada em determinadas circunstâncias. E ser um realista político, hoje, nos Estados Unidos, é dizer que a tortura deveria ser utilizada após o 11 de setembro. E a discussão sobre como ser realista e seu significado pode ser aplicada às situações mais desumanas. Eu gostaria de pensar que os seres humanos poderiam criar melhores formas do que usar tortura, de uma forma política realista, e penso a mesma coisa sobre todo esse diálogo e discurso sobre maturidade. O que tem de tão fantástico nisso? Eu sou a favor de prazer, diversão, brincadeira e parece que quando nos casamos é trabalho duro, maturidade. Como eu digo: o cemitério prematuro. Deve haver um modo de, sendo realistas, dizermos: sim, deve trabalhar no seu casamento, mas gostaria de pedir algo mais, mais diversão, mais descontração, menos tortura.

Parlo Markun: Mas esse caminho do prazer, da alegria e da diversão, em não sendo de alguma forma acordado... Porque é bom que se diga que o seu livro aborda não apenas o casamento homem e mulher convencional. Você coloca tudo no mesmo saco: homossexuais, até mesmo não casados, adultério, tudo que é relações humanas entre casais nesse sentido mais amplo. Não é complicado ter diversão, entretenimento, alegria e desejo liberado se a velocidade com que as pessoas correm nessa pista pode ser diferente? Quer dizer, o que é diversão pra mim pode não ser para minha parceira e vice-versa?

Laura Kipnis: Eu não quero determinar o que é diversão ou dizer a outro o que deve ser a diversão. Isso traz de volta a questão do adultério. É verdade que o adultério pode evoluir e se tornar um mini-casamento com regras próprias. Eu estava lendo um jornal que me enviaram sobre... Nos Estados Unidos chamam de “polyamore” ou troca de casais, casais se encontrando para trocar e fazer sexo como uma alternativa possível para se divertir no contexto do casamento. Você não pode ter ligação emocional, mas pode ter ligação sexual.

Paulo Markun: Não é uma selva, mas um jardim zoológico. Algo assim?

Laura Kipnis: [Risos] É um pouco como um zoológico. E o que me chamou a atenção ao ler esse jornal foi o número de regras que havia nesse "polyamore". É uma situação na qual, para lidar com o fato de que o desejo não dura, os casais participam desse jogo. Na verdade eles dizem "casais de jogadores". Essa é a expressão que utilizam. Mas novamente são mais regras e isso é o interessante. E esse pode ser um dilema humano, o desejo, a livre expressão do desejo é ameaçadora para estruturas e instituições sociais, mas essa idéia de ter um desejo que é supostamente livre, mas extremamente regulado é contraditória.

Oscar Pilagallo: Professora, no finalzinho do livro a senhora faz um comentário sobre o título do livro que se chama Contra o amor, mas em inglês esse "contra", que é o "against", tem uma conotação que não é totalmente de contra, mas também de próximo. Estaria aí a chave para se entender muita coisa que foi dita antes? Não seria, como a senhora disse aqui, um livro contra o amor, mas na verdade a favor? É uma chave pra se entender o livro?

Laura Kipnis: Disseram-me que a tradução não é equivalente em português, pois "against" tem dois significados em inglês. Eu enfrentei o problema de como terminar o livro. Se eu não iria resolver o problema, como poderia levá-lo a uma conclusão? Quando percebi que "against" tinha 2 significados, me pareceu ser uma solução provisória, um final provisório. Mas outra coisa que cito no final é o flerte, a possibilidade de ser suspenso entre 2 opções ou ter desejo, mas não necessariamente agir por ele, deixar as questões em aberto. De certo modo isso foi uma discussão literária, mas também foi, de certo modo, psicológica, a idéia de ter mais abertura. Sei que pareço utópica e ingênua por dizer isso, mas também é uma resposta, é uma estratégia propor isto. De certo modo devo reconhecer que para ser contra trabalhar no seu relacionamento, é estratégico dizer isso, dizer porque devemos trabalhar tanto. Eu entendo que nas nossas vidas pessoais e na minha própria vida pessoal, eu posso concordar que você deva trabalhar no seu casamento, ou que haja algum valor na maturidade em relação a ser infantil. Mas, para o propósito da polêmica, para levantar questões e fazer uma crítica, achei que eu poderia fazer isso. Assim, para deixar essas possibilidades abertas e para haver mais níveis em jogo, me pareceu ser algo útil de fazer.

Paulo Markun: Laura, nosso tempo está acabando e eu queria fazer uma última pergunta que também, mais ou menos, remete à primeira. Partindo do princípio de uma frase do escritor argentino Ernesto Sábato. Ela é um pouco mais complicada do que eu vou falar aqui, mas ele dizia que toda donzela tem dentro de si um dragão. Então, a pergunta é a seguinte: você continua esperando o príncipe encantado? [risos]

Laura Kipnis: Claro, claro. Todos sabemos que estar apaixonado, estar nas nuvens, é uma experiência incrivelmente feliz. E talvez haja um pouco de narcisismo nisso também. Uma das coisas que acontece quando você se apaixona é que você se apaixona por si mesmo também. Alguém olha você com adoração e você se vê refletido nos olhos do outro e se apaixona por si mesmo. Há um elemento de narcisismo e gratificação nisso que provavelmente não tem paralelo em nada, a não ser ter várias pessoas falando do livro que escreveu, o que foi um grande prazer, obrigada.

Paulo Markun: Muito Obrigada, Laura. Obrigado aos nosso entrevistadores e a você que está em casa. Estaremos aqui na próxima segunda-feira, com mais um Roda Viva. 

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