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Memória Roda Viva

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Nelson Pereira dos Santos

2/3/1999

O cineasta fala de seus filmes e das influências recebidas pelo cinema brasileiro

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Paulo Markun: Boa noite. Ele diz que aqui no Brasil o que há de melhor em fazer filmes é que eles podem ser completamente diferentes dos que são feitos na Europa ou em Hollywood. No centro do Roda Viva esta noite, nesta semana de Glauber Rocha, que, aliás, introduziu entre a nossa abertura e o começo do programa, o cineasta que é considerado o pai espiritual do Cinema Novo brasileiro, Nelson Pereira dos Santos.

[Comentarista]: Pela moviola de Nelson Pereira dos Santos já passou muita coisa, cenas, diálogos, capítulos inteiros da produção mais significativa do cinema brasileiro. São quase 50 anos de uma carreira que foi de assistente de direção a montador, de produtor a ator e diretor, são quase duas dezenas de filmes que construíram uma ampla e crítica visão da realidade brasileira. Tenda dos milagres [1977, filme baseado no romance de Jorge Amado], Estrada da vida [1954], Memórias do cárcere [1984, baseado no romance de Graciliano Ramos], Jubiabá [1984, baseado no romance de Jorge Amado], Vida secas [1963], A terceira margem do rio [1994, baseado no livro de contos de João Guimarães Rosa], entre tantas outras produções. Marcas de uma filmografia que procurou realizar no cinema o que o Modernismo já tinha feito com a literatura, as artes plásticas e a música. A descoberta de um rumo próprio, de uma arte própria. Rio 40 graus é o inicio dessa experimentação em 1955, o jovem cineasta Nelson Pereira levava às telas, em seu primeiro longa metragem, a visão da violência, da dura realidade nas favelas do Rio de Janeiro. Era a influência do cinema europeu, do Neo-realismo de Roberto Rossellini, de Jean Luc Godard [Jean-Luc Godard (1930, Paris), cineasta francês vanguardista e polêmico, realizador, com temática original e quase sempre provocadora, de obras que exploram os dilemas e perplexidades da modernidade. Junto com Truffaut, seu conterrâneo, é um dos principais nomes da Nouvelle Vague], mostrar a realidade tal qual ela é, na esperança de que o cinema poderia mudar essa realidade. Rio 40 graus, censurado por 4 meses, criou intensa polêmica política e intelectual e marcou o início de uma nova fase do cinema brasileiro. Nelson Pereira passou a influenciar toda uma geração de cinéfilos, que em breve se transformariam em cineastas. O Cinema Novo, que veio logo depois, caminhou sobre essa influência, aprendeu a olhar mais para a realidade e a fazer filmes fora dos estúdios, com material leve, misturando atores amadores e profissionais, sem o dinheiro e a estrutura da grande indústria cinematográfica. Foi a era da "câmera na mão e da idéia na cabeça". Criou um cinema original, brasileiro, que, a despeito de todas as polêmicas, criou a capacidade de produzir reflexões sobre nós mesmos.

Paulo Markun: Para entrevistar Nelson Pereira dos Santos nós convidamos o documentarista Ricardo Soares, diretor e apresentador do programa Literatura da TV Senac; Ivan Isola, coordenador do programa de integração de cinema e televisão da TV Cultura; a crítica de cinema Suzana Schild, correspondente da revista Moving Pictures; o músico, compositor e cantor Jards Macalé, que também foi ator do filme do Nelson, Amuleto de Ogum, de 75; o cineasta Aurélio Michiles, realizador do documentário Que viva Glauber; o crítico de cinema Amir Labaki, articulista do Jornal Folha de S. Paulo e  diretor do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade e o crítico de cinema Luis Carlos Merten do jornal Estado de S. Paulo e do programa Metrópolis aqui da TV Cultura. O Roda Viva como você sabe é transmitido ao vivo [...] Nelson boa noite!

Nelson Pereira dos Santos: Boa noite.

Paulo Markun: Que você é um otimista a gente já sabe, que você disse que no Brasil em "se plantando dá cinema também" [referência à famosa carta do escrivão português Pero Vaz de Caminha, enviada ao rei de Portugal, anunciando a descoberta do Brasil: "Nesta terra, em se plantando, tudo dá", dístico abundantemente utilizado em inúmeras situações ao longo da história e também em propagandas de produtos e eventos]. A pergunta é a seguinte: Está dando para plantar cinema no Brasil hoje em dia?

Nelson Pereira dos Santos: Nos últimos anos sim. Voltamos a plantar, colhemos um pouco, mas agora estamos de novo a mercê de uma crise que se esboça, mas ela ganha reboque da crise geral do Brasil, da crise econômica brasileira. Mas, em relação ao cinema, o que eu disse está valendo.

Paulo Markun: Está valendo. No seu caso particular como é que estão os seus projetos?

Nelson Pereira dos Santos: Tenho dois projetos, aliás, são ambiciosos tanto é o meu otimismo. Eu inventei nada menos, nada mais que um projeto chamado Castro Alves [1847-1871. Poeta abolicionsita baiano. Suas obras mais famosas são Espumas Flutuantes e Navio Negreiro]  em São Paulo, Guerra em liberdade, é um filme que vai abordar a passagem do poeta baiano pela escola de direito de São Paulo, a vida cultural e política de São Paulo.

Paulo Markun: 1868?

Nelson Pereira dos Santos: 1868. E ao mesmo tempo estou revelando um herói que existiu mesmo, Dionísio Cerqueira, que foi contemporâneo de Castro Alves, conterrâneo de Castro Alves e que foi para a Guerra do Paraguai. Tem um depoimento dele num livro, eu quero juntar as duas histórias; um jovem que foi para a escola de direito, libertário, abolicionista, influenciado por Victor Hugo [1802-1885. Escritor francês, autor de Os miseráveis] e o outro jovem guerreiro do interior da Bahia, o sertanejo duro que foi fazer a Guerra do Paraguai, e a cabeça também feita pelo romantismo, mas outro romantismo, romantismo napoleônico. Então essa que é a história do filme.

Paulo Markun: Esse é um projeto. O outro é a da GNT?

Nelson Pereira dos Santos: O outro projeto é uma série de televisão, baseado no livro clássico da história da sociologia, da história cultural, da antropologia brasileira, esse livro maravilhoso que é Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre. A idéia é fazer três episódios estilo documentário com narrador contando, transpondo a observação de Gilberto Freyre para o cinema ou para a televisão, para o áudio-visual digamos.

Paulo Markun: Os dois que eu sei estão parados por falta de dinheiro.

Nelson Pereira dos Santos: Isso.

Paulo Markun: E você continua otimista?

Nelson Pereira dos Santos: Hoje mesmo...

Paulo Markun: Você ficou 7 anos sem filmar? E antes disso?

Nelson Pereira dos Santos: Foi, entre o Jubiabá e Terceira margem do rio fiquei 7 anos sem filmar sim. Mas eu viajei muito. Fui a muitos festivais de cinema, passeei por universidades nos EUA, Colômbia, etc. Quer dizer, eu ocupei meu tempo muito bem.

Paulo Markun: Parafraseando, então, o Euclides [da Cunha, autor de Os sertões, clássico da literatura brasileira em que há a frase "o sertanejo é antes de tudo um forte"], o cineasta brasileiro é antes de tudo um forte, é isso? 

Nelson Pereira dos Santos: Isso mesmo, é verdade. Mas voltando ao otimismo. Meu otimismo, acho que vem de uma visão pragmática de que todos os projetos são montados em função de uma realidade existente. Quando eu pensei nesse projeto do Castro Alves o que nós vivíamos? O ano de 1997- 96 foi um ano que eu consegui uma capacitação na ordem de 100 milhões de reais. Os projetos eram também muito ambiciosos em termos da produção brasileira. Quando a gente fala é um projeto ambicioso, é porque o filme custa sete milhões de dólares. Mas esse dinheiro é comum, às vezes sete milhões não dá para pagar o cachê do coadjuvante do filme americano. Mas então, por que os projetos ficaram mais ambiciosos? Porque há uma carência muito grande dessa investigação do nosso passado através da imagem. Quer dizer, filmes históricos, filmes que possam trazer e resgatar a memória da nossa formação como povo, como nação, etc. Depois, o que aconteceu, houve a crise asiática [crise financeira, econômica e social que, a partir de julho de 1997 e sobretudo durante o ano de 1998, atingiu muitos países asiáticos. Foi a maior crise do gênero desde a grande depressão dos anos 1930. Ocorreu devido ao aumento dos fluxos internacionais de capitais (especialmente fluxos privados) para os países em desenvolvimento e à crescente integração desses países nos mercados financeiros internacionais] e a captação diminuiu. Porque o cinema e a cultura em geral vivem dessas leis, a Lei do Audiovisual [Lei Rouanet], que significa o seguinte: assim bem resumidamente, 3% do imposto de renda que recai sobre o lucro da empresa pode ser investido em cultura. Então, se as empresas estão com dificuldades no momento, não tem grupo, portanto, não existe a possibilidade nem de pagar imposto, de cobrar impostos das empresas, essa que é a idéia, aliás, o que está acontecendo. Então, no ano de 1998, a captação foi mais ou menos 30% do que foi a captação em 1997. Agora, em 1999, pelo que eu estou informado, essa captação está um pouco acima do zero. [risos]

Amir Labaki: Falar de crise é sempre muito chato, mas, nos 1950, anos do cinema brasileiro do qual você é protagonista, você já viu muitas crises e muitos momentos de euforia. Para passar rapidamente sobre esse momento de crise agora, queria te perguntar, que medidas concretas você defenderia? Quer dizer, parece claro para todo mundo que o modelo da retomada com a Lei do Audiovisual está se esgotando, começaram a falar sobre modelos alternativos de fomentos estatais. Eu queria saber o que você defende? Por exemplo, eu lembro que você era uma das pessoas críticas a uma idéia que agora parece voltar, que é a idéia de possuir uma reserva de mercado maior. Então, queria que você falasse um pouco sobre que tipo de medida concreta o governo poderia adotar.

Nelson Pereira dos Santos: Eu sou ultra-liberal, embora não pareça. Eu acho que toda medida que exija uma participação do governo, uma intervenção do governo, não vai realmente resolver o problema fundamental do cinema brasileiro. Porque nós já tivemos experiências anteriores, por exemplo, a obrigatoriedade de exibição, ela existiu durante muitos anos, ela cresceu, chegou a 180 dias por ano, no entanto, não resolveu a questão fundamental do cinema brasileiro ter auto suficiência econômica dentro do próprio mercado. Quando acabou a lei de obrigatoriedade o cinema brasileiro voltou de novo a ser mendigo, a ficar estendendo a mão, pedindo ajuda direta do Estado. As leis, essas leis foram muito inteligentes, muito bem feitas, muito bem elaboradas, porque se trata da participação indireta do Estado. Ele não abandonou a atividade, ao contrário, criou condições para que ela pudesse viver sem a relação umbilical que existia antes com a Embrafilme. Agora, eu confio no cinema brasileiro porque é de uma vitalidade! Você lembrou bem, quantas crises o cinema brasileiro já passou. Eu na minha vida, já cheguei muitas vezes ao ponto assim, vou mudar de profissão, vou fazer outra coisa.

Amir Labaki: Qual foi a pior?

Nelson Pereira dos Santos: A pior? Com certeza, o Collor [refere-se ao plano econômico adotado por Fernando Collor de Mello em 1990, que provocou uma enorme recessão ao país]

Amir Labaki: Foi lá que você pensou vou mudar de profissão?

Nelson Pereira dos Santos: É. Essa foi terrível.

Amir Labaki: Você pensou em fazer o quê?

Nelson Pereira dos Santos: Voltar a ser jornalista.

Ricardo Soares: Nelson, deixa eu fazer uma pergunta relacionada ao seu cinema e a relação dele com a literatura. O seu cinema, desde muito cedo, é ligado à literatura brasileira, tem Memórias do cárceres, Vidas secas, Terceira margem, tem o Tenda dos milagres, tem o Jubiabá. Quer dizer, você, marcadamente, faz um cinema muito influenciado pela literatura brasileira. Então, com exceção dos filmes de Nelson Pereira dos Santos, você não acha que o cinema brasileiro ainda não descobriu a literatura brasileira?

Nelson Pereira dos Santos: Não sei, acho que, acho que sim. Há sempre bons projetos baseados em obras literárias, bons filmes que estão surgindo, um deles, esse do Eça de Queiroz, O Amor & cia. [1999. Dirigido por Helvécio Raton], ele é um filme que tem uma boa adaptação. Eu acho que há sempre esse ganho de contato do cinema brasileiro com a literatura brasileira.

Ricardo Soares: Você acha que esse casamento tem sido feito com bons olhos?

Nelson Pereira dos Santos: É indissolúvel.

Ricardo Soares: Mas, tirando você e Joaquim Pedro [Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988), cineasta e produtor, atuava, juntamente com Nelson Pereira para promover as idéias do Cinema Novo. Dirigiu, em 1963, o filme Garrincha, a alegria do povo de Luiz Carlos Barreto] que adaptou brilhantemente Macunaíma [1969, baseado na obra homônima de Mário de Andrade], quem são os outros cineastas brasileiros que você acha que...?

Nelson Pereira dos Santos: Tem um que está terminando o filme que tenho certeza, vai ser genial é André Klotzel [1954, diretor e produtor, em 2001 produziu o filme Memórias póstumas, baseado na obra de Machado de Assis], que está fazendo Machado de Assis, nada menos, nada mais que Machado de Assis mesmo. Eu acho que vai ser um filme bastante respeitoso, inovador, porque Machado de Assis também tem muitas portas de entrada.

Luiz Carlos Merten: Nelson é justamente isso que eu gostaria de perguntar. Tu tens duas adaptações, nessas séries de adaptações, você tem duas do Jorge Amado que eu, particularmente não gosto muito, Jubiabá e Tenda dos milagres, mas você tem duas que eu vejo de joelhos que são as do Graciliano Ramos, Vida secas e Memórias do cárcere. Eu gostaria que tu falasses um pouco da relação com esses escritores. De onde vem essa coisa de interpretar tão bem Graciliano Ramos no cinema, essa preferência surgiu quando? Em que momento da tua vida? E porque, se tu tens uma explicação, eu te pergunto; o Jorge Amado não deu tão certo nas adaptações. Por quê?

Nelson Pereira dos Santos: Veja bem, Vidas secas é um romance que para mim já era um roteiro, não precisava fazer nenhuma adaptação. Eu saí com o livro, distribui para a equipe e fiz o filme seguindo o olhar do Graciliano. É um livro todo ele na terceira pessoa, e o narrador da terceira pessoa é tão onipotente, e tão onipresente quanto à câmara do filme. Ele se situa em qualquer ponto, inclusive na cabeça da [cachorra] Baleia. Ele tem esse despudor de interpretar a psicologia da Baleia, de se colocar em todos os pontos que acha que tem que ser colocado para melhor estar perto da realidade. Ao passo que Jorge Amado é mais de uma riqueza de personagens, de fios de histórias, meandros de história, porque é muito difícil fazer uma adaptação. Eu, por exemplo, no Tenda dos milagres eu quis fazer tudo, a história do livro começa no começo do século e vai até os dias do presente. Então, são gerações de personagens entrando e saindo e dentro de cada momento do livro mais personagens, mais anedotas, e todas elas muito sedutoras. E, é muito difícil, eu quero fazer o Jorge Amado completo, o filme inicialmente está bem construído, mas depois vai ficando comprido e eu não tive a coragem de cortar, de sintetizar essas outras histórias acessórias da história principal. Eu quis contar todas. Graciliano, em Memórias do cárcere também tem muitos personagens, mas eu pude fazer uma síntese de personagens semelhantes. Por exemplo, tem 100 capitães, então, eu sintetizei e ficaram 10 capitães. As psicologias são muito parecidas, porque o grande compromisso que eu tive com Memórias era um compromisso biográfico, que eu achei que não precisaria assumir, a não ser com as personagens notoriamente conhecidas, que ficaram na história do Brasil, a Olga Prestes, o próprio Luís Carlos Prestes, o herói Graciliano, os demais são personagens que eu pude me desligar da biografia, senão, o filme não terminaria nunca, e também a obsessão de procurar a verdade de cada personagem. Eu me baseei para fazer isso no próprio Graciliano, quando ele abre o livro e explica o método que ele usou para escrever o livro, que ele tinha pudores. Essas histórias aconteceram há 10 anos atrás e eu estou, agora, contando o que se passou comigo naquele momento. Eu perdi os manuscritos, eu vou fazer tudo de memória, lembrar, lembrar aquelas pessoas, os nomes e tal. Eu vou errar muito. Agora eu vou contar a minha parte da história, os outros também têm todo direito de contar a sua, a de cada um, porque é isso que eu vou fazer. Além do mais, eu já estou com o pé na cova, então, se a crítica ficar cutucando não vai me alcançar não. Esse trabalho de síntese, sacrificando alguns personagens, juntando personagens eu pude fazer em Memórias. Agora com Jorge Amado eu não encontrei um meio, um caminho mais... Os filmes ficaram divertidos também. De uma forma ou de outra, aqueles filmes revelam o universo baiano e Jorge Amado. Eu trabalhei, principalmente no Tenda dos milagres, com atores baianos, com a exceção do Jards Macalé, um carioca ilustre, de resto, eu só usei atores da Bahia.

Luiz Carlos Merten: E haveria algum Jorge ou algum Graciliano que gostaria de adaptar ainda?

Nelson Pereira dos Santos: Gostaria sim. Eu penso em Angústia [livro de Graciliano Ramos, publicado em 1936]. Eu fiquei devendo essa adaptação. Angústia acho que seria um filme que eu faria.

Luiz Carlos Merten: Bem!

Susana Schild: Voltando ao passado um pouco, você foi chamado no começo do programa de “pai espiritual do Cinema Novo”, esse título é assim visto como uma responsabilidade? Enfim, esse título coloca mais responsabilidade na hora de filmar? Sabe, eu tenho que me superar a cada filme. Qual é a tua liberdade? Você fala muito em liberdade dos teus personagens no cinema, você falou que Castro Alves é desesperadamente libertário. Qual é a tua liberdade na hora de filmar?

Nelson Pereira dos Santos: Eu já fui chamado de coisa pior. Além do pai espiritual do Cinema Novo, às vezes, sou chamado de "papa do Cinema Novo" [risos] quer dizer, coisa mais absurda. Eu fui jornalista e guardo ainda um pouco... Eu sei que essas expressões são necessárias para comunicação, para facilitar. Então, eu acho que eu me considero esse pai ou papa, porque eu comecei antes. Uma vez eu contei aqui, eu não participei do Cinema Novo, da criação, o Cinema Novo foi criado com os jovens e eu fui cooptado pelo Cinema Novo, porque eu já estava fazendo meu quinto filme quando o movimento do Cinema Novo se afirmou.

Paulo Markun: Mas, então, cabe a expressão “precussor” talvez?

Ricardo Soares: Você disse, “meus filmes fazem parte do Cinema Novo, mas não representam o Cinema Novo”, é isso?

Paulo Markun: Só vou pedir o seguinte, acho que ele não respondeu a questão da Suzana que é a questão da liberdade, acho que era bom a gente não perder essa...

Nelson Pereira dos Santos: Eu não sei, mesmo eu sendo pai eu posso ser livre, não é?

Paulo Markun: É um pai irresponsável!

Nelson Pereira dos Santos: Eu não tenho muita preocupação, eu quero ser livre, eu acho que espontaneamente o projeto de fazer um filme, de escrever uma história com bastante independência, senão, não é liberdade, aí eu fico prisioneiro do desejo de ter a liberdade.

Susana Schild: Mas existe uma cobrança sua de se superar a cada filme?

Nelson Pereira dos Santos: Pode ser, mas eu nunca me questionei por isso. Porque, o que existe na realidade, é que eu quero fazer uma coisa diferente da outra, sempre. Isso eu aprendi com uns amigos artistas plásticos, foi a minha patota da juventude aqui em São Paulo. Eles tinham aquela coisa da não repetição. Então, a cada trabalho, cada momento da vida, a obrigação de não se repetir, procurar novas formas de expressão, na cor, no volume, etc.

Paulo Markun: Qual é a fase agora?

Nelson Pereira dos Santos: Eu acho que o Castro Alves é um projeto antigo, mas ele é novo pelo fato de eu estar trabalhando a história livremente, aberta, e com todos os dados possíveis para fazer um filme de amor e de aventura e não um tratado sociológico histórico sobre o passado brasileiro. E junto disso, eu estou querendo também transmitir todas as informações básicas nesse momento da história do país.

Ricardo Soares: Essa tua ligação com Castro Alves vem da época que você estudou direito no Largo São Francisco, aí que começou essa tua afinidade estética?

Nelson Pereira dos Santos: É isso.

Ivan Isola: Mas, como o cinema entrou na sua vida. A gente está fazendo um programa estranho, ele é todo em flash back, a gente puxa o presente, pula para trás, lembra de alguma coisa. Você é o pai de alguma coisa, mas também tem os seus pais é óbvio. Nós temos aí uma linhagem de percussores do Cinema Novo, Alberto Cavalcanti [1897-1982. Foi diretor e roteirista de filmes como Rien que les heures (1926) e Um homem e o cinema (1977). Participava ativamente nos anos 1920 da primeira vanguarda de cineastas franceses de vertente surrealista] e Mario Peixoto [1908-1992. Escritor e diretor. Produziu e dirigiu vários filmes, mas somente O Limite estreou no cinema em 1931]. Então, eu gostaria que você contasse para o telespectador como que o cinema entrou na sua vida? Porque cada um de nós, que lida com o cinema, tem um motivo muito peculiar que nos leva a essa atividade.

Nelson Pereira dos Santos: Eu acho que a partir da família, meus pais eram cinéfilos, a palavra ainda não existia com esse uso, mas eles eram freqüentadores assíduos do cinema. Eu vi todos os filmes, realmente eu freqüentava cinema. Lá pelas tantas, quando terminou a guerra, que recomeçaram os cine-clubes, que os estandes eram fechados, não podia porque a ditadura proibia esse tipo de clube, de associação, eu, então, comecei a freqüentar os cine-clubes, mas estava sempre como espectador. A idéia de fazer cinema mesmo surgiu... Uma vez, por exemplo, Alberto Cavalcanti chegou aqui em São Paulo e fez uma conferência maravilhosa dizendo “é possível fazer cinema no Brasil”. Agora, houve também a grande influência do Neo-realismo. O Neo-realismo foi uma lição de produção, mais do que uma lição estética. Uma lição de como fazer filmes num país como o nosso, sem recursos. Não precisava passar por aquele caminho difícil, complicado, ter grandes estúdios, muito dinheiro, atores famosos, atores conhecidos internacionalmente, era câmera e o povo na frente, daí vem, mais tarde, a frase do Glauber [Rocha].

Ivan Isola: Eu costumava dizer que, de fato, o Neo-realismo uma revolução técnica por essas razões, mas também ele tinha um conteúdo de uma revolução moral, uma grande crise moral, e diante da grande crise moral que representou o fim da guerra [Segunda Guerra Mundial], ou o fim do Estado italiano com a derrota da Itália. Agora, o Cinema Novo, que relação a gente pode fazer entre esse aspecto da revolução? Porque por outro aspecto é muito óbvio que o Cinema Novo tem essa matriz neo-realista do modo de se produzir cinema. Mas ele também representa, de certa forma, uma reação ao cinema mais acadêmico, um cinema que foi feito um pouco pela Vera Cruz, um pouco pela Atlântida, uma forma mais popularesca, então, de alguma forma, era uma reação a um modo de se fazer cinema. Mas também havia um conteúdo cultural, porque talvez, pela primeira vez, o cinema brasileiro se expressasse como genuinamente nacional. Qual é o caráter fundamental do Cinema Novo?

Nelson Pereira dos Santos: Eu vejo agora, longe assim, que o Cinema Novo embora tenha sido um movimento espontâneo, não homogêneo, porque cada um tinha o seu mundo, a sua formação. Eu fui formado pelo Neo-realismo, antes do Neo-realismo eu fui formado pelo John Ford [ator americano (1894-1973)]. Na época, a dieta era cinema americano mais cinema americano e como sobremesa cinema americano, eu só fui conhecer o cinema europeu quando terminou a guerra, o cine-clubes voltaram a funcionar e o cinema italiano chegou aqui. O Cinema Novo também tem o seu momento que é a grande revolução da linguagem, quer dizer, o rompimento do plano tradicional, da montagem interior, isso tudo vai aparecer com os jovens do Cinema Novo. Eu fui influenciado também, mas não tanto, porque eu já estava no meu quinto filme. Como grupo fazendo cinema não havia, não era um grupo com pensamento único, cada um tinha o seu mundo diferente, mas o que havia em comum era a demonstração de que a linguagem universal do cinema tinha sido dominada por alguns brasileiros. E que essa linguagem universal estava sendo utilizada para a recuperação da nossa memória cultural. Então, o Cinema Novo estava intimamente ligado a todo processo de descolonização da cultura brasileira, iniciado na Semana de Arte Moderna, afirmando, que esse processo é longo, é antigo, mas a Semana de Arte Moderna foi um momento de grande afirmação da descolonização cultural brasileira.

Paulo Markun: Nelson eu vou começar com uma pergunta da Patrícia de Souza, aqui da capital, você já participou, se não estou enganado, da criação de três escolas de cinema. A patrícia pergunta o seguinte: o que você acha do grande número de concorrentes no vestibular de cinema e se vale a pena fazer faculdade de cinema hoje?

Nelson Pereira dos Santos: Patrícia, pode fazer que eu acho que vale a pena sim. Aliás, eu lhe dou parabéns que você escolheu a profissão do presente e do futuro.

Paulo Markun: Mas, em um país como o Brasil dá para entender que haja profissão do futuro? Quando a gente olha, por exemplo, em todos os cinemões aí o que a gente vê são aqueles filmes fantásticos feitos em Hollywood onde se destrói 450 carros, o mocinho leva 390 tiros e se gasta muito mais nessas cenas do que em todo cinema brasileiro?

Nelson Pereira dos Santos: Então, essa é mais uma razão de ir para o curso de cinema, mais uma pessoa para trabalhar nisso ou contra isso. Evidentemente que essa questão é fundamental. A gente vai pensar em resolver o problema do mercado antes de exercer a nossa vontade de fazer cinema, se for assim, acho que vamos morrer antes de fazer cinema. Eu me lembro que pertencia ao Partido Comunista, e quando eu quis fazer o Rio 40 graus o dirigente do partido disse “você está com a ilusão de pequeno burguês, porque cinema no Brasil só depois da revolução”, então, eu não ia esperar a revolução socialista para fazer cinema, não tinha sentido. Uma coisa independe da outra. Eu acho que essa questão do mercado ela está sendo diagnosticada de novo. A Vera Cruz passou por isso, eu estou dizendo do tempo que eu vivi fazendo cinema, e essas crises todas tem a mesma origem, que é essa aí. Traduzindo em miúdos, todas as salas têm aquele filme ou aqueles filmes produzidos nos EUA. Lá, o espaço para o cinema brasileiro é pequeno. Mas há possibilidade de...

Ivan Isola: Você não acha que aqui nós temos uma questão, eu acho que nós estamos vivendo um ponto de inflexão. Quer dizer, o Brasil tem uma política para cinema, mas não tem uma verdadeira política para o audiovisual entendido como produção de imagem em movimento através de qualquer meio que se possa utilizar. Hoje, o produto híbrido é uma grande constância em toda produção audiovisual, quer dizer, existem produtos captados em filmes, finalizados digitalmente ou vice-versa, captados digitalmente e finalizados com o filme, enfim. Essa característica, essa relação ela é cada vez mais intensa. Aqui na TV Cultura nós estamos co-produzindo 37 filmes em 2 anos, o que mostra que a televisão deveria ter uma atitude um pouco mais concreta, um pouco mais direta em relação à produção cinematográfica. Você não acha que o cineasta brasileiro tem um viés um pouco esquisito de olhar o cinema enquanto um produto destinado exclusivamente à sala? Sendo que, eu estava vendo uns dados aqui, em 1965 nós tínhamos 4 mil salas no Brasil, hoje nós temos 1 mil e 200, eram produzidos 30 filmes por ano, agora com a retomada nós estamos produzindo mais ou menos 30 filmes por ano, eram vendidos 320 milhões de ingressos, quatro vezes a população do Brasil, hoje, o ano passado foram vendidos 8 milhões de ingressos que é metade da população do Brasil e o filme brasileiro vendeu 5% desses ingressos, menos de 5%.

Paulo Markun: 80 milhões de ingressos?

Ivan Isola: 80 milhões de ingressos. E nós continuamos ignorando o mercado internacional. A TV, a TV a cabo, a pay per view o DVD, uma série de outras janelas que o produto audiovisual poderia utilizar, poderia usar com uma maior intensidade. Como você vê essa relação do cinema com a televisão? Inclusive, você que agora está preparando um tele-filme para GNT, etc.

Nelson Pereira dos Santos: A relação tem dois níveis, que ão dois planos completamente diferentes. O cinema ele é uma arte que está se consolidando, só tem 100 anos, o cinema é uma produção, é uma realização, uma criação baseada no artista, seja ele o diretor, o argumentista, um grupo, tal, mas é uma criação fora de um sistema industrial, ele vai virar indústria porque vai ser exibido, vai ser distribuído e etc. E o cinema, porque ele tem que ter essa liberdade de criação? Porque ele é o espelho da sociedade, mesmo nos EUA com toda aquela coisa, a criação individual é respeitadíssima e a visão, o olhar de cada cineasta, de cada momento da sociedade americana é completamente livre, e não há nenhuma questão social nos EUA que não tenha sido observada do ponto de vista do cineasta e observada pluralmente. Havia, por exemplo, a questão racial, a questão a guerra do Vietnã, tudo isso. E a gente conhece muito pouco também do cinema independente americano. O cinema tem uma função social da maior importância, e como eu disse, no Brasil é só plantar que vai dar cinema, quer dizer, não tem problema, as relações desse tipo de produção com a televisão é que são bastante promissoras, só assim que a televisão vai garantir essa produção, porque o mercado de salas, como você vê ele está decadente e ao mesmo tempo ele é sempre dominado pela importação de filmes. Então, a televisão que tem condições de produção, como na França, por exemplo. Meus últimos filmes são co-produzidos pela televisão francesa, eles não discutem o conteúdo, não discutem a forma, eles querem mais um produto do Brasil, ou de qualquer outro país. A TV Cultura também tem esse perfil de colaborar com esse cinema, manter o cinema com a sua tradição de arte independente. Eu vou fazer a experiência com A grande senzala, mas, eu já fiz outros programas de televisão, eu acho que realmente é uma outra atividade e que também vai atender uma grande carência na informação, da cultura, etc.

Ivan Isola: Porque também há uma outra realidade muito próxima que é a questão da HDTV. A HDTV colocou a televisão de joelhos diante do cinema, a televisão terá o formato da tela panorâmica do cinema, o nível de resolução ótica exigida pela HDTV só o suporte do filme pode propiciar, compressão digital e tal. Só a TV Cultura, durante esse ano, ela terá 8 canais, o mercado ele demanda muito mais do que é oferecido, então, com a compressão digital essa demanda tende a crescer. Como você disse, os EUA refletem a própria história, seus usos, seus costumes, suas tradições através do cinema, mas também através da televisão, através do cinema dentro da televisão. Você não acha que de fato é preciso que se equacione esta relação do cinema com a televisão? Porque o que eu vejo é que as políticas públicas em geral elas são voltadas para a produção do filme exclusivamente, quando na realidade existe...Eu estou pensando muito na jovem que pretende estudar cinema. Por exemplo, tem uma importante escola de comunicação de São Paulo que tem cursos de rádio e TV e curso de cinema. As pessoas que freqüentam o curso de cinema não fazem curso de marketing e as pessoas que fazem curso de televisão não fazem curso de roteiro ou direção de ator, quer dizer, é um anacronismo...

Amir Labaki: Mas as coisas estão melhorando um pouco nessa área. Como, por exemplo, essa escola talvez seja a ECA [Escola de Comunicação e Artes da USP] que está se referindo.

Ivan Isola: Não.

Amir Labaki: A ECA está juntando.

Ivan Isola: Mas, agora.

Amir Labaki: Porque a ECA que era tradicional, cuidava de separar e tudo, eu acho que essa questão felizmente no Brasil as coisas estão...experiência da TV Cultura, experiências da TV a cabo que ampliaram muito a demanda. Eles tiveram que começar, por demanda de produção, a conversar com produtores independentes. Quer dizer, o Aurélio que está aqui, que é um documentarista, começou a fazer vários filmes em parceria com a televisão, não é Aurélio? Bom, mas eu queria voltar um pouco, a pergunta do Aurélio, que eu sei que ele vai te fazer. No livro da Helena tem uma frase que você fala quando você conheceu Glauber e falou "eu vou montar esse filme [Barravento] porque eu fiquei muito impressionado com esse jovem baiano, esse rapaz vai fazer muita coisa boa para o cinema". Queria saber como você encontrou Glauber, qual foi a situação, foi na Bahia, foi no Rio de Janeiro? Por que foi tão forte esse primeiro contato?

Aurélio Michiles: Queria aproveitando, enfim, eu faria essa mesma pergunta acrescentando um dado. Nas "lendas da cozinha" do fazer cinematográfico, conta-se que o Alex Viana disse que você pegou da lata do lixo o Barravento porque o Glauber não queria fazer mais o filme, e você insistiu para que ele continuasse a tarefa de montar o filme, que o filme era muito bom, e que você, “vamos fazer como aquele Godard [Jean-Luic Godard], vamos montar tudo ao contrário”. Isso é uma lenda ou é uma história?

Nelson Pereira dos Santos: Isso é uma lenda. O Glauber sabia tudo, ele não tinha ainda a experiência de realizar montagem. Agora havia montadores que  a gente chamava de motorista de moviola, ele queria um colega, um companheiro para trocar idéias sobre o trabalho dele. Mas ele nunca jogou fora nada, ao contrário, ele chegou com o filme, me convidou, trabalhamos, foi muito divertido, fizemos muita invenção, ele geralmente sabia onde colocar cada plano. Isso é uma lenda realmente, está na hora de dizer que é uma lenda, devo afirmar que é uma lenda.

Paulo Markun: Porque o Glauber te impressionou tanto?

Nelson Pereira dos Santos: Eu conheci o Glauber quando ele era bem jovem, eu fui com o filme Rio 40 graus para a Bahia, que estava proibido pelo chefe da polícia, isso foi no ano de 1955 e o Glauber fazia parte de um cine-clube da Bahia, que era presidido pelo crítico de cinema Walter da Silveira, um entusiasta do cinema, gente finíssima, eu conheci ele nesse momento. Depois, quando eu fui fazer o Rio Zona Norte [1958. O filme narra a história de um sambista, foi inspirado na vida do músico Zé Ketti, colega e compositor de vários filmes de Nelson Pereira. Entre o elenco destaca-se Ângela Maria e Grande Ottelo] o Glauber foi me visitar na filmagem, o Glauber conta uma história, ele contando tem que ser verdade, mas eu não me lembrava disso, ele chegou na filmagem e eu estava naquele momento tirando algumas cadeiras do auditório para enquadrar melhor a Ângela Maria, não cabia a câmera, então arrancando a cadeira, o Glauber chegou, disse: “que bom que você veio, tira umas cadeiras, me ajuda a carregar as cadeiras”, aquele tempo equipe pequena, não existia maquinista, eletricista, todos faziam tudo, de tudo em qualquer setor.

Susana Schild: Nelson, e naquela época se fazia cinema não se fazia produto audiovisual, né? E como é que você se sente sendo obrigado a acompanhar essa revolução tecnológica? Porque hoje em dia é impossível se pensar em fazer só cinema, você tem que pensar no marketing, no HDTV, como é?

Ricardo Soares: HDTV, televisão de alta definição, traduzindo.

Susana Schild: E todas as ramificações possíveis; lançar em vídeo, no exterior e etc e tal. Uma vez você falou que quando você pensava num filme, você pensava, depois você ia para a rede e via o filme, só depois você ia filmar. Hoje em dia deve ser uma trabalheira danada, você tem que ver vários produtos, como é que vai ficar em filme, em vídeo e etc. Como é que você se sente? É um estímulo ter que acompanhar isso tudo ou na época de "uma idéia na cabeça, uma câmera na mão"  a liberdade de filmar era melhor?

Nelson Pereira dos Santos: Eu acho que não mudou muito. A filme ainda é feito da mesma forma, quer dizer, hoje a gente tem mais condições técnicas, câmeras que andam sozinhas, passa por debaixo d’água e tal. Aliás, eu queria lembrar uma história do Humberto Mauro, ele era diretor técnico do Instituto Nacional de Cinema e o novo diretor geral importou uma moviola, na época era a grande moviola Steenbeck, aquela alemã horizontal, e eu fui lá visitar o Humberto Mauro e ele disse: “o homem aí mandou comprar uma moviola, que olha, faz tudo, não precisa de diretor, põe os rolos ali e os filmes saem perfeito”... [risos]

Susana Schild: Era moviola virtual.

Nelson Pereira dos Santos: Humberto Mauro estava brincando um pouco, ironizando essa mitificação da mudança tecnológica. A gente lembrava assim, que uma grande transformação tecnológica na história da montagem, naquele tempo, foi a maneira pela qual se colava as partes do filme. Até então tinha que raspar, passar uma cola, emendar e tal, depois inventaram o tape, isso foi uma grande revolução porque não perdia o quadro, toda vez que tinha que cortar cada quadro. Evidentemente tudo que é novo na tecnologia vem para aumentar o poder de criação, não para inibir, ao contrário, contém mais recursos para poder realizar aquelas idéias, aquilo que está no plano da imaginação, meio nebuloso, é possível através de toda tecnologia, essa câmera que anda sozinha, maravilha, tudo isso é possível usar porque na minha imaginação já existia isso.

Susana Schild: Desde que se tenha orçamento, né?

Nelson Pereira dos Santos: Desde que se tenha orçamento, claro. Agora, é importante também é ter essa posição de não mitificar as grandes invenções na área da tecnologia da realização da produção, porque aí fazer um raciocínio invertido. O que é que mudou no cinema, por exemplo, quando foi inventado o som? Eu era muito pequeno, muito criança e não sabia, mas eu me via, já fazia cinema quando apareceu a cor, então qual é o filme que transformou o cinema? Foi o primeiro filme colorido que mudou o cinema? Agora, eu sou capaz de lembrar de filmes que foram realizados com pouca tecnologia, quer dizer, dois grandes momentos da criação cinematográfica, quando realizados com os recursos mínimos, recursos que tinham sobrados do tempo anterior, que entrou em decadência.

Paulo Markun: Você acredita que hoje em dia é possível acontecer isso? É possível fazer, com poucos recursos, um filme que ganhe um espaço de público e que tenha uma repercussão significativa?

Nelson Pereira dos Santos: É possível, é possível.

Ricardo Soares: Nelson, qual o filme seu feito com pouco recurso, cujo o resultado final te agradou?

Nelson Pereira dos Santos: Vidas secas.

Aurélio Michiles: Por falar em Vidas secas, voltando às lendas, você depois de tantas batalhas, de tantos anos com o roteiro embaixo do braço querendo fazer esse filme, depois de ter chovido, inclusive, no lugar que não chovia, finalmente você consegue iniciar as filmagens e quando sai para a locação você se dá conta que está sem os roteiros, e tudo começa com o livro que estaca na cabeça, é verdade isso?

Nelson Pereira dos Santos: É verdade. Eu tentei fazer Vidas secas em 1959 mas choveu em Juazeiro da Bahia e eu inventei um outro filme, voltei para o Nordeste em 1962 depois de fazer Boca de Ouro [1963], me instalei, eu fiquei alguns meses preparando o filme, refazendo o roteiro, escolhendo as locações, os atores, fazendo uma espécie de laboratório e, finalmente, primeiro dia de filmagem, sai a equipe, caminhão, jipe e fomos lá para o meio da caatinga. Então, vamos ver agora onde é que vai ser. Aí pedi para o meu assistente “me dá o roteiro”, o assistente era muito vivo, engraçado, Ivan de Souza era seu nome; “roteiro?”. Ele, então, falou para alguém que não existia. Daí veio outro: "roteiro? roteiro? roteiro” e a voz se perdeu no deserto na caatinga. Ninguém tinha o roteiro. Aí eu disse, “não precisa, está tudo decorado como música, eu já sei como é, como é essa seqüência”, imaginei durante anos, eu sabia como tinha que filmar aquilo.

Jards Macalé: Nelson, deixa eu lhe perguntar uma coisa. Queria que você falasse sobre os não atores, porque nos seus filmes, por exemplo, você pega um ator genial, como Grande Otelo, fantástica revelação, e de repente você escolhe...

Nelson Pereira dos Santos: Um ator como você! [risos]

Jards Macalé: Pois é. [risos] Com que olho você escolhe, de repente, um Jofre Soares [1918-1996, ator, trabalhou em vários filmes de Nelson Pereira, Glauber Rocha e Cacá Diegues, entre esses, destaca-se Chuvas de verão (1978) e Bye Bye Brasil (1979)], a Maria Ribeiro [1938. Atriz, foi descoberta no Laboratório Líder onde trabalhava como técnica. Em 1963 foi convidada por Nelson Pereira para trabalhar no filme Vidas secas. Também participou dos filmes O amuleto de Ogum (1974) e a Terceira margem do rio (1994)], o Arduíno Colassanti [1936. Ator símbolo do Cinema Novo, fez 38 filmes, entre esses, Como era gostoso meu francês (1971) e Fome de amor (1968), todos de Nelson Pereira] e tantos outros, inclusive eu. Como você saca que é aquele ali?

Nelson Pereira dos Santos: Difícil, não existe método para isso, é intuitivo.

Jards Macalé: Juarez Paraíso também.

Nelson Pereira dos Santos: Juarez Paraíso. Porque eu vejo muito nisso a experiência daquela pessoa, a própria vida se assemelhar a vida do personagem. É o caso do Juarez Paraíso, Juarez Paraíso é um Pedro Arcanjo [refere-se ao nome do personagem de Juarez Paraíso no filme Tenda dos milagres] na Bahia, um grande artista plástico, tem toda uma história de luta, defesa contra a descriminação racial, um homem de vanguarda do pensamento político, então, ele era Pedro Arcanjo dos anos 1970, essa que é a idéia. E você, por exemplo, é um grande...

Jards Macalé: Ceguinho?!

Nelson Pereira dos Santos: Ceguinho [risos] É o Bardo.

Jards Macalé: Foi divertido.

Nelson Pereira dos Santos: É o contador de história, é o provocador, transgressor.

Ricardo Soares: Nelson, vendo aí o Macalé e aquele seu projeto, você falou de música no começo, e o seu projeto de filmar Zé Keti [nome artístico de José Flores de Jesus (1921-1999), foi cantor e compositor de samba. Muitas de suas músicas foram incluídas nos filmes de Nelson Preira, entre elas, A voz do morro (1955)]?

Nelson Pereira dos Santos: Não seria um longa metragem, mas seria um depoimento do Zá Keti.

Ricardo Soares: Um seriado?

Nelson Pereira dos Santos: Um especial para a televisão.

Paulo Markun: Mas você tem um filme que é música pura, que é o Estrada da vida [1980. O filme narra a história da dupla sertaneja Milionário e José Rico e o nome faz referência à música mais famosa deles], né?

Nelson Pereira dos Santos: Estrada da vida...

Paulo Markun: É um filme que também, de alguma forma, foi recebido com uma estranheza. Como é que o Nelson vai fazer um filme sobre uma dupla caipira? As duplas, por sinal, não tinham a projeção que têm hoje e nem todo esse mercado.

Nelson Pereira dos Santos: É verdade.

Ricardo Soares: Na época eles vendiam 1 milhão de exemplares.

[  ]: Zé Rico e Milionário não era pouca coisa...

Nelson Pereira dos Santos: O que acontecia na época é que havia um processo de descriminação, um preconceito evidente contra esse gênero musical que é bastante popular. Já que estamos na época do "Deus mercado" é preciso reconhecer esse fenômeno cultural importantíssimo.

Paulo Markun: E funcionou do ponto de vista de público?

Nelson Pereira dos Santos: Muito, foi um grande sucesso.

Paulo Markun: É o seu filme que teve mais espectadores, ou não?

Nelson Pereira dos Santos: Não sei se foi esse, porque naquele tempo não tinha muita estatística, mas foi um bom filme. Memórias do cárcere também teve boa repercussão.

Ivan Isola: Essa pergunta tem a ver com os vários críticos que temos aqui. Hoje, mexendo aqui nos recortes do jornal da TV Cultura eu peguei uma só frase, eu não sei nem a que filme você se referia, mas você disse que a crítica matou o filme. A crítica pode matar um filme, consegue matar um filme?

Nelson Pereira dos Santos: Qual era o filme?

Ivan Isola: Não sei qual filme era, não me lembro mais...

[  ]: Jubiabá.

Ivan Isola: Mas é que normalmente nós cineastas sempre temos algo a dizer dos críticos.

Ricardo Soares: Tem uma declaração do Nelson que a crítica matou Jubiabá.

Paulo Markun: Se não matou, aleijou?

Nelson Pereira dos Santos: Não me lembro disso não. Aliás, a minha relação com a crítica... Lá em Brasília houve um grande debate, então, eu expus uma coisa articulada, só algumas reflexões sobre isso. Em primeiro lugar eu acho que são dois universos, crítico em vez da crítica. A crítica é a visão que não pode ser absolutamente contaminada por qualquer tipo de formação, crítico tem que ser absolutamente rigoroso com a sua apreciação do filme, da obra, etc.

Paulo Markun: Então, é um espécie em extinção?

Nelson Pereira dos Santos: Não, eu acho... A segunda reflexão sobre isso é que a crítica tem que ser assim porque ela pode ajudar o cinema mais do que ninguém, quando o cinema entra em decadência é a crítica que vai fazer o pensamento cinematográfico progredir. O que foi que aconteceu na história, na história do Brasil, o Cinema Novo saiu da crítica, a novela saiu da crítica, saiu de uma visão absolutamente fora do processo cinematográfico.

Ivan Isola: Cinema Novo também.

Nelson Pereira dos Santos: O Cinema Novo também.

Ivan Isola: Vários, o próprio Glauber.

Nelson Pereira dos Santos: É importante, porque a crítica, na área da criação, da invenção, ela vai propor um novo caminho na medida que ela vai criticar, vai analisar o que está acontecendo que não está levando à uma renovação.

Ricardo Soares: No seu caso ela deu alguma sugestão aproveitável? Nessa longa carreira houve algum toque que a crítica tenha te dado e que serviu para alguma coisa, para o seu cinema, ou não?

Nelson Pereira dos Santos: Tem uma história que eu contei, eu fui para o Festival de Cannes [Festival International du Film de Cannes, um dos mais prestigiados e famosos festivais de cinema, acontece todos os anos no mês de maio, na cidade francesa de Cannes] na quinzena dos velhos atores, fui com um filme chamado Quem é Beta, aí o filme foi exibido e tal, torceram o nariz para o filme, aí quando eu saí meus amigos me convidaram para um almoço, me homenagearam. “Nelson é o seguinte, este filme não vale, você volta para o Brasil e faz outro”. [risos] Porque é uma relação que se dá periodicamente, penso um filme, etc, vou com ele muito certo de que eu fiz a coisa, eu acho que está correto. Agora a crítica é a visão do outro. Quando eu estou na fase de criação eu não quero saber do outro, não me interessa.

Ricardo Soares: Nelson você já foi definido uma vez como cineasta “zen”, várias matérias do jornal do Rio definiram você como cineasta “zen”. Apesar de cineasta “zen”, alguma vez, sinceramente, a crítica te deixou "p" da vida? Você sai chutando lata de negativo?

Nelson Pereira dos Santos: Não. Outra coisa, eu estreei no cinema tendo como crítico aquele que tinha poder de polícia. Então, eu acho que a crítica desde que não tenha o poder de polícia está ótimo, porque eu passei pelo pior, já prenderam meus filmes e queriam me prender também.

Ivan Isola: Mas, você não sente essa tentação de vez em quando nos críticos? De que eles adorariam ter o poder de polícia eventualmente?

Nelson Pereira dos Santos: Podem até ter vontade, mas as condições, não vão ter.

Paulo Markun: Felizmente não tem direito! Faltam pouquíssimo dias aí para a decisão do Oscar e tem várias perguntas dos telespectadores sobre o filme Central do Brasil. Coisa da internet é bacana, porque assim digeriergue@svn.com.br. Glaucia, de Salvador, da Bahia pergunta qual é a sua opinião a respeito do Central do Brasil e as expectativas para o Oscar? Gil Vicente de Toledo, aqui de São Paulo pergunta se o senhor acha que o Oscar ainda tem alguma credibilidade ou se ele já é uma peça totalmente dominada pela indústria do cinema? E finalmente o Isac Nikos pergunta se...

Nelson Pereira dos Santos: É o ator?

Paulo Markun: É de Porto Alegre, do Rio Grande do Sul, o filme Central do Brasil na sua opinião pode ser considerado um exemplo de humildade do Valtinho Salles [Walter Salles, diretor]? Já que no ponto de vista estético traz um estilo recortado nos planos de tomada e edição. Será que isso representa, pergunta ele, o fim do resmungo marxista do cinema nacional? [risos]

Nelson Pereira dos Santos: São tantas perguntas. [risos]

Nelson Pereira dos Santos: O Oscar, vamos falar do Oscar. Eu acho que é da maior importância esse prêmio, pelo que ele representa de comunicação e divulgação de um filme. O Oscar seria um grande presente para o cinema brasileiro e desculpe a falta de modéstia, mas seria um grande presente para o Brasil nos dias de hoje. Na realidade, esse filme Central do Brasil está levando o Brasil nas costas. Na mídia internacional, que é a única notícia favorável ao Brasil, é esse filme que está sendo apreciado, aplaudido, ganhando prêmios. Ele tem uma mídia enorme em todos os lugares. Eu, por exemplo, presenciei o lançamento do filme Central do Brasil em Paris. Todos os jornais, revistas, programas de televisão de horário nobre e de entrevista tinham lá Central do Brasil. Então, esse filme e o Oscar seria realmente  um grande presente. Eu acho que a competição é muito difícil, o outro filme tem um investimento muito maior, mais pesado, só de publicidade nos EUA acho que gastou uns 15 milhões de dólares, contra 2 milhões do Central do Brasil.

Paulo Markun: No que isso pesa na decisão do Oscar? A minha ignorância é total, mas não é o sujeito que vai lá e vota, diz assim: “vou votar no filme tal porque gostei mais desse filme”, ou tem o negócio de dizer assim: “olha você vai levar um dinheiro..."

Nelson Pereira dos Santos: Não, não. É a comunidade cinematográfica que vota, são todos os técnicos, os atores. Não é isso Amir?

Amir Labaki: É. Tem mais de 5 mil votantes.

Nelson Pereira dos Santos: É um colégio eleitoral bem grande e honesto, é impossível de ser manipulado.

Amir Labaki:Você viu esse outro filme, A vida é bela?

Nelson Pereira dos Santos: Ainda não.

Amir Labaki: É um filme italiano, essa ligação com o cinema italiano seria curioso de saber. Você viu alguns dos outros indicados?

Nelson Pereira dos Santos: Ainda não.

Amir Labaki: Indicados do Oscar. Não.

Nelson Pereira dos Santos: Eu estava contando no começo, eu passei os últimos meses muito preocupado com o estado de saúde de Laurita, minha mulher, que veio a falecer recentemente, então não tinha condições de ir ao cinema, nem nada, perdi os filmes todos. Mas agora eu vou recuperar.

Paulo Markun: Vamos só terminar a questão do Central. Você acredita que ele tem perspectiva de ganhar? Ele seria um filme premiável, digamos assim?

Nelson Pereira dos Santos: Eu acho que é um filme muito bem realizado.

Luiz Carlos Merten: Mas eu acho que as pessoas querem saber o que eu também quero. Ele gostou do filme, tu gostaste do filme?

Nelson Pereira dos Santos: Eu gostei, claro, eu gosto muito do filme. Esse filme é uma..., digamos assim, é uma retomada do cinema brasileiro no plano ético. É o olhar generoso do povo brasileiro, do homem simples, do desvalido, daquele homem subordinado a todo esse caos social.

Paulo Markun: Quer dizer, ele pode não ter a estética do Cinema Novo...

Nelson Pereira dos Santos: Exatamente. A ética do cinema brasileiro em geral, que vem de antes, também é muito ligado a nossa tradição cultural dos escritores, toda essa fase do Brasil moderno.

Aurélio Michiles: Você tinha um projeto com Walter Salles em 1980, ou eu estou confundindo...

Nelson Pereira dos Santos: Eu trabalhei com ele no roteiro, fizemos uma adaptação de um livro do Alejo Carpentier [refere-se ao filme El acoso, baseado num romance do escritor cubano], o fugitivo  o perseguido, pretendia filmar em Cuba, eu trabalhei com ele nisso.

Susana Schild: Agora Nelson com o teu otimismo invencível quando é que começa Castro Alves?

Nelson Pereira dos Santos: Estou agora fazendo uma revisão do roteiro para poder colocar o filme em termos atuais, de possibilidade de realização.

Paulo Markun: Isso significa...

Nelson Pereira dos Santos: Eu tenho esperança de começar ainda este ano.

Paulo Markun: Significa diminuir despesas?

Nelson Pereira dos Santos: É.

Paulo Markun: Em português claro, gastar menos?

Nelson Pereira dos Santos: Basicamente é isso.

Paulo Markun: E não dá uma certa dor no coração?

Nelson Pereira dos Santos: Tenho o apoio da TV Cultura também.

Paulo Markun: Não dá uma dor no coração, você trabalhou já bastante tempo nesse roteiro, tem esse projeto há tanto tempo, agora tenho que cortar porque os empresários não estão tendo lucros, então não vai ter dinheiro para investir?

Nelson Pereira dos Santos: Eu inventei uma história melhor, é muito mais simples, mais barata, vou fazer desse jeito, sem lamentação.

Amir Labaki: Que ponto do processo de preparar um filme que você mais gosta? É o set, é filmar, ou é montar?

Jards Macalé: Filmar! Ele fica outra pessoa filmando, é lindo. Parece um balé enorme assim, gigantesco.

Aurélio Michiles: Eu tenho uma curiosidade e vou te perguntar. Um filme que eu gosto sempre de rever e tem uma cara de documentário é Como era gostoso o meu francês, toda vez que eu assisto eu sempre pergunto como que foi feito tudo aquilo para conseguir aquele bando de gente ali pelado, uma desenvoltura daquele Brasil que só você conseguiu fazer, porque é o único registro desse Brasil que nós temos é esse teu filme extraordinário, belo. Como é que você conseguiu? Será que aquele clima hippie da época favoreceu você? Conta esse segredo aqui para a gente.

Nelson Pereira dos Santos: Eu acho que sim. A idéia daquele filme era criar uma colônia de nudismo. A produção básica era aquela do cenário. Isso foi feito aos poucos, começamos primeiro com um grupo, depois outro, outro, de forma que, a figuração toda se habituou a ficar nua. Então, dentro de cada um de nós brasileiros tem um indiozinho ali adormecido. Então, na medida que gostamos de ir a praia ficarmos nus, cultuar o próprio corpo né? Eu acho que esse foi o princípio, vamos brincar de índio, todo mundo é índio e tal. E a câmera vai filmar com esse distanciamento do documentário, o processo de criação do filme foi esse, se bem que o filme ele tem.., quem está filmando não está metido com os índios, está de olho de fora, a gente fazia até de propósito, ficava todo mundo nu, menos a equipe. [risos]

Luiz Carlos Merten: Falar de outro filme Nelson, que é bem diferente desse, Fome de amor, é um dos teus filmes mais estranhos e é um filme que eu particularmente gosto, é um filme clássico, refinado, intelectual. Como que pintou esse filme na tua carreira? Porque ele é diferente do outros.

Nelson Pereira dos Santos: Essa é uma experiência muito radical. [risos] Eu fui convidado para fazer esse filme que é uma história escrita por Guilherme Figueiredo no livro Histórias para se ouvir de noite, um conto, mas eu não estava interessado muito naquele filme. Então, eu viajei para os EUA, foi a primeira vez que eu fui para lá com uma bolsa que eu tinha ganhado, e fiquei naquele ano, 1966. Então, era o momento de grande efervescência da sociedade americana, resistência à Guerra do Vietnã, época da maconha e da paz, aquela coisa toda girando, daí eu mudei a história. Antes, a história se passava em Paris, uma pianista, era uma coisa bem clássica, aí mudei, ao invés de uma pianista era uma musicóloga, [...] pelas histórias dos gurus indianos, aquele mundo todo criado, aí conhece o personagem. Para dizer a verdade, eu não escrevi roteiro nenhum, eu fiz o filme todo primeiro filmando, depois que eu escrevi alguns textos e diálogos, e etc. Foi uma experiência radical mesmo. Eu fui para Angra dos Reis porque o produtor Herbert Richers [da produtora com o mesmo nome, pioneira no país em distribuição e dublagem de filmes] queria que eu fizesse o filme, eu queria passar a direção para o Ripper, Luiz Carlos Ripper [1943-1996] que tinha sido meu assistente, uma pessoa brilhante. Foi um grande diretor de teatro, cenógrafo, infelizmente ele morreu muito cedo. O Ripper queria dirigir, mas não houve um acordo dos produtores, e eu voltei a assumir a direção. O Herbert Richers, aliás, um produtor maravilhoso que eu tive, me deu carta branca, "você faz o que você quiser com esses atores" ele disse. Eu tinha Leila [Leila Diniz, como Ula], Stefânia [Irene Stefânia, como Mariana] e o Paulo Porto [como Alfredo], então, foi uma experiência bem legal. Eu fui filmando, filmando, inventado a história, impregnado em todo aquele ambiente, aquele comprometimento de uma certa juventude, uma fuga na ideologia. Era um pouco tudo que eu tinha visto nos EUA e que vi um pouco aqui. É todo um filme que trata dessa questão da... nossa grande sugestão ideológica. Eu ia falar envenenamento ideológico, mas não é justo isso.

Luiz Carlos Merten: Nelson, tem mais uma coisa que eu acho que... Eu te pergunto até para esclarecer. Eu participei ainda a pouco do Metrópolis falando sobre os 60 anos do Glauber e apareceram imagens do Glauber numa abertura e lá pelas tantas eu me surpreendi com uma declaração dele, onde ele diz assim: “esse Nelson Pereira dos Santos que já foi  meu amigo, mas agora não é mais”.

Paulo Markun: É a pergunta de Cleiton Melo.

Luiz Carlos Merten: Uma coisa que eu ouvi, que o telespectador da Cultura ouviu isso ainda há pouco. Como houve essa ruptura com Glauber, ele rompeu contigo, tu rompestes com ele, os dois romperam, como foi?

Nelson Pereira dos Santos: Eu nunca rompi com o Glauber, ele de vez em quando brigava...

Ivan Isola: Se você não brigasse com Glauber você jamais seria amigo dele, quem não brigou com Glauber não é amigo do Glauber.

Nelson Pereira dos Santos: Eu deixava passar, não tinha problema, mas sempre havia uma retomada das relações. Eu não me lembrava disso, teve uma época que ele brigou com todo mundo. Aliás, ele tem uma relação comigo muito carinhosa, porque apesar de ser mais novo ele cuidava, se preocupava muito comigo. Eu me lembro que ele telefonou uma vez dizendo assim: “eu soube que você está bebendo muito, você tem que parar com isso, você é um homem muito responsável, você tem que assumir a sua responsabilidade”, me deu um pito enorme, de pastor. [risos] Uma vez eu me lembro que eu cheguei em Roma, logo depois do Amuleto de Ogum, passou em Cannes, ele também me fechou na sala me deu assim uma grande lição de moral que eu tinha que assumir, enquanto eu não assumisse as minhas responsabilidades o cinema brasileiro não sairia da crise, etc., etc., queria que eu fizesse, não sei direito o que era mais...Não tenho a menor vocação para isso.

Ricardo Soares: Tem uma pessoa que falou de lenda, a respeito de coisas que teriam acontecido na sua carreira. Tem uma história que eu li em duas oportunidades diferentes, eu queria que você confirmasse o nome porque ela é muito engraçada. É verdade que você uma vez, endividado, desceu de um Maverick [modelo de carro da marca Ford], entregou ele de presente para um eletricista que você devia dinheiro, essa história é verdade? Ou não é? Como que foi?

Nelson Pereira dos Santos: Eu não devia dinheiro para ele, aliás, eu nunca devi dinheiro para quem trabalha comigo, isso é uma tradição minha e reconhecidamente eu sou produtor e cumpro meus deveres, especialmente, quem trabalha, quem depende de salário. Foi um presente meu, eu comprei o Maverick para fazer o Memórias do cárcere, o Maverick pertencia a um veterano diretor de cinema, italiano radicado no Brasil, ele vendeu, que ele não tinha onde botar aquele carro, era da época que a gasolina aumentou de preço, para viajar para Campo Grande, é um carrão ótimo, quando terminou o filme o carro ficou estacionado na frente da minha casa em Botafogo e virou uma habitação lá de uma família, já tinha galinheiro, papagaio, um carro grande, e para dar uma solução boa para o carro, eu pensei no Sandoval, é meu compadre, eletricista, “Seu Sandoval, o senhor quer o carro de presente?” “Quero”. Levou o carro de presente.

Paulo Markun: Eu queria juntar duas perguntas de telespectador aqui que eu acho que é sempre complicado fazer essa junção, mas acho que tem um ponto de ligação. Agnaldo Amaral, da Vila Mariana aqui de São Paulo pergunta o seguinte: Só se fala em cinema americano e o cinema europeu e ele pergunta o seguinte: A nossa meta do cinema brasileiro é se igualar ao cinema americano? E a pergunta de Julio Cobrio, de Porangatun em Goiás, acho que é a pergunta do senso comum do espectador do cinema no Brasil, pergunta o seguinte: Por que o cinema brasileiro parece um teatro na tela? Por que os atores parecem que encenam na frente da tela?

Nelson Pereira dos Santos: Eu tenho impressão que ele vê poucos filmes brasileiros. Aliás, eu aprendi isso, sempre que alguém faz críticas ao cinema brasileiro como: o som é péssimo, os atores não falam direito. Aí eu pergunto qual foi o último filme brasileiro que você viu? Em geral essa pessoa que faz esse tipo de crítica não é capaz de lembrar filme nenhum. “Qual o filme que você viu? “O cara diz: O cangaceiro, de 40 anos atrás. É verdade, porque o que predomina é o preconceito, não é a experiência própria. É muito mais fácil a gente viver baseado em preconceito do que conhecer, experimentar, manter relação direta com aquele assunto, é muito fácil. O cinema brasileiro, eu não vou ver porque é ruim, os atores são péssimos. Não, não, ao contrário, os atores são muito bons, os filmes recentes, então, cada um melhor do que o outro. Não estou falando só da nossa querida Fernanda Montenegro, os atores, outros atores muito bons que têm feito aí agora nos filmes. Essa crítica ele tem que recolher.

Paulo Markun: E em relação ao cinema americano e cinema europeu e para onde a gente vai?

Nelson Pereira dos Santos: Pois é, outro dia me perguntaram assim, qual é o melhor cinema, o europeu ou o americano? Eu disse, "o que é melhor: a língua francesa, a língua alemã, a língua inglesa, a língua portuguesa?" O cinema é uma expressão cultural, portanto, não é melhor e nem pior que o outro, ele existe dentro do seu contexto, expressando a vida daquela sociedade onde ele nasceu e o cinema é um mundo moderno, eu acho que é espinha dorsal da cultura. Pelo menos nos EUA é assim, você não pode pensar em cultura americana, sem pensar no cinema americano como sustentáculo de toda essa produção cultural majestosa, magnífica, riquíssima. E o Brasil, eu acho que no dia que o cinema realmente se afirmar e não ter mais crises periódicas, estava lembrando de quantas crises houve no cinema; eu lembrei da Vera Cruz, da Atlântida, Embrafilme, sempre existe uma crise. Essa crise existe pelo seguinte, o investimento inicial de todos esses círculos ele não volta, o círculo acontece enquanto esse investimento está sendo consumido. Por quê? Porque o mercado não é para o cinema brasileiro. Uma indústria de cinema ela é composta de três atividades: produção, distribuição e exibição. A exibição no Brasil é ligada à economia do cinema americano, não é ligada à economia do cinema brasileiro. Então, é impossível ter esse retorno. Aquela estatística que você lembrou, nos anos 1950 a população brasileira era o quê? 50 milhões, 70, produzia, tinha 300 milhões de ingressos vendidos. Hoje a população é o quê? Três vezes mais e o número de ingressos diminuiu para 80 milhões.Também existe um futuro para aqueles jovens, quero ligar àquela pergunta da jovem: se vale a pena fazer curso de cinema, será que vai existir essa profissão? Basicamente o Brasil tem condições de ter uma indústria. Por quê? Porque ele tem o público, esse público desapareceu, ele tem que voltar ao cinema, porque ele não volta ao cinema? Porque antes ele não ia ao cinema também, a exibição no Brasil sempre foi feita para o "filé mignon" da sociedade, hoje o preço de entrada é 8 dólares, 5 dólares, quem ganha salário de 100 reais não pode ir ao cinema, então, nunca se pensou em levar o cinema a esse público que poderia pagar entrada de 1 dólar, e o cinema brasileiro ficaria satisfeito e riquíssimo.

Ivan Isola: Porque de certa forma tem o fenômeno recente muito interessante, que é o que aconteceu com a música popular brasileira, a música popular brasileira ocupava um pequeno espaço do mercado, havia uma predominância enorme do produto americano, da música pop e etc., e hoje a música brasileira ocupa 70% do mercado. Quer dizer, você não acha que há uma possibilidade de que o cinema brasileiro venha ocupar um espaço relativamente similar a esse?

Nelson Pereira dos Santos: Exatamente, eu estava direcionando o meu raciocínio por aí. Você pode pensar na indústria de cinema num país que tem uma população de 20 milhões de habitantes, é difícil. É possível pensar em indústria de cinema no Brasil. Existe inclusive ainda um público que ainda não foi no cinema, nunca entrou no cinema. Porque até os anos 50 era proibido entrar no cinema sem paletó e gravata e sapatos, e a população brasileira, nos anos 50, quem vestia sapato? Era menos de 50% que tinha sapato. Houve essa descriminação por duas razões, uma sociedade ainda eivada da formação escravocrata e o princípio do lucro, vender para quem tem 8 dólares, não interessa o resto, porque eu vou educar esse povo, não interessa educar. Porque o cinema com a sua função de educação é muito grande, é muito importante. Eu acho que essa tradição do Brasil vai estar sendo rompida, manter essas coisas velhas, arcaicas da nossa sociedade está sendo rompido, eu tenho certeza que vai haver esse público, é um público, na linguagem mercadológica, CDF, eu acho que esse público vai voltar e vai ser acessível a freqüência do cinema para qualquer pessoa pelo preço e o cinema brasileiro vai ganhar nessa, porque esse público vai ter relação direta com o cinema, com a sua língua, os seus hábitos, os seus costumes.

Amir Labaki: Como tinha nos anos 70, quando a gente já tinha um público conquistado, aquela experiência dos anos 70. A gente já chegou a ter 35, 40% do mercado. Você acredita que isso vai voltar acontecer?

Nelson Pereira dos Santos: Tem outra coisa importante, o cinema brasileiro não precisa ser hegemônico. Quando estou falando do cinema americano, não estou querendo acabar com o cinema americano, nem quero que ele saia daqui, ele é um cinema muito importante, ele contribui muito para toda evolução democrática de todas as sociedades. O que eu acho que o cinema brasileiro ele com 30% do mercado ele sobrevive e fica auto-suficiente. Nós não precisamos ter o preço de entrada calculado para pagar um filme de 100 milhões de dólares, os nossos filmes os mais caros custam 10 milhões de dólares e a média de produção de 2, 3 milhões, então a entrada pode custar 1 dólar, 1 dólar e meio. E também tem uma gradação no tipo de exibição e etc.

Paulo Markun: Nosso tempo está acabando, mas eu vou terminar aqui com uma pergunta do Tiago de Brito, que é do jardim Tremembé, aqui de São Paulo, que eu acho que ela tem a ver com esse final otimista de um Roda Viva extremamente otimista. Ele pergunta o seguinte: estou escrevendo um roteiro baseado num romance, tenho 16 anos, estou tendo muita dificuldade, não sei que caminho seguir. Já que o senhor tem tanta experiência em adaptação o senhor poderia me dar alguma dica?

Nelson Pereira dos Santos: Essas crianças! [risos] O que eu posso dizer é mantenha o teu trabalho, vai até o fim, escreva tudo o que você acha. Agora, o importante é o seguinte, respeitar o pensamento do autor, eu não sei qual é o autor, mas sempre pensar bem o que o autor quis dizer com aquele livro, qual a posição do autor, ética, cultural e etc, ter aquele respeito pelo autor e também tentar transpor para o cinema aquela linguagem do autor com muito respeito a própria estrutura narrativa do texto, são duas coisas bem simples. O negócio é não parar de escrever, vai até o fim, e depois me manda o roteiro.

Paulo Markun: Aliás, tem gente pedindo o seu endereço eletrônico.

Nelson Pereira dos Santos: nelsonpereira@uol.com.br.

Paulo Markun: Perfeito! Nelson, muito obrigado pela sua entrevista. Boa sorte nos seus projetos, obrigado aos nossos entrevistadores e o Roda Viva volta na próxima segunda-feira sempre às 10.30h da noite. Uma boa noite, uma boa semana e até lá.

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