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Memória Roda Viva

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Ciro Gomes

17/5/1993

O governador cearense fala como enfrentou os problemas da indústria da seca e das tecnologias agrícolas precárias para continuar os investimentos do governo anterior

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Carlos Escosteguy: Boa noite! Apesar da crise, da recessão, do desemprego, o Brasil ainda é um país capaz de produzir pequenos milagres: milagres de bom senso. E o que é ainda mais inédito é que são milagres de bom senso na administração pública. São exceções, é claro, mas exceções que, no mínimo, alimentam um pouco a esperança do povo brasileiro em seu próprio país. No Roda Viva que começa agora pela TV Cultura de São Paulo, nós vamos conversar sobre uma dessas exceções, o Ceará, o povo e o governo do Ceará, que, recentemente, foram agraciados com o prêmio Maurice Pate da Unicef, o Fundo das Nações Unidas para a Infância e a Adolescência [o prêmio é dado a uma instituição, organização ou indivíduo em um país em desenvolvimento por contribuições extraordinárias para a proteção e desenvolvimento de crianças]. O prêmio foi dado pela redução dos índices de mortalidade infantil no Ceará. Mas os bons indicadores cearenses não param aí. O Ceará é um estado que tem superávit mensal em suas contas, o governo faz investimentos e poupança, caíram as taxas de desnutrição infantil, aumentou o nível de emprego, cresceu a produção industrial - nos últimos seis anos, a economia cearense cresceu 20%. Esse é o tema do nosso programa de hoje: vamos falar sobre o Ceará e, evidentemente, falar de política, pois o nosso convidado desta noite do Roda Viva é o governador do Ceará, Ciro Gomes. Ciro Gomes tem 35 anos, é de família cearense, de políticos cearenses, mas nasceu em Pindamonhangaba, no interior de São Paulo. Fez política estudantil pela esquerda católica na década de 1970; em 1982, elegeu-se deputado estadual pelo PDS [Partido Democrático Social], partido de seu pai, que era prefeito de Sobral; foi reeleito em 1986, já pelo PMDB [Partido do Movimento Democrático Brasileiro]; com apoio da Tasso Jereissati [governador do Ceará de 1987 a 1991 e de 1995 a 2002], ganhou a eleição para prefeito de Fortaleza em 1988; no ano seguinte, deixou o PMDB e foi para o PSDB [Partido da Social-Democracia Brasileira]; em 1990, foi eleito governador do Ceará. Lembramos que o Roda Viva também é transmitido ao vivo pela TV Pernambuco, TV Cultura do Pará, TV Maíra de Rondônia, TV Minas Cultural e Educativa, TV Vídeo Cabo de Belo Horizonte, TVE da Bahia, TVE do Ceará, TVE do Piauí, TVE do Paraná, TVE de Porto Alegre, TVE do Espírito Santo e TVE do Mato Grosso do Sul. Para entrevistar o governador Ciro Gomes esta noite no Roda Viva, nós convidamos: Kaíke Nanne, chefe da sucursal da revista Veja em Recife; Heródoto Barbeiro, apresentador do programa Opinião Nacional, da TV Cultura de São Paulo; Magno Martins, secretário de redação do Diário de Pernambuco; Flamínio Araripe, correspondente do Jornal do Brasil em Fortaleza; Pedro Cafardo, editor-chefe do jornal O Estado de S. Paulo; Alon Feuerwerker, diretor da Agência Folha; professor Aldo Cunha Rebouças, diretor do Centro de Pesquisas de Águas Subterrâneas da Universidade de São Paulo, presidente Associação Brasileira da Águas Subterrâneas e presidente da Associação Latino-Americana de Hidrologia para o Desenvolvimento; e professor Evaristo Eduardo de Miranda, pesquisador do Núcleo de Monitoramento Ambiental da Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária] e professor de ecologia da Universidade de São Paulo, especializado em problemas do semi-árido. Na platéia, assistem ao programa convidados da produção. Você, que está em casa, se quiser fazer perguntas por telefone, pode chamar 252-6525. A Cristina, a Ana e a Noemi estarão anotando suas perguntas. Boa noite, governador!

Ciro Gomes: Boa noite.

Carlos Escosteguy: Vamos começar um pouco pelo óbvio. Todos os governantes brasileiros falam em fazer todas essas coisas que eu mencionei aqui - ter superávit nas contas do governo, fazer investimentos, poupança, combater a desnutrição infantil, aumentar o nível de emprego etc - e raríssimos são os que o conseguem. O senhor parece ser uma dessas raridades - e uma dessas raridades em um estado, como o Ceará, tido como um estado pobre, um estado onde tem os tradicionais coronéis do Nordeste. Como o senhor conseguiu isso e que tipo de resistência o senhor teve quando começou a trabalhar, já pegando um pouco o trabalho do seu antecessor, Tasso Jereissati?

Ciro Gomes: Na verdade, esse é um esforço coletivo. A sociedade cearense tem nos ajudado muito em um nível muito interessante - talvez seja essa a grande peculiaridade, a organização da população. Eu tive o privilégio, como você já lembrou, de receber o estado equilibrado das mãos do governador Tasso Jereissati, que me antecedeu. Quando ele assumiu, o estado estava completamente desmantelado, era um caos generalizado; toda a receita só dava para pagar 70% de uma folha de pessoal, os funcionários essavam atrasados três meses e o estado não tinha a menor energia para enfrentar nenhum dos gravíssimos problemas que ainda estão lá a desafiar a nossa criatividade, o nosso esforço tenaz para resolver. O Ceará permanece sendo um estado muito pobre, é um dos mais pobres da federação; mas hoje, seis anos depois - e a capital também encontrava-se nessa mesma situação, quando eu tive a ocasião de assumir a Prefeitura; havia sete anos que os funcionários essavam atrasados três meses, a destruição generalizada na infra-estrutura da cidade, o serviço público em colapso e assim mesmo o processo foi desenvolvido na capital - e hoje nós somos o estado - sob o ponto de vista do estado -, o estado mais equilibrado do país e que tem a maior taxa de poupança própria. O enfrentamento das resistências, imagine, é terrível e não é uma coisa vencida, é uma coisa de todo dia. Nós tivemos que cobrar os impostos e isso feriu privilégios; o chefe da arrecadação do Ceará levou um tiro no maxilar - felizmente não morreu, [ainda que fosse] um tiro letal na cabeça, assim como [foi uma] caricatura das dificuldades que se enfrentou. Nós tivemos que conter drasticamente as despesas do estado; enfrentamos muitas incompreensões, que ainda são fortes no estado do Ceará; e criamos a condição de um estado superavitário - ou seja, para nós é conceitual que o estado não pode gastar tudo quanto arrecada. E o estado existe, a nosso juízo, para ser aquele lugar de onde a população pode esperar alguma coisa. Se somos um estado agudamente miserável, com 40% da população analfabeta - esse é o mesmo número de pessoas que são vítimas do emprego ou do subemprego -, de onde essas pessoas, pensamos nós, podem esperar alguma coisa? Só do estado, porque não seria o espontaneísmo individual das forças do mercado que iria resolver essas contradições. Se assim é, o estado precisa ser sólido, equilibrado e com capacidade de reagir aos desafios. E isso é o que se pratica.

Carlos Escosteguy: Quando eu falo em pressões, por exemplo, eu falo em pressões políticas, até porque o senhor fez duas coisas muito difíceis de serem feitas no Brasil: o senhor demitiu funcionários públicos ociosos e fez as pessoas pagarem impostos. Isso não lhe trouxe problemas, pressões?

Ciro Gomes: As pressões políticas são terríveis, são terríveis. Eu não tenho folga, não, ao contrário do que as pessoas possam imaginar. Você falou em prêmio internacional. O povo do Ceará recebeu esse prêmio internacional, um reconhecimento estimulante da opinião qualificada no país. Lá mesmo, no Ceará, a grande maioria do povo nos ajuda; os indicadores de aceitação popular do governo são expressivos, são confortáveis, mas o enfrentamento, todo dia... Eu não tenho sorte - quer dizer, para esse fim, não tenho sorte -; se você tomar, por exemplo, o discurso político no Ceará, ele é um discurso que diz que tudo isso é mentira, que nada disso é verdade, que estamos trabalhando para criar uma indústria fantasmagórica de uma ilha de prosperidade.

Carlos Escosteguy: A família Queiroz [do grupo empresarial Edson Queiroz, dedicado principalmente à distribuição de gás GLP, possuindo também empresas de comunicação no estado] diz que é coisa de propaganda. Que estão gastando muito dinheiro para dizer que o Ceará funciona.

Ciro Gomes: Também. Tudo é propaganda, tudo é propaganda, exatamente. Que tudo é propaganda, que nós queremos criar ilusão de uma ilha de prosperidade que não existe. É por isso que, em que toda falação que eu começo, eu começo dizendo - e é verdade - que o estado do Ceará - e ninguém vai me apanhar nessa contradição - permanece sendo um estado agudamente pobre e quem quiser examinar as contas do Ceará e cotejá-las com qualquer entidade pública do Brasil certamente vai ver que nós somos um dos mais equilibrados.

Carlos Escosteguy: Pedro Cafardo.

Pedro Cafardo: Pois é, governador. O senhor disse que o estado só gasta o que arrecada. Tem uma máxima no país que diz exatamente o contrário: que só cresce, que só desenvolve quem tem capacidade de fazer dívida, de se endividar e, se o estado só gasta o que arrecada, não vai se endividar. Portanto, será que o desenvolvimento do estado, da população não será muito a longo prazo?

Ciro Gomes: Não. O grande conceito que se deve introduzir é o conceito de desenvolvimento sustentado. Você pode até fazer um fantasma de desenvolvimento à custa do endividamento irresponsável, com os juros exorbitantes que se tem hoje, e você passaria a ilusão de curto prazo, com um "obrismo" irresponsável, de que está fazendo desenvolvimento e, no dia seguinte, a conta vem - como está aí para o Brasil inteiro pagar as contas que se fez no passado no nosso país, como se está liquidando as contas do Estado, da União. E não deixamos de fazer o endividamento; apenas, a nossa matriz necessariamente é superavitária. O primeiro enfrentamento é com a poupança do estado. Hoje, temos [uma poupança] a 20% - vai a 23% - da receita corrente. Ninguém tem nada parecido no Brasil para enfrentar os nossos desafios. Com isso, aí sim, passamos a multiplicar a nossa presença. E nós somos, também - eu ouvi isso de um técnico graduado do BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] -, o estado que mais tem conseguido internar recursos per capita no Brasil, ou seja, dos recursos internacionais que o Brasil praticamente não tem conseguido acessar nos últimos anos, o meu governo já pôs 180 milhões de dólares, o que me permitiu fazer 1034 quilômetros de estrada em 24 meses; tem 600 km de estrada em execução hoje e - o que é importante - pelo menor preço do Brasil, pela introdução de mecanismos de moralização nos mecanismos de licitação.

Carlos Escosteguy: [falando junto com Ciro] Isso é importante o senhor falar: em menor preço, é isso que é o difícil de conseguir.

Ciro Gomes: O segundo empréstimo que entrou no Brasil nesse período também foi para Fortaleza: 265 milhões de dólares para saneamento básico, do BID. Em agosto, provavelmente, dando tudo certo, assinaremos mais 240 milhões de dólares do Banco Mundial para vazios hídricos e desenvolvimento urbano, um programa casado que nós essamos trabalhando com o Banco Mundial. Temos 90 milhões de dólares caminhando muito aceleradamente, de um grande projeto de educação, para financiar o nosso projeto de educação. E temos hoje, no Ceará, investimentos privados da ordem de 500 milhões de dólares em execução. Ou seja, parece-me que vale a pena romper essa lógica de gastar tudo hoje e o que venha depois que se vire. Não está certo, não está direito; temos que entender o estado como instituição permanente. O meu antecessor fez assim, eu estou procurando fazer assim, entregarei ao meu sucessor o estado equilibrado, sem contas para pagar e com recursos assegurados no caixa para seguir adiante.

Carlos Escosteguy: Agora, como se consegue o menor preço em estradas, hein, governador? Isso é uma coisa interessante, porque, se o senhor exportar esse know-how para o resto do Brasil... É uma nova fonte de renda, isso, nem precisa pegar dinheiro do BID.

Ciro Gomes: É muito simples, isso. O Ceará tem uma tabela pública de obras, serviços e fornecedores. São tabelas públicas; por exemplo, a companhia de energia tem todos os itens que ela regularmente compra numa tabela pública; a companhia de saneamento, a mesma coisa; o departamento de estradas, a mesma coisa. Então, quanto custa um quilômetro de estrada com tais características etc etc? Está lá a tabela pública. Essa tabela pública, em preços unitários, é cotada quando se vê um projeto global. Esse projeto global, então, tem um preço. A concorrência não aceita...

Pedro Cafardo: Quem decide o preço?

Ciro Gomes: É o mercado, Nós fazemos uma permanente atualização...

Carlos Escosteguy: Faz-se uma pesquisa de mercado?

Ciro Gomes: Isso. É pública; a tabela, primeiro, é pública, e ela é atualizada com, por exemplo, a [chamada] "Coluna 35" [da revista Conjuntura Econômica] da Fundação Getúlio Vargas [que contém um índice de preços de edificações] - estou aprendendo essas coisas.

Pedro Cafardo: Ah, sim. Ela é em cruzeiros?  [moeda vigente no Brasil entre 1990 e 1993]

Ciro Gomes: É em cruzeiros. Ela é atualizada por esses mecanismos, essas revistas profissionais, e aí cotejada periodicamente com a lógica do mercado. E é pública; se houver distorções, qualquer pessoa pode conhecer e denunciar. E é de preços unitários. Tem um projeto, uma estrada que liga Caririaçu a Juazeiro do Norte, que eu vou fazer agora, proximamente, encerrando um sonho de cem anos daquela região - e aproveitar ali para dar um abraço ao pessoal de Cariri, no Ceará -; então, cota-se qualquer quilometragem com aquelas características e tem-se um preço base; qualquer proposta 15% acima é excluída da cotação e o preço para baixo é em aberto. Como hoje há um processo selvagem de concorrência, as empresas estão mergulhando e nós chegamos ao recorde brasileiro de preço menor, só que fazendo um quilômetro de estrada com 65 mil dólares.

Carlos Escosteguy: Por que ninguém faz isso, hein, governador, em geral, se é tão simples?

Ciro Gomes: Bom, tem muitas questões aí. Essa questão, para ser vencida, precisa dessa força política ao redor, desse conjunto de valores ao redor. E tem outros problemas. Quer dizer, quando você permite que as empresas mergulhem com o preço, cresce muito gravemente a sua responsabilidade de fiscalização, porque ela poderá faturar uma concorrência com preço muito pequeno e depois tentar subornar um fiscal, tentar...

Pedro Cafardo: [interrompendo] O senhor paga as empresas em dia?

Ciro Gomes: Isso é outro fator fundamental...

Pedro Cafardo: Essa é uma questão fundamental.

Ciro Gomes: Rigorosamente em dia. Terminou dia 30, a fatura do mês entra e é pago. Rigorosamente em dia, tudo.

Carlos Escosteguy: O Heródoto tem uma pergunta e, depois, o Mário e o Alon.

Heródoto Barbeiro: Governador, o senhor falou aí em termos de gastos e eu até gostaria de retomar aqui um tema que o senhor já tratou no Opinião Nacional, um programa da TV Cultura. Fala-se muito, aqui no sul, na indústria da seca e o senhor chegou a tratar desse tema - e eu até queria que o senhor fizesse uma rápida comparação. Foram feitas muitas críticas aqui ao Departamento Nacional de Obras Contra as Secas [Denocs], que fura [poços] em propriedade privada e o cidadão paga 70% e os outros 30% são pagos pelos Denocs.

Ciro Gomes: É o inverso.

Heródoto Barbeiro: Ou o inverso. Eu perguntaria ao senhor o seguinte: é fato que, no Ceará, o senhor tem também uma empresa estatal do seu estado, que cava e fura poços de graça em propriedade privada e não cobra nenhum tostão?

Ciro Gomes: Não, nós temos lá uma Superintendência de Obras Hídricas que chama Sohidra e que fura poços. No meu governo, em 24 meses, já perfurou 500 poços - 487 poços era o último dado que eu tinha levantado. Todos esses poços são perfurados de graça e todos eles, sem exceção, são poços de servidão pública ou de uso público e/ou comunitário. É evidente que a questão fundiária é um entrave, porque o local - e aqui há um especialista em água, não é? -, o local onde tem água é uma fratura no cristalino [tipo de formação rochosa muito antiga], então só pode ser ali; se o solo em cima é propriedade privada - e como regra é -, é preciso desapropriar, em alguns casos, ou obter um termo de servidão pública. Aquilo não pode ficar privatizado e são todos poços de uso público e/ou comunitário. E, para resolver essa contradição - porque essa questão da água privada no Nordeste não pode ser abordada de forma preconceituosa, eu detesto o moralismo que, às vezes, é mero preconceito -, nós criamos um financiamento no Banco do Estado. O estado levanta dinheiro pelo preço que houver, convencional, dos créditos que são para o Nordeste - chama-se Fundo Constitucional -; o Banco do Estado toma esse dinheiro e o põe à disposição dos empresários, das pessoas privadas que desejarem perfurar poços. Levantando nas condições profissionais que existam em todos os bancos, ele levanta o dinheiro e perfura os poços, alugando as máquinas de quem quiser - as nossas máquinas não são alugáveis, elas só trabalham cumprindo a programação de poços públicos e/ou comunitários. E isso funciona no Ceará.

[dois segundos de silêncio]

Carlos Escosteguy: Magno Martins tem uma pergunta, por favor. E o Alon, em seguida.
 
Magno Martins: Governador, o senhor falou muito em investimentos no Ceará e no Nordeste de uma forma geral. O senhor tem sido um dos críticos muito duros em relação ao Finor [Fundo de Investimentos do Nordeste], mas há estudos do BNB [Banco do Nordeste do Brasil] que dizem que 17% dos recursos que chegaram para o Ceará em termos de investimento foram do Finor e que o Ceará só fica abaixo da Bahia em termos de investimento; 62% dos recursos destinados do Finor para o Nordeste estão também no Ceará. Quer dizer, a indústria no Ceará cresceu em torno do Finor. Então, não é uma posição muito dúbia do senhor, governador?

Ciro Gomes: Não, é uma posição muito clara. O que eu acho - e não posso desconhecer  - é que Finor cumpriu um papel muito importante. O Finor, as pessoas precisam saber, é um instrumento de financiamento em que o governo federal põe dinheiro público na sociedade com empresários privados para despertar empreendimentos. E isso, a rigor, não é uma coisa má, eu não sou daqueles neoliberais que defendem que o Estado nada tem a ver com a economia, não, até porque a gente sabe que ou há uma presença catalisadora ou não vai acontecer nada. Só que nós assistimos claramente - e eu assisto por dentro, no Ceará - um processo de distorção do próprio caráter normativo disso. Primeiro, cumpriu-se um papel - e ninguém negará que cumpriu um papel importante -; [mas] os mesmos recursos aplicados estrategicamente com outro padrão ético provocariam esses bons resultados e muitos outros. Hoje, eu acho que é preciso rever isso. O aparato normativo do Finor, a meu juízo, salvo... Respeito a opinião de todas as pessoas e nunca minha opinião deverá ser usada para o preconceito, porque eu defendo a presença forte indutora do Estado... - não burocrático, não dirigista, mas na formação de empreendimentos estruturais da economia, sem o que não vai acontecer, como não aconteceria a indústria siderúrgica no Sudeste, como não aconteceria a indústria automobilística em São Paulo, nada disso aconteceria se não fosse essa presença catalisadora do Estado, que precisa ser revista ao passar dos tempos. Portanto, minha opinião não deve ser nunca usada no preconceito. Mas acho que hoje o aparato normativo do Finor é absolutamente vulnerável a qualquer crítica. Não se sustenta, ao menor exame moral, a aplicação dos recursos do Finor. O que não se generaliza, tem gente séria, tem gente séria; eu estou falando do aparato normativo, não estou falando de pessoa nenhuma, não quero mais outras confusões além das que eu já tenho para enfrentar a função do meu compromisso de falar o que eu penso. Agora, você hoje tem orçamento de 300 milhões de dólares, aprova um bilhão e 200 milhões e no dia seguinte não há nenhum critério para dizer quem vai e quem espera. Instaura-se aí a dificuldade e a venda da facilidade. Depois, você pulveriza completamente esses recursos, financiando mal e parcamente empreendimentos, entrando, às vezes, com 1%, como aconteceu recentemente com o César Park de Fortaleza. Há dez anos, ou 11, ou oito anos atrás, entrou um empreendimento, 30% dos recursos eram do Finor. Nunca aconteceu. Acabou o empreendimento, está pronto, lá, um excelente hotel, reforçando a vocação turística do Ceará que as pessoas podem testar - é um estado belíssimo para as pessoas visitarem. 1%! Então, isso não tem sentido, na minha cabeça. O mesmo dinheiro aplicado estrategicamente elegendo três ou quatro ou cinco setores, a saber: minerais não-metálicos, agroindústria, turismo...

Magno Martins: O pólo têxtil do Ceará...

Ciro Gomes: ...o pólo têxtil e o pólo metal-mecânico. Esses cinco setores, eleitos assim, dando consistência, em cinco, dez anos, "vamos fazer disso aqui um lugar que resolva essas questões estruturais!" - com o mesmo dinheiro, tem muito mais conseqüências do que se tem hoje.
 
Magno Martins: Tem um senador do seu partido - só um minutinho -, que é o senador Beni Veras, que está defendendo a transferência do Finor para o BNB em Fortaleza.

Ciro Gomes: Não, a defesa dele não é essa. Inclusive, as pessoas o bombardeiam tão violentamente para tentar que o corporativismo da Sudene [Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste] se antagonize, que o justo direito que os pernambucanos, por quem temos toda a admiração, têm de lutar pela sede desse poder... Nós nada temos contra isso, o que nós defendemos é que, se a Sudene é um órgão de planejamento - e para nós, que somos sociais-democratas, a função de planejamento é mais relevante do que qualquer outra; ela, para nós, é entendida como o cérebro que delibera as coisas, portanto, tem todo o poder do mundo -, ela não deve misturar essas funções com a função de financiamento, de carimbar projeto. Por quê? Porque nós sabemos que, onde existe a função de planejamento junto com a função de financiamento, a função de financiamento cresce e come a função de planejamento - e ela acaba não acontecendo. Então, o que nós defendemos - e o Beni defende isso -, depois de muito estudarmos, é uma corporação financeira. Não precisa ser o Banco do Nordeste; é uma corporação financeira específica, sediada no Recife - que é um lugar que nós adoramos visitar e pelo qual temos um respeito muito grande; portanto, as pessoas não vão nos envolver nessa guerra menor, que não existe; nós não podemos permitir que isso aconteça, precisamos lutar juntos -, uma corporação financeira que, especializadamente, carimbaria os projetos contra garantias, assegurando retorno, a rotatividade desses fundos - que hoje, infelizmente, não acontece.

Carlos Escosteguy: Governador, antes de passar para o Alon, vou lembrar o senhor de que o senhor tem quase 75 minutos ainda para dizer tudo o que pensar...

Ciro Gomes: Perfeito.

Carlos Escosteguy: Se quiser arrumar alguma confusão, está bom, não tem problema.

[risos]

Carlos Escosteguy: Alon, por favor.

Alon Feuerwerker: Governador, o senhor está aqui construindo com o seu discurso - com o qual nós já essamos habituados -, continuando a construir essa imagem de ética, modralidade, eficiência, modernidade - uma palavra que até ficou um pouco desgastada nesse último período, mas é, basicamente, a sua mensagem. O seu partido, governador, é sócio majoritário no governo [do presidente] Itamar Franco [1992-1994], tem um bom lote de ministérios no governo Itamar Franco. Nas últimas duas semanas, o governo federal se viu envolvido em dois casos bastante delicados. O primeiro é essa promiscuidade entre o Ministério da Fazenda e o lobby de empreiteiras; e o segundo agora é esse caso dos amigos do presidente da República envolvidos no esquema de liberação de verbas sem licitação para implantação de telefones de Minas Gerais. Como o senhor compatibiliza essas duas coisas? O senhor e o seu partido procurando construir essa nova imagem política; e a participação majoritária o governo, que aparentemente não está muito interessada em verificar, em corrigir, em, de fato, moralizar a situação pública no país.

Ciro Gomes: Olha, eu acho...

Carlos Escosteguy: Desculpe, governador; só para complementar, o Eduardo Fiora, aqui de São Paulo, também telefonou - aproveitando a pergunta do Alon sobre a participação do PSDB no governo - em relação às críticas que o deputado José Serra [governador de São Paulo de 2007 a 2010] fez ao governo, pedindo uma reforma ministerial.

Ciro Gomes: Bom, nós achamos - e eu, particularmente, quero dizer isso antes de qualquer coisa - que a imagem deve ser a projeção da prática. Eu detesto esse juízo moralista, hoje as pessoas todas estão querendo um cara limpinho, arrumadinho etc. Eu não quero essa imagem, não; eu quero ser acompanhado, ser fiscalizado, serem vistas as minhas contradições e, no apanhado disso, aí sim, eu quero ser reconhecido como eu sou. Eu não quero uma imagem. E isso também é bom para encaminhar a resposta. O Brasil hoje tem uma situação concreta: nós giramos a roda institucional, fizemos o impedimento de um presidente da República [o impeachment de Fernando Collor (presidente de 1990 a 1992)] eleito por 35 milhões de votos em cima de um discurso que encantou a maioria da população brasileira - a mim, não, mas encantou a maioria da população brasileira - e depois virou uma enorme frustração, desmantelou a administração pública e projetou o caos, praticamente. O presidente Itamar Franco é conseqüência desse giro da roda institucional. Ele não deve favor a ninguém, compromisso a ninguém, não tem partido e é o fiador desse processo, queira ou não. Exercite isso ou não, é o fiador desse processo. No plano pessoal, eu, pessoalmente, acho que o presidente Itamar Franco é um homem honrado. E não tenho nenhuma razão até hoje, lendo como leio todos os jornais... Na minha convicção, ele é um homem honrado; até hoje, não há razão nenhuma para que eu entenda diferente. E também vejo nele boa fé, ele tem vontade de acertar. Isso não é o bastante, concordo completamente; de boa fé e honestidade, está cheio o inferno. Nós precisamos é de conseqüências na política, na economia.

Alon Feuerwerker: Então, o senhor acha que está faltando energia ao presidente para enfrentar essas questões? Que ele está se deixando envolver pelas questões e não as está enfrentando?

Ciro Gomes: Eu vou dizer aqui tudo o que eu acho. Eu vou dizer tudo que eu acho sem nenhum temor - até porque não há razão para isso. Então, eu acho que isso não basta, boa fé e honestidade não bastam, é preciso dar conseqüências a esses valores na vida concreta. Na vida concreta, nós temos um ano e seis meses nos apartando da próxima administração. Um ano e seis meses, 18 meses. Isso não é tempo suficiente para se fazer nenhuma mudança estrutural. O que o presidente Itamar Franco tem, portanto, são, a meu juízo, três tarefas. A primeira, garantir a normalidade institucional. Garantir a regularidade, o estado de direito democrático, para que nós possamos evoluir para 1994 dentro da lei, dentro da ordem, dentro do estado de direito democrático. Isso não é retórica, nós essamos aqui no coração da América Latina, vizinhos ao Peru, onde já aconteceu... [o presidente peruano Alberto Fujimori (1990-2000) fechou o Congresso do país durante 1992] Vizinhos, enfim, a outros lugares onde as coisas... E o Fujimori está aí como herói, como novo fenômeno da América Latina nessa coisa inquietante que é a conseqüência, no processo político, que uma autoridade, nesse ambiente populista em que nós vivemos, impacta na população. Primeiro isso. Segundo, acho que é tarefa indeclinável do presidente Itamar Franco garantir a ressauração da funcionalidade do serviço público. O serviço público brasileiro está uma zorra, foi destruído; as nossas universidades estão caindo aos pedaços; a infra-estrutura está caindo aos pedaços, tanto na área de energia quanto na área de estradas quanto na área de ciência e tecnologia, está um desmantelo generalizado; a rede pública de saúde vai pipocar agora, em junho, se é que já não estamos nos sinais eloqüentes de que isso está acontecendo, porque o orçamento acabou. A rede pública de saúde, a rede pública de educação - enfim, seria ocioso repetir, porque as pessoas estão vendo isso em todos os lugares. É tarefa indeclinável dele restaurar essa funcionalidade. E a terceira, garantir que nós atravessemos essa fase tão grave, tão delicada, sem um descontrole geral na economia, sem a explosão da temida e temível hiperinflação , que esterilizaria toda a poupança popular, que desarranjaria o sistema produtivo, desmantelaria o sistema de preços do país e que não deve ser nunca desejada, nem pelos cínicos que acham que, no dia seguinte, estaria a parte grande dos problemas resolvidos - porque isso é uma coisa inimaginável para quem conhece. São essas as tarefas. Ele não tem tarefa - a meu juízo, sempre dizendo -, não tem a tarefa de fazer casa, não tem a tarefa de construir estrada, não tem a tarefa de construir hidroelétrica, não tem nada disso, salvo o essencial. Eu acho que ele não deve sofrer de...

Carlos Escosteguy: Governador, mas e as críticas do deputado José Serra, do seu partido...

Ciro Gomes: Eu chego já, porque eu não terminei ainda de responder a pergunta dele. Diante disso, como se situou o meu partido, o PSDB? Nós estávamos na linha de frente do impeachment; no dia seguinte, é evidente, quadros nossos foram recrutados e, naquela emergência, sequer nos reunimos para deliberar. Hoje, cada vez que nós sentamos e discutimos, achamos o seguinte: que é melhor segurar. Porque é importante apoiar. Aí, o episódio Eliseu Resende [ministro da Fazenda de março a maio de 1993]. Bom, quem tem um pouco de paciência e acompanha as coisas todas, poderá notar a minha declaração no dia.

Carlos Escosteguy: [interrompendo] O senhor disse que ele não é do ramo.

Ciro Gomes: No dia, eu reclamei da substituição.

Carlos Escosteguy: Eu anotei a sua declaração.

Ciro Gomes: Eu reclamei da substituição...

Pedro Cafardo: O senhor apoiou a permanência...

Ciro Gomes: Hein?

Pedro Cafardo: Depois, o senhor apoiou a permanência.

Ciro Gomes: Só um minutinho. Eu disse, no dia, que não achava que houvesse acrescentado. Hoje, quando o presidente me chamou - inclusive, uma distinção pessoal ao Ceará também, eu estive presente -, eu disse, quando perguntado: "Presidente, eu acho que só o senhor tem as condições de saber. Se o senhor conhece e confia, não tem mais jeito, porque essas coisas da política têm um preço, têm um preço. Uma ou outra atitude... Se o senhor confia e acha que é, só o senhor delibera; se o senhor confia e aceita, eu apóio o senhor." Não é? "Apóio o presidente" - como apóio, realmente. Apóio realmente o presidente, isso é inequívoco, e é essa a questão. [Sobre] José Serra. Eu acho que hoje estamos vivendo, no país, um momento de grande passionalismo - e não é para menos, eu compreendo tudo isso, está todo mundo muito nervoso e as coisas estão ficando muito tensas na área política. O Serra - conheço a sua opinião -, o Serra quer ajudar, assim como eu, e acho que uma colaboração importante é não fraquejar, não ficar com essa coisa de não dizer o que pensa...

Carlos Escosteguy: [interrompendo] Mas, governador [fala junto com Ciro]

Ciro Gomes: Ele acha, basicamente como eu acho - só um minutinho! -, ele, acha, basicamente como eu acho, dizendo com outras palavras, que a equipe do presidente Itamar Franco o ajuda pouco. Eu acho isso. Salvo exceções, a equipe, acho que ajuda pouco.

Carlos Escosteguy: [interrompendo] Mas o senhor acha que, se mantiver, o senhor o apóia. Aparentemente, o deputado José Serra acha que, se mantiver, não vai funcionar...

Ciro Gomes: Não, na questão específica do Elizeu, nós temos a mesma opinião. Se o presidente confia, deve simplesmente proclamar para à nação a confiança e nós temos que cuidar do essencial. A inflação está assumindo contornos muito inquietantes, insuportáveis, a recessão está levando a vida do povo a um inferno, o desemprego está fazendo desse país um caldo de cultura absolutamente explosivo; some-se a isso alguns problemas setoriais ou regionais, como seca no Nordeste, como enchentes outros lugares, no Sudeste, como cólera, como outras coisas, greves no serviço público... Isso não vai dar certo.

Alon Feuerwerker: Mas, governador, o senhor não acredita que a inação do presidente da República agrava esse quadro? A inação do presidente da República não serviu para agravar esse quadro?

Ciro Gomes: Eu, certa feita, disse que achava - e acho - que o problema brasileiro tem tal tamanho que nós devíamos fazer o seguinte: [formar] algumas alianças táticas e eleger alguns conflitos e feri-los. E quem deve liderar isso é o presidente. E acho que é preciso "explosão". Eu também acho isso.

Alon Feuerwerker: Mas que tipo de explosão?

Ciro Gomes: Explosão... Não é explosão emocional, é explosão assim, não aceitar conviver com o cosmético.

Alon Feuerwerker: Mas o senhor poderia dar exemplos práticos de onde...?

Ciro Gomes: Economia. Fundamentalmente, na economia.

Carlos Escosteguy: Que conflitos o senhor elegeria, por exemplo?

Ciro Gomes: Hein?

Carlos Escosteguy: Que conflitos o senhor elegeria, por exemplo?

Ciro Gomes: Bom, no Brasil, hoje, está todo mundo convencido de que nós temos imposto demais. Por quê? Porque tem tanto imposto que as pessoas acabam achando que tem imposto demais - e eu até acredito que o número de impostos é muito.

Carlos Escosteguy: O número de impostos é demais.

Ciro Gomes: Mas hoje nós temos a menor receita pública de todas as economias organizadas do mundo, para financiar um quadro de despesas que estão proclamadas na Constituição como direitos fundamentais da população. Todos os brasileiros temos direito à saúde universal, à educação universal, temos direito à previdência universal, temos direito, enfim, a um conjunto de coisas que exige um volume de despesas de tal ordem que a coluna da receita não honra. E as pessoas querem fugir dessa discussão, porque o melhor é brincar de Deus: todos os direitos são proclamados e, na hora de pagar a conta, ninguém quer dizer quem vai pagar. Esse é o conflito essencial.

Pedro Cafardo: O que o senhor faria em termos de impostos?

Ciro Gomes: Gerencialmente, você tem que acabar com a sonegação, que é brutal. Espero que as pessoas não venham para cima de mim dizer "prove" - porque aqui no Brasil tem essas coisas, toda vez que você dá um fenômeno para dar uma opinião política, falam "prove, diga quem são os sonegadores"; e eu posso dizê-lo, é lá do Ceará, porque eu tenho alcançado alguns. Mas primeiro isso: a Receita Federal precisa ser reestruturada. É um escândalo o que se fez com a Receita Federal. Aviltaram-se os salários, desprofissionalizou-se a categoria, retiraram-se os mecanismos rudimentares de gestão tributária que já foram de uma grande excelência no país. Isso é preciso ser refeito, conservada a matriz tributária, na rendição de que o presidente não teria as condições políticas para se fazer o que se tem que ser feito realmente. O que eu acho inadiável, não se deveria esperar pela reforma constitucional [prevista pela Consttiuição de 1988 e que aconteceu durante 1993]. Na parte daquele capítulo das receitas do sistema tributário, deveria ser proposto já e responsabilizar o Congresso Nacional, democraticamente, debater de forma absolutamente popular essa questão, explicar para as pessoas: "Olha, o Brasil é como aquele casal de classe média que gastou demais, aí começou a usar o cheque especial manipulando datas, começou usar o cartão de crédito manipulando datas e, de tanto fazer isso, perdeu o cartão de crédito, perdeu o cheque especial, entrou na mão do agiota, o agiota está matando esse casal; até que um dia perde o crédito do agiota e, nesse dia, o casal senta e resolve duas coisas" - toda a família de classe média baixa brasileira está sofrendo hoje isso, radicalizar a mudança das despesas - "pega o menino que está na escola privada, bota na escola pública; pega o jantar que saía no fim de semana e não vai [sair] mais, fica só um por mês, e se tiver; pega dois carros, ou um carro e uma moto, vende uma moto; pega um sitiozinho não sei onde, vende para pagar o 'papagaio'; e, de qualquer forma, tem que aumentar a receita -  o cidadão vai fazer hora extra, a mulher faz hora extra, ou o cidadão vai vender sanduíche natural na praia." Isso é, sem precisar de economês nenhum, o que o Brasil está precisando fazer: tentar, como uma grande nação, como um grande país que está perdido, sem rumo, entregue na mão de meia dúzia de egoístas e decidir: nós quebramos!

Magno Martins: Quem são essa meia dúzia de egoístas, governador?

Ciro Gomes: Todos quantos... Ah, isso tem número!

[risos]

Ciro Gomes: O Brasil tem oitenta milhões de eleitores - eu vou dizer o número para você -, o Brasil tem oitenta milhões de eleitores; na hora de votar, de constituir o poder, somos oitenta milhões, todos vítimas da mistificação, da promessa demagógica, da mentira, do "deixa comigo que eu faço", "se fosse eu seria diferente" - como a gente, infelizmente, assiste no debate. Na hora de ver qual é a renda do povo, nós temos por "indicador" - porque isso não é o bastante para se saber -, se nós tivermos um indício de que quem tem renda é quem paga o Imposto de Renda, nós vamos encontrar quatro milhões de brasileiros no cadastro do Imposto de Renda; e, desses quatro milhões, dois e meio são assalariados com Imposto de Renda retido na fonte. [apontando sucessivamente para os entrevistadores] Você, você, você, eu... Sobra um milhão e meio que têm renda extra-salário. Esses mandam no Brasil e desmandam! Ocupam a situação e a oposição no espectro visível do processo político brasileiro.

Kaíke Nanne: [interrompendo] Governador...

Ciro Gomes: Ou se quebra isso ou não vai funcionar nunca, porque...

Carlos Escosteguy: Kaíke Nanne tem uma pergunta. Por favor.

Kaíke Nanne: Governador, o senhor fez, recentemente, algumas denúncias relativas à indústria da seca. O senhor apresentou nomes, inclusive. Seus opositores dizem que o senhor não tem provas de nada do que falou e é por isso que a sua bancada no Ceará, na Assembléia Legislativa, não apoiou a abertura de uma CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] da seca lá no Ceará.

Ciro Gomes: A questão é a seguinte. Vamos recapitular...

Carlos Escosteguy: José Carlos Serafim, de São Bernardo, também faz uma pergunta sobre a questão da indústria da seca.

Ciro Gomes: A primeira questão, para quem se interessa por isso - e isso é uma coisa muito importante de interessar a todos os brasileiros de boa fé - é a seca, não é a indústria da seca. A seca é um fenômeno climático? Sim, mas é um fenômeno que, sob o ponto de vista econômico e social, elimina a menor renda de comer de 8 milhões e 600 mil pessoas no semi-árido nordestino. E ela aconteceu, está aí, doída, terrível, machucando, infernizando, humilhando - matando, muitas vezes - as pessoas. Essa é a questão e, ao redor dela, temos que concentrar todas as energias de quem tiver boa fé nesse país - não só na região, no país inteiro. Dito isso, eu cheguei da América, onde eu fui lá no negócio da ONU [Organização das Nações Unidas] [quando Ciro recebeu o prêmio da Unicef, em 23 de abril de 1993], e a imprensa do Ceará me fez uma entrevista e, lá pelas tantas, alguém me perguntou: "O sr. ministro Alexandre Costa disse, no plenário da Sudene, que não existe indústria da seca. O que o senhor acha?" Aí eu disse: "O ministro, certamente um homem muito experiente na política, tem medo de reconhecer uma coisa dessas e ter sua palavra manipulada pelo preconceito que existe - e é verdadeiro, em algumas áreas da opinião brasileira - contra o Nordeste. Talvez por isso ele tenha se negado em afirmar um fato que, infelizmente, é verdadeiro: existe a indústria da seca." À força dessa pergunta, eu respondi, porque eu acho muito importante falar sobre a seca. Mas agora deu-se o debate. O ministro, então, zangou-se, mandou uma carta para mim - embora em termos, porque é uma pessoa com quem eu tenho uma relação cordial - dizendo que, se eu dizia que existia, eu estava obrigado, agora... A mesma história do delegado: "prove". Tem sonegação? "Prove." Tem indústria da seca? "Prove." Tem distorção no Finor? "Prove." Essa coisa, a mania de transformar o acusador em acusado, botar o camarada para se defender, que inibe muita crítica no Brasil, porque as pessoas não gostam de ficar nesse processo... Então, eu fui forçado, fiz um rápido apanhado ali, nos meus arquivos do processo - porque tem uma comissão no Ceará, funciona uma comissão estadual e comissões municipais desde maio do ano passado e essas comissões têm, fundamentalmente, a tarefa de eliminar as distorções e de prevenir as distorções, as tentativas de manipulação política, apropriações sob o ponto de vista econômico ou malversações puras e simples do dinheiro. E, aí, eu levantei rapidamente o que tinha nas comissões já apurado, punido e alguns em processo de apuração. Portanto, tudo lá é documentos - e mandei para o ministro. Está dito lá, por exemplo, que um camarada foi apanhado com um carro-pipa - carro-pipa é um caminhão que leva água para as populações que não têm água, e esses carros são remunerados pela quilometragem -, foi apanhado - isso seria risível se não fosse trágico -, foi apanhado um carro-pipa com o carro montado sobre um cepo de madeira e as rodas girando no ar, porque a quilometragem é apurada no velocímetro, que é selado, então o camarada encontrou essa forma: bota o carro em cima de um cepo e a roda fica girando no ar e a quilometragem rodando para ele receber. Tem esse e tem outros, outros casos.

Kaíke Nanne: Mas por que o PSDB não apoiou a abertura da CPI na Assembléia?

Ciro Gomes: Porque as pessoas que a propuseram - eu quero crer, porque eu, por exemplo, para mim tanto faz se deve se fazer ou deve não se fazer, porque aquilo é ocioso para mim -, a bancada lá achou - depois que eu disse "olha, talvez seja melhor apoiar logo" -, a bancada achou - e nisso eu acabo concordando - que as pessoas que propuseram a CPI da Indústria da Seca no Ceará não estão interessadas em apurar negócio de seca, estão interessadas em fazer política. Interessadas tão-somente em manipular esse fato e tentar invertê-lo: eu, que denunciei a existência da indústria da seca, deveria ser, agora, transformado em industrial da seca, como alguns deles acabaram falando. Porque há tentativas de intimidar, de calar a boca, porque eu vivo acostumado com isso.

Carlos Escosteguy:O professor Evaristo tem uma pergunta, por favor. Depois, o professor Aldo e, em seguida, o Flamínio.

Evaristo Eduardo de Miranda: [Sobre] essa questão da seca, hoje nós temos a oportunidade de esclarecer alguns pontos para a opinião pública que, sobretudo no sul do Brasil, são um assunto que tem mobilizado, realmente, a opinião. As suas declarações, acho que sempre foram oportunas nesse caso. Mas os indicadores que foram mostrado para o Ceará, sobretudo no início do programa, dão praticamente uma nota dez ao governo do Ceará. Agora, faltou um indicador importante aí, que é o indicador da agricultura. O Ceará, sobretudo no nível do semi-árido, apresenta hoje, talvez, a situação mais trágica da agricultura do Nordeste. Tem a mais alta taxa de migração rural para a cidade, mais de 20% de taxa de migração média, nos municípios; nós tivemos estudos que mostram uma descapitalização dos agricultores violenta no semi-árido, uma média de 13% a 15% por ano; e, finalmente, o declínio da agricultura do Ceará - naqueles indicadores que foram apresentados no início do programa, um grande indicador negativo seria o da agricultura, que está caindo no Ceará a mais de 10% ao ano, na atividade agrícola. E, quando a gente considera a questão do semi-árido, nós sabemos que a década de 1980 não foi uma década perdida para o Nordeste. Existe tecnologia, porque, no pior ano de seca no Nordeste, a chuva que cai é suficiente para se ter água para beber e há tecnologia para isso. É suficiente para garantir o mínimo de produção e de segurança alimentar. Alguns estados - como é o caso do estado do Sergipe, por exemplo - adotaram essas tecnologias simples, importantes para garantir uma certa resistência à seca para o homem da região. Tanto que hoje ele é quase penalizado por isso, porque não está recebendo tanta ajuda, porque não está tão crítica a situação da água etc em certas áreas da região do Sergipe. Agora, as minhas pergunta para o senhor seriam duas: por que esse declínio da agricultura do Ceará tão violento, sobretudo no semi-árido? E a segunda. Quando a gente olha os seus programas de parcerias etc, a gente vê uma ausência de propostas para o semi-árido até meio surpreendente para nós, da comunidade científica, porque o governo do Ceará está sendo inovador na área da saúde, na área urbana, na área da educação etc e, nessa questão do semi-árido, havendo toda uma série de alternativas simples disponíveis que até outros governos não tão inovadores estão aplicando... Por que essa ausência de uma política séria, estruturada para fortalecer a produção no semi-árido? A coisa mais divertida que eu acho - e concluo com isso - é, por exemplo, esse plano que foi feito para a cotonicultura, um plano de parceria muito bem feito no Ceará, excelente, só que não se implanta porque esqueceu-se de um pequeno detalhe nesse plano, que é a seca, não é?

Ciro Gomes: Sim, mas...

Evaristo Eduardo de Miranda: Não se planta um pé de alface. Esqueceu-se de uma realidade básica. Então, a minha pergunta é essa: Por que o declínio na agricultura do Ceará? E por que a ausência de um programa sólido, mobilizando as tecnologias que já existem, no caso do Ceará?

Ciro Gomes: Bom, é fato claro que a agricultura do semi-árido - não só do Ceará, mas de todo o Polígono das Secas - está afundando rapidamente na região. Não é só do Ceará. O Ceará talvez não tenha... E, certamente, não está conseguindo reverter solitariamente esse fenômeno. Ele, basicamente, deriva desse processo de esvaziamento que a economia rural do Brasil inteiro sofreu, rebatido com as condições locais. Nós tínhamos uma única cultura que capitalizava... Basicamente, a lógica de produção é produzir milho e feijão - são culturas de subsistência - e o algodão era a única cultura de ciclo longo que ocupava o homem no segundo semestre e capitalizava, chamava-se "o boi da pobreza". Na última década, em função de uma praga - chama-se bicudo -, praticamente as nossas culturas de algodão foram dizimadas. O Ceará na década de 1970 chegou a produzir 120 mil toneladas e somos hoje o principal pólo de fiação industrial do país; chegamos, quando eu assumi o governo, a 12 mil toneladas - quando eu assumi, o Ceará só produzia 12 mil toneladas, 10% do que já havia produzido. Além desse problema da praga, houve uma desorientação técnica: recebeu-se a indicação da Embrapa, na época, de que se deveria erradicar as matas do algodão arbóreo - que, inclusive, tinha um subproduto importante, que era o complemento forraginoso para a pecuária. Também agravou-se o problema da pecuária. De maneira que, em 1992, a economia do Ceará caiu 13,9% - a economia agropecuária. Ainda assim, nós crescemos de novo, no ano de 1992. O Brasil caiu 1%, o Nordeste caiu 2% e o Ceará cresceu próximo de 1%, porque a indústria de transformação, o turismo etc sustentaram o crescimento macroeconômico ainda em termos positivos. Por que está caindo? Porque os traços culturais que hoje ainda se praticam no semi-árido do sertão são aqueles herdados dos índios: você faz a queimada, você produz, planta milho, feijão e, como regra, não há nenhuma introdução nem de rudimentos tecnológicos, como a semente selecionada; é "olha para o céu, espia para o céu se vai chover ou se não vai chover". Se não chove, perdeu tudo, como aconteceu agora, de novo; e, se chove, ainda vêm pragas etc etc. E, se tudo dar certo, tudo o que você produz não tem preço e você acaba só tendo o que comer daquela sua produção.

Evaristo Eduardo de Miranda: Mas essa não seria uma razão a mais para se ter um programa inovador na região...

Ciro Gomes: Sim, mas eu quero crer...

Evaristo Eduardo de Miranda: ...já que alternativas existem?

Ciro Gomes: ...eu quero crer que alternativas existem. Por exemplo, nós temos um programa de semente selecionada [por causa do qual, enquanto] o Ceará importava 100%, hoje - salvo semente de algodão - o Ceará forma toda a sua semente selecionada. Neste ano, nós distribuímos 6.600.000 quilos - dá uma média de um quilo por habitante, ou seja, 33 quilos por cada produtor rural. Isso incrementava em 30%. Aí, você diz: "Mas não se deixou de cuidar da seca." Evidentemente: esse é um fenômeno indisponível. O que nós podemos fazer - acho que você deve conhecer também: nós temos um processo sofisticado, cada vez mais, de monitoramento de clima, função...

Evaristo Eduardo de Miranda: [interrompendo] Pois é, governador, mas a impressão que a gente tem, com esse seu processo de monitoramento - do qual eu até participo e tenho muita estimativa - é que o senhor tem o maior termômetro do Nordeste...

Ciro Gomes: Sim.

Evaristo Eduardo de Miranda: ...para medir a febre, mas o senhor não tem Melhoral [medicamento para febre] - quer dizer, o senhor não tem...

Ciro Gomes: [interrompendo]  Mas repare bem. Nesse componente...

[ambos falam simultaneamente]

Ciro Gomes: Mas nesse componente tem uma questão concreta. Veja bem. A distribuição espacial da população. O cidadão mora no [distrito de] Aracateaçu, em Sobral; o outro mora no distrito de Trapiá, no [município de] Forquilha. É ali que ele deseja produzir! Percebe?

Evaristo Eduardo de Miranda: Mas no Sergipe é igual, ele mora em Lagarto, em Porto da Folha, mas ele está tendo retorno.

Ciro Gomes: Não, mas Sergipe é completamente diferente. Perdoe-me, mas Sergipe é completamente diferente. O regime de chuvas de Sergipe é completamente diferente. Sergipe está fora do Polígono das Secas e não está no semi-árido.

[no trecho a seguir, as falas de Ciro e Evaristo são quase sempre simultâneas]

Evaristo Eduardo de Miranda: Não, o semi-árido do Sergipe faz parte do Polígono das Secas.

Ciro Gomes: Mas um pedacinho!

Evaristo Eduardo de Miranda: Mas eu estou falando desse pedacinho.

Ciro Gomes: Sim, mas o que é diferente?

Evaristo Eduardo de Miranda: Nesse pedacinho, a prioridade não é a agricultura.

Ciro Gomes: Ah, você quer dizer o quê? O que foi feito?

Evaristo Eduardo de Miranda: A prioridade é água para beber.

Ciro Gomes: Bom, então vamos falar de água? Ah sim, mas espera um pouquinho, vamos falar de agricultura e de água.

Evaristo Eduardo de Miranda: Mas se ele não bebe, ele não vai produzir nada - quer dizer, é condição básica.

Ciro Gomes: Não, não, tem que diferenciar, tem que diferenciar. Por quê? A produção rural tem que compor solo - nós somos um afloramento de cristalino com solos rasos, imprestáveis para agricultura de alta produtividade e, no futuro, certamente vai se mostrar que aquilo ali é inviável para se trabalhar com a agricultura. Você tem que descobrir outros caminhos e, quando for trabalhar com agricultura, trabalhar com agricultura de alta produtividade, que rende 15 mil dólares por hectare, como você tem lá no Ceará, no [município de] Ipu, produzindo uva, como você tem, na [região do] Apodi-Jaguaribe, uma mancha de solo específica que produz 3700 quilos de algodão por hectare e que gasta apenas 3% no trato químico do bicudo, que remunera todo o esforço de insumos básicos e que foi uma agricultura de alta rentabilidade.

Evaristo Eduardo de Miranda: Mas nós aqui, do Sul... O entrevistado agora colocou...

Ciro Gomes: Deixa eu terminar. Agora, a questão da água, a água.

Evaristo Eduardo de Miranda: Nove milhões de pessoas no semi-árido é muita pouca gente!

Ciro Gomes: Hein?

Evaristo Eduardo de Miranda: Nove milhões de pessoas no semi-árido...

Ciro Gomes: Oito milhões e seiscentas mil pessoas.
 
Evaristo Eduardo de Miranda: Nove milhões - estou pondo quatrocentos mil a mais -, nove milhões de pessoas é menos que a cidade de São Paulo. É essa a população que está sofrendo com a seca. Quer dizer, quando a gente manda uma ajuda para lá, se mandar nove bilhões, é uma quantidade enorme por habitante, não é? Agora, por que não se dirige isso num programa sério para que não se viva esse drama todas as vezes, já que tecnologia para que o homem tenha água de beber existe, não é cara e está implantada em muitos estados? Olha, propriedades, hoje, do semi-árido estão resistindo à seca com essas tecnologias simples.

Ciro Gomes: Então, vamos lá. O que fazer? Vamos lá...

Evaristo Eduardo de Miranda: No Ceará, nós não temos um exemplo.

Ciro Gomes: Não tem?

Evaristo Eduardo de Miranda: Em semi-árido de tecnologia simples, funcionando, nós não temos exemplos.

Ciro Gomes: No Ceará?

Evaristo Eduardo de Miranda: Nós temos na área irrigada, nós temos...

Ciro Gomes: Estou falando para você, nós temos a maior produção que tem na literatura; não há, na literatura...

Evaristo Eduardo de Miranda: Mas não de sequeiros, não é, governador?

Ciro Gomes: Não, espera um pouquinho. Sequeiros só se produz se houver chuva. Não há possibilidade de se fazer diferente na área de sequeiro. O que se produz na área de sequeiro, no afloramento de cristalino? Nada! Nada! Produzia algodão arbóreo, que é uma xerófila que resistiu.

Evaristo Eduardo de Miranda: Tem uma alternativa.

Ciro Gomes: Sequeiro, não.

Evaristo Eduardo de Miranda: Tem, tem.

Ciro Gomes: Sequeiro, não. Se você introduz alternativas de...

Carlos Escosteguy: Desculpe-me interromper os dois...

Ciro Gomes: Só um minutinho! Eu quero explicar.

Carlos Escosteguy:
...nós temos um conflito de opiniões: um acha que tem e o outro acha que não. Gostaria que o governador terminasse para poder chamar o intervalo.

Ciro Gomes: Veja bem, nós temos um programa estadual de recursos hídricos, que é o que deve lhe encantar em Sergipe. Nesses 24 meses, nós já fizemos, em matéria de manejo de água, 450 quilômetros de adutora, manejando a água de um canto para o outro. Funciona. Nós criamos lá um programinha chamado kit de irrigação. Kit de irrigação nada mais é do que um pequeno canhão de irrigação que irriga três hectares e meio e que, por isso, é suficiente. Hoje, é um componente, é energia. As culturas são tão baixamente rentáveis que estão parados 30% dos kits de irrigação que o governo do estado distribuiu, porque não remunera sequer o insumo da energia e há uma enorme pressão você fazer uma política de tarifa diferenciada - que ainda não está ao meu alcance realizar, porque é uma política formatada ainda centralmente, no Brasil. Pivôs centrais: temos 32 pivôs centrais, mas são duas coisas separadas. Quando você converge solo - que é absolutamente essencial, nem irrigação e nem nada funciona no semi-árido cristalino, no afloramento de cristalino não dá absolutamente nada. O que é possível fazer? São grandes extensões, modos associativos de produção; é você fazer um certo manejo de caprinos, de forrageiras que sejam capazes... de leguminosas, essas que podem ser complemento forraginoso, e olhe lá. E esperar o inverno, a chuva para plantar quilos de feijão e olhar para o céu. Não tem outro jeito.

Carlos Escosteguy: Governador, desculpe interromper, mas temos que fazer um rápido intervalo. Dois companheiros ainda não tiveram oportunidade de fazer perguntas no primeiro bloco, o Aldo e o Flamínio, mas terão oportunidade, sem dúvida, no segundo. O Roda Viva faz um rápido intervalo e volta daqui a pouco entrevistando hoje o governador do Ceará, Ciro Gomes. Até já.

[intervalo]

Carlos Escosteguy: Voltamos com o Roda Viva, que hoje está entrevistando o governador do Ceará, Ciro Gomes. Você que está em casa, se quiser fazer perguntas por telefone, pode chamar 252-6525. Governador, eu tenho aqui três perguntas de telespectadores de Fortaleza, cearenses, ligadas a um problema local, específico. A Cristina Magalhães, de Fortaleza, pergunta por que, na empresa Seproce [Serviço de Processamento de Dados] - Seproce, é isso? -, o presidente é primo da esposa do governador e demitiu sexta-feira alguns funcionários. José Seabra, também de Fortaleza, diz: "Sou funcionário do Seproce e, na próxima quarta-feira, entraremos em greve. Qual sua opinião sobre essa greve?" Adriano Torquato, de Fortaleza, presidente do Sindicato dos Profissionais de Processamento de Dados do estado do Ceará, faz uma pergunta longa. Refere-se a um fato: "Hoje à tarde, no aeroporto Pinto Martins, um grupo de funcionários do Seproce, em campanha salarial, perguntou ao senhor se tinha conhecimento da demissão de seis funcionários da empresa e o senhor respondeu que esses eram apenas os primeiros. Diante de informação de que o movimento dos funcionários era pacífico, o senhor retrucou que o movimento era anarquista e que toda anarquia seria reprimida. O senhor se diz um político democrata etc; por que chama de anarquista o movimento do Seproce ou desconhece o movimento dos funcionários do Seproce?"

Ciro Gomes: Não, eu não conheço a inteireza do movimento do Seproce; eu apenas fui avisado de que um grupo dos funcionários do Seproce – Seproce é Serviço de Processamento de Dados - pretendia agora, na vizinhança de rolar a folha dos funcionários, que são 108 mil, parar as atividades e não rodar no computador as folhas, prejudicando o pagamento de todo o conjunto de funcionários.

Carlos Escosteguy: Nessa greve de quarta-feira, agora?

Ciro Gomes: Isso foi o que eu ouvi falar. Liguei para o presidente do Seproce, que é um técnico conhecido no meio, perguntei a ele o que essava acontecendo e ele me disse que não, que estava tudo sob controle, que estava agindo de maneira a garantir. E eu disse a ele que agisse com mão de ferro - isso é o que eu penso que deve ser feito. Eu não aceito... Eu não disse que era anarquista, até porque não vi nada demais; o que eu acho é que instalar anarquia no Ceará ninguém vai fazer. Isso é o que eu estou dizendo. O que eu considero anarquia? É quebrar a possibilidade, por uma razão corporativa... Podem lá desejar melhores salários, isso é justo, é honesto, é procedente, mas usar para essa razão um poder que não é deles, de paralisar o estado inteiro porque controlam as máquinas de informática e impedir que todos os seus colegas recebam seus salários, isso não vou admitir absolutamente nunca.

Carlos Escosteguy: Como o senhor acha que esses funcionários poderiam encaminhar essas reivindicações?

Ciro Gomes: Ah, sim, negociando. Foi, inclusive, o que eu disse no aeroporto: procure o presidente e negocie.

Carlos Escosteguy: O professor tem uma pergunta, por favor, para completar a roda. Depois, o Flaminio.

Aldo da Cunha Rebouças: Eu queria voltar ao assunto da água, que foi levantado e que já muita gente diz que não é o problema do Nordeste, mas é...

Ciro Gomes: Mas é também.

Aldo da Cunha Rebouças: ...mas é uma moeda política muito forte.

Ciro Gomes: Certamente.

Aldo da Cunha Rebouças: E hoje o poço, inclusive, é o vedete dentro do espectro da moeda política, porque um poço é simplesmente uma moeda de votos. Diz-se que um poço custa cem votos, duzentos votos. É o valor de um poço. E eu perguntaria... O poço começou no Brasil, historicamente, como uma atividade essencialmente privada - inclusive, o Ceará foi líder; foi na época da província, no Império [1822-1889], que começou a perfurar seus poços a iniciativa privada. O poço só passou a ser propriedade do governo e atividade do governo com a República. E, com a Associação Brasileira de Águas Subterrâneas, nós fizemos um bom inventário e verificamos o seguinte: de todos os estados do Brasil, os do Polígono das Secas ou do Nordeste são os únicos que possuem máquinas perfuratrizes; todos os demais fora do Nordeste não têm perfuratrizes, não têm máquinas, não perfuram poços. Considerando que, realmente, na inovação da modernidade... Por que não se pretende acabar com as máquinas dos serviços públicos de estados, de prefeitura, de órgãos federais, que são os únicos no Nordeste?

Ciro Gomes: Bom, eu fiz o inverso, eu comprei mais máquinas.

Aldo da Cunha Rebouças: Então, aí, tem que explicar mais do que os outros.

[risos]

Aldo da Cunha Rebouças: Porque é uma arma política muito forte, o poço; e a máquina funciona realmente como uma espécie de cabresto eleitoral.

Ciro Gomes: Olha, existe uma piada corrente aí que talvez não seja próprio repetir aqui, mas que se refere a uma relação entre o sofá e um determinado tipo de procedimento pouco ético no plano da relação dos casais. Pronto, saí-me da piada sem contar, não é?

[risos]

Carlos Escosteguy: Pronto, o senhor só nos levantou curiosidade: disse duas coisas que ninguém entendeu e continuou a resposta...

Ciro Gomes: Não, não, é aquela... É que eu acho que não é próprio contar piada... Mas tem a piada...

Carlos Escosteguy: Por favor...!

Ciro Gomes: ... do camarada que encontrou a mulher traindo no sofá da sala e ele mandou tirar o sofá da sala. Então é um pouco, mutatis mutandis, para voltar um pouco à circunspeção que eu devo... E eu acho que seria assim. Pelo contrário, se você garante - e aí a democracia é o expediente, porque a democracia não é um regime de concessões, não é um regime paternalista -, se você garante que o governante eleito pela população é sadio moralmente, é sadio politicamente, então sua preocupação está esconjurada. De outra forma, se esse governante é deformado moralmente, deformado politicamente, o fato de alienar as máquinas só faz com que ele alugue máquinas por preços superfaturados. E a questão não é essa.

Aldo da Cunha Rebouças: O problema não é da máquina.

Ciro Gomes: Claro, a questão não é essa. O problema é o seguinte: qual é a política de recursos hídricos do Estado? O acesso a água subterrânea - você, como especialista, sabe -  é fundamental na região. Então, uma parte dessa política tem que ser formatada pela política pública. Como? Aí, sim, você não pode privilegiar, você não pode... Tem que ter critérios. Estabelece-se os critérios, dá-se um controle social sobre esse processo e isso acontece. O fundamental é que a água seja produzida.

Heródoto Barbeiro: Nessa linha do senhor...

Carlos Escosteguy: Desculpe, Heródoto, só encerrar a roda. O Flaminio não fez nenhuma pergunta ainda; a gente volta em seguida.

Flamínio Araripe: O senhor soltou exemplos da indústria da seca que estão mais para artesanato do que para indústria, umas coisas pequenas que são venda de ticket de feijão - quarenta tiquetes foram falsificados...

Ciro Gomes: Não, quarenta tiquetes, o inquérito apanhou; sei lá quantos foram, não é?

Flamínio Araripe: Não queria nem queria vender. Então, ficou a expectativa de que viessem os casos, mesmo, dos industriais, das coisas grandes, não é? E eu me lembrei de que o senhor tem dito que o Dnocs faz o metro cúbico de barragens a nove vezes o preço...

Ciro Gomes: Três vezes.

Flamínio Araripe: ...a três vezes mais. Quais são os exemplos disso? Outra coisa que eu quero saber...

Ciro Gomes: Um exemplo que eu vi - foi quando eu fiquei chocado com a notícia - é que o açude Pacajus, próximo a Fortaleza, custou nove dólares por metro cúbico de terra compactada e o último grande açude, que foi o Edson Queiroz, feito em Santa Quitéria [CE], custou 27 dólares por metros cúbico de terra compactada.

Flamínio Araripe: Isso é indústria da seca?

Ciro Gomes: É corrupção. É corrupção. Veja bem, a indústria da seca... Eu fiz obediente àquele ofício escrito do ministro. O ministro disse assim: "Se o senhor é o governador e presidente da Comissão Estadual do Programa de Frentes Produtivas de Trabalho, o senhor está obrigado a esclarecer em que bases está afirmando que tem." Eu acho que isso é um fenômeno cultural que está diminuindo gravemente. No passado, isso era um horror. Isso, no passado, era um desastre completo. Fortunas enormes se constituíram à base disso. Hoje, diminuiu-se muito. À força da democracia, da participação; a presença de sindicatos organizados e a Igreja Católica têm dado inestimável contribuição e o fenômeno diminuiu muito. Apenas, seria impróprio dizer que não existe mais, porque, nesse caso, você estaria sancionando uma coisa que é verdadeira, que ainda acontece. Por exemplo - aí, citei -, de malversação de dinheiro público, aqueles dez casos que eu peguei - só para não ficar chato, peguei dez casos e mostrei. São, cada um, se você ler direitinho, típicos de práticas assim, meio repetidas.

Carlos Escosteguy: Para ficar chato, que exemplo seria, governador?

Ciro Gomes: Hein?

Carlos Escosteguy: Para ficar chato, que exemplo seria?

Ciro Gomes: O seguinte. O cidadão tem um supermercado, uma bodega, um armazém lá no interior, mancomunado com um funcionário do estado e obriga todos os camaradas que estão alistados nas frentes produtivas de trabalho - que é o novo nome que se deu - a comprar, quer dizer, recebe vales ao longo do tempo, desde que sejam descontados nos supermercados do fulano de tal. Quando chega o pagamento, é só entregar na mão do bodegueiro ou na mão do armazém. É um exemplo.

Magno Martins: Essas frentes estão funcionando no Ceará?

Ciro Gomes: Estão, estão funcionando.

Magno Martins: Quantos tem, hoje?

Ciro Gomes: 250 mil famílias trabalhando.

Magno Martins: O Ceará tem recebido esse dinheiro do governo?

Ciro Gomes: Nós essamos trabalhando nesse programa desde maio do ano passado, com recursos próprios do estado. Neste mês de abril, o presidente Itamar Franco mandou uma contribuição para o Nordeste inteiro e o Ceará tocou 18%...

Magno Martins: No valor de quanto...?

[...]: Como é possível combater, governador?

Ciro Gomes: O valor do programa todo, 4,7 trilhões.

Magno Martins: Não, nessa primeira etapa que a Sudene...

Ciro Gomes: 280 bilhões.

Kaíke Nanne: Governador, como é possível combater a indústria da seca se, na Presidência da Câmara dos Deputados, a gente tem Inocêncio de Oliveira, um dos mais notórios representantes dessa...

Carlos Escosteguy: Poço de inocência!

[risos]

Ciro Gomes: Olha, eu acho que - repito um pouco o que eu falei aqui - a democracia não é um regime de concessão. Ninguém vai fazer democracia achando que vai cair do céu a democracia. Democracia é um processo penoso, contraditório e nós temos que insistir nele, porque não há outro digno das coisas.

Kaíke Nanne: Mas como o senhor avalia a conduta do deputado Inocêncio?

Ciro Gomes: Olha, eu acho que não é um bom exemplo para o país. Eu não acho que é bom exemplo, não.

[sobreposição de vozes]

Carlos Escosteguy: Heródoto, por favor.

Ciro Gomes: Esse episódio calhou muito mal.

Carlos Escosteguy: Por favor, para não interromper.

Heródoto Barbeiro: Governador, estive até conversando com um político da oposição ao senhor, lá no Ceará, e ele disse o seguinte: que a oposição está impedindo o senhor de publicar a relação das pessoas que receberam poços ou açudes ou cacimbões construídos pela Secretaria Estadual de Recursos Hídricos.

Ciro Gomes: Mas isso é público.

Heródoto Barbeiro: É público. O senhor publicou essas...

Ciro Gomes: Todos, todos os poços, todos os açudes, todas as intervenções, são todas públicas. E, se duvidar, talvez uma parte delas esteja por aqui, [...], aí em cima. Não de poços, que são quinhentos, mas de açudes tem todos aí. Eu costumo... E agora isso aí é meu hábito, eu desaproprio... [Para] açude, nem termos de desapropriação eu faço mais; estou desapropriando a área, fazendo-a pública. Poços, não; poços, todos eles [têm] um termo de servidão pública. A saber, qualquer um...

Carlos Escosteguy: Magno.

Magno Martins: Governador, o que a gente tem lido e acompanhado pela imprensa, de um modo geral, é de que realmente, o Ceará, é uma ilha e lá está dando tudo certo. Mas, em 1988 - inclusive, tem político sério, o senhor está fazendo um governo sério, está sendo um exemplo para o país -, mas eu me lembro de que, em 1988, o ex-governador Tasso Jereissati foi envolvido numa denúncia em relação à Receita Federal de notas frias e virou até um escândalo nacional. E o senhor é um governador que gosta de formar frases de efeitos, inclusive dar manchete de jornal.

Ciro Gomes: O senhor acha?

Magno Martins: O senhor disse, por exemplo, que tem nojo dos políticos.

Ciro Gomes: Hã-hã. [concordando]

Magno Martins: Esse episódio do Tasso... O senhor tem nojo do Tasso?

Ciro Gomes: Não, de jeito nenhum. Porque - na época, eu era líder do governo na Assembléia -,  essa denúncia foi exposta lá e nós tivemos ocasião de ver mais uma vez como é que um homem público sério e honrado age. Mandou devassar todas as empresas, pediu que a Receita Federal fosse e voltasse, todas as notas foram revistas e vistas e, no fim, ficou proclamado, claramente, que o Tasso essava limpo e que não tinha essa questão.

Carlos Escosteguy: Governador, eu tenho aqui várias perguntas de telespectadores sobre um tema mais ou menos comum, que é o separatismo, sobre o qual, inclusive, o senhor andou falando recentemente. Leila Rosemary Teixeira, de São Paulo, e Analice Martins, também de São Paulo, perguntam a sua opinião sobre o separatismo; Maria Cleide da Silva, fala um pouco sobre o preconceito em relação aos nordestinos; Renato Chibocana, de São Paulo, [pergunta] como o senhor vê essa imagem que existe, [segundo a qual] os estados do sul carregam economicamente os estados do Norte e Nordeste; Marilena Lombo [pergunta] se é verdade que o prefeito de Sobral [Francisco Ricardo Barreto Dias] está pagando para as pessoas de lá virem para São Paulo; e Eliel de Lima, de Campinas, [pergunta] como o senhor, um político nordestino, se sente vendo seus conterrâneos criticados e menosprezados pelos estados do sul. Quer dizer, é um pouco a questão do separatismo e do preconceito contra os nordestinos.

Ciro Gomes: Olha, eu acho que esta questão é muito importante neste espaço e peço um pouco, até, a paciência de todos e dos telespectadores, especialmente. [olhando para a câmera] O Brasil, nosso país, só tem uma razão bastante visível, inequívoca para que nós sonhemos em, sem muita demora, sermos uma nação justa, desenvolvida, equilibrada e que dê, que distribua justiça para seus filhos. Há muitas razões, mas uma é indiscutível: é a nossa unidade. A unidade nacional. Unidade com a diversidade cultural, unidade com a diversidade de micro-sistemas ecológicos, unidade que nos garante a maior fronteira agrícola do mundo, unidade que nos garante o maior acervo de biodiversidade do mundo, unidade que nos garante o maior mercado interno potencial do Terceiro Mundo, unidade que nos garante a maior diversidade de matérias-primas fundamentais para o desenvolvimento, unidade, enfim, que garante um conjunto de potencialidades que raras nações no mundo têm e que nós temos. Um país que não tem divergências fundamentais no plano étnico, um país que não tem divergências fundamentais no plano religioso, um país que tem uma única língua numa imensa extensão populacional territorial. Não há razão... Eu quero, inclusive, me penitenciar. Na última vez em que toquei nesse assunto, eu essava chocado, mas muito chocado com a notícia covarde de que grupos neonazistas em São Paulo espancaram até morrer um cearense lá de perto da minha cidade. E eu até cometi uma grande bobagem e queria aproveitar o espaço para pedir desculpas, porque, transtornado, eu acabei dizendo, fruto de preconceito descabido, que isso era coisa de homossexual, como quem dissesse um palavrão. E eu disse nisso uma grande bobagem, cometendo um desrespeito a um grupo de pessoas que, sendo homossexuais, nada têm a ver com isso. Aproveito este espaço para pedir desculpas. Mas, realmente, eu essava transtornado e meu preconceito não cabia, foi uma coisa da qual eu devo pedir desculpas. Mas é uma coisa que me comove profundamente. Até porque eu sei, mas eu sei por dentro... Eu tenho uma trajetória um pouco interessante, meu pai foi migrante, saiu de Sobral, no interior de Ceará, veio estudar...

Carlos Escosteguy: Aliás, duas pessoas perguntam: Benedito Siqueira e Maurício Soares, aqui de São Paulo. Como é que o senhor nasceu em Pindamonhangaba e foi ser governador do Ceará?

Ciro Gomes: Vou explicar. Uma das coisas que me comovem é minha origem pessoal. Meu pai foi migrante, veio estudar no Rio de Janeiro, depois conseguiu passar num concurso e ficou trabalhando em Adamantina, lá no sul de São Paulo. Minha mãe é de Pindamonhangaba, no Vale do Paraíba, aqui em São Paulo, e também professora pública. Conheceram-se e eu nasci em Pindamonhangaba. Com três anos de idade, meu pai voltou para o Ceará - que é a vontade de todo cearense; quando sai forçado pelas condições hostis, vem com muita vontade de voltar. As pessoas vêm trabalhar porque lá não conseguem trabalhar e minha obstinação é que muitos cearenses possam voltar para os Ceará todos os dias. E, quando voltamos, eu fui formado no interior do Ceará e conheço muito essa coisa. Então, não há, senão no preconceito mais chulo, no racismo mais absurdo, cabimento para uma coisa como essa de repartir o Brasil. Nós precisamos reagir; todos os brasileiros que têm sentimento de justiça, esses que estão chocados com o exemplo deplorável de mau comportamento de uma fração de políticos marginais - que não estão só no Nordeste, estão no Brasil inteiro - que devem ser responsabilizados por toda essa destruição dos conceitos, da esperança da população, mas nunca botando brasileiro contra brasileiro, repartindo essa grande riqueza, esse patrimônio sem igual no mundo, que é o nosso país. Isso é o que eu acho e é alguma coisa [pela qual] eu tenho lutado.

Alon Feuerwerker: Governador...

Carlos Escosteguy: Por favor, Alon.

Alon Feuerwerker: Governador, o senhor defende que o presidente Itamar Franco faça uma reforma ministerial? O senhor...
 
Ciro Gomes: Sim.

Alon Feuerwerker: Quais seriam os critérios para compor o governo nessa reforma que o senhor está propondo?

Ciro Gomes: Eu acho que o presidente tem uma equipe que o ajuda pouco. Salvo exceções e sem querer particularizar o nome de ninguém, porque, senão, depois vem "aponte quem é, diga você quem é!" - e estou cansado dessas coisas...

Alon Feuerwerker: Os amigos de Juiz de Fora  [cidade onde Itamar cresceu], por exemplo...

Ciro Gomes: Não, não vou particularizar nem aqui. Eu acho que o presidente, no presidencialismo, é quem tem o juízo de ocasião, de conveniência e de oportunidade. É indelegável, ele que sabe. Agora, eu penso que a equipe dele, como regra, o tem ajudado pouco. Ele não construiu esse caos que está aí; o buraco que está aí, não foi o presidente Itamar Franco quem construiu. Agora, é evidente que nós todos esperamos que ele inicie a solução e, para isso, ele precisa de mãos, de talentos, de energias. E eu - aí, é desagradável você dizer isso -, eu, no lugar dele, recrutaria fora dos partidos...

Alon Feuerwerker: Um ministério de notáveis?

Ciro Gomes: Um ministério de alta qualidade intelectual, de alta qualidade moral, inatacável sob o ponto de vista ideológico ou político e pessoas, respeitáveis, que ocupariam as posições todas - que achasse necessárias, porque algumas pessoas estão indo bem. Ele é que é o juiz dessa coisa. Ocupariam para poder atravessar essa toada difícil, assim como o Serra acha...

Magno Martins: Governador, o senhor acha que uma reforma ministerial... O Paulo Maluf [governador de São Paulo de 1979 a 1982] é candidato, outros candidatos já estão na rua, a sucessão de Itamar já está nas ruas...

Ciro Gomes: O que é uma irresponsabilidade enorme.

Magno Martins: O senhor acha que essa reforma ministerial adianta alguma coisa, se as campanhas já estão na rua?

Ciro Gomes: Veja bem, no presidencialismo, o quadro de ministros é simbólico de algumas coisas, de alguns valores, de alguns conceitos e é simplesmente a ferramenta para que você trabalhe. É nesse sentido. Nada a ver com sucessão presidencial, que eu considero irresponsabilidade discutir agora.

Pedro Cafardo: Governador, o senhor falou sobre a questão institucional. Essa seria, na sua opinião, uma das tarefas principais, uma das três que o senhor citou, do presidente Itamar: garantir a estabilidade institucional. E, nas últimas semanas, nos últimos dias, a gente tem visto artigos de militares até o brigadeiro Ivan Frota escreveu um artigo falando sobre o descontentamento nas Formas Armadas e coisa e tal. O senhor acha que há um risco de uma ruptura institucional?

Ciro Gomes: Não, não creio nisso. Nós atravessamos um quadro de grande instabilidade nesse processo de impeachment e saímos um país extraordinariamente amadurecido. As pessoas estão meio pessimistas, meio para baixo no Brasil, mas eu vejo um pouco as coisas do outro lado. O Brasil saiu enormemente amadurecido, nossa sociedade amanheceu mais crítica, menos vulnerável à crendice política de que nas mãos de um "salvador da Pátria" qualquer possa estar a solução de nossos problemas; os juízos coletivos se sedimentaram muito, a nossa juventude foi para as ruas e não se quebrou uma vidraça. Isso é tudo, para mim, é o atestado de que nós amadurecemos. É evidente que isso não nos vacina definitivamente [contra] as nossas tradições; nós estamos na América Latina, na América do Sul - o Fujimori já aconteceu, essas coisas todas - no vazio, no buraco. Eu acho que, entre as alianças táticas que se precisa fazer, está uma questão muito frontal de profissionalização das nossas Forças Armadas. Não é possível a gente ficar com as Forças Armadas sem dinheiro para comer, sem um mínimo de equipamentos, sem roupa, com soldado só andando de chinelo; isso não interessa para o Brasil. Nós precisamos encarar, dar um jeito e resolver isso. Ao mesmo tempo, é preciso cumprir o regulamento. O cidadão lá de quepe transgrediu o regulamento? Três ou quatro dias de xilindró, que é um santo remédio.

Pedro Cafardo: O senhor acha que [a origem do] descontentamento é apenas salarial, nessa área das Forças Armadas?

Ciro Gomes: Não, essa é uma coisa que exaspera. E as Forças Armadas foram fiadoras desse processo todo. Eu acredito que hoje, as lideranças militares do Brasil, a grande maioria do corpo militar brasileiro está, como a sociedade brasileira, amadurecido para a necessidade de sedimentarmos a ordem democrática, o Estado de direito. Sem dúvida. Uma das coisas que exaspera o ambiente militar - e isso é preciso ser falado com franqueza, nós brasileiros todos temos interesse nisso - é que não é possível, no plano de salário, no plano... No salário, todo mundo está sofrendo, então vê aí o que é equilíbrio; mas, no plano de equipamento, no plano de roupa, de comida, essas coisas, não pode deixar. Não pode, isso é uma coisa que não tem cabimento.

Carlos Escosteguy: Professor, por favor...

Ciro Gomes: De onde vem o dinheiro? Vamos nos virar, vamos resolver - mas não pode deixar.

Aldo da Cunha Rebouças: Governador, vamos voltar um pouco à água?

Ciro Gomes: Vamos.

Aldo da Cunha Rebouças: Porque o problema do Nordeste, fundamentalmente, é um problema de desemprego.

Ciro Gomes: Sim.

Aldo da Cunha Rebouças: E todo mundo migra para as capitais e para cá em busca de melhores condições por falta de trabalho. E nós sabemos que lá temos água; inclusive, o Ceará detém praticamente 70% do volume estocado nos açudes, segundo os dados da Sudene. E, dentro do seu discurso de modernização, pouco tem sido feito nessa área. Não vemos, realmente, nenhum progresso efetivo na produção efetiva agrícola, e o que nós vemos talvez seja um legado, assim, um pouco desestimulante. Por exemplo, desde o início do século que tentam irrigar o Nordeste, que os órgãos públicos tentam irrigar. Quando a gente visita a China, vê que a irrigação é em pequenas parcelas, de cinquenta hectares, trinta hectares. No Nordeste, a gente tenta fazer logo grandes monumentos, grandes projetos de milhares de hectares, centenas de milhares de hectares. Nós vemos, por exemplo, um projeto de irrigação na Espanha, que há praticamente três funcionários para cada mil hectares. No Dnocs, nós temos praticamente o inverso, mil funcionários para três hectares.

Ciro Gomes: Não vai a tanto!

Aldo da Cunha Rebouças: Não vai a tanto, mas vai cem. Vai uns cem funcionários por hectare. É uma desproporcionalidade muito grande e cria um mito que tem prejudicado, inclusive, o homem da iniciativa privada em investir. Porque criou-se o mito de que é inviável fazer agricultura, é inviável irrigar, é inviável produzir-se. O que é que vamos fazer para resolver, para sair desse impasse...?

Ciro Gomes: Bom, sou governador há 24 meses, inteirei 25 meses agora dia 15. 25 meses, são dois anos e um mês. O nosso estado, o estado do Ceará é o único estado da região inteira que tem um plano estadual de recursos hídricos, com tudo pensado, todas as integrações!

Aldo da Cunha Rebouças: O segundo do Brasil.

Ciro Gomes: É, São Paulo, e o segundo é Ceará. Sendo que o do Ceará é mais novo; o de São Paulo está um pouco desatualizado, porque não tem sido atualizado e o nosso saiu agora, recentemente. No fim do governo do Tasso, no começo do meu, foram consolidados. Conhecemos todas as intervenções, está tudo pensado. Graças à execução dessa estratégia, o meu governo foi capaz de acumular - ou pelo menos preparar acumulação, porque não choveu - o equivalente ao que se fez com recursos do estado nos último cinqüenta anos. São açudes, médios açudes - porque nós hierarquizamos nesse plano: as grandes intervenções [são] federais; as pequenas intervenções [são] locais; as médias intervenções, aqueles açudes perenes que atravessam dois anos de seca sem secar, aqueles que perenizam em rios, aqueles que permitem o uso múltiplo de irrigação, uso humano, consumo animal etc, são da tarefa do estado. Já está pronto, são 14 grandes barramentos que estão prontos, todos eles com essa lógica que nos permitiram... Inclusive, um deles em Fortaleza, próximo, que é para complementar a lógica do abastecimento de Fortaleza, que está em colapso, só a 13% do sistema, porque não choveu, realmente. Introduzimos a lógica do manejo de águas, que são adutoras, transferindo bacias. São hoje quatrocentos, quase quinhentos quilômetros de adutoras; inclusive, a da Ibiapaba, 74% está pronta, resolvendo o problema de uso da água do Jaburu e abastecendo - eu falo, porque ele é cearense e conhece a região inteira - e continuamos trabalhando, obedientes a essa estratégia. Irrigação, nós já fizemos cinco pequenos módulos, e aí nós pensamos um pouco diferente, concordando com você. Um grande projeto de irrigação, caríssimo, onerosíssimo, com problemas de comercialização insolúveis, problemas de organização da produção que já se tentou [resolver] com kibutz e falhou, já se tentou com cooperativa de cima para baixo e falhou... Hoje, nós temos uma outra lógica. Nós estamos trabalhando... Por exemplo, o realejo em Crateús já é um perímetro emancipado, são cinqüenta hectares em que as pessoas estão crescendo a sua renda per capita assustadoramente... Quer dizer, assustadoramente é...

Carlos Escosteguy: No bom sentido.

Ciro Gomes: Mudamos o perfil de consumo. Fizemos a irrigação muito simples das várzeas do Iguatu, por detrás do açude de Orós, e fizemos o Ceará auto-suficiente em abastecimento de arroz. [apontando para Evaristo Eduardo de Miranda] Em agricultura, está acontecendo alguma coisa, eu só vou me lembrando aqui: éramos 100% importadores, hoje somos auto-suficientes na produção de arroz, tem 27 usinas processando arroz em Iguatu e, nessa área, também mudou o perfil de renda. No Apodi-Jaguaribe, que era um projeto federal que estava paralisado, nós conseguimos, com o ministro [da Agricultura Antônio] Cabrera [1990-1992], ainda no governo passado, os recursos - tem 32 pivôs centrais funcionando com alto padrão de produtividade. Estamos trabalhando [na região do] Araras Norte, lá nas nascentes do rio Acaraú, também em projetos de irrigação. E de nosso tem o [projeto] Xique-Xique, em Alto Santo, que tem 125 hectares, é o maior de todos; tem o Tucunduba; tem o Graça - quer dizer, são vários projetos.

Aldo da Cunha Rebouças: Eu sei, mas existe uma tendência a... o pivô central, segundo os mais recente entendimentos, não seria nada adequado, porque é um desperdício.

Ciro Gomes: Não, é bobagem.

Aldo da Cunha Rebouças: ...desperdício violento de água...

Ciro Gomes: É bobagem, não é não...

Aldo da Cunha Rebouças: ...e, realmente, teria que se buscar uma outra solução.

Ciro Gomes: Depende de gerência.

Aldo da Cunha Rebouças: Um outro ponto, também. O Barão de Capanema [Guilherme Capanema (1824-1908), nascido Guilherme Schüch, na Áustria, engenheiro e cientista responsável pela instalação da primeira linha telegráfica do Brasil], em 1860, foi uma vez instado pelo Império a fazer um relatório sobre o Nordeste. E dizia que um dos problemas que deveríamos corrigir era o da construção do açude pelo açude, sem um objetivo hidroagrícola. E, como tal, Orós foi construído em local inadequado, está lá afogando a maior área irrigável do Ceará, está...

Ciro Gomes: Mas ai do Ceará se não fosse o Dnocs!

Aldo da Cunha Rebouças: O Dnocs é mais um símbolo, não é?

Ciro Gomes: Dnocs não, o Orós...!

Aldo da Cunha Rebouças: O Orós, desculpe, é o Orós... É o Orós que está afogando...

Ciro Gomes: Pela tradição, poderia dizer também do Dnocs. A distorção do Dnocs é institucional, mas o Dnocs foi de grande valia para a região.

Aldo da Cunha Rebouças: Foi, tem seus frutos.

Ciro Gomes: Setenta anos de vida.

Aldo da Cunha Rebouças: É, tem muitos espinhos, mas tem alguns frutos lá dentro daquele espinhal.

Ciro Gomes: É.

Aldo da Cunha Rebouças: Então, desde 1860 que o Barão de Capanema já insistia: é preciso só construir o açude quando ficar comprovada a sua utilidade de...

Ciro Gomes: Tinha razão, o Barão.

Aldo da Cunha Rebouças: Em 1860 ele já dizia isso. Inclusive, dizia para o imperador que não mandasse dinheiro se o projeto não indicasse primeiro o que vão fazer com a água.

Ciro Gomes: Hum-hum. [concordando]

Aldo da Cunha Rebouças: E nós estamos hoje lá com um verdadeiro oceano de águas, cinqüenta e tantos bilhões de metros cúbicos, e salinizando muito por falta de uso. Muita coisa salinizando por falta de uso, porque não se usa e a evaporação concentra o sal.

Ciro Gomes: Hum-hum. [concordando]

Aldo da Cunha Rebouças: E eu tenho visto muita confusão, muita propaganda do Nordeste que vai sair, vai sair, mas o que a gente vê, fundamentalmente, é a agricultura embasada ainda em arroz, em feijão e em milho onde nenhuma irrigação no mundo consegue viabilizar para esse tipo de cultura. Não estaria na hora de inovar e de a gente produzir aquilo que dá dinheiro e depois comprar o arroz do Maranhão, onde é feito sem nenhuma irrigação?

Ciro Gomes: Bom, o arroz entrou como componente para aproveitar as várzeas do Iguatu, que são absolutamente próprias para o arroz; e é uma cultura de capitalização, ao contrário do milho e do feijão, que são culturas de subsistência - o arroz tem uma rentabilidade maior. Eu também acho... A minha obstinação no Ceará é tentar, inclusive, a tal semente selecionada. Para entrar, a gente precisa fazer propaganda na televisão para as pessoas não comerem as sementes selecionadas. A gente lembra que aquilo tem defensivo agrícola, que pode intoxicar e, com isso, vai-se tentando mudar hábitos culturais. Mas não se faz isso do dia para noite e nem isso é uma política estatal. A questão fundiária é uma questão concreta, a questão do mercado e da iniciativa privada são questões concretas. Felizmente, nós temos uma fronteira, que é a fruta, que tem alto valor agregado e está começando a funcionar...

Evaristo Eduardo de Miranda: Caju, não é?

Ciro Gomes: Não, caju é menos, não é? O caju está um pouco em crise, porque também se cometeram muitas bobagens na área técnica. Fizeram monocultura de caju, aquilo predispôs o caju a pragas, a tracnose etc. Outra coisa: a forma de plantar - Você ter a ilusão de que plantar castanha grande do caju grande, vermelho, ia reproduzir uma árvore. Aquilo provocou uma degenerescência genética nas matas e hoje temos uma perda grave de produtividade, que é outro fator de empobrecimento.

Evaristo Eduardo de Miranda: Apesar de exportar, o Ceará exporta o equivalente da indústria da seca, não é?

Ciro Gomes: Não, mas hoje temos o mais avançado centro da Embrapa nessa área e estamos produzindo clones com engenharia genética. Hoje, você já faz uma muda clonada de cajueiro. E isso é um esforço de mudança, de reversão disso. Mas havia também problemas de comercialização, um processo de espoliação do produtor que aviltava os preços. Esse conjunto de problemas, que estão ao redor de uma política agrícola que está se tentando mudar e que explicam o porquê...

Evaristo Eduardo de Miranda: Mas no que eu concordo com o Aldo, até concluiria aqui, na nossa intervenção, mas como técnico, é que esse exemplo de uma agricultura se desenvolvendo no Ceará, de uma agricultura que tem um mínimo de resistência à seca, acho que seria um exemplo fundamental que o estado daria para o resto do Nordeste.

Ciro Gomes: Sim, mas você quer fazer o quê? Um PDCA [plano de solução de problemas usado, por exemplo, em maximização de lucros; a sigla significa os passos Plan (planejar), Do (executar), Check (verificar) e Act (agir)], como os japoneses, um pequeno módulo lá? Eu tenho já, para lhe mostrar... Quer ver um negócio produzindo 15 mil por hectare de acerola? Tem lá muitos. Estou falando de solução de massa.

Evaristo Eduardo de Miranda: Solução de massa.

Ciro Gomes: Solução de massa esbarra na questão fundiária, esbarra na questão do solo, esbarra na questão do clima, esbarra, enfim, no padrão cultural das pessoas.

Evaristo Eduardo de Miranda: Na questão fundiária. É possível fazer alguma coisa?

Ciro Gomes: Como, se a Constituição tirou dos governos estaduais a faculdade de intervir nos processos? Eu hoje faço voluntariamente... Consigo duas propriedades por mês para comprar e fazer assentamentos, mas eu estou proibido, pela Constituição brasileira, de apoiar a reforma agrária.

Carlos Escosteguy: Governador, três telespectadores - mudando um pouquinho de assunto -, um pergunta, o outro afirma e um segundo faz uma crítica, vamos dizer assim. O Aramin Chain, de Curitiba, pergunta se, com todo o seu trabalho como governador, as favelas no Ceará diminuíram ou aumentaram. O Luiz Estefânio, de Bragança Paulista, pergunta como o governador explica o seu grupo político estar no poder há sete anos no Ceará e não ter mudado nada, continua um estado pobre e miserável. E Maria Alice Lima, de Fortaleza, diz que o governador gasta tanto dinheiro com propaganda, ao invés de pagar um salário digno para os servidores públicos; Fortaleza, segundo ela, está empesteada de favelas.
 
Ciro Gomes: Bom, favelas, nós temos muitas em Fortaleza. É uma cidade de dois milhões de habitantes que dobrou de população a cada quinze anos nos últimos trinta anos, de modo que foi um processo de migração violento que apanhou, inclusive, a cidade completamente desprovida de planos. Eu sei bem, porque nós falamos como prefeito, que eu fui. Hoje, temos um processo muito agressivo de enfrentamento disso. Nós temos um programa de urbanização de favelas, por exemplo, que é muito amplo. Ela, que mora em Fortaleza, poderia fazer uma visita em Genibaú, que era a maior favela de Fortaleza e que está 100% urbanizada. Poderia visitar o conjunto Ceará, que foi completamente urbanizado - seria a quinta maior cidade do estado, não fosse um bairro de Fortaleza. Pode visitar hoje as obras de urbanização da favela do Castelo Encantado, de urbanização de favela do Serve Luz, de urbanização de favela Dom José, de urbanização de favela no Jardim Iracema, que também está em execução hoje, são programas de 24 meses. Parece que há uma diretriz muito clara. Hoje, por coincidência, eu assinei 31 milhões de dólares de contratos na área de drenagem, que é urbanização de favela, e de saneamento básico e de preparo da cidade para receber o mais agressivo programa de saneamento básico em curso no país.

Carlos Escosteguy: E o salário do funcionalismo? Teve essa ameaça de greve aí no processamento de dados e agora o telespectador...

Ciro Gomes: O salário do funcionalismo do Ceará é precário. Ninguém, entretanto, tem mais aquele vexame que tinha no passado. Lembrando: quando nós assumimos o governo com o Tasso, há seis anos...

Carlos Escosteguy: Vexame do passado em termos de salário?

Ciro Gomes: Hã?

Carlos Escosteguy: O vexame do passado...

Ciro Gomes: Isso. Os vexames que se tinha nessa área, também.

Carlos Escosteguy: ...em termos de salário?

Magno Martins: É, teve um aperto lá.

Ciro Gomes: Isso. Há seis anos atrás, não, sete, quando o Tasso assumiu, toda a receita do estado só dava para pagar 70% de uma folha de pessoal. 42% dos funcionários ganhavam meio salário mínimo e todos estavam três meses atrasados nos seus vencimentos. O décimo-terceiro salário nunca havia sido pago; a última vez que foi pago foi com cheque sem fundo, chamado "Gonzagueta", que era basicamente...

Carlos Escosteguy: "Gonzagueta"?

Ciro Gomes: "Gonzagueta", porque o cidadão era obrigado a trocar aquele cheque em determinadas lojas do comércio com deságio de 30% ou 40%...

Carlos Escosteguy: De um senhor chamado Gonzaga?

Ciro Gomes: Era o governador da época. [Gonzaga Mota, que governou de 1983 a 1987]

Carlos Escosteguy: Ah, certo!

Ciro Gomes: [continuando] ...de 30% ou 40%. Parece que hoje tudo é diferente. O salário-base do Ceará é o salário mínimo - o que quer dizer que nenhum servidor ganha só o salário mínimo, todo mundo ganha pelo menos um pouquinho a mais do salário mínimo. Nós conseguimos dobrar, em valores reais, o salário do magistério; conseguimos evoluir, em valores reais acima da inflação, as categorias de saúde, os profissionais de saúde - demos prioridade a essas duas categorias. Resolvemos, já, o plano de carreira do magistério, resolvemos o plano de carreira das carreiras jurídicas, que são salários já compatíveis com o mercado. Temos, enfim, regularidade. O funcionário, hoje, recebe, no primeiro dia do ano, um calendário impresso dizendo que dia...

Magno Martins:
Quanto se gasta com pessoal, hoje?

Ciro Gomes: Hoje, nós gastamos... Estou anunciando amanhã o reajuste deste mês, e isso...

Magno Martins: Em relação à folha, responde por quanto?

Ciro Gomes: 60%, 57%.

Magno Martins: O reajuste é mensal lá?

Ciro Gomes: Não, o reajuste é trimestral, com base na inflação do período.

Kaíke Nanne: Governador, o senhor tem conversado freqüentemente com o governador de São Paulo, [Luiz Antônio] Fleury [Filho, que governou de 1991 a 1995] sobre a crise do PMDB. Até que ponto o senhor acha que...

Ciro Gomes: Não, olha...

Kaíke Nanne: Até que ponto o senhor acha que o ex-governador [de São Paulo, Orestes] Quércia [que governou de 1987 a 1991] arranhou a imagem do governador Fleury?

Ciro Gomes: Olha, eu não gosto de falar...

Carlos Escosteguy: O Carlos Zeli Marques, de São Paulo, faz uma pergunta também em relação ao ex-governador Quércia: "Como o senhor vê a queda do ex-governador Orestes Quércia?"

Ciro Gomes: Eu enfrentei muito frontal e claramente o que eu considero... não é a pessoa, mas um conjunto de valores fechados, simbolicamente, na personalidade do ex-governador Quércia. Hoje, eu acho que não é ético tripudiar sobre uma pessoa que retirou-se do processo. Pelo contrário...

Kaíke Nanne: O senhor acha que ainda é possível ele dar a volta por cima?

Ciro Gomes: Hein?

Carlos Escosteguy: O senhor acha que ele se retirou do processo?

Ciro Gomes: Pelo menos formalmente. Agora, está visto, não é?

Kaíke Nanne: O senhor suspeitou de uma tramóia que estaria acontecendo?

Ciro Gomes: É, o que eu quis dizer naquele momento - foi um jornalista que me perguntou - é que precisava ver se essa não era uma mera manobra tática para sair da linha de frente dos ataques, do esclarecimento na hora que a coisa está ficando mais clara e, com isso, manipular as coisas para amanhã aparecer novamente.

Kaíke Nanne: E qual é a sua visão depois de analisar...

Ciro Gomes: Nós temos que continuar olhando isso.

Carlos Escosteguy: Heródoto e Alon, em seguida.

Heródoto Barbeiro: Governador, primeiro, o seguinte: quanto o senhor gasta em viagens? Tenho visto o senhor sempre aqui em São Paulo viajando...

Ciro Gomes: Eu viajo pela Transbrasil. Quanto custa uma viagem de São Paulo para cá: é isso que eu gasto.

Carlos Escosteguy: Só para complementar a pergunta do Heródoto: a Márcia Corrêa, de Campinas, telefonou dizendo - até fazendo um pouco de ironia - que gostaria de saber quem está governando o Ceará se o governador está sempre viajando em São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro etc.

Ciro Gomes: O vice-governador ocupa o governo do estado e o telefone me ajuda bastante.

Heródoto Barbeiro: Governador, ainda nessa linha, só para completar a pergunta...

Ciro Gomes: Agora, hoje, por coincidência, estou aqui assinando um convênio com a TV Cultura que vai, a partir desse convênio, tocar conosco na TV Educativa o sinal...

Carlos Escosteguy: Muito justo.

Ciro Gomes: Em Brasília, eu estive nesta semana porque eu fui levar lá minha presença na Comissão Nacional da Seca, da qual eu faço parte, e tive também um chamamento do presidente para discutir. Realmente, não me agrada muito cada dia acordar num lugar. Mas, infelizmente, é o ônus, o osso do ofício.

[sobreposição de vozes]

[...]: O senhor está pensando no Palácio do Planalto?

Carlos Escosteguy: Um minutinho, por favor! Faz a pergunta...

Ciro Gomes: Claramente, não sou candidato, não sou soldado do partido, não estou à disposição das bases.

Magno Martins: Mas o senhor tem uma... Discurso de candidato, o senhor tem.

[sobreposição de vozes]

Carlos Escosteguy: Só para completar a segunda parte da pergunta...

Ciro Gomes: É só discurso.

Heródoto Barbeiro: É fato que, na Comissão Estadual de Seca, não existe nenhum deputado da oposição, são todos do PSDB? O último que tinha lá era do PDC [Partido Democrata Cristão, que existiu até abril de 1993, quando se fundiu ao PDS, formando o Partido Progressista Reformador (PPR)]?
 
Ciro Gomes: Olha, eu vi esse fax lá e pedi até ao [superintendente da Sudene] dr. Cássio Cunha Lima [governador da Paraíba de 2003 a 2009] que apurasse. O problema é que tem a regulamentação. O governo federal diz lá que a Comissão Estadual deve ser integrada pelo Ministério Público, pelo Exército, pela Assembléia Legislativa - [esta com] três membros, dois da maioria e um da minoria - o Sindicato dos Trabalhadores rurais etc etc. Resultado: eu mandei um telegrama para cada uma das instituições, mandei para o Fetraece [Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura do Estado do Ceará] - não sou eu que escolho -, mandei para a Federação dos Trabalhadores de Agricultura: "Está aqui um lugar na Comissão Estadual. Por favor, indique." Vai lá o presidente. O da Associação dos Produtores, dos Proprietários, não sou eu que indico, eu digo lá: "Associação dos Produtores, tem um lugar aqui." Ministério Público, não sou eu que indico: "Ministério Público, tem um lugar aqui." O Exército, eu vou lá escolher o coronel? Não vou, eu mando lá para o comandante da região dizer quem é o representante. A mesma coisa eu fiz com a Assembléia, e eu tenho cópia de tudo: "Senhor deputado, presidente da Assembléia, tem aqui três lugares conforme critério tal para o senhor mandar" - e ele mandou dois deputados de um partido e um de outro.

Carlos Escosteguy: Governador...

Ciro Gomes: Sou eu que vou escolher?

Carlos Escosteguy: Para encerrar...

Ciro Gomes: Agora, tem um problema com a oposição do Ceará. É que, dos 46 deputados, 36 apóiam o governo. Aí, é um problema.

Carlos Escosteguy: Governador, para encerrar nossa entrevista, aproveitando a deixa do Magno, tenho muitas perguntas de telespectadores, todas basicamente a respeito dos seus planos políticos para o futuro. O senhor, inclusive, declarou, antes do plebiscito [de fevereiro de 1993, para decidir a forma e o sistema de governo brasileiro, e que decidiu pela república presidencialista], que, se vencesse o presidencialismo, o senhor sequer seria candidato a deputado federal e o presidencialismo venceu. Márcio Satine, de São Bernardo do Campo [pergunta] se o senhor vai se candidatar a algum cargo eletivo depois da sua gestão como governador. José Henrique Figueiredo, de Campinas, perguntando se o senhor é candidato à presidência da República; José Amâncio Souza, de São Bernardo do Campo, também faz a mesma pergunta; Guaraciaba Araújo, de São Paulo, pergunta se o senhor vai se candidatar a presidente da República; Veder Kitayama, de São Paulo, faz a mesma pergunta; Paulo Rodrigues, de Perdizes, em São Paulo, também a mesma pergunta, sobre sucessão presidencial; Maria Lucia Prosdócimo, de Belo Horizonte, Alberto Ferreira, aqui de São Paulo e Cícero Carvalho de Souza, também de São Paulo, os dois últimos, Alberto e Cícero, perguntam se, de repente, o senhor não seria, como candidato ou, talvez depois, como presidente, um engodo, como foi Collor de Mello. O Alberto fala inclusive no seu marketing, Ciro Gomes, do prestígio político que o senhor tem. Por favor.

Ciro Gomes: Olha, uma das coisas que o ex-presidente Collor fez ao Brasil, além desse mal todo, a destruição da administração pública, a destruição da confiança das pessoas, ele trouxe ainda, como um subproduto deplorável, essa carga de preconceito. Toda a juventude brasileira hoje está sob suspeição. Acho que esse meu jeito... Quer dizer, uma pessoa que tem 35 anos de idade, que é um governador de estado... Algumas pessoas acham que eu faço marketing e que eu pouco estou ligando para esse negócio. Eu digo...

Carlos Escosteguy: Às vezes, o pouco ligar é um marketing.

Ciro Gomes: Talvez possa ser, não é? Mas eu não componho imagem, não faço, não agrado as pessoas, não estou a fim de bajular frações de opinião; às vezes, até me dizem, [sou] uma pessoa fechada, enfim. Mas eu me incomodo muito com o preconceito. Eu não sou candidato, não quero ser, está todo mundo desobrigado de qualquer coisa, não quero ser candidato. Não acredito nisso aí, nesse presidencialismo no Brasil, não acredito. Acho que essa mistificação de dizer: "Se fosse eu, seria diferente, deixa comigo que eu faço!" - isso está semeando o caos no Brasil. Se a próxima sucessão presidencial for marcada por essa mesma mistificação, eu não voto em ninguém.

Carlos Escosteguy: O senhor acredita que ainda há espaço para essa mistificação depois do fenômeno Collor?

Ciro Gomes: Olha, o processo cultural brasileiro... É mais uma vez o que eu digo: a democracia não é um regime de concessão, democracia não é um regime ofertado paternalisticamente de cima para baixo; democracia é um exercício de cidadania que nós temos que aprimorar todos os dias. E não há outro caminho para a dignidade. Mas, veja, não adianta, você fica falando as coisas, você quer discutir as coisas... Se você não colocar formalmente o que é, que é uma coisa que eu gostaria... As pessoas que, por exemplo, duvidarem, vão lá no Ceará, conversem com meus opositores, vejam a qualidade da crítica que se sustenta. Não sou candidato a nada, não quero ser candidato a nada. Digo brincando, mas podem anotar, porque isso pode ser sempre cobrado: eu não sou soldado de partido, não estou à disposição...

Carlos Escosteguy: Não é soldado do partido?

Ciro Gomes: Não estou à disposição das bases e meu futuro a Deus pertence no que refere a minha saúde. Mas candidato eu não sou. Para mim, chega!

Carlos Escosteguy: Bom, anotado e gravado aqui na TV Cultura.

Ciro Gomes: Então!

Carlos Escosteguy: Nós agradecemos então a presença nesta noite, aqui na Roda Viva, do governador do Ceará, Ciro Gomes. O Roda Viva fica por aqui e volta na próxima segunda-feira às dez e meia da noite. Até lá, muito obrigado e uma boa noite a todos!

 

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