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Memória Roda Viva

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Evo Morales

21/4/2006

Eleito com mais de 50% dos votos, Morales tornou-se o primeiro indígena a governar a Bolívia

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Programa gravado, sem perguntas de telespectadores.

Paulo Markun: Boa noite! O Roda Viva atravessou a Cordilheira dos Andes e veio até o altiplano boliviano, no país mais pobre da América do Sul, que já registrou os mais turbulentos capítulos da história política da região e que também vive, agora, um momento de grande excitação política, tentando trilhar o novo caminho que escolheu recentemente. Estamos no palácio do governo, em La Paz, e o nosso convidado desta noite é o presidente Evo Morales. Ele é o primeiro descendente de indígenas a ser eleito e tomar posse como presidente da Bolívia e isso representou uma das mais importantes viradas políticas da história da Bolívia. Evo Morales assumiu o governo da Bolívia com um projeto de transformação política e econômica do país baseado na reivindicação dos movimentos sociais. Vários deles inspirados pelo próprio Evo Morales, que fez carreira política depois de se tornar um influente líder sindical dos camponeses plantadores de coca.

[Comentarista]: Evo Morales é um fenômeno eleitoral. De um lado, por ter alcançado quase 54% dos votos nas eleições de dezembro do ano passado, cifra recorde na história democrática da Bolívia. De outro, por ser um camponês de origem indígena que chegou a presidente da República. A história política de Evo Morales tem raízes na infância vivida em Orinoca, em uma das regiões mais pobres e esquecidas do país. Desde criança tentou vários caminhos. Foi agricultor, padeiro, músico e jogador de futebol até aos 21 anos, quando entrou na vida sindical e tornou-se líder dos camponeses da região de Cochabamba. Defendendo a plantação de coca como forma de sobrevivência dos camponeses, Evo Morales resolveu levar sua atuação ao plano político. Foi eleito deputado em 1998, mas acabou cassado, acusado de terrorismo. Voltou em 2002, quando ficou em segundo lugar para presidência da República. O candidato vencedor, Sanchez de Lozada, renunciou no ano seguinte pressionado pelos violentos protestos dos movimentos sociais liderados por Evo Morales. O vice-presidente Carlos Mesa assumiu, para renunciar em 2005, também pressionado por revoltas populares. Foi nesse quadro de crise aguda, com a queda de dois presidentes em menos de dois anos, que Evo Morales ganhou espaço. Disputou as eleições antecipadas, de 2005, e se elegeu presidente à frente do MAS (Movimento ao Socialismo) partido de forte base popular que ele criou para seu projeto de transformação da Bolívia: nacionalizar indústrias estratégicas, reduzir preços, aumentar impostos para os ricos e redistribuir terras, entre outros pontos. Há três meses no governo, Evo Morales reabriu o enfrentamento com as elites. Registra até 80% de apoio popular, mas é alvo de crescentes críticas na imprensa. E começou a enfrentar, recentemente, greves e protestos de movimentos sociais e funcionários públicos que reclamam aumento de salário.

Paulo Markun: Para entrevistar o presidente da Bolívia, Evo Morales, convidamos: Roberto Lameirinhas, repórter da editoria internacional do jornal O Estado de S. Paulo; Jorge Cuba, correspondente da Agência France Press em La Paz; Marcelo Cavallari, editor de internacional da revista Época; Eliane Cantanhêde, colunista do jornal Folha de S. Paulo; Carla Patrícia, do Canal 7 da Bolívia; Rocio Bernal, da Cadena A, também aqui da Bolívia

Paulo Markun: O Roda Viva, você sabe, é transmitido em Rede Nacional de TV para todo o Brasil. Hoje, porque se trata de um programa gravado na sexta-feira, poucos dias antes de ir ao ar, não permite a participação dos telespectadores, mas você pode mandar críticas e sugestões pelo site do programa: www.tvcultura.com.br

Paulo Markun: Boa noite, presidente.

Evo Morales: Muito obrigado e boa noite.

Paulo Markun: Eu assisti ao senhor falando poucos dias atrás, num evento aqui para crianças no dia da criança aqui da Bolívia, que quando o senhor era jovem tinha o sonho de conhecer o palácio presidencial e não conseguiu conhecer o palácio porque era fechado para crianças. Ontem, quando nós viemos montar aqui o cenário para essa entrevista, eu vi que havia muitos estudantes de escolas daqui da Bolívia conhecendo o palácio. A pergunta que eu faço ao senhor é a seguinte: o sonho do senhor continua sendo um sonho, agora que o senhor é presidente ou está virando um pesadelo?

Evo Morales: Antes de qualquer coisa, gostaria de agradecer pela visita e por essa entrevista. Eu nunca sonhei em ser presidente. Mas essa presidência é um sonho de qualquer forma. É o sonho de muitos irmãos indígenas, não somente da Bolívia, mas de todo continente. Sinto que tenho uma responsabilidade enorme e muito pouco tempo. Sinto que sou dirigente e amplio minhas responsabilidades em todos os níveis, não apenas na Bolívia como também internacionalmente. Tenho a responsabilidade de modificar uma história sombria que a colônia e a República nos deixaram. Estamos nesse processo de mudança para a democracia. Estou contente porque, depois de três meses de governo, estou aprendendo bastante. O palácio do governo se tornou uma grande universidade para mim. As reuniões com as equipes de gabinete e com os movimentos sociais são formas de aprender sobre temas de injustiça e aprender sobre a desigualdade em meu país. Estou muito animado e fortalecido para seguir em frente.

Rocio Bernal: Presidente, gostaria de perguntar ao senhor algo mais humano, que os brasileiros certamente querem saber. Qual o maior impacto que o senhor sentiu por ter nascido na província de Oruro, em Orinoca, por ter nascido em uma casa pobre e ter se tornado dirigente, seguir com uma luta sem privilégios e hoje ser a autoridade mais importante da Bolívia, além de estar rodeado pelas tentações do poder? Qual o maior impacto dessa mudança de papel que o senhor está vivendo, estando rodeado de privilégios do poder? Como o senhor se sente, como pessoa, vivendo nesses dois mundos tão diferentes?

Evo Morales: A chegada à presidência é motivo de orgulho para os povos indígenas, historicamente ameaçados de extermínio, não apenas marginalizados, excluídos, mas também odiados e desprezados. É impressionante quando visito as comunidades, todos somos presidente, somos o governo. Evo Morales não é o único a ocupar este cargo. A força do movimento dos camponeses é impressionante. Não podemos nos equivocar. Porque, nesse caso, nosso equívoco durará mais 500 anos.

Carla Patrícia: Senhor presidente, o senhor chegou à presidência despertando muita expectativa em todo o povo boliviano, como o senhor mesmo disse. Um sonho dos bolivianos se tornou realidade com seu mandato, que acaba de completar três meses. O senhor deu sinais claros de que está trabalhando no que prometeu em sua campanha eleitoral, como a luta contra a corrupção e a Assembléia Constituinte. Mas é claro que ainda há dificuldades no dia-a-dia. Como é possível estar à altura das expectativas do povo boliviano e vencer as dificuldades?

Evo Morales: Eu diria que apenas estamos começando apesar de algumas pessoas acreditarem que o trabalho está avançado. Claro, dos dez pontos em que trabalhamos, pelo menos, temos cumprido um tema muito importante, que é a Assembléia Constituinte. Tive muito medo de que o Congresso não aprovasse a lei convocatória da Assembléia Constituinte. Graças a essa abertura e a essa forma de buscar consenso, avançamos muito. Cumprir a Assembléia Constituinte é cumprir metade do programa do MAS e realizar o desejo do povo de trazer reformas à Bolívia. O tema da austeridade também é outro ponto que cumprimos. Ainda precisamos avançar muito na luta contra a corrupção. Dos dez temas que prometemos cumprir, já cumprimos quatro. Já cumprimos quatro tarefas em três meses, mas falta criar programas. O mais difícil será gerar empregos. O governo anterior deixou o poder em 31 de dezembro com zero de orçamento. Precisamos avançar nesse tema. Inicialmente, conseguimos criar quarenta mil empregos em dois meses. Posteriormente, graças a negociações, conseguiremos criar mais de cem mil empregos em dois anos, mesmo sem ter prometido isso. Por exemplo, a questão dos aposentados, dos dentistas, o pagamento inversamente proporcional. Não prometemos, mas fazemos. Agora, os aposentados dizem que antes precisavam de muitas manifestações, e que hoje conseguiram o que pediam sem fazer nenhuma. Vamos seguir avançando com o magistério e com outros setores. Queremos devolver os bens antes chamados de fundos complementares, que não estavam no nosso programa, mas vemos que é importante. Teremos que resolver esse problema.

Eliane Cantanhêde: Presidente, continuando aqui a seqüência das mulheres, nós começamos pelas mulheres. E também complementando uma pergunta da colega. Há uma curiosidade no Brasil, e não só no Brasil, mas no mundo todo, sobre a identidade política Evo Morales. Com que modelos o senhor diz que está aprendendo na presidência? Quais são seus modelos no momento em que se fala de uma esquerdização da América Latina? O seu modelo é o Fidel [Castro, presidente de Cuba], é o [Hugo] Chávez [presidente da Venezuela], o Lula, talvez, a [Michelle] Bachelet [presidente do Chile]? Quem são seus modelos e o que significa isso?

Evo Morales: Cada país tem suas particularidades. O presidente Lula se destaca bastante com sua combinação de economia popular, camponesa e do movimento dos sem-terra com a economia empresarial. Admiro muito essa forma de trabalhar. Li nos jornais que Lula disse que, graças ao diálogo, conseguiu entregar propriedades ao sem-terra. É certo que isso não é suficiente. Mas admiro como implementa essa economia mista. Admiro e respeito Hugo Chávez. Valorizo o fato de que os recursos hidrocarboníferos estejam nas mãos do Estado, sob controle do governo. Como resultado, os venezuelanos pagam menos de dois dólares para encher o tanque de gasolina de seu carro. Aqui pagamos ao menos trinta dólares, cerca de quatrocentos bolivianos para encher um tanque de gasolina. Dois dólares são apenas 15 bolivianos, é muito barato. É claro que o povo tem que se beneficiar dos recursos naturais do nosso país. A política cubana faz bem a seu povo em termos de saúde e educação. A água potável está a cargo do Estado. Com um dólar paga-se o abastecimento de água potável por dois anos. Esses temas sociais são impressionantes. Além disso, Fidel Castro te ensina a governar com dignidade apesar do bloqueio econômico. Aqui, na Bolívia, precisamos recuperar os recursos naturais para que sejam a base da nova política econômica. Se nós, o povo indígena, falamos em nos libertarmos, podemos fazê-lo. Estamos no palácio de governo e no parlamento. Estaremos nas embaixadas. Mas se não libertarmos nossos recursos naturais, essa terá sido apenas uma libertação social ou a simples conquista de direitos políticos. Precisamos libertar os recursos naturais para libertarmos o movimento indígena. Estive na África do Sul. Claro, os negros conseguiram eleger um presidente e ministros. Mas sinto que ainda não libertaram seus recursos naturais. Os problemas sociais e estruturais continuam. Espero não estar errado, mas tenho certeza de que em breve haverá outro Nelson Mandela, que não somente libertará os direitos do povo negro, mas também os recursos naturais.

Paulo Markun: O grande problema disso não é o ato de em Cuba haver um modelo econômico diferente, por exemplo, do Brasil? E na Venezuela também é um modelo econômico diferente. O que faz com que os recursos naturais na África do Sul não estejam liberados em benefício da sua população é talvez o modelo econômico capitalista. O senhor imagina mudar esse modelo? Não ser mais capitalismo a Bolívia?

Evo Morales: Os países anti-imperialistas e anti-neoliberais são os que têm maior crescimento econômico. O crescimento econômico de Cuba, segundo dados do Cepal, o Conselho Econômico para a América Latina, foi de mais de 11% em 2005. Eu diria que Cuba mereceu medalha de ouro em matéria de crescimento econômico em 2005. A Venezuela tem mais de 9% de crescimento econômico. A Argentina de [Nestor] Kirchner tem mais de 8%. O crescimento econômico da América Latina demonstra que o modelo neoliberal não é solução para nossos países. Se o modelo neoliberal não é uma solução para o crescimento econômico...

Eliane Cantanhêde: O Brasil cresceu entre 2,3%.

Evo Morales: Se o modelo neoliberal não é uma solução para o crescimento econômico da América Latina, sinto que o sistema capitalista, que é tão excludente e selvagem, não é nenhuma solução. Qual é a nossa tarefa? Como modificar esses modelos econômicos? Na Bolívia, não há outra alternativa: que os recursos naturais voltem para as mãos do Estado, essa é a nacionalização. É preciso acabar com as políticas de concessão e privatização. O dinheiro gerado pelos recursos naturais não-renováveis precisa ser investido na agricultura. Em todo caso, precisamos buscar mercados, mas não através de uma política de livre mercado, porque ela pode acabar com nossos mercados e produtores. É preciso haver comércio justo, comércio entre povos. Por isso trabalhamos em um tratado de comércio dos povos para os povos, que crie empregos e recursos econômicos que nos permitam resolver nossos problemas. Estou convencido de que o setor agropecuário precisa de subvenções, contando com mecanização. Portanto, estamos falando de um modelo econômico anti-neoliberal, em que o Estado se responsabiliza por gerar e planejar desenvolvimento, além de gerar recursos econômicos provenientes fundamentalmente dos recursos naturais, também no que se refere à agricultura.

Marcelo Cavallari: O senhor citou como exemplo Cuba por conta de sucessos econômicos. Mas Cuba não é um país democrático. O socialismo que o seu movimento ao socialismo visa é esse socialismo? É assemelhado ao soviético, ao cubano? Qual é esse socialismo em direção ao qual o seu movimento caminha?

Evo Morales: Afirmar que Cuba não é um país democrático é um erro. Eu presenciei eleições de autoridades locais e regionais em Cuba. Quem não ganha por mais de 50% não é autoridade. Nesse caso há um segundo turno. Isso é democrático. Esse é o início de uma democracia de consenso. Se puder, falarei sobre a Assembléia Constituinte. Como implementar uma democracia de consenso em nossa cultura? Quando há maiorias e minorias há, automaticamente, conflitos e confrontos. Mas se houver uma proposta sobre um tema específico que resolva o problema da coletividade e da comunidade, não haverá maiorias e minorias. Quero que à Assembléia Constituinte se incorpore uma democracia de consenso. Essa é a única forma de resolver o problema. Entendo por socialismo a existência de igualdade e justiça, além da redistribuição de riquezas. As riquezas não podem se concentrar em poucas mãos. O que é comunismo? Viver em comunidade e coletividade. Estou convencido de que se houver uma política de comunismo, uma forma de vivermos em coletividade e comunidade... Os povos indígenas viviam em comunidade. Onde nasci, em Orinoca, não há propriedade privada. Há propriedade comum, uma zona pecuária, uma zona agrícola voltada para a produção. Do que estamos falando? De igualdade, justiça e viver em coletividade.

Jorge Cuba: Isso significa a volta de um Estado protetor ou um capitalismo de Estado? Estou levando em conta as duas últimas perguntas dos meus colegas. Qual o tipo de Estado deseja a administração Evo Morales para mudar o estado de coisas, um Estado boliviano tão injusto em 180 anos de história?

Evo Morales: É preciso haver um Estado protetor, que planeje o desenvolvimento a curto, médio e longo prazo. Um Estado “papai” que comece a gerar mais recursos e excedentes econômicos para que haja mais saúde e educação, especialmente quanto ao tema “caminhos” [referência à construção e melhoria de estradas], no que se refere à Bolívia. Isso não significa ser um Estado capitalista, mas sim investir na participação popular. A participação dos movimentos sociais é importante em um Estado que começa a gerar recursos econômicos.

Roberto Lameirinhas: Quando o senhor se referiu a Cuba, o que o Marcelo estava dizendo, que considerava que havia graves falhas nessa democracia consensual, que foi citada sobre Cuba... Em Cuba não se tem imprensa livre, existem restrições sobre a atuação da oposição. Eu queria saber se existe alguma possibilidade ou perspectiva de que esse modelo... Se o senhor considera esse modelo realmente um modelo democrático.

Evo Morales: Um Estado, um governo, um presidente, um comandante que resolve o problema da saúde e da educação, apesar do bloqueio econômico, está do lado de seu povo. Um presidente que, em primeiro de maio, consegue concentrar dois milhões de pessoas a seu lado... Essa é a melhor democracia. Que presidente pode estar com cerca de dois milhões de pessoas nos EUA? Alguns presidentes são repudiados, outros condenados. Vejamos Bush. Quando Bush vai a algum país, seus representantes são repudiados, condenados, há protestos. Mas quando Fidel viaja, muita gente o recebe, assim como recebem Chávez. Essa é a melhor democracia, estar com o povo e não simplesmente com o império. Creio que essa é a grande diferença. Há políticas internas importantes. Fundamentalmente cuidar da saúde e da educação, que são os temas mais importantes e básicos. Cheguei a essa conclusão. Quando eu era dirigente, cuidava mais da terra, das folhas de coca, do tema dos direitos humanos. Mas, quando assumi este posto, percebi que o problema mais importante é saúde e educação. Não temos recursos econômicos para criar projetos de saúde e educação, precisamos de mais centros de educação e hospitais onde as comunidades camponesas possam fazer cirurgias e o médico não leve os pacientes do campo para a cidade, e os vejamos morrer no caminho. Precisamos criar hospitais e para isso precisamos de dinheiro. Para conseguir dinheiro precisamos dos recursos naturais. Se um governo regula sua economia, apesar de algumas restrições... Há restrições em qualquer país. Não creio que essa seja a forma de melhorar os direitos humanos. Alguns países, como o Brasil, fazem uma combinação de uma economia empresarial, oligárquica, mas com uma economia popular, de base. Não sei como está avançando o projeto Fome Zero. Gostaria de conhecer melhor o programa Fome Zero. Não se trata de copiar o modelo econômico de Cuba, Venezuela ou do Brasil. Cada região tem sua própria particularidade. Na Bolívia, se não resolvermos os problemas sociais de saúde, educação, alimentação e emprego para a maioria, que são os povos indígenas, jamais resolveremos nosso problema.

VT em off: País mais pobre da América do Sul, a Bolívia tem, em contrapartida, uma das maiores riquezas de subsolo da região. Além de zinco, estanho e prata, tem petróleo e a segunda maior reserva de gás natural do continente. Já no ano passado cresceu muito a pressão de movimentos sociais então liderados por Evo Morales, pedindo mais controle estatal sobre os recursos naturais. A idéia do governo de nacionalizar o setor e aumentar preços em impostos sobre o gás boliviano criou uma situação delicada com o Brasil, ao trazer incertezas sobre o futuro da Petrobras no país. A estatal brasileira de petróleo é hoje a maior empresa instalada na Bolívia. Além das dúvidas sobre novos investimentos, a Petrobras passaria a pagar duas vezes mais imposto para continuar enviando gás natural ao Brasil. Mais da metade do gás que o mercado brasileiro precisa vem hoje da Bolívia através de um gasoduto de quase 3.200 quilômetros, que chega a São Paulo onde se divide em dois ramais. Um para o Rio de Janeiro e Minas Gerais e o outro para o sul do país. O gás natural boliviano é usado para gerar energia em indústrias brasileiras e também para abastecer a crescente frota de veículos adaptados ao GNV, o gás natural veicular bem mais barato e menos poluente que a gasolina.

Paulo Markun: Presidente, eu tenho uma pergunta agora do presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo.

VT de Paulo Skaf: Presidente Evo Morales, em primeiro lugar, meus cumprimentos pela sua eleição e o desejo de um produtivo trabalho. O Brasil já tem em seu país vários investimentos, notadamente o grande projeto desenvolvido pela Petrobras. Não apenas os empresários que já investem na Bolívia, mas em especial inúmeros setores e que também pensam em investir podem confiar no cumprimento dos contratos existentes, no respeito aos direitos comerciais, num estado de segurança para os negócios?

Evo Morales: Disse em minha campanha, e continuo repetindo, que precisamos de sócios. Não há donos ou patrões no que se refere aos recursos naturais. Chegou a hora de negociar nossos recursos naturais. As empresas de petróleo, ou de serviço, que se submetem às leis bolivianas terão segurança jurídica, têm direito de investir, recuperar seu investimento. Mas empresas como a EBX... [holding brasileira fundada e presidida por Eike Batista, em 1983, que administra negócios nos segmentos de mineração, imóveis, energia, fontes renováveis e entretenimento]. É lamentável. A empresa tem dois caminhos: abandonar voluntariamente ou ser expulsa. Ela não respeitou as leis bolivianas e se instalou ilegalmente. Essa empresa não respeitou a constituição política boliviana. Depois que chegaram aqui... O território tem dono. Aqui não é terra de ninguém. Seguramente antes, com um tipo de suborno, puderam se instalar. Isso terminou. E queremos investimentos, mas não investimentos ilegais. Não queremos empresas fajutas, ilegais, que não respeitem as leis bolivianas. De qualquer forma, respeitamos os contratos. Se quiserem que eu fale de verdade da Petrobras, há muitos problemas. Talvez seja a empresa, não o governo. Queremos a presença da Petrobras, mas a empresa tem que respeitar a vontade soberana do povo. O povo, mediante referendo, decidiu nacionalizar e recuperar esses recursos naturais para os bolivianos. Antes era 18% para o povo e 82% para as empresas. Isso é roubo, é saque. Lamento muito que os governos anteriores tenham aceitado isso. Vamos garantir que as empresas tenham o direito de recuperar seus investimentos e gerar lucro. Mas vamos nacionalizar nossos recursos naturais. O chamado “direito da propriedade na boca do poço” [refere-se à idéia de que quem encontra petróleo é o dono] terminou. A boca do poço será do Estado. Isso não significa confiscar bens das empresas. Elas têm direito de ficar e vamos respeitá-las.

Paulo Markun: Presidente, eu só gostaria, antes de passar para os meus companheiros, de explicar para o telespectador que essa empresa EBX é uma siderúrgica que tem capital basicamente brasileiro e que estava construindo na fronteira e que foi paralisada a construção. A empresa publicou notas, publicidades nos jornais daqui dizendo que cumpre todas as leis. O que o senhor tem a dizer a respeito disso?

Evo Morales: A empresa EBX não tem licença ambiental e não respeita as normas. E, além disso, a empresa não respeitou a Constituição política boliviana. Segundo nossa Constituição, nenhuma empresa privada transnacional pode se instalar a 50 quilômetros de nossa fronteira. Lamento muito que essa empresa queira dividir os bolivianos. Usa alguns setores para criar conflitos. Isso não é uma empresa, é uma máfia montada para prejudicar o governo e se aproveitar ilegalmente de nossos recursos naturais.

Carla Patrícia: Voltando à questão da nacionalização, sabemos que seu governo está preparando um decreto supremo para levar adiante a nacionalização dos recursos naturais sem expropriação. De que forma será possível entrar em consenso com as multinacionais petrolíferas que estão presentes no país? Quais serão as novas regras do jogo a partir desse decreto supremo?

Evo Morales: É preciso respeitar a última lei aprovada. As empresas têm que adequar seus contratos à nova lei. Haverá prazos importantes para a renegociação de novos contratos. Apenas dessa forma podemos garantir que a empresa tenha um lucro mínimo. Não como antes, quando lucravam e nos saqueavam. Estamos fazendo auditorias internas em empresas que, evidentemente, investiram e exploraram nossos recursos, mas que recuperaram esses investimentos. Então, essas empresas têm que entender essa situação. A maioria das empresas nos escutou e respeitará as novas normas e decisões. Como nação soberana, vamos decidir sobre nossos recursos naturais.

Roberto Lameirinhas: Em que espírito estão sendo renegociados os contratos especificamente com a Petrobras? Houve problemas com outras empresas, problemas sérios, com a Repsol YPF [companhia petrolífera espanhola formada a partir da compra da empresa estatal argentina YPF pela empresa espanhola Repsol; explora petróleo e gás natural], que teve alguns executivos detidos aqui na Bolívia. Com a Petrobras, especificamente, com que espírito esses contratos estão sendo renegociados?

Evo Morales: Temos contratos permanentes. Hoje pela manhã, estava me informando o ministro dos Hidrocarbonetos, André Soliz Rada, que recentemente voltou do Brasil. Estava com outros funcionários e os respeitamos muitíssimo. Nos apresentaram contas também e falamos de alguns temas econômicos que a Petrobras deve ao Estado boliviano. Quero pensar que é uma dívida, quem sabe uma questão econômica. E não uma dívida violando as leis do Estado boliviano. Isso será investigado.

Roberto Lameirinhas: Essa dívida se refere às duas refinarias de petróleo que são controladas pela Petrobras e que o Estado boliviano quer de volta?

Evo Morales: São muitos aspectos. Estamos investigando.

[duas entrevistadoras falam ao mesmo tempo]

Evo Morales: Eu quero ser responsável por esse tema, não é simples. É simples preparar o decreto supremo. A parte operacional é difícil. Precisamos de um batalhão de engenheiros e especialistas em hidrocarbonetos trabalhando nisso, pois se trata de exercer o direito de propriedade como bolivianos. Precisamos de pessoas trabalhando comigo, que sejam patriotas comigo, mas também com a Bolívia. Não posso dizer quando, mas essa será a terceira nacionalização desses recursos naturais.

Rocio Bernal: Ainda sobre a Petrobras, vejo dois cenários com essa empresa. Um primeiro cenário, em que depois de algumas reuniões, o governo havia afirmado que tudo estava indo bem e que a Petrobras se transformaria em um dos principais sócios do que seria a empresa YPFB. E uma segunda etapa, quando aparece um conflito e a Petrobras afirma que congelará os investimentos na Bolívia. Qual é o impasse que esses dois cenários geraram em seu governo? Qual é a razão dessa espécie de distanciamento entre a Petrobras e o seu governo neste momento? A Petrobras será mantida no país com boas condições ou irá embora?

Evo Morales: Não apenas a Petrobras, mas empresas petrolíferas, sempre querem ganhar muito dinheiro. E não querem que seus interesses econômicos sejam afetados. Por isso, esse é um momento de decisão. Antes, 18% ia para a Bolívia, e 82% para as empresas. Nós vamos mudar isso. Isso não significa expropriar, confiscar, nem expulsar. E como se informaram? Há muitos infiltrados em nossa equipe. Porque aqui não se trata de negociar porcentagens com as empresas. É uma vontade soberana. Qualquer governo faria o que vamos fazer. Não nos entregaremos. Aqui não se compra Evo Morales nem os ministros. Vocês conhecem a posição do nosso companheiro André Soliz Rada. Ele é incorruptível. São essas pessoas que têm que levar adiante o tema da nacionalização. Possivelmente, algumas empresas já se beneficiaram e não querem mais investir. Há empresas implorando para investir. O problema é que, às vezes, fazem chantagens. Mas não permitiremos chantagens. Todas as empresas têm direito de ganhar. Vamos respeitar isso, mas não ganharão o mesmo que antes.

Eliane Cantanhêde: O presidente Chávez, por exemplo, e outros presidentes da América Latina têm muito contato com outras empresas brasileiras, inclusive se aproveitando de uma linha de beneficiamento muito poderosa no continente que é a do BNDES, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social do Brasil. O senhor, primeiro: tem algum tipo de projeto com empresas brasileiras com linha de financiamento do BNDES? E segundo: o senhor não teme que esse problema com a EBX e com a Petrobras possa interromper negociações com outras empresas brasileiras desse porte?

Evo Morales: Não. De qualquer forma, se vamos começar a controlar os recursos naturais, se essas empresas querem impedir as negociações, como, por exemplo, o BNDES, é uma questão de dignidade e vamos respeitar isso. Neste momento, tenho a informação de que o Brasil não quer acompanhar a Bolívia na posição junto ao BID. Não vamos exigir ou pressionar. Nem por isso vamos romper relações. O Brasil é o irmão maior do povo boliviano, por sua extensão, população, desenvolvimento e indústria. Lula é um sindicalista de setor operário. É nosso irmão maior. Cada país tem o direito de decidir soberanamente sobre seus bancos e investimentos. Nós também, apesar de sermos um país subdesenvolvido com muitos problemas econômicos, como você dizia, “o país mais atrasado”, mas atrasado devido a um roubo por parte dessas empresas. De todas as empresas, historicamente. Isso tem que mudar, para que não sejamos chamados de país subdesenvolvido. E nós como donos absolutos desta nobre terra, com muita responsabilidade, podemos mudar essa história de roubo de nossos recursos naturais.

Marcelo Cavallari: Presidente, esse controle sobre os recursos naturais tem um certo limite dado pelo próprio mercado. No momento em que as relações entre o governo boliviano e a Petrobras estiveram mais tensas, o governo boliviano disse que aceitava até a possibilidade de a Petrobras ir embora porque havia outros compradores. Quem são esses outros compradores além do Brasil para o gás boliviano?

Evo Morales: Anteontem eu estava em Assunção, no Paraguai, no Uruguai. Eu sei que é um mercado muito pequeno, mas se falamos de mercado, aqui, o mercado interno. Não se pode acreditar que aqui, enquanto o gás corre por debaixo da terra, o movimento indígena e os camponeses não possam usufruir dele. Há tantos problemas nos países vizinhos. Precisamos pensar mais além da nacionalização do gás natural da Bolívia. Temos que criar estratégias regionais com empresas de Estados, pode ser Petrobras, pode ser PDVSA [Petróleo de Venezuela Sociedade Anônima, estatal venezuelana], para buscar soluções integrais para a região. Parece que nesta entrevista estamos tratando de como satanizar....que Bolívia e seus recursos naturais. Precisamos pensar muito mais além e, a longo prazo, resolver os problemas energéticos. Teremos problemas energéticos. Também teremos problemas de abastecimento de água. Por isso, esses recursos naturais têm que ser muito bem aproveitados, mas não através de uma política de roubo e de interesses, senão que se pense no povo, na maioria. Essa deve ser a política energética de nosso país. Querem nos confrontar. Há dois meses, certamente os jornalistas bolivianos se lembram, diziam que a Venezuela ia construir um gasoduto até o Brasil e que o gás ia custar muito mais barato do que o comprado na Bolívia. É mentira. A imprensa quer nos confrontar. Peço a vocês, jornalistas, que não nos confrontem. Somos países da mesma região, somos da América do Sul. Mesmo aqui, os jornalistas dizem que Chávez é meu amigo, mas que vai cobrar mais barato pelo gás que os brasileiros comprarão e que vamos perder mercado de gás no Brasil. Que mentira. Eu sei que vocês, sem nós, não podem viver a médio prazo. Nós também não, precisamos uns dos outros. É isso que precisamos resolver, precisamos pensar mais além. Não é só uma questão de falar sobre gás natural e petróleo. Somos povos que lutam pela vida para defender e salvar a humanidade. Esse é outro tema, se temos que falar de meio-ambiente.

Jorge Cuba: A partir do teor de suas respostas, presidente, e do caráter das perguntas dos colegas brasileiros, tenho a impressão que, e o senhor me corrigirá se estiver errado, a posição da administração do seu governo em relação à Petrobras, principalmente depois deste último incidente da siderúrgica brasileira, pode representar um risco para as boas relações que o senhor nutre com o presidente Lula, na esfera pessoal, mas também com o governo brasileiro.

Evo Morales: Não creio que uma empresa que opera ilegalmente, inconstitucionalmente, seja um motivo de rompimento de relações. Não creio que atuar com dignidade e soberania em relação a nossos recursos naturas seja motivo para romper. Governos, países, presidentes e dirigentes temos que entender o tema da legalidade. Estamos falando em legalidade com base na legitimidade.

Eliane Cantanhêde: Presidente, o colega não perguntou sobre romper relações. Ele perguntou sobre a dificuldade, sobre dificultar as relações, criar um obstáculo no fluxo de negócios entre os países, inclusive a nível de governo. Não é exatamente romper relações.

Evo Morales: Dificuldades sempre existirão. O diálogo é muito importante para superá-las. Por isso estava falando do tema da legalidade e da legitimidade. Se, neste momento, a Bolívia é um país subdesenvolvido, é porque seus recursos naturais não foram aproveitados da melhor maneira. Permitir a exportação de matérias-primas também é um roubo de nossos recursos naturais. Temos que solucionar isso. A embaixada dos Estados Unidos está provocando o meu governo. Está tirando os vistos. Antes, uma dirigente tinha visto. Hoje se tornou senadora e não tem mais visto. Há intelectuais e profissionais que apostam em seu povo e neste momento, com sua profissão, poderiam estar ganhando milhares de dólares com consultorias, mas, quando se unem a um movimento popular, como Rene Orellana [pesquisador boliviano, doutor em antropologia jurídica pela Universidade de Amsterdã], que defende os recursos naturais e ganha pouco mais de mil dólares como vice-ministro, tem seu visto confiscado. Os Estados Unidos tiram os vistos de pessoas que se comprometem com seu povo. Mas as pessoas que saqueiam nossos recursos naturais e roubam e massacram nosso povo, não tem somente visto, mas também apoio e proteção. Eu pergunto ao embaixador dos Estados Unidos: quais parlamentares, ministros, vice-ministros e personalidades do meu país não têm visto? Para que não aceitem convites para visitar os Estados Unidos e, quando cheguem ao aeroporto, são impedidos de viajar. É uma forma de humilhação. E, quando me disserem quais são as pessoas que não têm visto para visitar os Estados Unidos, eu lhes direi, como presidente deste país, quais personalidades americanas não têm visto para visitar a Bolívia. Porque se trata de dignidade. Respeito que os americanos tomem cuidado para que algumas pessoas não entrem no país. Mas faço observações. Mas nós também sabemos de pessoas que estão causando danos a nosso país. São dificuldades que podem ser resolvidas através de diálogo.

Paulo Markun: O senhor já foi apontado pelos Estados Unidos como um integrante do eixo do mal. Eu pergunto se este confronto com os Estados Unidos não coloca a sua visão dos Estados Unidos sim como, os Estados Unidos, parte do eixo do mal. O senhor tem essa visão, digamos, demoníaca dos Estados Unidos?

Evo Morales: São políticas. Não estamos falando de todo o país, mas sim de governos e presidentes que usam algum pretexto para invadir países. A cada dia que passa estou mais convencido de que, na atual conjuntura, não são os povos que levantam as armas contra o império. É o império que levanta armas de guerra contra os povos. Essa política tem que mudar. Felizmente, a consciência sobre as dificuldades do presidente dos EUA tem aumentado. Há uma semana, muita gente estava se manifestando nos Estados Unidos. Não me digam que sou culpado por isso. Não me digam que isso é culpa de Fidel Castro e Hugo Chávez. Os imigrantes são injustiçados. Muita gente está morrendo no Iraque todos os dias. De quem é a culpa? Se o mundo rejeita esse tipo de atos, é o mundo que julga governos e presidentes. Não se trata somente dos Estados Unidos.

Paulo Markun: Descendente indígena da nação Aymará, um dos mais antigos povos da América do Sul, Morales foi eleito em dezembro do ano passado com quase 54 % dos votos. Conta com forte apoio popular, mas é rejeitado pela minoria branca que durante séculos manteve o controle da política e da economia no país.

VT: A Bolívia é o país mais indígena da América do Sul. Pouco povoada, tem cerca de 9 milhões de habitantes. Os descendentes de quechuas, aymarás e guaranis representam 60% da população. Os brancos, em geral descendentes de espanhóis, são 15%. O restante é de mestiços. 64% da população vive abaixo do nível de pobreza o que dá à Bolívia a pior colocação da América do Sul no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU. É o resultado de séculos de domínio branco que marginalizou os ameríndios. O aumento da tensão social e dos protestos de rua nos últimos anos eram parte de uma rotina de violência na história boliviana marcada por inúmeras rebeliões indígenas e quase duas centenas de golpes militares. Mesmo com a retomada da democracia em 1982, o país ainda se debate em instabilidades e além de saídas políticas e econômicas, também procura uma saída para o mar. A Bolívia perdeu a faixa litorânea de seu território para o Chile na Guerra do Pacífico no século XIX ficando sem acesso ao mar. O episódio ainda hoje não foi assimilado pelos bolivianos que continuam reclamando um acesso ao oceano Pacífico.

Paulo Markun: Nós vamos fazer uma pergunta do líder do Movimento dos Sem-Terra do Brasil, João Pedro Stédile.

VT de João Pedro Stédile: Um grande abraço, presidente Evo Morales! Nos últimos 15 anos, o neoliberalismo tomou conta do nosso continente e eles apresentaram para a agricultura um novo modelo que aqui no Brasil chamam de agronegócio, que é um modelo que tenta tomar conta das nossas riquezas, da água, da biodiversidade, impor os transgênicos e utilizar os recursos nossos apenas para exportação, recauchutando assim o velho modelo colonial. Nós, os movimentos camponeses, temos outro modelo. Queremos o modelo da pequena agricultura, da reforma agrária, do respeito à biodiversidade e da prioridade na produção de alimentos. Eu gostaria de saber do senhor como o senhor vai aplicar o modelo camponês na Bolívia com tantas dificuldades que vocês têm enfrentado.

Evo Morales: A Bolívia, em termos de produção agrícola, não vai competir com nenhum país, seguramente. Com produtos ecológicos, podemos competir com o Brasil, com a Europa, em todos os lugares. Essa vai ser a política agropecuária. Mas para conseguir isso, é preciso haver redistribuição das nossas terras. Devemos respeitar as terras produtivas. Temos conversado com alguns produtores de soja brasileiros que, legalmente, produzem muita soja aqui. Essas terras produtivas, que cumprem uma função social e econômica, serão respeitadas. Mas terras tomadas para negociação e não para produção serão desapropriadas. Vamos apostar em produtos ecológicos.

Carla Patrícia: O tratado de livre comércio com os Estados Unidos definitivamente não é uma prioridade para a Bolívia, mas começam a surgir outras oportunidades como, por exemplo, com a União Européia. Já está havendo uma aproximação maior?

Evo Morales: Estou muito impressionado como países nos pedem soja. Queremos exportar um milhão de toneladas por ano para a China. Eu peço aos produtores de soja bolivianos e aos brasileiros que trabalham na Bolívia que produzam. Já temos um mercado. Precisamos melhorar o transporte, que é um problema. Precisamos resolver o problema do mar. Aí está Venezuela, aí está Cuba, e o Oriente Médio nos pede soja. Não apenas os grãos, mas o produto industrializado. Lamento muito que os tratados de livre comércio, assim como estão sendo desenvolvidos, eliminem nosso mercado e os produtores. Nossa proposta será um tratado de comércio dos povos para os povos. Um tratado de comércio que permita resolver problemas sociais, não criar problemas sociais. Há quatro ou cinco anos, nossos produtores davam seus produtos porque não tinham mercado. Isso era a livre importação. Se da livre importação passarmos para o livre comércio, aprofundaremos, radicalizaremos a livre importação. Países como os Estados Unidos falam sobre livre comércio, mas são os primeiros a proteger seus mercados. Esperamos que isso possa mudar para resolvermos os problemas sociais.

Rocio Bernal: Presidente, vou mudar o assunto. Acho que é importante fazer uma avaliação desses três meses de governo. Uma das bandeiras principais de seu governo é a transparência, com o objetivo de romper com os círculos de corrupção como, por exemplo, no Lloyd Aéreo [companhia aérea]. Algo que tem chamado muita atenção são suas decisões pessoais em relação ao parlamentar, que sempre esteve a seu lado e foi seu companheiro de luta, que se chama Gustavo Torrico. O senhor decidiu suspendê-lo da coordenação da bancada do MAS. Isso é um sinal para seu partido, parlamentares e ministros, de que o senhor irá cortar qualquer elemento duvidoso em seu governo?

Evo Morales: Eu fui criado em uma comunidade que tem sua lei: Ama suwa, ama khella e ama llulla, ou seja, não roubar, não mentir e não ser preguiçoso. Essa é nossa lei. O mais importante no sindicato agrário, movimento camponês do Trópico, mais conhecido como “movimento cocaleiro”, é ser honesto. O que me trouxe até aqui foi a honestidade. Portanto, primeiro é preciso resolver os problemas internos para lutar contra a corrupção. Não posso acusar o companheiro Gustavo Torrico de roubo, ou de tráfico de influência se não tenho provas. Estamos investigando a acusação de tráfico de influência. Ele está suspenso por isso, tem que submeter-se à investigação. Se eu notar alguma forma de extorsão em algum ministério, vamos erradicá-la. Temos experiência nisso. Por exemplo, em Morrochata, há um prefeito do MAS, um irmão camponês, que se uniu a seus assessores e praticou corrupção. Quando meus companheiros me informaram da corrupção, o afastei. Ninguém vai defender um corrupto. Ele foi julgado e cumpre sentença. Essa é a forma de atuar corretamente. Vamos ser radicais em relação à corrupção. Primeiro com nosso povo, e depois com as pessoas que roubam nosso país. Estou convencido, e posso dizer isso aos meus irmãos brasileiros: o inimigo número um na Bolívia é a corrupção. Não é o neoliberalismo. Esses problemas têm que ser erradicados.

Eliane Cantanhêde: Presidente, a experiência brasileira e também de outras partes do mundo, mas muito fortemente no Brasil é de que quando a esquerda chega ao poder, como é o seu caso na Bolívia, os primeiros adversários são da própria esquerda. Porque querem pressa no aumento de salário, querem pressa em distribuição de renda, querem um processo muito mais rápido do que a realidade permite. Isso aconteceu com várias prefeituras, por exemplo, do PT no Brasil. E mesmo em governos estaduais. Hoje estamos tendo aqui na Bolívia a primeira convocação de uma greve geral pela Central Obreira. Como é que o senhor pretende negociar e se comportar com esses movimentos sociais? Porque com três meses de governo é fácil, mas a tendência é isso se radicalizar, não é?

Evo Morales: Alguns dirigentes sindicais têm falado sobre uma greve, mas não há greve. Houve um protesto, mas contra uma prefeitura, não contra o governo central. Um grupo de companheiros se manifestou, e tem esse direito. Mas não há greve. Em segundo lugar, a melhor saída é sempre o diálogo. Ontem assinei com o magistério muitas reivindicações. A única limitação que nosso governo tem são os recursos econômicos. O último aumento salarial no ano passado foi de 3,5%. Agora, foi de 7%. 100% em relação ao ano passado. Foi a melhor forma de atender os nossos companheiros, os trabalhadores. Eles querem bônus, mas não temos de onde tirar dinheiro para isso. Há outras reivindicações como, por exemplo, a reforma da educação. Então, temos que trabalhar juntos. Tragam projetos e os levaremos ao Congresso Nacional. Temos maioria na Câmara dos deputados, não no Senado, mas podemos negociar com alguns senadores para que tenhamos maioria. Nesta sala, há dois ou três jornalistas que vivem aqui. Fevereiro, março e abril, até maio, houve greve de uma semana, de um mês. Quem fez greve até agora? Foi o setor de transportes, um dia, o que prejudicou a educação. Não há nenhuma greve. Alguns setores, como o magistério, fizeram greve de fome, mas ninguém ligou, porque não havia razão para se fazer greve de fome. Claro, a greve de fome serve para esquentar o ambiente, para depois gerar greve e bloqueio de caminhos. Mas se não há razão para fazê-la, a greve não funciona. Alguns membros do Partido Obreiro Revolucionário, que são nossos companheiros de esquerda, se transformam nos melhores instrumentos da direita. Imagine esta greve coincidente com a greve que a extrema direita também estava preparando para hoje. Os problemas em Santa Cruz [de la Sierra], que o comitê cívico queira. Estamos ao lado das prefeituras, das federações, atendendo diretamente o que podemos, graças à solidariedade internacional. Que cuidem disso. Isso já não existe. Estão falando agora sobre EBX. Não posso acreditar que alguns dirigentes defendam uma questão ilegal, inconstitucional. A esquerda está organizando, para o dia primeiro de maio, uma grande concentração. Vocês estão convidados. Eu não queria, mas estão pedindo, então vamos fazer isso juntos. Há temas que conheço muito bem. Se você quiser aparecer nos meios de comunicação, fale contra Evo Morales. Qualquer um pode fazer isso. As pessoas julgarão, ao final, se eles têm ou não razão.

VT: Desde sua campanha para deputado em 1998, e depois à presidência da República em 2002 e 2005, Evo Morales teve como uma de suas principais bandeiras a defesa da coca, planta tradicional que os bolivianos usam para fazer chás, remédios, além de mascar suas folhas para reduzir os efeitos das grandes altitudes em que vivem. Mas a folha da coca também é a matéria-prima da cocaína e seu plantio foi alvo de forte repressão patrocinada pelos Estados Unidos, que chegaram a financiar a erradicação da planta e a troca por cultivos alternativos. A resistência dos camponeses liderados por Evo Morales resultou em violentos conflitos e serviu de argumento para a Câmara dos deputados cassar o mandato de Morales, o que deu ainda mais projeção ao líder cocaleiro. Evo Morales sempre negou as acusações de que agia em nome dos interesses de traficantes. Ele defende a produção da coca para fins legais como chá, chicletes, pasta de dentes, xampus e outros produtos farmacêuticos e quer ampliar o plantio e o mercado mundial, atualmente restrito a poucos países como Portugal e Itália, que compram legalmente a folha da coca.

Paulo Markun: Presidente, é sobre isso que eu quero perguntar. Uma parte da imprensa apresenta o senhor como um defensor da produção de coca que no fundo vira cocaína. É isso mesmo?

Evo Morales: Essa é a acusação que temos recebido permanentemente. Não apenas Evo Morales, mas muitos dirigentes nacionais e até internacionais. Há falsos pretextos que o império utiliza para satanizar um líder que está ao lado do povo. Estava lendo, por exemplo, o livro do comandante Marcos, de Chiapas. Os Estados Unidos o acusam de ser narcotraficante. É produtor de coca. Uma vez estava em uma reunião do parlamento indígena da América na Venezuela. Chávez foi acusado publicamente pelos Estados Unidos de ser narcotraficante, devido à produção da folha de coca na Venezuela. Me acusam não só de narcotraficante, mas também de narcoterrorista. São acusações. Uma parte da produção de coca é desviada, e não estou de acordo. Nosso lema é zero cocaína, mas não podemos viver sem as folhas de coca. Alguns governos falavam em zero de coca, mas isso nunca aconteceu. A folha de coca em seu estado natural faz parte da nossa cultura. A folha de coca em seu estado natural não faz mal à saúde. Isso foi cientificamente demonstrado nas universidades dos Estados Unidos e da Europa. Esse é um instrumento para satanizar não somente a coca, mas também os movimentos sociais. Me lembro quando eu era criança, nos anos 60 e 70, os líderes sindicais aqui na Bolívia eram acusados de serem comunistas. Com isso, militarizavam centros de mineração, perseguiam, prendiam, expulsavam e até massacravam o povo. Nas décadas de 80 e 90, todos os dirigentes sindicais que lutavam pelas reivindicações eram acusados de serem narcotraficantes. A partir do 11 de setembro de 2001, passaram a ser acusados de narcoterroristas. São pretextos para que os Estados Unidos controlem melhor esses países. Acusaram o Iraque e Saddam Hussein de terem armas de destruição massiva. Esse foi um pretexto para intervir. Se o Iraque tivesse mesmo essas armas, nenhum americano iria intervir. Estão dizendo agora que o Irã tem armas nucleares e ameaçam intervir. Na América Latina, a acusação é o narcoterrorismo, o terrorismo, o narcotraficante. Eu entendo que a cocaína é uma desculpa para que o governo dos Estados Unidos melhore o poder e o controle sobre nossos países. No fundo, são interesses geopolíticos.

Marcelo Cavallari: Presidente, o senhor fala bastante dessa cultura indígena da qual a folha de coca faz parte. O senhor cita termos. Há poucos minutos atrás na assinatura do convênio com a Alemanha, o chanceler criticou o modelo de desenvolvimento ocidental contrapondo a ele o respeito com a Pacha Mama, a Mãe Terra. A minha pergunta é: essa Bolívia governada pelos indígenas tem algo... Essa cultura dessa Bolívia indígena tem alguma contribuição ao mundo, uma contribuição à cultura universal? Qual seria essa contribuição?

Evo Morales: Defender a mãe Terra. Defender o planeta Terra, salvar o planeta Terra para salvar a humanidade. A forma de desenvolvimento ocidental, desrespeitando o meio ambiente, é uma forma de autodestruição da humanidade. É preciso entender que a vida é importante na Terra. Os movimentos indígenas vivem em harmonia e reciprocidade com a humanidade e com a mãe Terra. Falta tempo para desenvolver essa cultura. A contribuição que daremos não é uma forma de como acumular o capital em poucas mãos, destruindo o planeta Terra. Alguns têm o direito de viver melhor, mas sem roubar e explorar. Nós, os pobres, só queremos viver bem, sem roubar nem explorar. Viver bem é viver sem roubar e explorar. Viver melhor, para alguns, é roubar e explorar. Essa é uma profunda diferença. Juntos, podemos desenvolver novas políticas capazes de salvar a humanidade, respeitando o planeta Terra.

Carla Patrícia: Senhor presidente, estamos vivendo grandes mudanças na Bolívia, e estamos perto de uma Assembléia Constituinte. Mas o debate do país que vamos reformar ainda não foi feito. Todos e cada um dos bolivianos precisam enfrentar um grande desafio. O senhor está inaugurando uma série de discussões sobre o que será a assembléia constituinte. Estes mecanismos e ações permitirão que se inicie o debate sobre a Bolívia que queremos?

Evo Morales: Não apenas os eleitos serão membros da Assembléia Constituinte. Todo o povo deve fazer parte disso. Todos fazemos parte da Assembléia Constituinte. Para que todos possamos refazer nossa Bolívia, diferente, uma Bolívia com justiça e igualdade, uma Bolívia sem discriminadores e discriminados, uma Bolívia sem exploradores e explorados, teremos que começar a nos unir desde as cidades, até as comunidades e colônias. E para isso servirão as discussões. Antes de chegar à assembléia, é preciso haver consensos e acordos. Vamos agora ir apostando nesses consensos. Também haverá a lei convocatória da Assembléia Constituinte.

Rocio Bernal: Muitos analistas o consideram um presidente ousado, mesmo pessoas próximas ao senhor. O senhor planeja dobrar o salário mínimo, algumas empresas privadas afirmam que terão que fechar fábricas por isso. Outros dizem, como o presidente do Banco Central, que isso pode representar um risco para o processo de inflação do país. O que o senhor fará a respeito do salário mínimo? O senhor o dobrará, irá estudar que porcentagem irá aumentar ou economizará dinheiro para investir em educação e saúde?

Evo Morales: Alguns dizem que sou ousado, mas não são muitos. Você sabe disso. Meu desejo é que a economia do povo melhore, dos trabalhadores da saúde. Meu desejo é melhorar o salário mínimo nacional em 100%. Mas conversei com minha equipe econômica e eles demonstraram que isso será difícil. Os empresários afirmaram que isto trará dificuldades econômicas para eles. Mas o salário mínimo não pode ficar congelado por quatro anos. O salário mínimo tem que subir. Não subirá 100% ou 50%. Ele subirá de acordo com a capacidade econômica do Estado. Temos algumas propostas – Plano 1 e Plano 2 – que estão sendo estudadas. Algo sagrado que temos neste momento é a estabilidade macroeconômica. É o patrimônio dos bolivianos. Temos que conseguir crescimento econômico, ainda que falte redistribuir esse crescimento entre os bolivianos. São tarefas impossíveis de se resolver em noventa dias. Em noventa dias, pude aprender e entender melhor a situação. Tenho muitas dificuldades e sou muito sincero e por isso peço sempre colaboração, cooperação. Isso não é ser ousado. Algumas críticas da imprensa me levaram a corrigir alguns erros. Mas outras críticas são para satanizar, para derrotar Evo Morales. Não conseguirão fazer isso, felizmente. Eu represento um povo, uma cultura. Represento essas pessoas. Alguns companheiros me dizem que um jornalista ou deputado está incomodando e que devo tomar cuidado. Eu não quero nem ameaças nem chantagens. Talvez seja esse o sentimento de alguns irmãos e irmãs diante de tanta satanização. Mas temos que criar mais recursos econômicos para atender às demandas.

Jorge Cuba: Era uma tradição, presidente, desde a restauração democrática na Bolívia em 1982, que houvesse uma trégua para o governo nos primeiros 90 dias. O senhor, que está há 90 dias no governo, se sentiu encurralado por forças opositoras? Resuma, por favor, esses 90 dias.

Evo Morales: Em noventa dias tive dois inimigos. Os desastres naturais e alguns meios de comunicação.

Paulo Markun: Qual o mais difícil? Qual o pior?

Evo Morales: Qual o mais difícil? É a corrupção, que me toma tempo. Mas o problema da corrupção é conseqüência das leis de capitalização. Alguns brasileiros têm a ver com esse tema. Algumas empresas capitalizaram, supostamente. Mas na verdade descapitalizaram. E estou pagando pelas conseqüências do modelo anterior. Há um problema regional e social. Ao invés de estar implementando e discutindo programas e projetos específicos, preciso resolver o problema da corrupção. É um problema institucionalizado. Alguns sindicatos chegam a defender a corrupção. A EBX, por exemplo, é corrupção. Ela usa alguns dirigentes e é preciso investigar isso. Vocês, como bons jornalistas, precisam investigar isso. Essa empresa brasileira está tentando dividir nosso povo. Eu respeito o Brasil, mas esse é um grande problema. O problema é enfrentar a corrupção. Vai ser muito difícil. Mas eu sei que tenho o apoio do povo. [alguém lhe pergunta algo incompreensível] Que os opositores do Senado me acusem de falta de coragem. Isso não é debate político, ideológico, nem programático. Eu quero discutir com pessoas que debatam programaticamente, ideologicamente. Isso é o que eu quero, mas isso não existe. Por isso que eu digo que nossos inimigos são os desastres naturais que tem nos deixado mal, parados, e alguns meios de comunicação que me condenam diariamente. E também nos prepararemos junto com outros meios de comunicação, para enfrentar esse tipo de acusação.

Paulo Markun: Presidente, a última pergunta é a seguinte. Em 1934, se não estou equivocado, um descendente indígena, Franz Tamayo [(1879-1956), boliviano, filho de mãe indígena, em 1911, fundou o Partido Radical com outros jovens intelectuais, participando ativamente da política, chegou a ser deputado e ministro de Relações Exteriores], foi eleito com quase 60% dos votos e não conseguiu tomar posse. Em 1936, Franz Tamayo [Markun retifica]...  Pouco tempo depois, o coronel Davi Toro [Ruilova, (1898-1977), foi um político boliviano e presidente de seu país entre 22 de Maio de 1936 e 13 de Julho de 1937] implantou o socialismo por decreto na Bolívia, se também não estou enganado. Nenhum dos dois casos chegou ao final do governo. A pergunta que faço é a seguinte: o senhor acha que concluirá o seu mandato e que conseguirá implementar o seu plano de governo?

Evo Morales: Vocês vieram aqui tirar o poder de Evo Morales? [sorri e todos riem]

Paulo Markun: Nós não, só fazemos perguntas.

Evo Morales: Nenhum jornalista, nem os movimentos sociais falaram em tirar-me o poder ou se isso vai acabar ou não. Me deram vários prazos. Quando vencemos as eleições, alguns dirigentes falaram de prazos, mas logo se arrependeram e se uniram ao governo. E essa é a história. Não sei se Toro era socialista, mas nacionalizou os recursos naturais. Franz Tamayo implementou uma medida de educação e foi muito respeitado. Lamentavelmente, a oligarquia é muito poderosa. Em 1825, a Bolívia foi fundada. Mas foi fundada por representantes de apenas 10% da população, os invasores espanhóis. Foram os indígenas que lutaram pela independência. Junto com os mulatos e mestiços. Eles derrotaram os espanhóis. Daí, os mesmos espanhóis fundaram a Bolívia. 90% da população não participou da fundação do país. Hoje, estatisticamente, 62,2% da população da Bolívia é indígena. Mas tenho certeza de que esse número chegue, na realidade, a mais de 70%. Esse setor que está apostando em mudanças. Muito dependerá da capacidade de nosso trabalho. Quero dizer publicamente que queremos, eu, Álvaro Garcia e a equipe que me apóia, ser o melhor governo de todos os tempos. E para ser o melhor, sem corrupção, temos que nos esforçar. Não há limite quanto ao tempo. Talvez porque somos solteiros. [sorri] Eu digo que me casei com a Bolívia. E um homem da minha cultura, quando se casa com uma dama, precisa cuidar dela. Cuidarei bem da Bolívia. Eu preciso servir à Bolívia e temos excelentes colaboradores. Vamos continuar avançando. Sim, há uma conspiração da direita. Sim, há uma conspiração de algumas empresas de petróleo. Essa máfia corrupta não aceita nossa forma de governar. Mas não desistiremos. Os governos e o império conspiraram contra Fidel e Chávez. Mas quando se trabalha ao lado do povo, o povo defende o governo. Aprendi isso na luta sindical. Quando um dirigente defende seu povo, o povo defende seus dirigentes. A recíproca é verdadeira. Quando o presidente defende o povo, o povo o defende de conspirações. A outra vantagem que tenho são as forças armadas. Desconfiava das forças armadas, mas hoje elas me inspiram confiança. Estamos falando em dignificar as forças armadas. Se o embaixador dos Estados Unidos disser que é preciso mudar um comandante e tirar as armas de um grupo militar, não o faremos. Este é o nosso território. Antes, o embaixador dos Estados Unidos mandava em ministros e comandantes. Hoje em dia, não. Às vezes, o governo indicava um ministro e os Estados Unidos não concordavam. Então, cancelavam seu visto. Hoje, não acontece mais isso. Esses temas nos fortalecem. Precisamos atender às demandas correspondentes.

Paulo Markun: Presidente, muito obrigado pela sua entrevista. Agradeço também aos nossos entrevistadores e a você que está em casa e convido para estar aqui no Roda Viva na próxima segunda-feira, dez e meia da noite. Uma ótima semana e até lá.

Evo Morales: Muito obrigado. Agradeço a todos e também pela camiseta do Pelé que recebi da Seleção brasileira.

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