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Memória Roda Viva

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Ciro Gomes

7/1/1991

O governador cearense eleito fala dos problemas do seu estado e do Nordeste e em como fazer face ao coronelismo, à indústria da seca e à pobreza

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Jorge Escosteguy: Boa noite! Estamos começando mais um Roda Viva pela TV Cultura de São Paulo. O nosso convidado desta noite é o mais jovem governador eleito do Brasil. Ciro Gomes tem 33 anos, nasceu em Pindamonhangaba, no interior de São Paulo, mas vai governar o Ceará, estado para onde se mudou ainda criança. Começou na política como assessor do pai José Euclides Gomes [1918-1996], prefeito de Sobral [no Ceará, de 1977 a 1982]. Em 1988, elegeu-se prefeito de Fortaleza pelo PMDB [Partido do Movimento Democrático Brasileiro]. Depois, mudou de partido, indo apoiar Mário Covas [(1930-2001), governador de São Paulo de 1995 a 2001], candidato a presidente da República pelo PSDB [Partido da Social-Democracia Brasileira]. No centro do Roda Viva desta noite, Ciro Gomes vai poder nos contar, por exemplo, como se sente sendo o único governador eleito do PSDB, um partido que sempre larga como favorito nas pesquisas mas, em geral, acaba "morrendo na praia" na apuração dos votos. Lembramos que o Roda Viva é transmitido ao vivo pelas TVs Educativas de Porto Alegre, Minas Gerais, Espírito Santo, Piauí, TV Cultura de Curitiba e TV Cultura do Pará. É, ainda, retransmitido para mais 15 emissoras, que formam a Rede Brasil através da TVE do Rio de Janeiro. Para entrevistar o Ciro Gomes esta noite no Roda Viva, nós convidamos os seguintes jornalistas: Carlos Tramontina, editor e apresentador do telejornal Bom Dia São Paulo, da TV Globo; Carlos Alberto Sardenberg, diretor regional do Jornal do Brasil, sucursal São Paulo; Andrew Greenlees, editor adjunto de política da Folha de S. Paulo; José Nêumanne Pinto, comentarista político da TV Manchete e editoralista do jornal O Estado de S. Paulo; Hugo Studart, sub-editor de Política da revista Veja; Jayme Martins, repórter da TV Cultura; e Juca Kfouri, diretor editorial de revistas masculinas da editora Abril. Lembramos aos telespectadores que quem quiser fazer perguntas por telefone pode chamar 252-6525, que a Cristina, a Bernadete e a Iara estarão anotando as suas perguntas. Boa noite, governador!

Ciro Gomes: Boa noite.

Jorge Escosteguy: O seu partido é um partido notável pelas pessoas notáveis que fazem parte dele, mas, em geral, ele tem se mostrado, nas últimas eleições, um partido fraco de votos. Ou seja, nesta última eleição, por exemplo, houve alguns desastres políticos importantes, como Franco Montoro [(1916-1999), governador de 1983 a 1987] em São Paulo e Pimenta da Veiga [prefeito de Belo Horizonte de 1989 a 1990] em Minas Gerais. Com o distanciamento crítico da vitória que o senhor tem, a que o senhor atribui esse problema eleitoral, vamos dizer assim, do PSDB?

Ciro Gomes: A questão do PSDB é complexa, ela não comporta uma explicação só. Mas uma delas, sem dúvida nenhuma, é que o partido tem apenas três anos - aliás, menos de três anos de idade [o PSDB foi fundado em junho de 1988]. E é um partido que não se adensou, não se enraizou na base da organização social brasileira, porque não teve nem tempo. Já no primeiro ano de organização do PSDB nós tivemos uma eleição municipal, que exige um estágio sofisticado de organização, que o partido não tinha - e, por não ter, não chamou a atenção e nós não tivemos um grande desempenho na eleição [municipal] de 1988. Em 1989, tivemos a eleição presidencial, em que uma série de fatores - a passionalização dos temas da campanha, a dominação pelo populismo e pelo maniqueísmo ideológico da campanha - acabou esmaecendo a nossa proposta, que se situa na centro-esquerda do espectro ideológico - que é uma posição complexa de ser explicada em ambientes assim, marcados pela visão maniqueísta, o preto e o branco, o mal, o bom, o ruim...

Jorge Escosteguy: O PRN [Partido da Reconstrução Nacional, depois Partido Trabalhista Cristão] é um partido quase tão novo quanto o PSDB e elegeu o presidente da República [Fernando Collor de Mello, presidente de 1990 a 1992].

Ciro Gomes: Esta questão é de personalismo. O PRN evidentemente não elegeu o presidente da República. O presidente da República no Brasil, mais uma vez, foi eleito pela característica personalíssima daquele intérprete de alguns valores epidérmicos de que a sociedade brasileira se angustiava naquele momento, passando por um moralismo com fetiche do perseguidor de marajás etc. que correspondia a uma angústia muito grande da população profundamente empobrecida e profundamente chocada com a corrupção do Estado brasileiro. Isso é o que explica.

Juca Kfouri: Governador, pelo que o senhor está dizendo, a gente pode entender que, pelo menos no Ceará, o eleitor soube distinguir o maniqueísmo e acabou conduzindo a proposta tucana à vitória. Eu pergunto: será que o que faz com que o eleitor se afaste do PSDB não é exatamente a propalada indefinição do partido? Por exemplo, vou dar um caso concreto e gostaria de saber como é que o senhor acha que o partido deveria agir ou se agiu certo. Durante todo o período da montagem do ministério do presidente Collor falou-se - pelo menos, falou-se muito - de alguns tucanos notáveis sendo convidados, sendo sondados para a participar do ministério: José Serra [governador de São Paulo de 2007 a 2010], Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso [presidente da República de 1995 a 2002]. E a postura do partido foi de absoluta rejeição a essa idéia. O senhor acha que o partido agiu bem? Ou será que, se tivesse aceito participar do governo Collor, teria não só se definido com mais clareza perante o eleitorado, mas, ao mesmo tempo, quem sabe, poderiam dar uma contribuição maior ao início de gestão do presidente, afinal eleito pelo povo?

Ciro Gomes: Primeiro, uma colocação: a nossa experiência no Ceará é profundamente atípica para ser comparada com as outras experiências dos outros companheiros. No Ceará, nós temos estágios sofisticados de organização. Nós estamos no sindicato, estamos no movimento universitário, estamos no movimento comunitário, estamos no movimento de estudantes, de mulheres, ecológicos e nós estamos organizados - temos diretórios - em todos municípios e temos um imenso êxito da administração do governador Tasso Jereissati [governador de 1987 a 1991 e também de 1995 a 2002], que é o nosso emblema para garantir que o que a gente fala é praticado. Portanto, isso faz uma diferença fundamental. [Quanto] à outra questão, eu também concordo com você que nós temos um papel fundamental para cumprir em relação ao governo Collor. Nós não devemos contribuir para o isolamento do presidente Collor do espectro da discussão do país e ficarmos confundidos, aí, com uma certa oposição sectária que pretende sempre manipular as bandeiras, os estágios ideais de como as coisas deviam ser e não põe a mão na massa para colaborar, para fazer. Entretanto, uma questão tem que ser colocada: esse papel nosso não é participar do governo Collor. O governo Collor tem um discurso social-democrata, mas a prática do governo Collor não é social-democrata. A prática do governo não é consentânea com o programa do PSDB - embora aqui e ali, por exemplo, na gestão da dívida externa, eu aplauda e gostaria de ser chamado a contribuir mais ativamente, até que... Estou com medo de que o governo já, já, vá recuar dessa proposta, porque falta, realmente... No governo, há um ensimesmamento completo que exclui as pessoas de participar e, na oposição, há essa coisa, ainda, da ditadura no Brasil, que entrou na alma das pessoas.

José Nêumanne Pinto: Governador, eu gostaria de retomar um pouquinho antes do que o Juca falou. Talvez a coisa que mais explique a derrota do PSDB nesta eleição, na última eleição, tenha sido a decisão que o PSDB tomou, não de não participar do governo, mas de apoiar o [Luís Inácio] Lula [da Silva] [presidente da República de 2003 a 2010] no segundo turno da eleição presidencial.

Ciro Gomes: Aí, eu concordo. A forma de apoiar o Lula, especialmente em São Paulo, eu acho que foi um fator grave para contribuir para a derrota.

Carlos Alberto Sardenberg: Como assim, a forma?

Ciro Gomes: Houve o seguinte. O nosso partido - aqui em São Paulo, especialmente - era um partido sedimentado na classe média, que estava e está, em boa parte ainda, chocada com a experiência da administração municipal do PT [Partido dos Trabalhadores]. Então, nós éramos a oposição ao PT, uma alternativa progressista, não-reacionária de oposição ao PT. Como confundir a nossa posição, traindo a confiança do eleitorado apoiando o Lula? Isso, nós vivemos também no Ceará. Eu, particularmente, votei no Lula, mas votei calado e disse claramente para as pessoas que não me sentia estimulado em participar daquele quadro absolutamente falso, pelos dois pólos em que se desenhou. Então, eu não tinha vontade de me co-responsabilizar politicamente por nenhuma das duas experiências. Não recomendava voto em branco e nulo, mas também não recomendava voto em ninguém. Excluía-me como liderança do processo e ia votar como cidadão naquele que entendesse o menos ruim ou o melhor para a aquela conjuntura.

Jorge Escosteguy: Governador - só um minutinho, por favor, só um minutinho -, eu gostaria de registrar a presença, também, do jornalista Kleber de Almeida, editor do Caderno de Sábado do Jornal da Tarde, que chegou e também vai fazer parte da nossa banca de entrevistadores. Por favor.

Hugo Studart: Governador, nesse processo todo de eleição presidencial, que eu saiba, a única liderança de peso do PSDB que subiu no palanque do Lula foi o senador Mário Covas. Porque, por exemplo, o senador José Richa [(1934-2003), governador do Paraná de 1983 a 1987], do Paraná, foi pescar no Pantanal; o senador Fernando Henrique Cardoso, se não me engano, foi para o exterior. Então, o senhor atribui essa culpa pela derrota do PSDB na eleição aos governadores?

Ciro Gomes: Não, eu disse que são vários os fatos que explicam. O primeiro, o mais grave para mim, é que nós somos um partido que ainda não se enraizou nos movimentos sociais. Isso, não se pode perder de vista. E, evidentemente, há um toque aí, uma causa adicional em São Paulo e em Minas, onde eu percebo com clareza que, nesse problema do apoio ao Lula e na forma como foi feito, houve uma certa vacilação no princípio, para, depois, amadurecer o apoio - na contradição do que as consultas realizadas indicavam. Quer dizer, houve um processo, não houve um apoio imediato; então, admitiu-se a discussão. Com essa discussão, todos os atores que tinham interesse em olhar o PSDB como referência para o país se manifestaram. Por ampla e esmagadora maioria, a nossa base eleitoral em São Paulo, em Minas, no Paraná, no Ceará era contra o Lula - embora não fosse necessariamente pró-Collor, como foi no Paraná. Em outros estados, não foi pró-Collor, mas não [foram]Lula, também. E isso acabou contribuindo como uma causa a mais.

Andrew Greenlees: Governador, será que outra causa não foi uma excessiva confiança, digamos, das estrelas partidárias? Desde o início, o PSDB, com uma proposta social-democrata, tinha pouquíssima base, por exemplo, operária, que é fundamental para o sucesso de qualquer experiência social-democrata, que nem na Alemanha. Será que não confiaram um pouco demais nas estrelas e, na hora H, viram que não tinha volta?

Ciro Gomes: A política do Brasil é, com muita clareza - especialmente nesta conjuntura, mas eu confio que nós vamos nos libertando disso na proporção dos estágios mais avançados de organizações da nossa sociedade -, é muito marcada pelo personalismo, é muito marcada pela personalidade dos atores da cena eleitoral. E nossos atores realmente foram para esse embate sem uma raiz nos movimentos sociais como um todo. Não só a base trabalhista, porque aqui, especialmente, nós temos uma base mais de classe média - o que é natural, também: a primeira compreensão vem por aquelas classes mais esclarecidas, que tiveram melhor sorte na vida; e, logo em seguida, vai se enraizando. Mas isso exige militância e nós não tivemos, ainda não temos um estágio necessário de militantes.

Kleber de Almeida:
O senhor, de certa forma, desejaria, numa eleição, que o PSDB não participasse da eleição no segundo turno?

Ciro Gomes: No segundo turno presidencial, sim. Defendi essa posição numa reunião em Brasília.

Kleber de Almeida:
Mas o segundo turno existe realmente para isso. É uma segunda eleição...

Ciro Gomes: Não, não...

Kleber de Almeida:
...onde é natural, normal que os outros partidos se alinhem aos outros candidatos.

Ciro Gomes: É natural, normal que haja aliança, mas não é imposição e, no quadro brasileiro, essas alianças... No mundo todo, onde há esse sistema eleitoral de dois escrutínios, as aproximações são por frentes ideológicas, por similitudes ideológicas. No caso brasileiro, nos não temos, ainda, a identificação desses agrupamentos ideológicos, não temos isso. O que nós temos são grupos de militância corporativa, por assim dizer, que se arremedam em partidos; e isso não permite e nem recomenda para nós... Agora mesmo, São Paulo descobriu isso. O PSDB de São Paulo fez na hora errada, descobriu que não é obrigado a... Você pode votar, até deve, eu não recomendo voto nulo e branco, eu votei para a presidente; mas, quando você vai ao palanque, você assume uma co-responsabilidade por aquilo que está sendo construído em perspectiva. E todos nós sabíamos, evidentemente, que a co-relação de forças, ou o despreparo, ou o sectarismo ou a federação de interesses que o PT representa não estava habilitada para a governar o Brasil, com a complexidade que o Brasil impõe aos seus governantes. O presidente Collor também, ao nosso juízo, não tinha a densidade necessária, os instrumentos de controle social necessários para ser um instrumento da promoção do bem-estar coletivo, como estamos vendo. Por que nos responsabilizarmos por um ou outro?

Jorge Escosteguy: Governador, nenhum dos dois estava habilitado a governar o país; agora, um dos dois, seguramente, iria governar o país. Isso não dá aos políticos uma responsabilidade?

Ciro Gomes: Mas sem a nossa responsabilidade de influir naquela escolha. A nossa posição foi claramente colocada no Ceará, ante a compreensão generalizada das pessoas.

Jorge Escosteguy: Quer dizer, não vale a pena nem o "dos males o menor"?

Ciro Gomes:
Para votar, sim. Eu não sou a favor de voto em branco nem voto nulo. Para votar.

[...]: O senhor votou em quem?

Ciro Gomes: Eu votei no Lula.

Juca Kfouri: [Sobre] a questão da distância entre o discurso social-democrata do presidente Collor e a prática, que não é social-democrata: será que [não é] exatamente pelo fato de que não existem aqueles quadros que possam pôr em prática esse discurso? E não seria este o papel do PSDB?

Ciro Gomes: Em evolução, eu até admitiria. Se o presidente... Porque foi ele quem ganhou a eleição e é ele quem tem a responsabilidade de liderar o processo de governo, não é o processo de monopólio das opiniões da nação, como aqui e ali parece ser. Mas o processo de governar é iniciativa dele. A ele cabe a liderança, por origem legítima do seu mandato. Nós não vamos, não devemos ir lá e nos oferecer para dizer como as coisas deveriam ser. Eu defendo que o PSDB deve urgentemente - vamos até fazer uma reunião esta semana, isso está se generalizando na compreensão do partido - formular um projeto alternativo para o Brasil e discutir isso em praça pública. Aí se esgota a nossa responsabilidade. Se o presidente pega esse projeto, ou um dos itens, ou alguns dos itens e os pratica, o PSDB deve, corajosamente, apoiá-lo, sem participar do governo. Se ele negaceia, se ele faz errado, se faz diferente a nosso juízo, aí está uma razão objetiva, construtiva para nós dizemos "não" a eventuais pontos do governo.

Juca Kfouri: Eu só não consigo entender o porquê dessa postura sistemática de um partido com o perfil do PSDB, que não é o PT - na esquerda, o PT faz esse papel, eu acho que cumpre esse papel fielmente -, essa negação da hipótese da participação.

Ciro Gomes: Não, mas você só deve participar de um projeto de governo se for a sua cara. Você não pode participar de um projeto de governo que não tem a sua cara.

Juca Kfouri: Mas, na hipótese de o presidente chamar o PSDB...

Ciro Gomes: Para um projeto que nós vamos discutir com o país na luz do dia, de forma transparente, vamos discutir esse sacrifício que vai importar no ajuste fiscal que é necessário fazer, vamos discutir a austeridade monetária que nós, do PSDB, defendemos...

Jose Nêumanne Pinto: Tudo bem, mas por que não participar do governo? Eu estou com esta pergunta: por que não?

Ciro Gomes: Podemos participar! [Mas,] deste governo que aí está, não podemos participar por duas razões. Uma, de origem: nós perdemos a eleição para as forças que estão aí. A segunda é de processo: a cara política que este governo está assumindo - não dá para negar - é uma cara absolutamente atrasada, é uma cara fisiológica, é uma cara atrasada, é uma cara conservadora, é uma cara...

Juca Kfouri: Em relação à equipe econômica, também?

Ciro Gomes: Não, a equipe econômica ainda é um núcleo muito bom.

Carlos Tramontina:
O senhor acha que, dentro do PSDB, há gente que gostaria de participar do governo?

Ciro Gomes: Admito; a vocação fisiológica da política brasileira, infelizmente, é um fato. Mas eu não conheço, não é ninguém de proa.

Carlos Tramontina:
Aqui em São Paulo... Essa questão da clareza do perfil do partido é uma coisa muito importante. Aqui em São Paulo, a gente tem um fato muito recente [sobre] o comportamento da bancada do PSDB na Câmara Municipal, que faz oposição forte e sistemática à administração do PT e que, para a vencer a eleição da Mesa Diretora da Câmara uniu-se aos grupos mais conservadores - inclusive, a vários políticos e parlamentares acusados de corrupção e de uma série de irregularidades administrativas. Isso não serve para a complicar e botar mais lenha nessa fervura e tornar o PSDB alguma coisa como aquele balaio de gatos...?

Ciro Gomes: Olha, eu não vou, por gosto e amor ao meu partido, afirmar que o partido é um núcleo de anjos. Evidentemente, não é. Entretanto - e para a reforçar o que eu estou falando -, eu tenho uma visão muito prática da política, mesmo em relação a essa cara conservadora que vai assumindo o governo do presidente Collor - essa cara mais do que conservadora; é uma cara com os mesmos atores, com a mesma carteira de identidade daqueles que fizeram a orgia fisiológica que desmoralizou o Brasil e que acabou municiando o seu discurso moralista para a ganhar a eleição. Essas pessoas podem até ser usadas taticamente, compreendo, porque a emergência dos problemas, o momento de resolver os problemas era aquele, o de assumir o governo, não tinha outro. As energias potenciais de início de governo têm que ser aproveitas, a hiperinflação não admitia adiamentos de providências; portanto, usar essas pessoas que estão aí - afinal de contas, são os atores da política - para financiar um projeto sério de atendimento ao interesse público é ato de esperteza legítimo ou legitimada pelo interesse público. Não sei se é o caso, eu não conheço detalhes da eleição da Mesa da Câmara de São Paulo, mas me parece que foram os conservadores ou os eventuais corruptos a que você alude - eu não conheço, quero insistir em afirmar - que votaram num nome que é bem respeitado em São Paulo, o presidente da Câmara [Antônio Paes de Andrade]. Portanto, se você tem conservadores, reacionários ou fisiológicos admitindo, por razões as mais variadas, apoiar um projeto correto, eu acho que é uma ética lamentável, mas é o que se pode fazer concretamente por imposição da realpolitik, da "política real". E eu admito que o presidente Collor, durante este ano aí e até que o novo Congresso assuma, tenha que transar com estes atores que estão aí sem problemas. Não pode é tomar gosto.

Jayme Martins: Governador, partindo um pouco para o administrativo, um acontecimento que foi, tanto em 1986 como na sua vitória de agora, em 1990, sobretudo na imprensa do sul... Essas duas vitórias no Ceará foram a ruptura do Ceará com o coronelismo. Agora, além das medidas de saneamento moral e financeiro, que outras medidas em matéria de benefícios sociais poderiam ser apontadas, que assinalassem os resultados da ruptura do Ceará com o coronelismo?

Ciro Gomes: Olha, nós temos nosso...

Jorge Escosteguy: Governador, desculpe interrompê-lo, só pegar uma carona na pergunta do Jayme, os seus conterrâneos de Fortaleza estão telefonando. Carlos Alberto, de Fortaleza, por telefone, quer saber se é verdade que o senhor vai demitir 38 mil funcionários públicos.

Ciro Gomes: Bom, nós tomamos o estado quando esse grupo, liderado pelo governador Tasso Jereissati, assumiu com todas as receitas correntes do estado só suficientes para a pagar 70% de uma folha de pessoal do mês. E os funcionários, havia três meses que estavam atrasados os seus vencimentos; e havia um colapso completo em todos os serviços. Eu lembro, por ridículo aqui, só para a não me estender muito além da conta, que a Polícia Civil tinha sete veículos; três deles estavam montados em cepos de madeira, porque não tinha dinheiro para comprar pneu para trocar, e os policiais revoltados, porque saíam com duas balas no revólver e, se [as] deflagrassem, era descontado do salário. Eu acho que por aqui basta para mostrar o colapso em que se estava. Hoje, o estado do Ceará paga a sua folha pessoal com 65% da sua arrecadação e 35% estão disponíveis para financiar um projeto de mudanças que nós chamamos, lá, basicamente, de "nossa infra-estrutura social e econômica". Na área de infra-estrutura social, nó temos alguns indicadores importantes: construímos vinte mil casas, vinte mil unidades. Esse número, talvez, para São Paulo não seja muito expressivo, mas isso significa a metade de tudo o que foi feito no Ceará durante toda a vida. A metade de tudo o que foi feito por todos governos do Ceará foi feito em menos de dois anos - porque dois anos nós gastamos consertando as coisas. Nós duplicamos a área irrigada do estado do Ceará. Nós tínhamos lá 4000 hectares; hoje, temos mais de 8000 hectares irrigados com recursos diretos do estado do Ceará. Em projetos de assentamento, temos grandes indicadores nessa área de reforma agrária, referidos pela própria Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura] como o melhor exemplo de afirmação de um projeto de reforma agrária conseqüente. É no Ceará, esse exemplo. As escolas estavam todas destruídas; hoje, dois terços delas estão totalmente recuperadas. As estradas inteiras estavam destruídas; 70% delas foram recuperadas. E esse saldo [restante] é a minha tarefa.

Carlos Alberto Sardenberg: Governador...

Jorge Escosteguy: Desculpe, desculpe, só um pouquinho - desculpe Carlos Alberto...

Ciro Gomes: Ah, sim, eu preciso responder ao...

Jorge Escosteguy: ...o outro Carlos Alberto, de Fortaleza, quer saber se o senhor vai demitir 38 mil funcionários públicos.

Ciro Gomes: É, eu preciso responder. Eu não tenho o número de demissões nem intenção de demitir, porque, infelizmente, a Constituição federal e a estadual estenderam o estatuto da estabilidade a todos os servidores que foram contratados na orgia, clientelistas dos governos e dos coronéis durante muito tempo em que... Houve uma noite que se contrataram quarenta mil pessoas no estado do Ceará. Numa noite, apenas. Para a financiar uma eleição, foi feito esse absurdo - e, hoje, a Constituição engessou isso. Agora, todos ficam. Portanto, eu não posso fazer a quantidade de demissões que necessitaríamos fazer para definitivamente resolver.

Jorge Escosteguy: Mas vai demitir?

Ciro Gomes: Agora nós vamos demitir rotineiramente todos os servidores que não cumpram rigorosamente seus deveres de assiduidade, de seriedade, de tratar bem o contribuinte. Vai ser demitido...

Juca Kfouri: O governador Jereissati já não...

Ciro Gomes: Ele já fez, tirou 43 mil cheques da folha de pessoal. E nós vamos continuar fazendo.

Carlos Alberto Sardenberg: Governador, aproveitando esse embalo da questão do Ceará, eu gostaria que o senhor me explicasse o que é social-democracia no Ceará. Porque a social-democracia, pela tradição, pela história, é uma formação política que nasceu e se desenvolveu - formou-se a sua teoria - em países capitalistas avançados, basicamente na Europa; e a mensagem dessa idéia social-democrata está bem ligada com país capitalista avançado, com a classe operária, com a aristocracia operária, essas coisas todas. O Ceará é um estado pobre, um estado com muito daquela coisa brasileira de conflito muito nítido entre gente muito rica e gente muito pobre. O que significa social-democracia lá? Claro que havia um sentido por detrás, que é o seguinte: as pessoas dizem que, se o senhor e o governador Tasso tivessem entrado no Partido Democrata Cristão teriam ganho a eleição; se tivessem entrado no PRN, o PRN teria ganho a eleição, não importa qual fosse a mensagem.

José Nêumanne Pinto: Aliás, só complementando isso que o Carlos Alberto falou, o deputado Florestan Fernandes [(1920-1995) sociólogo e político, autor de A integração do negro na sociedade de classes (1964)] escreveu um artigo dizendo que num país pobre como o Brasil a social-democracia é uma bobagem, uma ilusão; isso seria uma coisa de países ricos.

Ciro Gomes:
Isso é complicado, especialmente dito por ele, porque [Karl] Marx [(1818-1883), fundador do marxismo, autor de O capital] também prescrevia a revolução proletária onde poderia haver proletariado. E prescreveu, inclusive, que seria na Inglaterra, onde a Revolução Industrial aconteceu. E foi acontecer na União Soviética, rompendo uma sociedade rural, feudal...

[...]: E na China...

Ciro Gomes: ...enfim, essa coisa é absolutamente secundária. Não se esqueça do "B": "pê-esse-dê-bê". Nós somos social-democracia brasileira. Isso não quer dizer que é peru à brasileira, como o inesquecível Sobral Pinto [(1893-1991), jurista, defensor dos direitos humanos] quer afirmar. O que tem que se fazer é o seguinte. É uma compreensão básica. Qual é a compreensão básica? É que o Estado não pode se demitir de uma responsabilidade central: de promover o bem-estar das pessoas, não só como Estado prestador de serviços - Estado-polícia, Estado-posto médico, Estado-educação -, mas Estado interventor na economia, para dirimir, ou para diminuir, ou para eliminar - este é o objetivo ideal - as desigualdades entre as pessoas. No Ceará, isso é uma coisa eloqüente, é um vasto campo para se praticar isso. Como fazer isso? O Estado é um Estado que, ao longo do tempo, foi apropriado por corporações e por uma visão patrimonial das elites políticas que tomaram conta dele e passaram a se servir reciprocamente com o parco recurso do Estado. O que é a social-democracia no Ceará? É dar um "chega para lá" nessas elites e repartir o que sobrar desse esforço de sacrifícios, de lutas permanentes, de brigas, de confrontos com todos os setores - aparentemente muito poderosos mas, no fim, fragílimos, desde que você consiga a emergência da população para lhe apoiar - e pegar esses recursos e repartir com as pessoas, na direção de mudar a condição de vida delas na habitação, acabei de falar aqui das escolas, acabei de falar das estradas, acabei de falar da irrigação. Nós temos, lá, financiamentos de atividades produtivas. Nós manipulamos, por exemplo... Veja o que é social-democracia no Ceará: todas as encomendas do poder público cearense que possam ser induzidas a gerar empregos em microempresas, em pequenas unidades, no interior e na capital, de produção comunitária, assim são feitas. Quando nós assumimos, as carteiras escolares, o material mobiliário escolar, eu comprava no Paraná; hoje, todas são feitas em micro-unidades de produção.

Jose Nêumanne Pinto: Quer dizer que pobre também pode ser social-democrata?

Ciro Gomes: Mas claro que pode. Deve ser, mais do que ninguém. Mais do que ninguém, deve ser o pobre. O que não está certo é este neoliberalismo hoje, que pretende demitir o Estado da sua responsabilidade de interventor na economia - não de burocratizar a economia, de engessar a economia, de fazer "socialismo de direita" como o período autoritário no Brasil fez [referência ao regime militar de 1964 a 1985], mas liberando as forças da economia, agindo como um indutor do desenvolvimento e agindo como um promotor da justiça social via tributos, via repartição de rendas, via distribuição de serviços de boa qualidade.

Carlos Tramontina:
O senhor falou, agora há pouco, lembrou da estabilidade garantida aos funcionários públicos através da Constituição. Sobre isso, também falou o presidente do Banco Central, Ibrahim Eris. Esse foi um dos motivos que ele usou para a afirmar no final que a atual Constituição brasileira é responsável pela crise. O senhor concorda com essa afirmação?

Ciro Gomes: Não, a Constituição brasileira não é responsável pela crise. A crise no Estado brasileiro é conceitual ao nosso "modelo", entre aspas, de desenvolvimento. Nós temos um modelo de desenvolvimento que hiper concentrou renda na dimensão pessoal, na dimensão setorial e na dimensão regional - para a gente colocar a questão aqui bem sob o ponto de vista nacional; não sou daqueles chorões do Nordeste para chorar em cima. O problema, o vício fundamental do Estado brasileiro é o vício do aleijão do nosso modelo de desenvolvimento. A hiper concentração de renda ao nível pessoal, ao nível setorial e, mais gravemente, ao nível regional é que é a base dos nossos problemas. Há outros problemas: a exaustão fiscal do modelo do Estado brasileiro é verdadeira, também. O Estado brasileiro hoje gasta uma fábula, que arrecada dos contribuintes, com bobagens - ou auto-consumindo esses recursos, ou financiando a incompetência, a ineficiência de um aparato estatal que é absolutamente...

Carlos Alberto Sardenberg: E, se a Constituição consagrou isso tudo, ela não é culpada?

Ciro Gomes: Não é a Constituição que consagrou. Isso foi a cultura política brasileira que consagrou. Não adianta colocar... Isso é um vício que o PMDB [Partido do Movimento Democrático Brasileiro] resgatou da UDN [União Democrática Nacional] e insiste em colocar, é um vício institucional. Nós temos pequenos defeitos na Constituição que precisam ser corrigidos. Eu acho que ela concedeu demais ao corporativismo. Sem dúvida, fez isso. Eu acho que ela equivocou-se quando legitimou pelo voto da população um modelo tributário hiper concentrador de renda sob o ponto de vista espacial. Há muitos defeitos. Eu acho que ela errou gravemente na engenharia básica institucional brasileira quando não optou claramente pelo parlamentarismo. Sem problemas. Mas dizer que a inflação que nós temos hoje é culpa da Constituição é procurar bode expiatório.

[sobreposição de vozes]

Ciro Gomes: Mas não é a causa básica.

Andrew Greenlees: Sobre a questão administrativa, de que o senhor estava falando há pouco, até com um tom otimista de construção de casas etc... Mas o senhor, quando tomar posse, vai enfrentar, como no resto do país, uma economia em recessão. Isso aí vai trazer queda de arrecadação, além de eventuais gastos que tenham sido feitos antes das eleições para a ajudar a sua eleição - não sei se é o caso, o senhor pode me responder. Então, como é que vai ser? Esse tom otimista de agora antes da posse vai continuar depois da posse?

Ciro Gomes: Olha, eu não sou otimista e se algum otimismo fictício deve haver é antes da eleição. Eu estou eleito desde 3 de outubro, no primeiro turno; portanto, se eu fosse assim, eu já deveria estar aqui puxando o trem de aterrissagem, já dizendo que não é bem assim, que a recessão mudou meus planos. Entretanto, eu não tenho razão objetiva para recuar de nenhum dos compromissos que eu assumi em praça pública. Só completando, porque esta é uma questão importante, a recessão é um fato. Ela está aí, insidiosa, mas ela não é do tamanho que a propaganda está colocando. Não é mesmo. O estado do Ceará já pagou seu décimo-terceiro salário, já pagou o salário de todo mundo no mês de dezembro - aliás, antecipando o pagamento da folha -, continua pagando religiosamente a sua dívida - um dos únicos estados adimplentes com o Banco do Brasil e com o Banco Central é o estado do Ceará -, está financiando sozinho, com recursos próprios do tesouro estadual, um programa de emergência... Porque desde março está instalada uma seca e, pela primeira vez na história do país, o governo central não se abala. Milhares de pessoas perderam toda a sua produção. É responsabilidade constitucional do governo central acudir a calamidade da seca e não apareceu lá um cruzeiro [moeda brasileira vigente de 1990 a 1993] que fosse para isso; e nós estamos, com recurso do povo do Ceará, com 150 mil pais de famílias trabalhando e recebendo uma diária - quase meio salário mínimo, também, para a meia jornada de trabalho -, é com isso que as pessoas não estão morrendo de fome. E está sobrando um dinheirinho para a investimento.

José Nêumanne Pinto: Mas ficou no ar, aí, faltou o senhor responder a respeito do investimento que foi feito pelo estado para a sua eleição.

Ciro Gomes: Não, eu penso que neguei, porque a evidência... Enquanto São Paulo, o mega estado de São Paulo está desdobrando décimo-terceiro, atrasando folha de pessoal, nós já pagamos tudo, pagamos dívidas, estamos enfrentado obrigações do governo federal - aliás, estamos pagando o Sine, que o governo federal abandonou faz muito tempo, que é esse Serviço [na verdade, Sistema] Nacional de Emprego, estamos pagando o combustível da Sucam [Superintendência de Campanhas de Saúde Pública] até há bem pouco tempo, que fazia tempo que o governo federal abandonou, e estamos trabalhando lá sem problemas.

José Nêumanne Pinto: Quer dizer, estado que não investe em candidato consegue pagar as contas?

Ciro Gomes: Estado que investe com o povo consegue eleger o candidato.

Carlos Alberto Sardenberg: Quantos funcionários o senhor tem lá? Quantos funcionários tem o governo?

Ciro Gomes: 108 mil.

Carlos Alberto Sardemberg: Quanto?

Ciro Gomes: 108 mil.

Jorge Escosteguy: Fora os 38 mil que estão...?

Ciro Gomes: Fora 43 mil que foram eliminados. 43 mil cheques, não necessariamente pessoas, porque, no Ceará, quando nós assumimos, tinha gente com seis empregos, sete, morando em Brasília, em Paris, em São Paulo...

Carlos Alberto Sardenberg: Agora, tem...

Ciro Gomes: ...108 mil e ainda tem um bocado de gente sem trabalhar.

Jorge Escosguy: Governador, o senhor falou na importância do papel do Estado e há vários telespectadores aqui preocupados com uma questão, que é da migração cearense e de nordestinos em geral para o Sul do país. A Maria Luiza Veiga, do [bairro paulistano] Sumaré, pergunta se o senhor tem algum projeto para a evitar a emigração. O Marcelo Morgado, de São José dos Campos, e o Mauro Carvalho, de Jales, ambos no interior de São Paulo, perguntam se não é o caso... se o senhor defende o sistema de planejamento familiar. E o Lourenço Lagoa, de Campinas, pergunta se os políticos do Ceará ainda continuam oferecendo passagens só de ida para o sul, durante as suas campanhas, em troca de votos.

Ciro Gomes: É bom a gente tratar essa questão pela sua raiz porque há muito preconceito e é uma coisa odienta que as pessoas imaginem que brasileiro que nasce lá embaixo ou brasileiro que nasce lá em cima pode ou deve ser tratado de forma indigna. Para mim, isso é intolerável. Eu não acho, como muitos aqui em São Paulo, que há uma conspirata contra os pobrezinhos do Nordeste; nem acho que o Nordeste é um mar de rosas nas suas elites - acho o contrário, que boa parte dos nossos problemas nós devemos ao mau comportamento, ao comportamento marginal da maioria das nossas elites políticas, econômicas e culturais. Mas uma coisa é certa: no Brasil, hoje... Onde é que está a câmera, para a eu falar assim, olhando para as pessoas? [olhando alternadamente para a câmera e para os entrevistados à sua esquerda] No Brasil, hoje, nós temos quarenta milhões de pessoas vivendo numa região em que há metade da renda per capita do resto do país. Enquanto, no Brasil, um cidadão ganha, em média, 2000 dólares por ano - na média já aviltada pelo indicador do Nordeste -, na minha terra, um cidadão passa um ano inteiro e ganha 800 dólares. E essa estatística - por ano - também é uma falsidade, porque Fortaleza é um centro de riqueza - como ele registrou aqui; tem muita distorção, muita concentração de renda e, também, interiormente, no Nordeste -, de maneira que a gente sabe que tem gente ganhando 70 ou 80 dólares por ano para viver. Quando vem uma seca, é um colapso total na produção. E a seca já foi resolvida no Uzbequistão, na União Soviética, que é comunista; já foi resolvida na Califórnia, no Arizona, lá nos Estados Unidos que são capitalistas; já foi resolvida, enfim, em todos lugares do mundo e nós temos a região semi-árida com o maior indicador de pluviosidade do mundo com possibilidades concretas não de pena, de esmola, porque ninguém quer lá esmola e nem pena de ninguém, mas de fazer de lá um lugar para as pessoas trabalharem, produzirem e não precisarem estender a mão para a ninguém. Isso só vai mudar quando o país inteiro tomar consciência desse problema. É preciso, inclusive, passar por cima de alguns maus políticos, a ampla maioria, até, dos políticos nordestinos, e a opinião pública brasileira tomar conhecimento disso. Porque não adianta, não adianta você estimular as pessoas a ficarem lá se a TV Globo vende um padrão de consumo ilusório de São Paulo e do Rio e as pessoas estão morrendo de fome lá. Elas vêm aqui para escapar, para sobreviver, mas elas gostam mesmo é de viver lá. Portanto, o que nós queremos é que a nação faça pelos miseráveis do país, da periferia do Rio, da periferia de São Paulo. E, se fizer seriamente pelos miseráveis do país, estará fazendo também pela região Nordeste.

[sobreposição de vozes]

[...]: Eu queria também acrescentar uma coisa. o senhor...

Ciro Gomes: Ó, [eu falei da] Globo porque ela tem liderança e audiência; eu não tenho nenhum preconceito contra a Globo, não.

Juca Kfouri: Eu queria só fazer uma pergunta, porque eu acho que o senhor já deu esse exemplo ao inverso. Quer dizer, o senhor saiu de Pindamonhangaba [SP] para o Ceará, em vez de ser um cearense que veio para o sul. Há um carioca que se fez nas Alagoas no Planalto [o presidente Fernando Collor de Mello]. Este paulista de Pindamonhangaba pensa em parar onde?

Ciro Gomes: Eu penso em parar fazendo um bom governo no Ceará. É o meu sonho.

Juca Kfouri: Aos 37 anos?

Ciro Gomes: 33.

Juca Kfouri: Não, aos 37 o senhor parará o seu governo...

Ciro Gomes: Não, eu sou professor da universidade, sou advogado e gosto dessas profissões, também.

Kleber de Almeida:
Governador, o senhor falou que o estado do Ceará está tentando resolver o problema da seca que assola todo o estado atualmente.

Ciro Gomes: É todo o Nordeste.

Kleber de Almeida: Pois é, o senhor falou também nos vícios brasileiros, nessas gastanças que há no Brasil e também no mau comportamento das elites. E aqui e no país todo se fala muito de um dos grandes vícios brasileiros, que seria justamente a indústria da seca. Esse dinheiro... No caso do Ceará, não chegou nenhum neste ano, mas [isso] não é o que ocorre todos anos, vai-se muito dinheiro e esse dinheiro acaba não beneficiando justamente aquele que sofre mais com a seca. O senhor concorda com isso?

Ciro Gomes: É evidente que não. O círculo vicioso perverso da miséria é o seguinte. Começa assim: o poder central brasileiro não se sensibiliza. Desde Juscelino Kubitschek [presidente de 1956 a 1961], que foi o último presidente que encarou esse problema de forma conseqüente, o poder central brasileiro, ditador, eleito, civil, militar, ninguém depois de Juscelino olhou para a questão regional com a seriedade devida. Não tomou providência. Então, tem lá um ano de chuva, outro ano de chuva, as pessoas vão produzindo, produz o milho, produz o feijão de subsistência, vão vivendo, vão se arrumando, vão fazendo, isso acontecendo, aquela vidinha, ninguém toma conhecimento do problema e a elite, o poder central brasileiro, não toma conta. Aí, vem uma seca. Quando vem uma seca, não tem jeito. A seca é um colapso de 100% da produção, 100%. Você imagina um pai de família... E eu sou a favor do planejamento familiar feito pela família, não feito por posição de niguém; mas deve ser educada, a família, e ela deve optar por quantos filhos devem ter. Este é o planejamento familiar que eu sustento e nós, lá no Ceará, estimulamos essa discussão nos postos de saúde. É outra providência de costumes com a qual nós estamos trabalhando lá. Mas, normalmente, famílias grandes têm 100% da sua produção perdida. As pessoas, naqueles dias seguintes, não têm para comer e algumas pessoas em alguns pontos específicos não têm para beber, como acontece hoje - nós estamos mandando carro, caminhão com tanque em cima levar água para algumas pessoas beberem. Nessa hora, não tem outro jeito, tem que acudir. Tem que acudir mesmo, com comida, tem que acudir com água e nós estamos procurando inovar um pouco para conseguir um ganho político na organização dessas pessoas, primeiro falando para elas todo dia, pondo nas suas cabeças que o problema não é da natureza, é do homem, é da irresponsabilidade do homem, o que está sendo ensinado todo dia no Ceará. Nós queremos ensinar isso onde pudermos, para a as pessoas tomarem consciência dos seus problemas. Assim, um dia vai, realmente, acontecer uma verdadeira mudança.

Hugo Studart: Os senhores a ensinam a fazer o que, na prática?

Ciro Gomes: Não, a inovação é o seguinte: ao invés de dar, nós estamos comprando a força de trabalho dessas pessoas para obras de impacto comunitário de ação permanente num programa, que é permanente, de ação da seca. Por exemplo, naquelas áreas onde falta água, onde hoje está passando o caminhão, nós estamos construindo cisternas, grandes caixas d’água no chão para captação de água da chuva.

José Nêumanne Pinto: Mas as frentes de trabalhos não são já uma tradição na seca nordestina?

Ciro Gomes: As frentes de trabalho - que são essa indústria da seca que eu denuncio, também - são o seguinte: finge-se pagar uma ninharia e as pessoas fingem trabalhar. Fingem trabalhar. Como regra, era dado aos cabos eleitorais e afilhados de coronel o direito de recrutar as pessoas; então, isso gerava uma cadeia de dependência. Hoje, é diferente. Hoje, nós temos o que chamamos “Grupo de Ação Comunitária”: a Igreja, o sindicato rural, o clube de serviço, uma representação política municipal, os órgãos estaduais envolvidos etc são agrupados, discutem que obras vão fazer, discutem quem são as populações que vão ser recrutadas, discutem a prioridade, selecionam as pessoas que vão entrar e pagam.

José Nêumanne Pinto: Quer dizer que a indústria da seca passou a ser o sindicato da seca?

Ciro Gomes: Você não vai querer que deixem seus conterrâneos morrerem de fome. Na Paraíba, tem muita gente sofrendo.

Hugo Studart: Governador, eu queria entender uma coisa do senhor. O senhor foi eleito como candidato o anti-coronelismo no Ceará. Aliás, o seu antecessor, o governador Tasso Jereissati, também foi eleito como candidato do anti-coronelismo. Só que, desde o governador Tasso Jereissati, praticamente, os grandes coronéis sumiram: Virgílio Távora [(1919-1988), governador do Ceará de 1963 a 1966 e de 1979 a 1982] morreu, César Cals [(1926-1991), governador do Ceará de 1971 a 1975] não foi eleito nem mais síndico, [José] Adauto Bezerra [governador do Ceará de 1975 a 1978] também... bom, ele tem lá um emprego na Sudene [Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste], não é? Eu queria saber o seguinte...

Ciro Gomes: A Sudene é o órgão gestor da política de desenvolvimento da região do Nordeste, que concentra 29% da população do Brasil.

Hugo Studart: Certo, certo. Agora, eu queria saber o seguinte: na prática, no que o senhor e o governador Tasso Jereissati são diferentes dos coronéis? O senhor falou agora, por exemplo, das frentes de trabalho. Antigamente, os coronéis iam lá, recrutavam as frentes de trabalho, davam um salário simbólico de meio salário mínimo, o cara fingia que estava trabalhando, ganhava um pouco de comida, um pouco de água e ficava tudo como está. Hoje, o senhor disse que as pessoas vão lá, também ganham meio salário mínimo; a diferença é que há uma certa conscientização política, ou seja, vamos votar nos... quem sabe até no PSDB - antes, era no PDS [Partido Democrático Social]...
Ciro Gomes: Não, em absoluto. A diferença fundamental... Eu estou entendendo. A diferença, é interessante que a gente faça. A diferença fundamental é a seguinte. O coronelismo é um fenômeno que não acabou, está longe de acabar, porque ele viceja em ambientes de grande miséria. E o ciclo vicioso da miséria funciona assim: quando as pessoas não têm para comer, não tem para vestir, não tem para morar, elas estão muito vulneráveis. A hierarquia do coronelismo, que tem suas representações locais etc. - não é nem por maldade, isto é um fenômeno sociológico -, acham que o bom de ser feito é dar o que puder ser dado. Dar para as pessoas o que puder ser dado, quase sempre fazendo chegar para as pessoas o que é dever do Estado promover como se fosse um favor e pedindo em troca a alma das pessoas. Isso é o coronelismo, que ainda esta vivíssimo aí, no Nordeste. Está sofisticado, tem computador, conhece contabilidade financeira, mas ainda está vivo e forte. A nossa atitude, qual é? Nós procuramos passar para as pessoas que aqueles deveres básicos do Estado correspondem a direitos inerentes à cidadania das pessoas e que elas têm direito de exigir; e, recebendo, nada estão devendo em troca a ninguém, senão ao seu direito de cidadania. Não se fala em voto, porque essa coisa é feita para amarrar: a Igreja é envolvida, o sindicato dos trabalhadores é envolvido, o sindicato patronal é envolvido; o Rotary Club, onde tem; o Lions Club, onde tem. Porque nós queremos, com isso, neutralizar esses agentes...

Hugo Studart: Mas não são quarenta milhões de miseráveis?

Ciro Gomes: É lógico.

Hugo Studart: E como é que com o governador do Ceará, por exemplo...

Ciro Gomes: O recurso, o recurso para a subverter essa estrutura perversa não está nas nossas fronteiras, mas podemos cumprir a nossa parte. Hoje, o estado do Ceará está cumprindo a sua parte. Nenhum estado do Brasil - olhe o que eu estou lhe dizendo - nenhum estado do Brasil - é até ousadia falar isso em São Paulo - tem a relação financeira, a saúde financeira relativa que o estado do Ceará tem hoje. Nenhum estado...

José Nêumanne Pinto: Nem o Paraná?

Ciro Gomes: Nenhum estado.

José Nêumanne Pinto: Nem o Paraná?

Ciro Gomes: A relativa, nenhum. O Paraná também está com suas contas em dia, mas a capacidade de investimento do Paraná, em proporção, é menor do que a nossa...

Jayme Martins: E os grandes projetos do Ceará, como a refinaria da Petrobras, a siderúrgica do Nordeste, a exploração de urânio da [jazida da] Itataia, quais as perspectivas desses empreendimentos durante a sua gestão?

Ciro Gomes:
É o que eu estou dizendo. É complementar à resposta dele. O estado tem, hoje, recursos para a cumprir suas obrigações correntes. Mas a alteração da nossa infra-estrutura econômica hostil, a modernização do perfil da produção do Ceará - libertando-nos da produção primária de subsistência, que é milho e feijão, que só dá para a pessoa comer até novembro, dezembro e, depois, ela começa a olhar lá para o céu, rezar para a São Pedro para a chover e, depois, esse ciclo, de novo -, para isso, não temos os recursos. O que nós fizemos? Nós conseguimos mapear as oportunidades do Ceará - isto também é um papel do estado - mapear as oportunidades de investimentos do Ceará, avançamos até a construção de projetos, procuramos parceiros financeiros, procuramos agenciar recursos externos e federais para o financiamento dessas obras. E, infelizmente, até aqueles que nós conquistamos com o nosso esforço isolado, sem apoio de ninguém... Como, por exemplo, um financiamento do Ex-Im Bank do chamado Fundo Nakasone - que é, verdadeiramente, o fundo de reciclagem do saldo da balança comercial japonesa -, para financiar um trem de superfície em Fortaleza; hoje, tem um cidadão - não posso dizer o que eu penso o mesmo -, um cidadão querendo transportar esse recurso para os metrôs de São Paulo e do Rio.

Juca Kfouri: O senhor pode dizer...

Ciro Gomes: O nome dele? É o secretário nacional de Transportes. Chama-se d'Amorin, [José] Henrique d'Amorin [de Figueiredo]. Fez o seguinte. É uma pérola que nós temos lá. Diz lá o seguinte: que não é mais missão da União contratar sistema de transporte de massa, a partir da nova Constituição; por isso, se o Ceará quiser, que ele contrate com o Japão o empréstimo, ponto. Caso o Ceará não queira contratar, a União deve contratar e levar para São Paulo e para o Rio, para o metrô e tal. Está lá.

José Nêumanne Pinto: Se eu entendi bem o raciocínio do Hugo, ele quis, pelo menos insinuou, ele perguntou se não havia um "neocoronelismo", quer dizer, se não havia um novo tipo de coronelismo nessa atitude desse grupo...

Ciro Gomes: É um risco, eu acho que o poder é perverso por definição, vale a pena ser vigiado, vale a pena ser vigiado sempre. Esse negócio de a gente estar no poder deve ser sempre uma coisa muito transitória. Mas quem está no poder não tem essa consciência plena; então, quem deve ter esta consciência é a população.

Carlos Alberto Sardenberg: [sorrindo] Se, de repente, o senhor começar a dar uma de coronel, o senhor quer que a gente avise.

Ciro Gomes: Tem que fazer, tem que criticar e as pessoas... Mas não vai mais acontecer no Ceará nenhuma vez.

Jorge Escosteguy: Governador, vamos ter que fazer um rápido intervalo. O Roda Viva volta daqui a pouco, entrevistando hoje o governador eleito do Ceará, Ciro Gomes. Até já.

[intervalo]


Jorge Escosteguy: Voltamos com o Roda Viva, que hoje está entrevistando o governador eleito do Ceará, Ciro Gomes. Governador, tem um conterrâneo seu aqui, o Ricardo Sérgio de Araújo; ele ligou lá de Fortaleza bravo porque o senhor chamou o governo Collor da coisa mais atrasada que existe na política brasileira, fisiológica etc.
 
Ciro Gomes: Não, não é. Se eu falei, quero pedir desculpas, porque não é. É só atrasado.

Jorge Escosteguy: Ele pergunta, então, como o senhor explica a sua trajetória política partidária, passando do PDS, onde o senhor começou, para o PMDB e agora para o PSDB?

Ciro Gomes: A minha trajetória é a seguinte: o meu pai era prefeito de Sobral e eu era militante do movimento estudantil na universidade em Fortaleza.

[...]: PC do B [Partido Comunista do Brasil]?

Ciro Gomes: Não, PCB [Partido Comunista Brasileiro]. Vinculado; nunca tive carteirinha, não. A aproximação era mais com a esquerda católica, um grupo...

Jorge Escosteguy: O senhor nuca foi um comunista de carteirinha?

Ciro Gomes: Não, nunca tive disciplina para a isso, embora tenha sonhado. Quando vieram as eleições de 1982 [para governador, senador e deputado federal], estava em marcha a sucessão do meu pai na prefeitura de Sobral. Em Sobral não havia o MDB [Movimento Democrático Brasileiro], as forças estavam subdivididas em sublegendas. Então, em função da vinculação de votos a que se obrigava naquele tempo e para não ficar contra o meu pai, eu me filiei na véspera do prazo se extinguir. Fui candidato; em seguida, passei para a oposição, que era o PMDB. Na sucessão presidencial, não concordei com o encaminhamento da convenção democrática legítima que encaminhou a candidatura do dr. Ulisses Guimarães [1916-1992], como discrepei da orientação do partido à orientação central, e fui para o PSDB. É assim que eu explico.

Juca Kfouri: Governador, o senhor sabe que ser do PCB pode não dar nenhum futuro, mas dá um baita passado. Aproveitando um pouco essas siglas em extinção na nossa esquerda, o que o futuro pode reservar ao PSDB, agora que ele está na encruzilhada de se definir de vez como um partido, com sonhos de...

Ciro Gomes: O que eu penso sobre isso é que nós devemos já - porque isso deve ser já, mesmo, em função de um certo vácuo político que eu estou vendo insidiosamente aumentar no país -, nós devemos formular um projeto alternativo para o Brasil que tenha a coragem de falar objetivamente em relação aos problemas objetivos da população brasileira, [contendo] o que nós faríamos, se estivéssemos no governo, sobre a dívida externa, sobre a política fiscal, sobre a política monetária, sobre a política de rendas, sobre a ciência e tecnologia, sobre a

[sobreposição de vozes]

Ciro Gomes: Deixa eu... isso é um raciocínio encadeado. Feito isso, nós devemos arregaçar as mangas e militar. Militar de manhã, de tarde e de noite em cima de tamborete, em cima de caixa de cerveja, em cima de banco, em cima de palanque, mostrando ao país que há alternativas para nós sairmos desta crise interminável, sem demagogia, sem populismo, sem promessas messiânicas, sem necessariamente termos que apelar por uma liderança carismática, personalista, que seja o nosso "paizão", mas que passe por para o povo a virtude de uma sociedade consciente dos seus problemas, que saiba que não tem saída sem sacrifício. E vamos conhecer bem esse sacrifício e vamos repartir de forma socialmente justa esse sacrifício. Essa é a saída do PSDB. Se nós fizermos isso com a disciplina...

Juca Kfouri: Quem carrega essa bandeira com o presidente do PSDB? Alguém do grupo Covas ou do grupo Jereissati?

Ciro Gomes: Nós vamos começar a discutir esse problema. O grupo Jereissati, primeiro, não existe. Nós temos uma certa aversão a essa coisa que corresponde muito a essa tradição negativa do Ceará. O Tasso é uma liderança que hoje não se confina mais às fronteiras do estado do Ceará, pelo seu exemplo, pelo que ele significa concretamente, pelo que ele pode fazer - ou pelo Ceará, ou pelo Nordeste, ou pelo Brasil, não importa. Ele, até, não deseja fazer nada; alugou um apartamento e vai lecionar nas universidades de Nova Iorque nos próximos três meses, quando sair. Essa é a intenção dele: voltar para as empresas. Nós é que achamos que ele não tem o direito de fazer isso. Mas o que nós devemos fazer? O PSDB é pequeno demais para ter desavenças entre pessoas, desavenças conceituais; devemos dirimi-las com uma discussão franca.

José Nêumanne Pinto: Agora, é pequeno, mas já foi um pouco maior. Eu queria justamente fazer essa observação. O PSDB tinha a quarta maior bancada na Câmara e hoje tem a sétima, só tem um deputado a mais do que o PT. Não está na hora de o PSDB ser um pouquinho mais humilde, ouvir mais e entrar na cena política com menos da arrogância das estrelas do PSDB?

Ciro Gomes: Eu não vejo essa arrogância, não. Eu vejo...

José Nêumanne Pinto: O PSDB não está na hora de largar esta esquizofrenia?

Ciro Gomes: Eu não vejo isso. Eu não vejo esquizofrenia nem arrogância. Eu vejo é um sonho, um ideal muito forte de pessoas que não estão dispostas a abrir mão, a deixar por menos.

Juca Kfouri: Tem uma esquerda velha no PSDB, governador?

Ciro Gomes: Não, tem alguns ranços de opinião, ainda, e é natural. Pessoas que sofreram - que não é meu caso, eu não sou herói da resistência, eu posso analisar a ditadura e as suas mazelas como um fato da história, um fato negativo -, gente que foi cassada, gente que foi perseguida, gente que viu companheiros serem exilados ou torturados naturalmente vão morrer com seqüelas e vão ter sempre essa visão - respeitável, mas equivocada, de certa forma - do espectro político.

Carlos Alberto Sardenberg: Governador, eu queria voltar à pergunta daquele seu conterrâneo; se o senhor pudesse esclarecer a sua posição em relação ao governo Collor, porque o seu conterrâneo reclamou que o senhor falou que era todo fisiológico e o senhor disse que não...

Ciro Gomes: Não foi assim, também; não sei se eu me apaixonei aqui pela tese. O que eu penso do governo Collor é o seguinte. Nós temos um presidente voluntarioso, com coragem política, porque teve coragem de seqüestrar ativos financeiros, tem coragem de fazer tudo o que for possível e nós precisamos de gente assim. Um presidente que é obstinado - e isso também é virtude, é qualidade -, um presidente que tem um discurso social-democrata - e isso também é muito interessante -, um presidente que tem uma equipe econômica funcionando de forma coerente, de forma articulada, de forma séria, de forma corajosa - também é uma virtude desse governo. Mas no que eu estou preocupado,  especialmente em direção ao meu conterrâneo, é com o seguinte: o governo Collor, para operar, um governo que promete um "Brasil Novo" [esse era o nome do primeiro plano econômico de Collor, ou Plano Collor], um governo que promete moralização, um governo que promete acabar com a mordomia, um governo que promete acabar com o tráfego de influência, é nesse governo que eu tenho preocupação. É um governo que nós todos desejamos - desejaríamos. O que aconteceu? Quando ele assumiu, encontrou um Congresso e alguns atores da política nacional muito antigos, muito conhecidos na sua prática viciada. As pessoas conhecem quem são. Quando eu falo "carteira de identidade", é porque são os mesmos que estavam no governo [José] Sarney [1985-1990], no governo Figueiredo [(1918-1999), presidente de 1979 a 1985] etc, que tomaram conta do Estado brasileiro, tomaram conta para nomear afilhado, para tomar conta, para fazer falcatrua em Banco, para acobertar...

José Nêumanne Pinto: Mas, se o PSDB não quis conversar com o presidente, o que que ele podia fazer?

Ciro Gomes: Não, o PSDB quis conversar, o PSDB quis conversar com o Brasil e ofereceu o seu melhor quadro para ser o presidente do Brasil. Quando perdeu, seria arrogante que o PSDB agora fosse ensinar o presidente Collor como fazer. Nós temos é ter a humildade, aí, sim...

José Nêumanne Pinto: [fala junto com Ciro] [...] conversar com o PSDB e não conseguiu.

Ciro Gomes: Nunca, nunca! Ele mande me chamar, [já que] eu sou do PSDB, para conversar sobre qualquer assunto, que eu, de graça, digo que apóio, por exemplo, a austeridade monetária; disse aí, claramente...

Juca Kfouri: Governador, ele chamou publicamente...

Ciro Gomes: Não é assim que se faz política.

Juca Kfouri: ...o então presidente do PSDB, Franco Montoro, para conversar.

Ciro Gomes: Ele foi lá, o presidente foi lá e conversou...!

Juca Kfouri: Pois é, a pergunta que recoloca um pouco do que eu comecei a perguntar...

Ciro Gomes: Ir lá e conversar, tudo bem. Agora, o problema é esse: nós estamos precisamos é de conversa?

[...]: O senhor subiria a rampa [do Palácio do Planalto]?

Ciro Gomes: Mas é claro! Aliás, eu subi uma vez, assumindo o governo do estado, tendo uma pauta para discutir com o presidente. Eu, como lhe disse, tenho admiração por várias qualidades do presidente.

[sobreposição de vozes]

Carlos Alberto Sardenberg: O que está errado e o que que está certo nesse governo aí? O que está errado e o que está certo?

Ciro Gomes: Isso, eu vou concluir; o que me incomoda, o que me incomoda é o que está se cristalizando como face política do governo. Quem são os homens que dão o tom da face política do governo. Isso é o que me incomoda.

José Nêumanne Pinto: Quem são?

Ciro Gomes: Quem são os partidos que dão o tom.

José Nêumanne Pinto: Eu lhe pergunto quem são?

Ciro Gomes: Você conhece. Eu não quero ser indelicado, mas é o PDS, o PFL [Partido da Frente Liberal, depois DEM, Democratas], o PTB [Partido Trabalhista Brasileiro]...

José Nêumanne Pinto: [tenta interromper Ciro]

Ciro Gomes: ...que são partidos respeitados no aspecto político, mas, evidentemente, não representam mais o novo...

José Nêumanne Pinto: Governador, num país em crise econômica como o Brasil, o importante é a economia. Na atual situação, a importância fundamental é da economia. Então, o senhor diz o seguinte...

Ciro Gomes: Mas tem equívocos...

José Nêumanne Pinto: ...o governo Collor tem uma excelente equipe econômica, mas o governo é outro...

Ciro Gomes: Mas tem equívocos também na economia e na gestão política. Você não tem departamentos para administrar um país; a administração é uma coisa absolutamente interconectada e é dever de um governante democrático legitimar seus atos de forma rotineira, cotidiana. A legitimidade original do seu mandato só lhe garante a nobreza de um mandato originário da vontade popular, mas não dá a ninguém, numa democracia sadia, o direito de governar solitariamente, dizer e fazer...

[sobreposição de vozes]

Carlos Alberto Sardenberg: Eles mandam embora esse pessoal e pegam quem?

Ciro Gomes: Esse é um problema de quem está liderando.

[...]: Par um presidente eleito pelo povo...

Ciro Gomes: Só um minuto. O que é que eu defendo, também, para esta questão? O que eu defendo é um grande entendimento nacional. Defendo assim: entendimento nacional não é juntar interesses episódicos da CUT [Central Única dos Trabalhadores] e da Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo] e concordarmos que tem que reindexar salário e preço.

[...]: Claro...

Ciro Gomes: Isso não é entendimento nacional. O que é que eu defendo? Chamar todos os atores da sociedade brasileira: o presidente - porque cabe a ele liderar este processo -, os governadores, os deputados, os sindicatos, as centrais sindicais, as centrais patronais, enfim, sentar e discutir: "O Brasil quebrou, faliu; esta crise não é episódica, é uma crise definitiva, ela é genética a este modelo de Estado brasileiro. Somos nós, aqui, os brasileiros, que temos que resolver este problema. Isso só vai ser feito, na minha opinião, se se fizer isso, isso e isso. Vocês concordam?" Não, não concordam; bota isso, tira aquilo, faz isso - discute-se e, aí, faz-se um pacto nacional. Isso é o que eu defendo.

Juca Kfouri: Governador, eu só queria que o senhor se imaginasse um pouco na pele do presidente, eleito com 35 milhões de votos; um ano, um ano, um ano e meio antes tendo como candidato [...] dele o senador Mário Covas [antes de candidatar-se à presidência, Collor propôs a Covas uma chapa com Covas presidente e Collor vice]; por circunstâncias conhecidas, sai a sua candidatura, o senhor [imaginado na pele de Collor] acena para isso que nós, que a elite, a vanguarda intelectual brasileira considera o que há de mais bem-pensante no país - nomes como José Serra, Fernando Henrique, Mário Covas - e há de volta apenas xingamentos.

Ciro Gomes: Eu não concordo; eu acho que o PSDB não deve ser confundido com o PT nem com o PDT. Eu acho que eu não estou conseguindo me expressar bem. O que eu acho...

Juca Kfouri: [tenta interromper Ciro]

Ciro Gomes: Só um minutinho, agora eu vou tentar me explicar bem. Vou tentar me explicar bem. O que eu acho é que o PSDB deve afirmar a sua identidade. Como? Formulando um projeto para o Brasil itemizado: saúde, educação, dívida externa, ciência e tecnologia, ecologia, política monetária, política fiscal - para ficar aqui em alguns temas que estão na minha cabeça. O PSDB devia fazer assim. Com isso, nós temos um referencial para afirmar a nossa identidade e para estabelecer balizas para a nossa relação com os outros atores da cena social, entre eles o presidente. Suponha que, concluído este projeto, o presidente diga: "Era isso que eu queria fazer" - e passa a fazer. Nós estamos obrigados moralmente a bater palmas, a apoiar, a colaborar, a contribuir como for necessário.

Juca Kfouri: E dar a cara para bater?

Ciro Gomes: Como for necessário. Mas o que não pode é o PSDB, chamado por notinha de jornal, que a gente não sabe se é verdade... Eu francamente digo nas reuniões que é mentira, porque, quando alguém diz "o presidente está doido para botar não sei quem não sei onde no ministério", eu digo "estão trabalhando todos em equívoco; ele não quer, nunca quis isso, não parece querer, nunca desejou."

Jorge Escosteguy:
É culpa da imprensa?

Ciro Gomes: Não, culpa da imprensa, é evidente que não; é culpa talvez dos interessados que colocam.

Jorge Escosteguy: Não é a imprensa.

Ciro Gomes: Não, a imprensa, não; a imprensa repercute o que ouve.

Andrew Greenlees: O senhor falou da necessidade de o PSDB formular um projeto, dar identidade ao PSDB. Agora, não há uma certa crise de identidade no partido com pessoas?

Ciro Gomes: [interrompendo] Lógico. Tem.

Andrew Greenlees: O senhor aqui está defendendo um diálogo com o governo federal e, ao mesmo tempo, pessoas estão conversando com o governador Leonel Brizola [(1922-2004), governador do Rio Grande do Sul de 1959 a 1963 e do Rio de Janeiro de 1983 a 1987 e de 1991 a 1994] e falando até em aliança e possivelmente até em fusão. Quer dizer, como é, qual é a crise, como é que se resolve essa crise de identidade?

Ciro Gomes: Esse é um problema que nós temos. Eu acho que, no nosso calendário, é um dos primeiros problemas. A propósito, vamos estar reunidos depois de amanhã...

Andrew Greenlees: O que o senhor acha das conversas com o governador Brizola?

Ciro Gomes: O meu vice [Lúcio Alcântara, governador do Ceará de 2003 a 2007] é do PDT [Partido Democrático Trabalhista]. Eu acho que conversar não faz mal. O que eu vejo é o seguinte: o Brasil tem uma cultura de pirilampo na política. Onde tem a luz, gravitam os pirilampos. Então, nós temos três grandes luzes, três grandes focos de luz hoje, na opinião pública: o governador Quércia [governou São Paulo de 1987 a 1991], o governador Brizola e o presidente Collor; e nós somos os pirilampos. Agora, nós não somos obrigados a gravitar em torno de uma lâmpada só.

Jorge Escosteguy: O senhor pirilampa em qual deles?

[risos]


Ciro Gomes: Eu vou dizer. Nós não somos obrigados a ficar gravitando em torno de uma luz só. É um pirilampo metido a besta, que quer virar luz - que, na verdade, não é um pirilampo, é um vaga-lume.

José Nêumanne Pinto: Está sem cacife, está sem cacife...

Ciro Gomes: Mas cacife se constrói na luta.

José Nêumanne Pinto: Sétimo na bancada...

Ciro Gomes: Qual é o problema, qual é o problema? Nós não estamos querendo aderir a ninguém.

José Nêumanne Pinto: ...e continua se comportando de uma forma que não condiz com aquilo que o senhor falou, que o senhor é um homem prático na política. Então, eu vou lhe dizer uma coisa: que o PSDB não é um partido prático na política, que é um partido que é comandado por pessoas que perdem a eleição e que as pessoas que ganham a eleição dentro do partido são obrigadas a obedecer os ditames dos que perdem seguidamente eleições. Eu não vejo onde está a pragmática desse partido.

Ciro Gomes: Um minutinho, Nêumanne. Você é um excelente jornalista, eu sei que, evidentemente, está só provocando aqui o neopolítico que está ensaiando seus primeiros passos na capital do país.

[risos]

Ciro gomes: O governador Quércia, hoje, é desenhado pela grande mídia nacional como o grande vitorioso. Acabou de perder as eleições para a prefeitura de São Paulo. Então, um partido se faz com serenidade. Temos que ter uma fixação do que nós desejamos, que é organizar a sociedade brasileira.

Juca Kfouri: Mas a questão...

Ciro Gomes: Deixa eu só dizer... Nós queremos isso. Então, tenha paciência; se nós vamos conquistar isso com o poder ou na oposição, isso é um problema nosso, que nós vamos ter que resolver.

[sobreposição de vozes]

Ciro Gomes: Isso é uma questão verdadeira, o que você falou; nós temos uma crise de identidade que, taticamente, é a primeira coisa que tem que se resolver.

Juca Kfouri: Mas a questão, às vezes... Parece-me que o político que vem lá de cima ainda tem uma noção que, me parece, a própria eleição do presidente Collor jogou por terra. Será que, pelo fato de um ser governador do Rio e o outro ser um governador que acaba de fazer um sucesso estrondoso nas eleições de São Paulo, necessariamente significam duas grandes luzes?

Ciro Gomes: Luzes, são; não significam necessariamente nada...

Juca Kfouri: Luz que ilumina a treva ou luz que vem no sentido contrário?

Ciro Gomes: Luz, luz que chama a atenção, luz que chama a atenção, que pode queimar facilmente...

Andrew Greenlees: O senhor prefere a luz do Quércia ou a luz do Brizola?

Ciro Gomes: Vale preferir a luz do PSDB?

Andrew Greenlees: Vale.

Jayme Martins: Governador, insistindo um pouco no administrativo, o senhor disse, no bloco anterior, que...

Ciro Gomes: Entenda bem, o que eu chamo de "luz" é o seguinte: são pólos de atração da opinião. Todos dizem isso, que são os grandes pólos de poder. Amanhã, pode não valer nada; num país complexo como o Brasil, pode não ser nada.

[...]: Já foi o Ulisses...

Ciro Gomes: Apenas confirmo.

José Nêumanne Pinto: Não se esqueça de que o Quércia ganhou a eleição para governo do estado, mas está enfrentando um grande problema de imagem nacional, porque a administração dele não está conseguindo pagar os vencimentos dos funcionários do maior estado, São Paulo. Então, a luz não está brilhando de forma tão ofuscante assim.

Ciro Gomes: Quem sabe é porque a treva é tão grave que uma mera tinta fosforescente parece luz.

Jayme Martins: O senhor disse que o governo Tasso conseguiu dobrar a área da agricultura irrigada durante os últimos quatro anos.

Ciro Gomes: Isso.

Jayme Martins: O que significa agricultura irrigada no Ceará, em termos de iniciativa pública, privada, coletiva, cooperativizada?

Ciro Gomes: Olha, no plano federal, foram as primeiras grandes tentativas. Inclusive, é um crime que a imprensa nacional devia nos ajudar a desvendar. As melhores terras, contíguas aos maiores reservatórios de água no Ceará, são hoje terras públicas, pertencentes ao governo federal. Criminosamente fora da produção. Algumas porque se tentou moldar ali um kibutz de cima pra baixo, sem dizer para as pessoas como era, com funcionários corruptos etc.; outras, porque tentaram moldar um modelo cooperativado em que não eram os cooperativados que geriam a sua cooperativa, mas também funcionários mal interessados em ganhar eficiência, em ganhar lucratividade - para ficar no menor dos problemas, enfim - ou, criminosamente, simplesmente fora da produção, totalmente. Como está [a chapada do] Apodi [na fronteira com o Rio Grande do Norte], onde se construiu até um aeroporto maior do que o aeroporto Pinto Martins, de Fortaleza, para decolar boeing nos sonhos mirabolantes dos tecnocratas.

Jose Nêumanne Pinto: [sorrindo] É maior do que o de Mombaça [CE]?

Ciro Gomes: Em Mombaça não tem aeroporto, não.

José Nêumanne Pinto: Não?

Ciro Gomes: Não, não tem, não.

[risos]

Ciro Gomes: Tem campo de pouso de terra.

Jayme Martins: Mas como entram na irrigação as iniciativas pública, privada e coletiva?

Ciro Gomes: Em função da desmoralização desses grandes modelos concentrados, nós imaginamos - esse é um projeto que nós estamos tocando - que é melhor disseminar muitas pequenas unidades de produção agrícola irrigada. Então, nós chamamos lá de "kit de irrigação". Um kit de irrigação é responsável por uma produção de três hectares e meio. Três hectares e meio é uma relação que dá para a sustentar bem, capitalizar bem, fazer crescer a renda de uma família.

Jayme Martins: E esse kit é privado ou é público?

Ciro Gomes: É privado. É privado para as pessoas, mas apenas fazemos o seguinte: exigimos, eventualmente, do proprietário da terra que ele faça uma carta de anuência não cobrando renda daquele sem-terra que está produzindo naquele setor. E financiamos; não é dado, é pago depois com a produção de grãos. Agora, tem kits flutuantes. É uma idéia, também: você bota, em cima de um barquinho de fibra de vidro, uma bomba de aspersão e este kit flutuante circula todo em torno dos grandes açudes, irrigando duzentos ou trezentos metros de margem dos grandes reservatórios. Isso dá para atender muitos produtores e é comunitário, não pertence a um ou a outro. E temos um modelo interessante que está dando uma grande rentabilidade, que é o pivô central. Aí, nós já conseguimos um estágio mais sofisticado. Nós desapropriamos a terra e organizamos um condomínio, que é uma pré-empresa, é uma estrutura pré-empresarial - não é empresarial, não é cooperativa, é uma coisa que tem que se respeitar para ir vencendo pouco a pouco o individualismo que é próprio da cultura nordestina; e eles vão vencendo as desconfianças entre si na quantidade de trabalho que cada um põe naquilo que é demarcada pelas suas áreas, embora as estruturas comuns sejam comunitárias. E isso está dando boa rentabilidade, já em escala econômica.

Juca Kfouri: Pelo que eu estou entendendo...

Hugo Studart: Desapropria dos proprietários grandes? Os pequenos...

Ciro Gomes: Só pode desapropriar dos grandes. Os pequenos, nem o Estatuto da Terra permite.

Juca Kfouri: Pelo que eu estou entendendo, esse modelo é muito parecido com o que o governador Montoro tem em São Paulo: descentralização, pequenas obras. O senhor deu, inicialmente, o exemplo de que as carteiras escolares do Ceará eram feitas no Paraná e hoje são feitas na própria comunidade. Isso talvez explique a afinidade que existe entre o governador Montoro e o governador Jereissati nessa...?

Ciro Gomes: Nós admiramos o governador Franco Montoro pelo seu governo, pela sua experiência, pelo seu discurso, enfim, por todas as razões. Não é o nosso guia na experiência do Ceará, que é uma experiência muito produzida lá, neste feedback constante de estimulação da organização da nossa população.

Juca Kfouri: Governador, mas dá sentido a essa união dentro do partido entre o governador Jereissati e o governador Montoro na direção...

Ciro Gomes: Nós estamos todos unidos no PSDB. Vocês vão ver claramente isso, proximamente. Pode esperar.

Jorge Escosteguy: Governador, por favor, o senhor respondeu, já, as perguntas de Francisco Freitas de Iracema, do Ceará, e de Jarlei de Araújo, de Juazeiro. Mas o pessoal do Ceará continua telefonando e há algumas pessoas aqui meio irritadas com o senhor; e o professor Haroldo, de Sobral, sua terra de adoção, telefonou para perguntar se a política educacional do seu governo vai continuar sendo como a do governo atual - ou seja, de total desprezo ao profissional de escola pública. A Maria das Graças Leite, de Juazeiro, também pergunta se o senhor vai rever a situação do professorado. O Rômulo Araújo, que é vereador na cidade de Barbalha, ao sul do Ceará, pergunta se o senhor pretende tratar a educação como o governador Leonel Brizola, construindo Cieps [Centros Integrados de Educação Pública]. E a mesma questão é feita também pela Edite Terra, de Itapetininga, no interior de São Paulo: o que o senhor vai fazer pelos professores?

Ciro Gomes: Um dos nossos compromissos básicos é com a educação. Isso foi explicitamente tratado na nossa campanha, porque aí está a única porta definitiva, realmente, para a libertação definitiva e a instauração de uma sociedade cidadã no nosso estado, na nossa região e no nosso país. Isso não necessariamente significa essa coisa epidérmica e levada à frente pelo corporativismo, que é passar salário para salários ideais do dia para a noite, porque não vai acontecer, como sempre se afirmou. Já fui prefeito de Fortaleza, sabe-se o que eu fiz nessa área; o governador Tasso Jereissati, todo mundo sabe o que fez nessa área, que certamente não foi abandonar, recuperou dois terços das escolas, restaurou a dignidade dos salários - estavam atrasados três meses, não tinham nem crédito no comércio para comprar; estão pagando rigorosamente em dia, com calendário, pagando o décimo-terceiro do salário pela primeira vez na história da administração pública do Ceará e melhorou também o salário na proporção da evolução das nossas receitas. Isso deve permanecer. Na proporção exata...

Jorge Escosteguy: O professor Haroldo disse que o professorado é maltratado lá...

Ciro Gomes: Isso eu imagino, um professor tem que dizer isso com razão. Se eu fosse professor também diria, porque os salários não são bons - evidentemente, não são bons salários. Mas são os maiores salários que se pagam no Nordeste, por exemplo. Não sei se isso é uma vantagem...

Juca Kfouri:  O que significa, governador, 18 mil cruzeiros, 20 mil cruzeiros?

Ciro Gomes: Por aí, para um ensino básico de terceiro normal, por aí, 14, 18...

Carlos Tramontina:
O senhor é favorável à formação dessa falada "Frente de Governadores contra a Recessão"?

Ciro Gomes: Isso não existe. Não existe nem proposta, isso é mero jogo de cena dos jornais...

Carlos Tramontina:
De quem?

Ciro Gomes: Das pessoas que animam essa tese. Não tem isso, não. Nunca fui convidado, nem ninguém convidou ninguém para a formar frente nenhuma, nem pró, nem contra, nem a favor disso, nem daquilo.

Jorge Escosteguy: Será que não estão achando o senhor muito "collorido"? ["collorido", na época, era gíria para "seguidor de Collor"]

Ciro Gomes: É possível. Já um [outro], lá, achou que eu estava sendo muito hostil ao presidente. Esse problema, eu tenho desde o movimento estudantil. A direita me dizia comunista e os comunistas me diziam reacionário. O que eu quero é procurar a verdade.

José Nêumanne Pinto: Talvez o mais grave problema do governo Tasso Jereissati, o problema mais sério que o Tasso teve que enfrentar durante os quatros anos do seu governo, tenha sido a sua relação com a Assembléia Legislativa. O Tasso teve uma relação muito difícil com a Assembléia e as assembléias legislativas em geral, no Brasil e no Nordeste em particular, são muito caudatárias do "velho Brasil", quer dizer, são muito ligadas ao coronelismo, aos vícios do Brasil velho. O senhor vai ter esse problema? E como o senhor vai enfrentar esse problema? Vai fazer como o Tasso, que o enfrentou na Justiça, no dia-a-dia, ali?

Ciro Gomes: É precisando... Eu, entretanto, imagino que menos. Eu fui líder do governo nessa fase mais dura...

José Nêumanne Pinto: Pois é, com a sua experiência...

Ciro Gomes: ...e a Assembléia também sofreu uma censura grande da população do Ceará. Por isso que não tem coronelismo novo, lá. As pessoas acabaram escolhendo o governador, o senador, a maioria da Câmara Federal, uma maioria da Assembléia Legislativa esmagadora da nossa aliança. E derrotaram, ainda, para a completar, aqueles mais empedernidos adversários que tínhamos lá, mesquinhos, na Assembléia. O que eu vejo hoje é uma imensa boa vontade no Ceará inteiro. Podia até não dizer isso, mas é o que eu sinto, uma imensa boa vontade. Todo mundo quer ajudar, até o PT não tem se negado a conversar, a discutir, enfim, o PC do B, todo mundo quer discutir; não é se render, nem se oferecer a...

José Nêumanne Pinto: Mas o PT e o PC do B adoram discutir... [risos]

Ciro Gomes: Não, mas discutir positivamente.

Kleber de Almeida:
Governador...

Ciro Gomes: O PC do B não foi, não; o PT que...

Kleber de Almeida:
Governador, mas restou, como foi dito aqui, um grande coronel no comando da Sudene. Como é que está a Sudene? Ela está funcionado mesmo bem para o Nordeste ou virou mais um órgão burocrático e não tem uma ação positiva para os estados?

Ciro Gomes: Olha, permita-me fazer uma apreciação, para que a minha opinião, que é antiga... Eu tenho um primeiro mandato de deputado estadual com 23 anos de idade; na primeira fala que tive na Assembléia, falei sobre isso; portanto, não desejaria ser confundido aqui com qualquer questiúncula de natureza pessoal ou animosidade partidária com o coronel Adauto Bezerra, que hoje é o superintendente da Sudene e que é nosso adversário no Ceará. Não é isso. Portanto, o que eu posso falar é que a Sudene sofreu um processo gradual, mas seguro, definitivo, permanente - eu não sei se definitivo, mas permanente - de esvaziamento, de desmoralização, até de corrupção. E a Sudene acabou sendo presa de meia dúzia de pessoas que já são ricas no Nordeste, que defendem, com o apoio de ampla maioria das elites políticas, essa política que, no fim, é uma grande mesquinharia, de coisinha, de subsídio, de incentivo fiscal para tocar ali meia dúzia de empresas e não resolver o problema estrutural do país e não fazer retornar o recurso público para ciclicamente continuar financiando o Nordeste. Então, eu tenho uma opinião muito azeda sobre esse assunto. Independentemente de estar lá o coronel Adauto Bezerra, a minha opinião é muito azeda. O Nordeste, trinta anos atrás, representava 13,4% do PIB [produto interno bruto] nacional. De toda a renda nacional, da riqueza nacional, o Nordeste era 13,4%. Hoje, trinta anos depois, 15 bilhões de dólares depois, o Nordeste representa 14,8% do PIB nacional. Cresceu 1%, nestes trinta anos, a participação relativa. Ora, se nesse tempo nasceu Camaçari, que é um sofisticado pólo petroquímico na Bahia; se nasceu o complexo portuário industrial de Recife - o Suape - etc; se nasceu o complexo de açúcar em Alagoas, se nasceu o complexo cloroquímico de Sergipe, se nasceu indústria em Fortaleza e se isso tudo, evidentemente, representa muito mais que 1% do PIB nacional, tem-se como evidência que, ao longos dos últimos trinta anos - o que eu vi acontecer -, o Nordeste inteiro empobreceu. O que, evidentemente, faz absolutamente inviável a manutenção dos atuais mecanismos conservadores de tentativa de eliminação dos desníveis regionais. A Sudene, portanto, ou volta às suas origens de ser um fórum técnico de elaboração de um projeto conseqüente de economia ágil, produtiva, eficiente no Nordeste e também uma instância de agregação da força política atomizada do Nordeste para que possamos representar alguma coisa frente ao poder central, ou eu lá não piso. É o que eu tenho dito sistematicamente

José Nêumanne Pinto: A Sudene é presa e caudatária dessas elites nordestinas?

Ciro Gomes: Total, totalmente.

José Nêumanne Pinto: E é esse pessoal da indústria da seca que suga...

Ciro Gomes: A indústria da seca, não; isso é coisa urbana, é urbano, hoje é urbano. Aliás, tem também projetos agropecuários que são verdadeiros escândalos. Toda fazendola de 10, de 2, de 10 hectares do Ceará dá lucro. Um pouquinho ou não, dá para tirar um bezerro, uma vaca, um carneiro, todos os projetos agropecuários. Salvo algumas exceções - as pessoas dizem que eu tenho mania de generalizar; salvo as honrosas exceções -, quase todos os projetos agropecuários da Sudene dão imenso prejuízo - de propósito, porque dão dinheiro público, as pessoas botam logo dez empregados da família própria ganhando elevados salários, forçam o balanço com prejuízos e, em seguida, vão comprar as ações, aviltadas na bolsa, do seu próprio patrimônio - o que tem que acabar.

Jayme Martins: Qual é a perspectiva da economia do caju durante seu governo: fruto, suco, óleo, e castanha?

Ciro Gomes: Nós temos um problema muito grave. Nós temos hoje uma floresta de cajueiros no Ceará que já foi responsável pela maior produção relativa no Brasil. Entretanto, está sofrendo um processo tanto de parasitas - é uma traquinosa, o nome - como de degradação genética da semente por equívoco na própria disseminação dessa semente, que não foi feita com os cuidados necessários. O que se impunha tecnicamente seria a erradicação dessa floresta e a sua substituição por uma mata geneticamente melhorada. Nós, já hoje, temos descoberto lá um cajueiro anão precoce que dá uma grande produtividade, chega a produzir 1500 quilos por hectare de castanha, seis vezes, sete vezes mais do que o cajueiro convencional. Entretanto, nós também não temos o capital necessário para a fazer isso de uma vez só. A política do nosso governo vai ser estabelecer gradualmente um avanço nessa direção.

Carlos Tramontina:
O que o senhor pensa, governador, da possibilidade de se fazer a antecipação da revisão constitucional e do plebiscito previsto para 1993 para decidir a forma e o sistema de governo? [o plebiscito decidiu pela República presidencialista]

Ciro Gomes: Eu sou a favor da antecipação da reforma da Constituição, desde que não seja para financiar golpe de ninguém. Nem golpe político, nem golpe administrativo.

Jorge Escosteguy: O senhor poderia explicar um pouquinho isso, governador?

[...]: O que é isso?

Ciro Gomes: Há algumas pessoas que querem antecipar a reforma constitucional para cercear atribuições do presidente que acabou de ser eleito. Eu não posso concordar com isso. O presidente, ou algum dos setores de sua administração, deseja antecipar para, num ambiente de discussão passional, eliminar alguns pontos da Constituição que entende como anti-modernidade ou anti eficiência do Estado. Eu também concordo que tem muitos itens, mas a motivação não pode ser essa, porque eu acho que nós deveríamos amadurecer essa revisão agora por uma razão tática: é que, em 1992, nós temos eleições; em 1993, de novo; quer dizer, 1994...

Hugo Studard: E a reeleição do presidente da República e dos governadores do estado?

Ciro Gomes: Não, agora não posso mais ser, sendo governador eleito não posso mais ser...

Carlos Tramontina:
Mas essa revisão poderia ser feita quando, então, na opinião do senhor?

Ciro Gomes: Acho que podíamos fazer no fim de 1991 ou no princípio de 1992. Seria uma data boa.

Andrew Greenlees: Governador, queria voltar à questão do relacionamento dos governadores com o governo federal. O senhor falou muito aqui do combate à seca etc e, para isso, o senhor vai precisar de dinheiro federal. O senhor prevê um relacionamento do tipo "toma lá, da cá", ou seja, o governo federal manda o dinheiro e, em troca, o senhor influencia a bancada do Ceará de alguma forma a votar com o governo? Isso vai acontecer?

Ciro Gomes: Não, de maneira nenhuma. Eu pretendo buscar e contribuir no que esteja ao meu alcance para, nessa dimensão na nossa responsabilidade como governantes - eu lá do pequeno Ceará, ele como governante do Brasil -, uma relação mutuamente respeitosa em que nós possamos tratar criteriosamente todas as questões. Eu digo "criteriosamente" porque eu não quero ser tratado excepcionalmente, nem por privilégios, nem por discriminação, o que eu não toleraria em nenhuma forma, em nome do povo do Ceará. Portanto, é o que eu vou procurar fazer. E também a minha opinião... O que eu puder, eventualmente, influir nos companheiros que estejam lá - não é bem a minha vocação, mas a gente sempre faz as coisas discutindo -, é para a apoiar o que for certo. Por exemplo, hoje, a essa história de frente anti-recessão, eu não somo meu nome, porque quem disser que tem que montar uma frente contra recessão tem que dizer onde é que vai afrouxar. É na política fiscal? Nós estamos defendendo a volta do déficit público, que gera inflação, que é o pior de todos os males, porque tira de quem não tem e concentra em quem tem? Nós vamos afrouxar a política monetária e vamos desmoralizar a moeda do país mais uma vez e de novo fazer hiperinflação, que viria em apenas um mês? Onde é que é contra a recessão? Vamos afrouxar onde? Então, quem dizer que é contra... Eu, eventualmente, não gosto, é um remédio amargo - eventualmente, não: não gosto da recessão, é um remédio muito amargo -, mas eu sou obrigado a dizer o que é da minha consciência: não há, na doutrina, não há, na história, na experiência de nenhum povo, ajuste fiscal, ajuste monetário em ambiente de hiperinflação sem algum abalo no nível de atividade econômica, que pode ser maior, menor, pode ser socialmente mais justamente administrado - o que não está acontecendo, mas recessão é fatal que aconteça como remédio, como custo. O que nós deveríamos era compreender melhor isso, discutir, politizar essa discussão para o povo ter consciência e colaborar e não ficar esperando milagre que não vai acontecer.

Hugo Studart: Voltando à seca, governador, o senhor disse há pouco que resolver o problema estrutural da seca e da miséria do Nordeste extrapola as funções do governador e é uma coisa do presidente da República e do país inteiro. Só para a entender essa conta que todos nós brasileiros precisamos pagar, quanto é que custa tirar um nordestino, tirar um flagelado da miséria e transformá-lo pelo menos num trabalhador pobre, mas digno? Ou seja, o que é preciso fazer, quanto tempo demoraria e quanto custa cada um desses...

Ciro Gomes: A questão é a seguinte. A minha defesa não é regionalista. Eu acho que regionalismo é um dos cânceres políticos desse comportamento malsão ou alienado de boa parte dos políticos do Nordeste. Não se trata de regionalismo, não tem essa coisa de regionalismo. O que nós deveríamos querer e exigir, e lutar por isso politicamente, é que a questão do impacto regional ou do impacto espacial das providências do planejamento global brasileiro e do planejamento setorial fossem sempre avaliada. Vou dar um exemplo do que seja isso. Hoje, para tudo o que se faz por imposição da opinião pública internacional - em boa hora, também da opinião pública nacional -, exige-se avaliação do impacto ecológico. Não é assim? Quer dizer, tem que ver o Rima, Relatório de Impacto no Meio Ambiente. Pois o que eu defendo é isso: tudo o que for feito de planejamento global e setorial no Brasil, avalie-se isso sob o ponto de vista do impacto espacial. Dou-lhe um exemplo aqui, só para você ver como não adianta esse regionalismo, ficar reclamando migalhas para a Sudene, não sei o quê, frente de trabalho... Não funciona, não vai funcionar nunca. Ainda agora, o governo federal, nesse viés neoliberal, resolveu desregulamentar a economia. Baixou, um funcionário de terceiro escalão, a portaria acabando com o preço CIF ["Cost, Insurance and Freight" ou "Custo, Seguro e Frete", preço do produto importado por via aquática no porto de destino, em contraposição ao preço FOB - "Free on Board" -, que é o no porto de origem; o preço CIF é o preço FOB mais frete, seguro etc] do aço. É uma complicação, mas é um bom exemplo do que eu estou falando. Preço CIF do aço é assim: como se decidiu politicamente, no passado, botar no Sudeste a indústria de base do aço, de chapa de aço, conseguiu-se, num mecanismo criativo, dizer o seguinte: "Tudo bem, a gente bota em São Paulo e no Rio a indústria de base, o aço, mas, para não impedir que o Rio Grande do Sul, o Amazonas e o Ceará possam também produzir bens manufaturados que tenham o aço como matéria-prima, vamos estabelecer um fundo que refinancie esse preço." De maneira que a chapa chega em Fortaleza, em Porto Alegre e em Manaus pelo mesmo preço, que é o preço CIF uniforme do aço. O que aconteceu? Em função dessa providência - e por uma coisa linda que tem no Ceará que ninguém explica -, gerou-se um pólo metal-mecânico no Ceará que, hoje, tem dez mil empregos industriais de alta qualificação, todos de produtos manufaturados nessa área, como fogão, geladeira etc., [vendidos] em São Paulo de forma competitiva no mercado. Botijão de gás, geladeira, fogão etc. produzidos no Ceará, são vendidos aqui [em São Paulo] de forma competitiva. O cidadão, lá, revogou: "Tem que acabar com isso! Isso é uma pérola da burocracia etc, porque o aço tem que ter um preço normal, tem que ter preço de mercado e pague quem quiser." Pois bem, essa providência sozinha aniquila dez mil empregos industriais e a Sudene não seria capaz de gerar, em vinte anos, [empregos] dessa natureza: empregos estáveis, sem subsídios, sem coisa nenhuma. Uma providência dessa natureza... De que adianta você reclamar do incremento do orçamento do filó e estar demitido do planejamento e das formulações centrais? Uma política séria no Brasil de erradicação do analfabetismo, sendo séria, vai acabar com o analfabetismo no Nordeste. É e lá que está: 43% do povo do Nordeste não sabe ler, nunca teve oportunidade de saber ler e escrever. Tem algum brasileiro que seja a favor disso? Que seja contra uma política séria que acabe com isso? De cada mil crianças que nascem, 112 morrem antes de completar o primeiro ano de vida. O dobro do que morre em São Paulo. Tem algum cristão nesse país que seja a favor disso? Então, o que eu defendo é uma política central de planejamento global e setorial que contemple o impacto espacial para a Amazônia, para o Rio Grande do Sul, porque a velocidade da moeda é diferente, porque o impacto da recessão é diferente, porque o nível de sofisticação tecnológica é diferente [e aí] nós temos que planejar de forma diferente. Aliás, os Estados Unidos viram isso com clareza, fizeram TVA, o Tennessee Valley Authority, que é um projeto de intervenção econômica importante feita num país capitalista. Na Califórnia, no Arizona, a União Soviética fez, a França fez, todo mundo faz, só o Brasil não.

José Nêumanne Pinto: Mas a política sistemática da mendicância continua tendo muito apelo no Nordeste.

Ciro Gomes: Tem...!

José Nêumanne Pinto: Você ouve a Voz do Brasil, você ouve a sessão do Congresso, só ouve deputado nordestino chorando, especificamente.

Ciro Gomes: Essa é a lógica! Essa é a lógica perversa da miséria. Que é verdade que lá tem um submundo econômico social, é. As reações dos atores políticos sobre isso são de diversas naturezas. A maioria prefere fazer isso. Porque é verdade, você vai no Congresso Nacional, o caboclo vai ouvir você no rádio, ele dizendo que precisa mandar pelo menos um fubazinho - o que aconteceu agora. Ridículo! Ridículo! Mandaram uma cesta de fubá, farinha e não sei o quê para distribuir na frente da [...] e eu vi na televisão e não consegui conter o choro, as pessoas batendo palmas, certamente animadas por algum camera man mais interessado em produzir uma imagem bonita. Isso é um crime! Tem que acabar, neste país.

Jorge Escosteguy: Governador, o senhor tem sido bastante objetivo e incisivo nas questões administrativas, nós as discutimos há pouco; mas, na área política, alguns telespectadores têm telefonado e a Sueli Carvalho, aqui [do bairro] da Vila Mariana, pergunta ao senhor se ficar em cima do muro é condição para se manter filiado ao PSDB. Ela acha que suas respostas estão muito parecidas com as do senador Mário Covas.

Ciro Gomes: Olha, o problema é o seguinte. A gente até tem que enfrentar uma certa incompreensão, porque o povo brasileiro está exasperado e as pessoas exasperadas desejam soluções simplistas, respostas simplistas para fatos complexos. Entretanto, eu prefiro ter paciência e deixar que todos os simplistas se desmoralizem e, como eu tenho 33 anos, eu vou vir e dizer: "Olha, aquela questão não era assim tão simples, mesmo, [tal e qual] eu tinha lhe dito, é muito complicada." E é como eu me comporto politicamente. Eu não acho que o Collor seja um demônio nem um deus, acho que tem qualidades e defeitos e estou procurando dizer nessa qualidade. O que eu quero dizer é que eu não sou alinhado; nem contra, totalmente, ao sistema, porque acho burro; nem a favor totalmente, porque acho desonesto. Então, é a minha posição.

Jorge Escosteguy: O José Roberto Nápoli, aqui [do bairro] da Vila Mazzei, aproveitando a deixa do Juca perguntando se o senhor talvez fosse um pouco "collorido", ele quer saber qual é o seu esporte favorito.

Ciro Gomes: [risos] Bom, eu já joguei muito futebol. Cheguei a jogar num time de Sobral, o Guarani, de uma certa feita, num time profissional - não como profissional, mas para dar uma canja...

José Nêumanne Pinto: Qual era sua posição?

Ciro Gomes: Eu era centro-avante. Mas eu gosto muito de voleibol e natação.

Juca Kfouri: E, evidentemente, como paulista, o senhor torce para o campeão brasileiro de 1990 [o Corinthians]

[risos]

Ciro Gomes: Eu torço para o Corinthians. E para o Flamengo.

[risos]

Jorge Escosteguy: E, por falar nisso, o que o senhor acha dessa postura, desse comportamento do presidente da República de sair quase que todo dia andando de jet ski...

Ciro Gomes: Olha, conceitualmente não é mal - lá vai outra resposta complicada -, conceitualmente não é mal; agora, como imagem, já está parecendo uma agressão às pessoas. Como imagem. Quer dizer conceitualmente, qual é o problema? O cidadão... Quer dizer, o que eu acho é que ele deveria fazer isso sem avisar para as pessoas irem lá tirar fotografia.

Jorge Escosteguy: Mas, se não avisar, ninguém vai lá fotografar.

Ciro Gomes: Mas é isso que eu estou dizendo. Fazer não faz mal...

Carlos Alberto Sardenberg: Eu li aqui, num jornal de São Paulo - acho que foi no Jornal da Tarde -, que o senhor ficou tomando conta das crianças enquanto sua mulher viajou.

Ciro Gomes:
[risos] Saiu no jornal? É verdade.

[risos]

Carlos Alberto Sardenberg: É verdade?

Ciro Gomes: Ela foi fazer um curso na América, nos Estados Unidos.

Juca Kfouri: Quer dizer que não são só os coronéis que acabaram lá, mas cabras machos também não tem mais?

[risos]

Ciro Gomes: Não, acho que não se perde a masculinidade por isso, não; e sei que você sabe disso.

José Nêumanne Pinto: Isso é um bom exemplo, um bom exemplo.

Ciro Gomes: Vai representar para o sindicato, não é?

[risos]

José Nêumanne Pinto: O governador [do Paraná] Álvaro Dias [1987-1991] disse, recentemente, que, hoje, governar, na situação em que está o Brasil, em que estão os estados brasileiros, não é mais tocar obras como no tempo do Washington Luiz [presidente da República de 1926 a 1930] - aquela história de "governar é construir estradas" [seu lema] -, mas, sobretudo, sanear as finanças do Estado e cuidar com muito cuidado dos desperdícios, das contas do Estado. Como é que o senhor vê isso?

Ciro Gomes: É verdade, embora isso seja um momento tático. Porque o problema é o seguinte: nós vivemos um período em que todos nós assistimos - a CUT assistiu, o [sindicalista Jair] Meneguelli [presidente da CUT de 1984 a 1994] assistiu, o [Paulo] Maluf [governador de São Paulo de 1979 a 1982] assistiu, todo mundo assistiu - o Estado brasileiro sendo gradualmente apropriado por castas e corporações e exaurir-se completamente das suas funções básicas. Hoje, a escola pública brasileira quebrou, faliu, é uma mentira caríssima; a educação, a saúde pública no país é uma calamidade, as universidades hoje são uma calamidade; o problema das estradas é muito sério; no Nordeste, nós vivemos um problema dramático sob o ponto de vista da estratégia econômica de modernização, que é um colapso de energia iminente se não se completarem já as defasagens de cronograma [das usinas hidrelétricas] de Xingó, de Tucuruí, do Ramal do Tucuruí; tudo isso significa só uma coisa, que eu estou tentando falar aqui desde o começo: o Estado brasileiro exauriu-se, não detém hoje a menor capacidade de poupança nem, portanto, de investimento...

[...]: Quebrou?

Ciro Gomes: Quebrou. O que se sucede daí é que quem deseja consertar esta coisa não pode começar do teto, tem que começar do alicerce. Então, tem que fazer uma reforma fiscal profunda, austera, que vai importar em grandes sacrifícios; tem que restaurar o poder de compra da moeda e o próprio valor político da moeda como instrumento de referência, de troca, de fator de unidade nacional - e isso importa numa política monetária austera. Eis aí as grandes virtudes deste governo - embora eu ache que os juros já passaram da conta; hoje já são custos, já estão contribuindo... Porque demorou-se demais e foram altos demais e quebraram a demanda agregada - é um termo técnico -; já não são mais... Hoje, são um alimentador de custos. É uma opinião de quem não é escolado no assunto, só curioso. E acho que falta uma política de renda que reparta este sacrifício de forma mais justa socialmente, porque o cartel, o oligopólio, esses sabem perfeitamente se protegerem - ou repatriando grandes volumes de dinheiro no estrangeiro que colocaram lá; ou diminuindo o volume de produção e aumentando a margem de lucro e ganhando o mesmo dinheiro, empregando menos gente, produzindo menos coisas. Mas a média empresa e a pequena empresa, que estão tendo o mesmo tratamento, ou as regiões ou as pessoas de baixíssima renda, não suportam fazer essa coisa espontaneamente como um pacote de cima para baixo. Isso é do que eu estou falando.

Jorge Escosteguy: Governador, nosso tempo já está se esgotando. Eu faria uma última pergunta. O senhor, há pouco, falou em subir a rampa do Palácio do Planalto como governador...

Ciro Gomes: Não, eles que falaram.

Jorge Escosteguy: Não, o senhor disse: "eu subo a rampa". Então, várias pessoas telefonaram. Djalma Irineu da Cunha, [do bairro] da Aclimação, aqui de São Paulo; Jorge de Adamantina; Carlos Siciliano, de São Bernardo...

Ciro Gomes: Adamantina, eu morei lá.

Jorge Escosteguy: Então já tem um eleitor lá em Adamantina. Cássia Soares, de Santo André; e Marisa Silva, de Porto Alegre, perguntam se o senhor vai ser presidente da República, se o senhor vai se candidatar.

Ciro Gomes: Não...

Jorge Escosteguy: A Marisa, inclusive, aparentemente ou claramente é sua eleitora: disse que "é extremamente gratificante, como brasileira, ver que o Nordeste tão marginalizado produz uma pessoa com o pensamento tão moderno como o seu." Ela espera vê-lo na presidência da República em 1995. Quando esteve aqui no Roda Viva, o ex-senador Paulo Brossard disse que o brasileiro - principalmente o político - que dissesse que não queria ou não sonhava em ser presidente da República estaria mentindo. O senhor está mentindo ou não sonha mesmo em ser presidente da República?

Ciro Gomes: Não, talvez, num sonho desses mais desavisados, eu possa até sonhar; mas acordado, não penso.

[risos]

Jorge Escosteguy: Nós agradecemos, então, a presença aqui no Roda Viva, esta noite, do governador eleito do Ceará, Ciro Gomes. Agradecemos também aos companheiros jornalistas que ajudaram na entrevista. Avisamos aos telespectadores que as perguntas que não puderam ser feitas serão entregues ao governador para que ele possa tomar conhecimento. E o Roda Viva volta, então, na próxima segunda-feira às nove e meia da noite. Até lá e uma boa noite a todos.

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